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domingo, 28 de julho de 2024

20 filmes... daonde mesmo? - Filmes de países com pouca (ou nenhuma) tradição no cinema mundial

 





E começaram as Olimpíadas!!!
Sabe quando começam a passar aquelas delegações na cerimônia de abertura e a gente estranha cada país que nem fazia ideia que existisse, ou, em alguma competição qualquer a gente pensa, "nem sabia que se praticava esse esporte num lugar desses..."? Pois é. Em cinema às vezes acontece algo parecido. Acostumados com o cinema norte-americano e mais uns três ou quatro núcleos cinematográficos tradicionais como França, Itália, Alemanha talvez... uma Suécia vá lá, um Japão por causa do Kurosawa e dos filmes de terror refilmados em Hollywood, Espanha pelo Almodóvar, mexicanos e sul-coreanos que estamos acostumando agora, argentinos cada vez mais consolidados e tal, mas, de um modo geral, até pelo bombardeio midiático, pelo apelo comercial ainda é estranho ver produções de lugares como África, América Central ou Leste Europeu.
Eis que, hoje, depois da entrada das delegações na Olimpíada do ClyBlog, o Claquete destacará filmes de alguns desses lugares que nem sempre têm potencial para ganhar uma medalha de ouro, mas que, podem crer, não fazem feio diante das potências cinematográficas, sendo inclusive, muitas vezes inspiração para muitos remakes na terra do Tio Sam.
Seguem abaixo 20 filmes daqueles lugares que a gente só lembra no dia da abertura das Olimpíadas. Alguns são bem desconhecidos, outros nem tanto, outros já gozam de um status de cult, alguns até premiados são, mas o que todos tem em comum é que são daqueles lugares que muita gente perguntaria, "mas se faz filme nesse lugar?". Se faz, sim. E coisa boa.

🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬


1. "A Felicidade das Pequenas Coisas", de Pawo Choyning Dorji (
🇧🇹Butão /2019): E lá se faz cinema no Butão??? Não só se faz cinema, como se faz um baita filme. Um jovem professor, cujo sonho verdadeiro é ser cantor e morar na Austrália, é designado pelo governo butanês a lecionar numa escola... no fim do mundo. No ponto mais alto do país, acesso dificílimo, depois do transporte rodoviário dias de caminhada montanha acima, sem telefone, sem internet, com poucos recursos, sem nada que o jovem Ugyen estava acostumado na capital. Contrariado, do início, Ugyen vai se apegando ao local, à pequeníssima população, aos costumes, às crianças e até a um yak, animal típico da região que, por vezes tem que ficar dentro da sala de aula e 'morar' na escola. Belíssimo filme indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2022.






2. "O Assobio do Mal", Gisberg Bermudez Molero (
🇻🇪Venezuela /2017): O longa, inspirado em tradições e lendas venezuelanas, traz a figura do Assobiador, um espírito que assobia antes de atacar, uma figura fantasmagórica que segundo se fala, aparece à noite e devora pessoas. Embora um pouco picotado na narrativa, parecendo uma colcha de retalhos, o filme não é mau. Tem até uma boa produção, boa direção de arte, fotografia adequada para a proposta e boas opções estéticas. E o melhor, para quem gosta de terror: consegue ser bem brutal em determinados momentos.







3. "A Green Fever", de Taiwo Egunjobi (
🇳🇬Nigéria /2023): Em um país sob estado de sítio, um arquiteto pede socorro em uma mansão isolada, de propriedade de militares, a fim de socorrer sua filha que ele alega sofrer de uma rara doença chamada Febre Verde. Lá, num clima de constante desconfiança e ameaça, o arquiteto depara-se com situações de corrupção e crueldade por parte dos militares. Mas existe a tal febre ou aquilo seria somente um pretexto para que um civil rebelde se infiltrasse dentro de um núcleo ditador? Filme com alguns problemas, algumas travas, elementos que poderiam ter uma condução melhor, mas não há como negar que mantém o espectador tenso do início ao fim.







4. "Cemitério Geral", de Dorián Fernadez-Moris (
🇵🇪Peru /2013): Invocação por tábua Ouija e tal, só que aqui, dentro de um cemitério e registrada em estilo documental por um dos integrantes da expedição sinistra. Meio tosco é verdade, mal iluminado em determinados momentos, amadorísticos às vezes... mas talvez, exatamente essa limitação torne "Cemitário Geral" mais assustador. A correria entre as vielas do cemitério é inquietante, as imagens em visão noturna, mesmo já tão batidas pelo uso excessivo em filmes do gênero, são aterrorizantes. Não se engane pensando, "ah, terror peruano...". Não caia nessa. É dos bons found-footage que existem por aí.








