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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


domingo, 27 de novembro de 2022

Live Museu do Festival de Cinema de Gramado - Homenagem a Sirmar Antunes (24/11/2022)


Tive a honra de mediar, dias atrás, a convite do meu amigo e colega de profissão e de ACCIRS Matheus Pannebecker, uma live promovida pelo Museu do Festival de Cinema de Gramado em homenagem ao ator Sirmar Antunes. Na ocasião, durante a Semana da Consciência Negra, pude intermediar uma conversa muito proveitosa com a cineasta Mariani Ferreira e a educadora e integrante do Coletivo Sanfoka - Valorização da Diversidade Cultural Lis Reis. 

Com quase 50 anos de carreira no cinema e no teatro, Sirmar, falecido em agosto deste ano, dias antes da realização do 50º Festival de Cinema de Gramado, do qual ele tanto é uma referência quanto, igualmente, participaria como jurado, foi um dos mais queridos e competentes homens do audiovisual gaúcho. 

Na live, pelo Instagram do Museu, Mariani e Lis trouxeram seus olhares afetivos e conscientes tanto sobre Sirmar quanto a condição da pessoa negra nos seus meios e na sociedade como um todo. A própria existência e exemplo de Sirmar, aliás, deu este lastro para que o tema se aprofundasse. Chamou-me atenção, além das próprias falas das convidadas, a capacidade de enxergar a questão da negritude pela ótica da coletividade e da ancestralidade. 

Particularmente, tenho grande apreço pela figura de Sirmar tanto como ator preto quanto por sua importância referencial no cinema gaúcho que aprendi a gostar desde os anos 80. É ele quem interpreta o Sargento de “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de 1986 (Jorge Furtado e José Pedro Goulart), filme especial em minha trajetória como cinéfilo e crítico de cinema, tanto por ter me apresentado a ele quanto por ser um dos filmes mais pungentes sobre o racismo que já assisti. Esta obra, inclusive, me motivou a escrever, em 2020, uma resenha crítica após o episódio de racismo na live da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme “Inverno”, e que envolveu, aliás (mas não coincidentemente, por mais triste que seja) a própria Mariani. Várias conexões.

Enfim, confiram o vídeo, que vale a pena.

SOBRE MARIANI FERREIRA
É roteirista, diretora e produtora. Começou sua carreira como trabalhadora doméstica, estudou jornalismo, foi crítica de cinema e redatora e diretora de publicidade. Atualmente trabalha como roteirista na TV Globo. Seu filme de estreia, o curta-metragem de ficção “Léo", foi exibido em diversos festivais pelo mundo. Mariani também é produtora executiva e roteirista do documentário “O Caso do Homem Errado”. Também é roteirista da sitcom “Necrópolis”, exibida pela Netflix, e diretora do curta-metragem "Rota", que ganhou Menção Honrosa do Júri do 49º Festival de Gramado e o Prêmio Canal Brasil de Curtas no Cabíria Festival de 2021. Em 2022, estreia duas séries das quais é criadora e roteirista, a animação "Os Pequenos Crononautas" e o drama histórico "Filhos da Liberdade".

SOBRE LIS REIS
Educadora da rede de Gramado, trabalha com consciência vocal desde 2009. Participa como cantora em espetáculos da região desde 2004. Atuando como  oficineira em pontos de cultura e de grupos teatrais nas cidades de Canela e Gramado. Integrante do coletivo Sankofa.

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Assista: https://www.instagram.com/p/ClXH8zPh_XB/ 


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 90


Há cinco anos, publicávamos aqui no Clyblog uma série de três longas matérias com listas dos filmes essenciais para se entender o cinema brasileiro do século XX, fazendo um recorte de suas três principais décadas produtivas: 60, 70 e 80. Por motivos óbvios, os desfalcados anos 90 não entraram nessa primeira série, haja vista a impossibilidade de se equiparar em importância com estas outras décadas uma vez que seu esforço foi muito menos pela manutenção da qualidade obtida anteriormente do que, principalmente, pela sobrevivência do audiovisual brasileiro. A puxada de tapete do governo Collor ao destruir a exitosa Embrafilme não ofereceu nenhuma alternativa substitutiva à altura que garantisse a continuidade do trabalho de milhares de profissionais e da importante arte cinematográfica brasileira.