5. "Cafarnaum", de Nadine Labaki (
🇱🇧Líbano /2018): Filme pesado sobre a dura realidade de crianças no Líbano, seja nas relações familiares, no trabalho infantil, na exploração sexual, seja no que for... Aos doze anos, Zain, sobrecarregado com obrigações do lar de pais ausentes, se revolta definitivamente quando sua irmã de onze é forçada a se casar com um homem mais velho. Ele então foge de casa e passa a viver nas ruas junto aos refugiados e outras crianças que, diferentemente dele, não chegaram lá por conta própria. Entre tantas qualidade do longa está a opção por usar a câmera na mão, muitas vezes à altura dos olhos do menino, reforçando a sensação de realidade e aumentando o impacto de tudo aquilo que estamos vendo. Destaque para atuação do menino Zaim, que transmite uma verdade, uma intensidade incrível em cada uma de suas cenas.
"Cafarnaum" foi vencedor do Prêmio do Júri em Cannes em 2018






6. "Espíritos - A Morte Está a Seu Lado", de Banjong Pisanthanakun e Parkpoom Wongpoom (
🇹🇭Tailândia /2004): Nem todo mundo sabe mas a Tailândia é uma grande produtora de filmes de terror e um dos mais célebres representantes desse segmento no cinema tailandês é "Espíritos - A Morte Está A Seu Lado", filme que já ocupa seu lugar entre os clássicos do horror.
Desde que atropelou uma pessoa e fugiu da cena do acidente, um fotógrafo, Thun, passa a ser atormentado por visões e começa a identificar sinais sobrenaturais em suas fotos. Intrigado, ele e a namorada passam a investigar as fotos e curiosamente as pistas sobre as aparições vão convergindo para o próprio Thun e para alguns de seus amigos que, "coincidentemente" começam a morrer de forma trágica, um a um.
As figuras nas fotos já são de arrepiar, mas a cena final do filme é de ter pesadelos.







7. "Baskin", de Can Evrenol (
🇹🇷Turquia /2015): Terror bizarro!
Um grupo de policiais, de folga num bar, recebe uma chamada de um lugar que supunham nem existir mais. Mas, ok, se estão chamando de lá, então, vamos atender a chamada... No caminho sofrem um acidente, buscando socorro encontram pessoas estranhas e ameaçadoras e refugiam num casarão, que por acaso, revela-se o próprio local da missão. O problema é que o lugar é o verdadeiro inferno! Um antro de tortura e dor onde delírios, pesadelos, demônios interiores e demônios reais revelam-se para punir a cada um deles, tudo liderado por um anão careca deformado, uma espécie de mestre de cerimônias do inferno, que conduz as ações mais sádicas e brutais.
Um dos filmes mais repulsivos e perturbadores que já assisti.
Pra completar, o final é um verdadeiro nó na mente.
Ponto pro cinema turco.






8. "Rafiki", de Wanuri Kahiu (
🇰🇪Quênia /2018): Aquela conhecida luta contra o conservadorismo muito bem retratada, desta vez mostrando a realidade num país africano. Duas amigas, Kena e Ziki, acabam se apaixonando e, além de lutar contra as diferenças das famílias, rivais na política local, têm que encarar o preconceito da sociedade. Num ambiente altamente homofóbico e violento, elas precisam fazer a escolha entre viver suas vidas como querem ou encarar as ameaças que aquela situação acaba lhes gerando.
O filme foi festejado em Cannes, teve reconhecimento mundial para o novo cinema africano, mas, por outro lado, acabou banido de seu próprio país por conta da temática homossexual, proibida no país.
Mexeu em algo que incomodou...
Não é pra isso que serve a arte?
 


 


9. "JeruZalém", de Doron Paz e Yoav Paz (
🇮🇱Israel /2015): Terror foud-footage, em primeira pessoa mas não gravado com uma câmera na mão e sim com um Google Glass.
Uma jovem norte-americana de origem israelense, viaja para a Terra Santa, acompanhada da melhor amiga, a fim de espairecer um pouco depois da prematura morte do irmão. Ela usa o óculos tecnológico a pedido do pai, de modo a manter a comunicação e também estar sempre conectada com informações, pontos turísticos, eventos, etc. Só que lá, entre festas, namoros, bebedeiras, está se dando o início de um anunciado apocalipse previsto por todas as religiões. Algo como zumbis-demônios-vampiros alados tomam conta de tudo atacando as pessoas e transformando-os também em mortos-vivos. Daí é que a correria começa e não para! Vielas, túneis, lugares sagrados, cavernas, tudo na visão do óculos tecnológico da turista.
A última meia hora é frenética e o final é bem interessante, de certa forma dialogando com tudo isso que está acontecendo hoje, na Faixa de Gaza. Se ninguém se entende, se continuarem brigando a vida inteira por convicções, religião, território, ou seja lá o que for, Israel, a Palestina, tudo vai se transformar num inferno.






10. "Fantasmas do Passado", de Óskar Thór Axelsson (🇮🇸Islândia /2013): Duas situações aparentemente sem relação alguma: uma senhora suicida cujo caso é analisado por um psiquiatra que, por acaso, também enfrenta um drama pessoal do desaparecimento do filho; e um casal que se compra uma casa e se muda para uma região isolada do país, para, além de reformar o local visando um um futuro empreendimento turístico, reafirmar a relação. Só que coisas esquisitas começam a ocorrer nas duas pontas da história. O psiquiatra encontra cruzes misteriosas nas costas do cadáver da idosa, fotos de crianças desaparecidas em outras épocas e, além disso começa a ter visões de uma criança que pode ser seu filho. Na casa velha, Katrin, a esposa, começa a ver coisas e perceber alguma presença sinistra no lugar.
Como essas coisas se juntam? Não vou revelar porque você pode topar com o filme por aí e não vai querer que eu quebre a surpresa, mas pode acreditar que desfecho é absolutamente inesperado e faz valer todo o enredo e a condução lenta e paciente do diretor Óskar Thór Axelsson. O que posso adiantar é que a resposta estava por perto o tempo todo






11. "Antes da Chuva", Milcho Manchevski
  (🇲🇰Macedônia /1994): Um lamento pela guerra e pelos conflitos da antiga Iugoslávia, "Antes da Chuva" traz três narrativas sobre os desencontros que as diferenças entre os homens podem causar. Na primeira, um monge se apaixona por uma jovem refugiada albanesa acusada de assassinato e abandona as obrigações monásticas para fugir com ela pelos vales da Macedônia; na segunda, uma fotógrafa, editora de imagem, em Londres, vive o dilema de continuar com o marido ou ceder à paixão pelo amante, um fotógrafo de guerra macedônio que reaparecera em sua vida; e na última, que incorpora as duas anteriores, o mesmo fotógrafo, o amante da história anterior, volta à sua terra natal a fim de permanecer por lá, mesmo com todas as dificuldades, diferenças e desavenças que vive o país.
Pequeno recorte dos conflitos que dividiram um país, separaram pessoas e destruíram vidas.
Ganhou o Leão de Ouro em Veneza, em 1995.






12. "Cão Come Cão", de Carlos Moreno (
🇨🇴Colômbia /2008): A realidade dura da pobreza, da violência e do domínio do tráfico em algumas regiões da Colômbia é tema recorrente no cinema do país, e um dos filmes que retratam situações envolvendo o submundo do crime é o bom "Cão Come Cão", um thriller policial astuto, envolvente repleto de regionalismos e características típicas da cultura da América do Sul, como música, dança e misticismo.
Após a morte de seu afiliado, El Orejo, um violento chefe do tráfico em Cali, ligado ao vudu, contrata dois matadores para um serviço e os põe hospedados num mesmo quarto de hotel, esperando instruções de um terceiro homem sobre a missão que ainda desconhecem. Na verdade, sabedor que um deles fora o responsável pela morte de seu sobrinho e que o outro ficara com uma quantia sua em uma transação, o chefão pretende mesmo é que um devore o outro. Que um cão coma o outro.
Filme policial bem tramado, repleto de contornos e envolvimentos. Uma espécie de Tarantino sul-americano.





13. "Macabre", de Kimo Stamboel, Timo Tjahjanto (
🇮🇩Indonésia /2009): Aquela mania de ser gentil, solidário... Um grupo de amigos, a caminho do aeroporto, socorre uma mulher na beira da estrada e, ainda com muito tempo antes do voo, resolve levá-la para casa. Chegando lá, em agradecimento, a garota socorrida convida os bons samaritanos a entrarem, comerem alguma coisa, e diante de tanta gentileza e insistência da mãe da jovem, resolvem aceitar. Péssima ideia!
Ao ficarem presos ali, à mercê daqueles psicopatas, é dado início ao pior pesadelo que poderiam imaginar. Canibalismo, mutilações, crueldades, sadismo, um banho de sangue como poucas vezes se vê no cinema.
A família, liderada pela belíssima matriarca Dara, lembra a do "Massacre da Serra Elétrica" só que sem aquela sutileza da sugestão do clássico de 1974. Aqui não tem sutileza. É hardcore, mesmo.