Porém, os anos se passaram aqui no blog e, com eles, chegamos ao final da década de 2010, em que o cinema brasileiro, devidamente retomado de seus percalços (será?!), torna a ganhar o circuito internacional com filmes não apenas bem realizados, como essenciais para a nova cinematografia mundial, caso de "Cidade de Deus", "Tropa de Elite" e, mais recentemente, “Bacurau”. Mesmo que o correto seja compreender o final da década assim que concluir o ano em que estamos, e só começar a contar uma nova década a partir de 2021, quem imaginaria que viria a Covid-19 para congelar tudo, afetando, principalmente, o setor cultural e, com ele, a produção cinematográfica? Se havia ainda alguma esperança de que novos títulos se somassem aos produzidos nos últimos 9 anos para cá, a pandemia, bastante ajudada pela política inimiga da cultura do atual governo brasileiro, forçou para que se acabasse de vez a década.

Entre a última década do século passado e a que estamos, restam, claro, os primeiros 10 anos do novo século. Vamos reconstruir, então, a essência do que foi produzido no cinema brasileiro nos últimos 30 anos, começando pelos 90. Se a recorrente falta de prioridade para com a cultura e a arte da política brasileira fez de tudo para acabar com o cinema nacional, fique esta sabendo que não conseguiu. Produções escassas, mirradas, prejudicadas, mas mesmo assim, resistentes. Deste modo, selecionamos aqui 20 títulos essenciais para entender esta década que, com todos estes percalços, ainda assim mantém qualidade suficiente para não deverem nada a títulos de outras décadas mais abastadas. Uma exceção fazemos aqui, no entanto: não apenas por contar fatalmente de menos filmes classificáveis, os anos 90 são sinônimo de “retomada” para o cinema no Brasil, fase a qual se encerraria apenas com o marco “Cidade de Deus”, de 2002, um ano depois da instituição da Ancine. Então, coerentemente com a construção histórica do novo cinema brasileiro, incluímos as produções do ano de 2000 nesta primeira listagem. A partir dali, uma nova era viria.





1 - “Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”, de Carla Camurati (95): O filme de estreia de Camurati é o marco de resistência do cinema brasileiro pós-Collor, quase um manifesto, que bradava: “É possível, mesmo com toda a dificuldade, fazer cinema autoral no Brasil!”. Cheio de hiatos e desconexões (propositais ou não), tem, além desta simbologia (que já lhe seria suficiente para integrar esta lista), o mérito de trazer algumas características que se consolidariam no cinema brasileiro nas décadas seguintes: a coprodução com países estrangeiros, a linguagem cômica, a edição ágil e a abordagem crítica.






2 - “O Quatrilho”, de Fábio Barreto (95): Há quem torça o nariz para certa pasteurização do filme rodado no interior do Rio Grande do Sul sobre a obra de José Clemente Pozzenatto, mas é fato que, com ele, os Barreto reabriram as portas do Brasil para o mercado internacional com a inédita indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na história do cinema brasileiro – feito que ocorreria apenas mais duas vezes. E isso num momento em que jamais se esperaria algum reconhecimento vindo de um ainda agonizante cinema pela quebra da Embrafilme. Um bom romance, com seus méritos.





3 - “O Mandarim”, de Julio Bressane (95): Enquanto os Barreto encabeçavam uma nova investida na internacionalização do cinema brasileiro e Camurati tentava redirecionar os rumos das coisas por aqui, o bom e velho transgressor Julio Bressane aperfeiçoava seu cinema-poesia. Assim como em “Tabu”, “Brás Cubas” e os “Os Sermões”, a música é quase um personagem, neste caso, para contar a proto-biografia de Mário Reis (Fernando Eiras), mas não sem o “auxílio luxuoso” de Caetano Veloso, Chico Buarque (fazendo eles mesmos), Gilberto Gil (encarnando Sinhô) e Edu Lobo (fazendo as vezes de Tom Jobim). Tudo de forma artesanal, barata e genial.




4 - “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (96): O filme de Waltinho e Daniela tem o poder de vencer a contramaré vivida pelo cinema nacional àqueles idos a ponte de tornar-se um dos mais importantes filmes da cinematografia nacional. Tanto que está na lista da Abraccine dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Uma história sobre solidão e resgate das próprias raízes motivado justamente pelo confisco promovido pelo mesmo presidente Collor que extinguiu tanto o dinheiro do brasileiro quanto o da Embrafilme. Fotografia impecável p&b de Walter Carvalho, trilha excelente de Zé Miguel Wisnik e até dedo de Millôr Fernandes nos diálogos. Um luxo em época de vacas magras.







5 - “Baile Perfumado”, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (96): Na esteira da mais revolucionária cena cultural do Brasil dos últimos 30 anos, o mangue beat, o filme marco da retomada do cinema pernambucano, retraz questões formativas da cultura nordestina (o cangaço, o “Ciclo do Recife” dos anos 20, os superoitistas dos anos 70, o sotaque, a antropomorfia) com uma roupagem moderna. Se não é necessariamente um filme bom, é altamente representativo e indispensável para se entender o cinema brasileiro de então, visto que abriu portas para a entrada de talentos de outros pernambucanos como Kleber Mendonça Filho, Cláudio Assis, Hilton Lacerda e Marcelo Lordello.







6 - “Guerra de Canudos”, de Sérgio Rezende (96): Afeito aos temas da História do Brasil, Rezende, após realizar seu grande filme, “O Homem da Capa Preta”, em 86, viu-se, assim como seus pares, totalmente descapitalizado para realizar seu trabalho. O que não foi motivo para abandonar o projeto sobre a real história do líder Antônio Conselheiro e a sangrenta guerra contra as forças do Império extraída do épico “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Wilker, que já havia protagonizado “O Homem...”, está brilhante no papel principal. Produção cara que, mesmo os justificáveis defeitos de produção, não apagam o brilho.







7 - “Tieta do Agreste”, de Cacá Diegues (96): O tarimbado Cacá foi dos que sofreu bastante com a quase inviabilização do cinema no Brasil da era Collor. Após o paupérrimo longa de episódios “Veja Esta Canção”, de 94, parecia que nunca mais viriam grandes produções de outrora como “Quilombo” ou “Xica da Silva”. Mas o sempre obstinado cineasta surpreende com um filme recheado de qualidades: texto baseado e revisado pelo próprio Jorge Amado, Sônia Braga brilhante como Tieta, Chico Anysio tornando a fazer cinema como o velho Zé Esteves, trilha de Caetano, fora outras. Uma delícia de filme.





8 - “A Ostra e o Vento”, de Walter Lima Jr. (97): Assim como Cacá e Bressane, Walter é outro experiente realizador nascido no Cinema Novo. Porém, tem como característica o empreendimento de projetos muito peculiares, como esta bela adaptação do romance de Moacir C. Lopes, que conta com roteiro dele e de Flávio Tambellini (que se tornaria um dos cineastas de vulto no cinema nacional), fotografia de Pedro Farkas, música de Wagner Tiso e a linda canção original de Chico. Lima Duarte, Castrinho e Fernando Torres excelentes, além da jovem Leandra Leal, estreando na tela grande com uma inesquecível atuação sobre um tema raramente explorado com tanta assertividade: o florescer da sexualidade feminina.






9 - “Os Matadores”, de Beto Brant (97): Fala-se muito de “O Invasor”, de 2002, mas em “Os Matadores”, primeiro longa do talentoso paulista Beto Brant, ele já introduzia sua contribuição ao cinema brasileiro com um estilo autoral, de forte apelo literário, com histórias inspiradas na realidade em diálogo com o tempo presente e onde o ator tem espaço para contribuir na narrativa. Além disso, em resposta à falta de perspectivas vivida pela classe cinematográfica brasileira no início dos anos 90, trazia um conceito “enxuto”: projetos racionalizados sob o ponto de vista da produção, com equipes de trabalho formadas por amigos, que se transformam em parceiros constantes. Na sua estreia, Brant já saiu abocanhando o prêmio de melhor direção no Festival de Cinema de Gramado.






10 - “O Que é Isso, Companheiro?”, de Bruno Barreto (97): Criado em 91 como mecanismo do incentivo à cultura, a Lei Rouanet começou a, de fato, render frutos anos depois. Após emplacar a inédita disputa ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com “O Quatrilho”, um ano depois o Brasil colocava outro candidato à estatueta: o bom “O Que...”, baseado no Best-seller biográfico de Fernando Gabeira. Novamente, são os Barreto os responsáveis pelo feito. Além das excelentes atuações de Pedro Cardoso, Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães, o filme avança no espaço aberto por “Carlota Joaquina” no sentido da coprodução estrangeira, o que resulta nas participações do craque Alan Arkin no elenco e da excelente trilha do ex-Police Stewart Copeland.