14. "A Onda", de Roar Uthaug (
🇳🇴Noruega /2015): Os noruegueses, de uns tempos pra cá, enveredaram para fazer filmes catástrofe e, olha, não se saíram mal. "Terremoto", "O Túnel", "Presos no Gelo", todos atendem bem as exigências do gênero.
"A Onda" é um bom filme na categoria. Tem uma boa premissa, coerência, mantém o espectador tenso e não decepciona nos recursos técnicos, qualidade atestada pela indicação ao Oscar de melhor filme internacional no seu ano de lançamento.
Uma avalanche provoca um descolamento de um fiorde causando uma onda gigantesca que atingirá em cheio o povoado de Geirander. Como de costume, alguém avisou e não quiseram ouvir: o geólogo Kristian, mesmo diante da oportunidade de sair da cidadezinha e trabalhar na capital num bom emprego, alertado por anomalias nas leituras dos índices, resolve ficar e salvar quem conseguir, inclusive sua família. Quem devia tomar providências de alerta, evacuação e tudo mais, não deu a devida atenção, aí, o que resta? É correria e cada um tentando salvar suas vidas.
Como a gente já sabe, uma tragédia sempre começa quando um cientista avisa e as autoridades demoram para agir...




15. ""Conflitos Internos"", de Andrew Lau e Alan Mak (
🇭🇰Hong Kong /2002): Já citado aqui no Clyblog, "Conflitos Internos", originou o remake "Os Infiltrados", de Martin Scorsese.
A refilmagem realmente é melhor e mais completa, mas a trama principal do filme honconguês, muito engenhosa e envolvente, não à toa inspirou os norte-americanos a aproveitarem seu enredo.
Um agente de polícia trabalha infiltrado na máfia, e um "afilhado" de um mafioso, formado na academia policial, trabalha na polícia, a serviço do criminoso. Percebendo que informações vazam, tanto para a lei quanto para os criminosos, a polícia e a máfia, iniciam suas caças particulares ao respectivo informante, gerando situações de perseguição, suspense e constante expectativa.
"Conflitos Internos" não é o único caso de thrillers policiais interessantes produzidos por lá e, para os mais desavisados, pode-se até afirmar que Hong Kong é especialista nesse tipo de produção.




16. "A Casa", de Gustavo Hernández (
🇺🇾Uruguai /2010): Que a Argentina tem uma excelente produção cinematográfica a gente já sabe, mas... o Uruguai??? Sim, os outros vizinhos aqui do Prata também sabem fazer bons filmes e um que merece destaque especial é o terror psicológico "A Casa", longa já mencionado aqui no ClyBlog, o primeiro filme de terror a ser feito em uma tomada, sem cortes, em plano sequência.
Na história, uma jovem (Laura) vai com seu pai a uma casa de campo de um amigo da família para dar ao local alguma manutenção e limpeza enquanto o dono se ausenta. Lá ela começa a sentir, ver, perceber coisas estranhas que parecem querer lhe revelar algo. Ruídos e movimentos misteriosos assombram a garota e, de certa forma, a chamam para o andar de cima onde verdades inesperadas (até para o espectador) acabarão se revelando. Impactante!
Sim, o Uruguai está no mapa do cinema. Tanto está que os norte-americanos copiaram e já meteram um remake desse novo clássico do terror, o também bastante bom "A Casa Silenciosa". Esses EUA não perdem tempo...






17. "Dente Canino", de Yorgos Lanthimos (
🇬🇷Grécia /2009): Antes de entrar no grande circuito e  conquistar Hollywood com "A Favorita" e "Belas Criaturas", o diretor Yorgos Lanthimos já produzia coisas bem interessantes em seu país de origem, a Grécia. É o caso de "Dente Canino", filme que parte de um argumento bizarro mas nada absurdo. A ideia de proteger os filhos do mundo exterior e as questões originárias e resultantes dessa escolha. Por eles? Por mim? Pela família? Pela sociedade?
Na trama, um pai e uma mãe se utilizam de falsos argumentos, conceitos fictícios e regras próprias para manter os três filhos longe de qualquer contato com o mundo exterior, mentiras, traumas, castigos são utilizados de modo que os filhos sequer pensem em sair dos limites da propriedade da família. Não precisa nem dizer que no desenvolvimento dessa ideia, Lanthimos sabe ser chocante e impactante como poucos.
Um ensaio provocativo sobre família, poder, limites, sociedade  e individualidade, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2010 e o impulso definitivo para a entrada de Yorgos Lanthimos na cena dos grandes diretores da atualidade.






18. "À Sombra do Medo", de Babak Anvari (
🇯🇴Jordânia/🇶🇦Qatar /2016): Mais um terror? Eu sei, eu sei... Mas esse não é exatamente um filme de terror. Aparentemente um filme de assombração, fantasmas e tal, mas no fundo, na verdade, um drama humano repleto de simbologias. Um drama sobre o terror da guerra e o impacto que essa praga tem, especialmente sobre as partes frágeis dessa irracionalidade: as mulheres e crianças. Uma mãe, em meio à guerra Irã-Iraque, nos anos 80, fica cuidando sozinha da filha quando o marido é recrutado para trabalhar nas trincheiras. No entanto, não ficam seguras onde estão, uma vez que sua cidade também sofre frequentes bombardeios. A rotina de explosões, ameaças, incertezas e medo afeta brutalmente a saúde mental das duas, mãe e filha e elas passam a ser atormentadas por 'assombrações' que rondam o apartamento onde vivem. O sumiço da boneca da menina como símbolo da perda infância, o hijab ameaçador (véu que cobre o rosto das mulheres muçulmanas) que as ataca, simbolizando a inferiorização da mulher, a sombra da bomba, presa na estrutura do telhado, como uma ameaça constante, simbolizando a constante ameaça das guerras, a projeção da sombra em forma de cruz, fazendo referência às crenças e aos conflitos por religião, fazem de "Sob a Sombra" mais que meramente um filme de terror.
Mesmo tendo um diretor iraniano, o longa, co-produção de Jordània e Qatari, com apoio britânico, caracteriza mais um daqueles casos nos quais um diretor não consegue trabalhar com liberdade criativa dentro do Irã, por conta das restrições e perseguições políticas e culturais, e acaba tendo que exprimir sua arte fora de seu país.







19. "O Cheiro da Papaia Verde", de Tran Anh Hung (
🇻🇳Vietnã /1993): Mui, uma mulher bem colocada socialmente, relembra os dias de dificuldade até chegar ali. Lembra que trabalhara para uma família rica no Vietnã, de como era bem tratada pela patroa que a tomava quase por filha, lembra de quando fora designada para uma família chinesa, de como as coisas pioram financeiramente e ela teve que ser encaminhada para um novo patrão, um pianista, por quem se apaixonaria e tornaria-se, depois, seu marido. Mas de todas as lembranças, o que faz seu fio da memória para os acontecimentos de uma vida é o cheiro do mamão papaia verde.
Um filme cujo maior mérito talvez seja essa capacidade de conjugar os sentidos, combinar imagem, com cheiro, fazer supor o sabor, o frescor da fruta, o calor de uma pele, os sons ocultos em cada uma dessas coisas.
Pra quem acha que Vietnã é só filme de guerra, Rambo, ameaça comunista americana, etc., "O Cheiro da Papaia Verde" é a resposta definitiva que não. O Vietnã é capaz de produzir um filme verdadeiramente saboroso.






20. "Infância Roubada", de Gavin Hood (
🇿🇦África do Sul /2010): Único filme africano a ganhar um Oscar, "Infância Roubada" acompanha a trajetória de Totsi, um jovem delinquente de vida sofrida, que após um acidente com um carro que roubara, descobre no banco traseiro um bebê. Desnorteado com a situação, ele leva a criança para seu bairro, na periferia de Johanesburgo e tenta convencer uma amiga, Miriam, a cuidar do bebê. O novo personagem em sua vida, a relação com uma jovem a quem pede ajuda pela experiência de maternidade, a criminalidade em seu bairro, a situação precária de vida, e a impotência diante de uma solução para o problema, desencadeiam uma série de novos sentimentos e sensações no rapaz que, até então, nunca tiver muito tempo nem atenção para emoções dessa natureza.
Tem filme bom na África também!




C.R.


segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

“Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese (2023)


INDICADO A
MELHOR FILME
MELHOR DIREÇÃO
MELHOR ATRIZ
MELHOR ATOR COADJUNVANTE
MELHOR TRILHA SONORA
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO
MELHOR MONTAGEM
MELHOR FOTOGRAFIA
MELHOR FIGURINO
 

Assisto Martin Scorsese no cinema há mais de 30 anos. Desde o célebre “Os Bons Companheiros”, em 1990, até hoje, acompanho a filmografia do cineasta nova-iorquino a cada lançamento, tendo perdido assim, na tela grande, talvez apenas uns dois nesse período. Vi desde produções menos empolgantes, como “Vivendo no Limite” e “O Irlandês” até obras-primas como “Os Bons...”, “Cabo do Medo” e “O Lobo de Wall Street”. Agora, em 2023, posso afirmar que presenciei mais uma de suas grandes realizações: “Assassinos da Lua das Flores”. Estrelado pelos dois atores favoritos do diretor, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, reúne pela primeira vez, por incrível que pareça, ambos em um filme sob suas lentes, celebrando o encontro de duas gerações de atores/parceiros da longa carreira.