11 - “Pequeno Dicionário Amoroso”, de Sandra Werneck (97): A Globo Filmes, a partir da década seguinte, vulgarizaria o estilo comédia feita com atores da emissora, lançando aos montes subproduções sem nenhuma qualidade, quanto menos pretensão cinematográfica. Mas isso ainda cabia naquele sétimo ano da década de 90, quando Sandra realizou esta comédia romântica deliciosa. Aquele final com “Futuros Amantes” do Chico é de arrebentar o coração até do mais insensível espectador. Atuações ótimas de Andrea Beltrão, Daniel Dantas, Glória Pires e Tony Ramos – estes dois últimos, que fariam dupla noutra comédia (um pouco menos) romântica “Se Eu Fosse Você” anos mais tarde.





12 - “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (98): É só deixar solto, que o sobrevivente cinema brasileiro se supera e, logo em seguida, se agiganta. Sete anos após a instituição da Lei Rouanet e minimamente restabelecido o mercado do audiovisual brasileiro, Waltinho vem com aquele que é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, certamente o melhor da década de 90. Tocante, envolvente, denunciador, poético, revelador. Um filme perfeito em tudo: fotografia, trilha, montagem, arte e, principalmente, a direção de atores. “Central...” traz algumas das mais célebres atuações do cinema brasileiro numa mesma obra: Marília Pêra, Othon Bastos, Matheus Nasctergaele, o pequeno Vinícius de Oliveira e, claro, a deusa Fernanda Montenegro, que, assim como o filme, o último concorrente ao Oscar de Filme Estrangeiro do cinema nacional, também disputou a estatueta – perdendo, junto com Meryl Streep e Cate Blanchett, para Gwyneth Paltrow. No entanto, levou Berlim de Melhor Atriz e Melhor Filme.




13 - “São Jerônimo”, de Julio Bressane (98): O hermético e experiente Bressane é original não apenas na narrativa e no seu inconfundível estilo pessoal, mas também nos temas que escolhe para filmar. Ao abordar a história do santo e obscuro intelectual do século IV autor da edição e da tradução completa da Bíblia, a chamada Vulgata, Bressane dava sua definitiva contribuição para a retomada provando que em cinema (principalmente, no Brasil) é possível conjugar estética exigente e verba exígua, poesia arrojada em prazo concentrado. Como São Jerônimo, Bressane operava milagres.




14 - “Estorvo”, de Ruy Guerra (98): Em 1991, emputecido com a vitória da velha política de Collor na primeira eleição democrática para presidente do Brasil (e a derrota da “nova” por parte do correligionário Lula), Chico Buarque lançava seu pequeno, mas potente primeiro romance, “Estorvo”, um sucesso que ganharia Jabuti. Mas para levar à tela um enredo tão subjetivo, somente alguém muito conhecedor da obra do autor de “Vai Passar”. Ninguém melhor, então, que o moçambicano-brasileiro Ruy Guerra, companheiro de velhos tempos de Chico, seja no teatro, na música ou no próprio cinema. O clima perturbador da obra se potencializa nas tomadas distorcidas, na câmera nervosa, na montagem ousada e até no off com a voz do próprio Ruy, cujo sotaque arrevesado impõe a estranheza que a narrativa merece. Filme difícil, mas essencial.



15 - “A Causa Secreta”, de Sérgio Bianchi (96): O cinema deste paranaense radicado em Sampa nunca fez concessões. Desde o curta “Mato Eles?”, de 1982, quando denunciava o descaso com os índios, seu discurso é apontado para a crítica e toda a narrativa se mobiliza neste sentido. Em “A Causa Secreta”, o cineasta se vale de todas as suas armas para evidenciar a podridão moral da sociedade brasileira. E o faz com alto poder mimético, numa construção narrativa incomum, atuações e situações que incomodam de tão reais e agudas. Como outros filmes da década, peca por certo – e compreensível – déficit técnico, mas supera as dificuldades com a coesão da obra, essencial para entender o país em recente caminhada democrática e todos os problemas que ainda iria demorar a se livrar.




16 - “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (99): Filho da Boca do Lixo carioca, o gaúcho Carlão, mesmo à época das famigeradas pornochanchadas dos anos 70/80, produzia com qualidade, fosse na fotografia, a qual era um ótimo técnico, fosse na própria direção. Nos anos 90, já havia realizado o emocionante “Alma Corsária”, mas nada se compara tanto em emoção quanto em acerto com “Dois Córregos”. Um romance que envolve política, história e reminiscências do próprio cineasta, que filmou cenas na praia de Cidreira, no litoral do seu estado de origem. E tem trilha magnífica de Ivan Lins pra arrematar.