O filme se passa no ano de 1920, na região norte-americana de Oklahoma, rica em petróleo, onde misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage. A série de ocorridos violentos desencadeia uma grande investigação envolvendo o recém-criado FBI, que passa a investigar um esquema maquinado pelo ganancioso pecuarista William Hale (De Niro), que convence seu sobrinho Ernest Burkhart (Di Caprio) a se casar com Mollie Kile (Lily Gladstone) para tirar-lhe as preciosas terras.

Llly no papel da rica indígena Mollie:
atuação que comanda o filme
O entrosamento do diretor de “Taxi Driver” com a dupla de atores é evidente, e isso é uma das forças do filme, tendo trabalhado com De Niro por 9 ocasiões e com DiCaprio, 6, totalizando 15, quase 60% de toda a filmografia do cineasta. “Assassinos...” é conduzido pelo talento da dupla, porém, assim como já ocorreu com Sharon Stone e Margot Robbie, outra atriz tem um papel primordial na trama, formando com eles um tripé narrativo, que dá especial ação à história: Lily Gladstone, no papel de Mollie. Ela divide as atenções da câmera, não raro atraindo-a para si e, mais que isso, ditando o aspecto emocional da história. Além de bonita, Lily é daquelas figuras, que, sob o olhar de Scorsese, tem o poder de dominar a cena quando filmada, principalmente pela força de sua expressividade e olhar, misto de encantamento, força e fragilidade. Quão simbólica é a sua personagem, uma vez que evoca a importância dos povos originários formadores das Américas tão dizimados pela cultura branca europeia.

Para além das boas atuações (que se estende a todo o elenco), “Assassinos...” é tecnicamente perfeito, como é característico do perfeccionista Scorsese. A Direção de Arte, a cargo de Jordan Crockett, em especial, juntamente com a fotografia, a maquiagem e os figurinos, são impecáveis, creio que dignas de indicação ao Oscar para 2024. A trilha sonora, do amigo e ídolo Robbie Robertson, ex-líder da The Band (a qual Scorsese filmara em 1978 no doc “The Great Waltz”) falecido em agosto, é econômica, mas totalmente assertiva, misturando os sons folk do interior norte-americano, desde o blues de raiz e os spirituals de trabalho a temas indígenas típicos. Na edição, mais uma vez a parceira Thelma Schoonmaker, fazendo chover e contribuindo para que um filme de extensas 3 horas e 26 minutos de rolo não perdesse o ritmo.

A multipremiada dupla De Niro/DiCaprio: ao todo,
15 filmes com Scorsese

Aliás, embora a montagem contribua para a coesão da obra, é indiscutível que o resultado final (seja acertado ou não) se deve em última análise ao diretor. E aí entra Scorsese e sua maestria. Com o aval da indústria cinematográfica para fazer produções no formato que quiser, seja longa, curta, documentário, série ou especial, ele não abre mão de estender-se para contar a história a que se propõe. E o faz isso sem provocar sequer uma “barriga” em todo o decorrer da fita! Atuações, música, arte, edição, foto, tudo contribuiu. Mas nada disso funcionaria não fosse a mão habilidosa do cara que já experimentou diversas formas de fazer filme, mas que busca, mesmo passados dos 80 anos de vida, surpreender o espectador. Contumaz crítico da “tecnologização” exacerbada de Hollywood e suas intermináveis e interdependentes franquias Marvel, Scorsese – embora não desconsidere o uso de efeitos especiais, a se ver por “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011 – vale-se da gramática do cinema para extrair nuances narrativas e técnicas que produzam impacto ao espectador. Isso, sim, é inovação. O uso de imagens de arquivo em P&B antigas com imagens de arquivo ”fake”, por exemplo, embora não novos, é um recurso que funciona muito bem em “Assassinos...”, cabendo-lhe perfeitamente à narrativa.

Foto dos verdadeiros Osage usadas
de forma documental no film
e
O roteiro, contudo, é responsável por tamanho sucesso. Escrito pelo próprio Scorsese em conjunto com o premiado Eric Roth (Oscar de Roteiro por “Forrest Gump”, em 1994), a história se baseia no best-seller homônimo do escritor David Grann, o roteiro prevê todos os diversos pontos de flexão e inflexão, estabelecendo o ritmo de uma história complexa e rica em detalhes e delineamentos. A própria escolha do tema, aliás, faz parte de um entendimento maior e, em certo aspecto, “alternativo” de Scorsese como cidadão norte-americano. Assim como outro talentoso cineasta contemporâneo seu, Clint Eastwood, Scorsese ama seu país, mas nem por isso (e até por isso) deixa de evidenciar as barbaridades que constituíram sua sociedade. A mesma abordagem crítica de obras como “Cabo do Medo” e “Taxi Driver” se refletem na sua visão revisionista em filmes históricos, casos de “Gangues de Nova York” e “A Época da Inocência”. É preciso trazer a luz a podridão do passado para que os novos tempos corrijam os rumos.

A este aspecto o roteiro também traz méritos no que se refere à construção psicológica das personagens. A obra original favorece, mas dar corpo a personagens tão complexos no audiovisual ganha uma dificuldade diferente, visto que diversas nuances que a escrita absorve, a tela exige que se escancare. A personalidade contraditória de Ernest, por exemplo, ora um marido dedicado, ora um ganancioso induzido pelo tio, é facilmente indutora a erros, por mais talento que Di Caprio tenha. 

Misturando drama histórico com faroeste, policial e filme de tribunal, Scorsese consegue forjar um filme rico em referências e qualidades diversas, que o colocam entre os melhores de sua longa filmografia. Se serão justos com o velho Scorsese ao indicá-lo ao Oscar, bem como DiCaprio como ator, Lily para atriz e DeNiro em coadjuvante, ainda é cedo para prever. É comum a Academia fazer “vistas grossas” a grandes realizadores como ele, Steven Spielberg, Spike Lee ou Brian De Palma como que fazendo de conta que eles sejam “premiáveis” por si só - erro que a leva, não raro, a ter que dar apressadamente um prêmio logo após cometerem uma descarada injustiça. Nestes vários anos que acompanho Scorsese seja na tela grande ou na televisão, ele ganhou apenas uma vez o Oscar de Direção pelo não mais que competente “Os Infiltrados”, em 2006, por terem-no esnobado pela superprodução “Gangues...” quatro anos antes. Porém, até o começo de 2024, quando começam a pipocar as previsões dos favoritos à estatueta, ainda tem bastante coisa para rolar e a indústria do cinema é muito programada para este período. Mas que seria justo, seria.

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trailer de "Assassinos da Lua das Flores"




Daniel Rodrigues

domingo, 24 de setembro de 2023

"Conflitos Internos", de Andrew Lau e Alan Mak (2002) vs. "Os Infiltrados", de Martin Scorsese (2006)

 



"Conflitos Internos" é aquele time que ganha, com uma certa facilidade, a maioria dos jogos na sua liga continental. No quesito filme policial certamente ele se destaca em relação a seus concorrentes asiáticos. Uma ótima trama, surpresas, reviravoltas, tensão, a produção de Hong Kong entrega tudo isso e deixa o espectador na constante expectativa de como seu jogo de gato e rato vai terminar. Só que quando ele sai da seu cercadinho e pega um time de uma liga maior, mais tradicional, mais bem preparado, com maior investimento, um elenco milionário e um baita treinador, não dá nem pra saída. Embora não seja regra que com todas essas vantagens um filme norte-americano supere uma produção de mercados alternativos, "Os Infiltrados", no caso específico, atropela seu adversário. Ele é melhor em tudo! Tudo que ele se propõe a fazer melhor que o original que o inspirou, ele consegue. O enredo tem mais elementos, o roteiro é mais bem trabalhado, a trilha sonora é excelente, a parte técnica é superior (luz, som, maquiagem...), Martin Scorsese, um dos maiores diretores de todos os tempos, conduz o filme de forma precisa e seu time conta com, nada mais nada menos que, Leonardo DiCaprioMatt Damon e Jack Nicholson, sem contar com ótimos coadjuvantes como Vera Farmiga, Martin Sheen e Mark Wahlberg

Com algumas pequenas diferenças, basicamente a trama nos dois casos, nos apresenta um agente de polícia trabalhando infiltrado na máfia, e um "afilhado" de um mafioso, moldado dentro da polícia, formado na academia, a serviço do criminoso dentro da força policial. Ambos os lados, percebendo que informações vazam, tanto para a lei quanto para os criminosos, iniciam suas caças particulares ao respectivo informante, gerando situações de perseguição, suspense e constante expectativa.

A refilmagem norte-americana trabalha melhor o início de tudo, constrói melhor a formação inicial dos dois protagonistas, desde suas épocas de bairro, até o desempenho dentro da academia de cadetes. Os motivos que levam à preterição do jovem Billy Castigan para serviços convencionais dentro da polícia e a opção por colocá-lo disfarçado, bem como, do outro lado, a relação muito estreita do mafioso Costello com seu pupilo Colin Sullivan, e a ascensão do rapaz dentro da polícia, tudo é mais bem desenvolvido do que no original, honconguês, que, por sua vez, é bastante breve nesse ponto, dando apenas uma rasa e apressada noção dos fatos, já passando adiante para o momento em que os dois, Chan e Lau, trabalham para lados opostos.