17 - “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky (2000): Entramos na leva de filmes de 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. E não se poderia iniciar com um título mais emblemático que esta estreia da talentosa Laís Bodanzky. Símbolo da retomada, é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Além disso, também está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.





18 - “Tolerância”, de Carlos Gerbase (00): O Rio Grande do Sul também é um dos protagonistas dessa virada do cinema brasileiro para a modernidade, e o responsável por isso é o primeiro e melhor longa do "replicante" Gerbase. Uma “história de sexo e violência” num thriller ao estilo do cineasta: trama envolvente, roteiro impecável e atuações conduzidas pela mão de quem carrega a experiência superoitista e da cena curta-metragem, que salvou na raça o cinema brasileiro quando nenhum longa era possível de ser feito. Maitê Proença, linda, está brilhante. 






19 - “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (00): Outro marcante filme "

00", este tocante, mas ao mesmo tempo divertido e denunciador romance, marca a entrada de vez de Andrucha no mundo da tela grande, ele consagrado como diretor de videoclipes célebres de artistas da música brasileira e realizador do acanhado “Gêmeas”, de um ano antes. A trilha de Gil cumpre um papel fundamental, amarrando a narrativa tanto em suas novas e antigas composições, quanto nas versões de Gonzagão. Grande Prêmio Cinema Brasil de Filme, Fotografia, Montagem e Atriz para Regina Casé, maravilhosa, assim como seus “maridos”: Lima Duarte, Stênio Garcia e Luiz Carlos Vasconcelos.






20 - “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (00): O cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise, Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.


Daniel Rodrigues


quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia em que o cinema gaúcho encarou o racismo



O marcante personagem Dorival,
do filme de Furtado e Goulart
A proposital sensação de incompletude que a última tomada de “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, de 1986, deixa para o espectador, parece premeditar uma noção ética a qual o cinema gaúcho irremediavelmente ainda iria se deparar. Naquele meado de anos 80, quando ainda se vivia sob a sombra da ditadura e ansioso por uma democracia que nunca chegava, fazia muito sentido a cena em que o militar vivido por Sirmar Antunes, sem (conseguir) verbalizar uma palavra, minimamente se compraz do encarcerado Dorival (João Acaiabe), homem negro como ele, alcançando-lhe um cigarro após este último ser linchado fisicamente pelos colegas e mais uma vez psicologicamente pela sociedade.

Quem, como eu, um negro que viveu aquela década em Porto Alegre – cidade onde o referido filme foi rodado –, lembrará, por exemplo, que “música de preto” só se escutava na finada Rádio Princesa, dial “oficialmente instituído” para que o hoje tão valorizado samba tivesse onde rodar. Qualquer semelhança com os vissungos e lundus entoados e dançados nas senzalas não é mera coincidência – nem preciosismo semântico, no caso. Tanto o exemplo do filme quanto o da rádio mostram o quanto o silenciamento do negro era preponderantemente estabelecido naqueles idos. Precisaram mais de três décadas para, enfim, começarmos a avançar nesses aspectos. Mas não sem conflito.

Cartaz original
do filme "Inverno",
que motivou a live
da APTC
As reticências imaginárias da cena derradeira do curta de Furtado e Goulart convidavam que alguém continuasse escrevendo aquele texto de barbárie para uma narrativa de transformação. E o avanço social se encarregou disso. Os ventos de indignação provocados pelo episódio George Floyd nos Estados Unidos tomaram tanta força que, mais intensos que um minuano, vieram soprar aqui nas paragens do Rio Grande do Sul. Mais precisamente, na mesma Porto Alegre das senzalas que apartavam tanto o Dorival em sua cela e o samba nas ondas da Rádio Princesa há cerca de 35 anos. E soprou de forma violenta a ponto de desestabilizar antigas estruturas. O recente episódio da live promovida pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme “Inverno” (1983), no dia 3 de julho, mediado por Giordano Gio e com a presença de Carlos Gerbase, Luciana Tomasi, Giba Assis Brasil e Luciene Adami (integrantes da equipe) e a realizadora e roteirista Mariani Ferreira, abriu como jamais visto nestas terras um debate sobre dois aspectos que pareciam fadados ao estado de silêncio: a presença de negros no setor audiovisual gaúcho e, o mais grave deles – visto que é a raiz explicadora do primeiro aspecto –, o racismo.