Outra diferença, é que em "Os Infiltrados" a psicóloga da polícia, além de ser namorada de Colin, o filhote de mafioso infiltrado na polícia (Matt Damon), mantém uma relação íntima com o perturbado Billy (DiCaprio), o policial infiltrado na máfia. Já em "Conflitos Internos", ela sequer conhece Lau, o jovem mafioso que se passa por policial, e, embora próxima a Chan, o verdadeiro agente disfarçado, não tem qualquer relação amorosa com ele. A relação da psicóloga com os dois e como ela se desenvolve, a crise no namoro com um deles, e gradual conquista de carinho e confiança com o outro, é importante para o desfecho que Scorsese propõe e, por outro lado, a ausência de um laço emocional da dra. Lee com qualquer um dos dois, torna a resolução da primeira versão frágil e inconsistente.

A propósito, ainda que não queira dar spoiler, tenho que dizer que o final é diferente nos dois e mas no remake nos dá uma sensação um pouco mais confortante, o que não significa que seja melhor ou pior...



"Conflitos Internos" (2002) - trailer


"Os Infiltrados" (2006) - trailer


Mas então vamos ao que interessa.

Você quer bola rolando? Tá aí o que você queria:

O argumento original, cheio de revelações, reviravoltas, surpresas, é ótimo, envolvente, excitante, e isso tudo é um grande mérito do filme asiático, por outro lado, o remake aperfeiçoa essa premissa, lhe dota de mais detalhes e complementos e algumas modificações bastante válidas para o roteiro. Ou seja, "Conflitos..." sai na frente mas leva o empate logo em seguida.

Mas é basicamente o que o time honconguês consegue fazer pois a partir daí a equipe norte-americana deita e rola. Martin Scorsese é mestre e, apesar de "Os Infiltrados" nem ser seu melhor trabalho, conduz o time brilhantemente à vitória. Ele dita o ritmo, da agilidade ao filme e tem uma capacidade ímpar de combinar cenas intensas, fortes, violentas, a uma trilha sonora invariavelmente precisa e de muito bom gosto. 2x1 para os Infiltrados de Scorsese.

O ataque formado por Matt Damon e pelo badalado LeoDiCaprio é competente, joga bem, mas a dupla, no fim das contas, não desequilibra. Leozinho, que é queridinho da imprensa, pedido pela torcida na Seleção, cotado para a Bola de Ouro, na hora do vamos ver, não consegue ser, verdadeiramente decisivo, como se espera dele e faz um  jogo apenas comum. Mark Wahlberg faz bem o papel de volantão, de cão-de-guarda da defesa, Vera Farmiga, surpreende vindo de trás, mas quem faz diferença mesmo no jogo são os veteranos: Martin Sheen, só na experiência, distribui o jogo ali na meuíca, e o cracaço de bola, Jack Nicholson, três vezes Melhor do Mundo da FIFA (ou seja, três Oscar na prateleira), chama o jogo para si, dá um show e guarda o seu. 3x1, Infiltrados.

A cena do chefe de polícia caindo do prédio é mais impactante no filme de 2006, bem como toda a construção da situação que leva a ela é mais inteligente e bem elaborada (4x1); em compensação, o desmascaramento do policial corrupto num terraço de Honk Kong, é boa nos dois, porém mais impressionante plasticamente no primeiro (4x2). Será que o time asiático volta pro jogo?

Não dá, não. 

Toda a situação envolvendo o envelope, a grafia errada por fora, a entrega dele cinema para o informante, a perseguição entre os dois incógnitos pelas ruas, e a revelação de quem estava de posse da informação, tudo é muito mais bem feito no filme de Martin Scorsese. 5x2 no placar.

Como se já não bastasse o banho de bola, o fato de ter levado o Oscar de melhor filme, direção, edição e roteiro adaptado garante mais uma bola na rede para o time de Scorsese e define a vitória dos Infiltrados. 6x2, e ficou barato!

No final do jogo, os atletas trocam as camisetas e aí, sim, ninguém sabe mais quem é de quem, e quem estava de qual lado... Mas aí já não importa mais.

O policial de verdade desmascarando o falso policial nas duas versões
(à esquerda, o original de 2002, e à direita, o remake de 2006)


Com um jogo de movimentação e infiltrações na defesa adversária, 
o time do técnico Martin Scorsese,
atropela a equipe dos treinadores Lau e Mak, 
boa mas cheia de problemas de grupo e conflitos internos.





por Cly Reis