Os parcos números da representatividade negra no setor audiovisual gaúcho falam por si. Sabe-se que o estudo "Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016", divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, embora a defasagem para os dias atuais, não mudou muito de lá para cá. Dos 142 longas exibidos comercialmente no circuito, apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros, e sequer um dirigido ou roteirizado por uma mulher negra naquele ano. Em termos históricos, apenas cinco longas foram dirigidos por pessoas negras no Rio Grande do Sul: “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), de Odilon Lopez; “Porto dos Mortos” (2012), de Davi de Oliveira Pinheiro; “Central – O Filme” (2016), de Tatiana Sager e Renato Dornelles; “De Boca em Boca” (2016), de Wagner Abreu; e “O Caso do Homem Errado” (2017), de Camila de Moraes.

A exemplo do já mencionado curta-metragem de Furtado e Goulart, a intencionalidade de mudança não precisa vir necessariamente de pessoas negras. Até é bom que não seja sempre assim. Além deste, o cinema gaúcho conta com longas-metragens como “O Homem que Copiava” (2003) e “Meu Tio Matou um Cara” (2004), ambos também de Furtado, que trazem atores negros como protagonistas – Lázaro Ramos e Darlan Cunha, respectivamente – e que, cada um a seu modo, buscam contextualizar a condição do negro na sociedade brasileira do início do século 21. Mais do que estes, contudo, o já referido “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda” é o que, mesmo com o consciente e salutar respeito ao “lugar de fala” de quem o dirige, duas pessoas brancas, vai na raiz do problema do racismo ao valer-se do estereótipo para chegar à crítica, e não para normatizá-la.

Darlan e Lázaro em "Meu Tio Matou um Cara": raros protagonistas
negros na história do cinema gaúcho
Se o exemplo de Furtado e Goulart é louvável, é também, num espectro maior, insuficiente. Segundo o professor e mestre em História pela UFRGS, Cléber Teixeira Leão, pesquisador da temática racial com foco nos estudos críticos da branquidade, é fácil perceber um pensamento brancocêntrico tanto no cinema gaúcho quanto no nacional focado na universalização de uma história do Rio Grande do Sul e do Brasil a partir de um recorte da visão do branco. “Sempre que é necessário fazer um recorte racial ou mesmo socioeconômico, a película chega carregada de estereótipos quando trata do negro e do indígena. Mas o mesmo cinema positiva e deifica a questão imigratória, os relacionamos à música, à arte plástica dos descendentes de europeus, os brancos”, argumenta Leão.

Se os números anteriormente citados falam por si, mais ainda o fazem os depoimentos ouvidos na live da APTC. Verbalizadas pela produtora Luciana Tomasi e indiretamente consentidas por outros participantes durante a reunião virtual, as falas foram motivadas, sem dúvida, pela presença instigadora de Mariani Ferreira. Integrante do Macumba Lab, coletivo de profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do Sul, tanto sua articulação intelectual quanto condição de mulher negra desacomodaram. Não o fariam, contudo, se ela não trouxesse questões como raça e gênero, assumindo o silenciamento historicamente engendrado. Mas, não. Nas respostas a suas colocações – até certo ponto revisionistas, mas inequivocamente plausíveis e genuínas –, reverberam questões como identidade, normatização da hegemonia branca, necessidade de representatividade negra, desvirtuamento do "lugar de fala", entre outros aspectos. Todos, analisados juntos ou separadamente, demonstram o quanto não se está preparado para enfrentar a discussão do racismo com a responsabilidade que o tema exige, mas também que fazê-lo urge.

Dois aspectos observados no episódio da referida live merecem especial atenção. Primeiro, conforme levantado por Leão, a idealização da herança europeia, um dos argumentos usados por Luciana para justificar sua desatenção à questão do negro na produção audiovisual porto-alegrense. ”A discussão trazida na live da APTC sobre cinema gaúcho, na realidade, demonstra justamente esse recorte de uma Porto Alegre criada a partir de uma construção brancocentrada, que tenta reivindicar uma identidade pseudoeuropeia branca que, se diga, a cidade não tem. Não somos uma capital somente de descendentes de europeus: existem múltiplas raízes raciais e de ancestralidade que percorrem as ruas de Porto Alegre”, diz o professor.

Não se trata de policiar a liberdade artística – quanto menos, inutilmente aquela que já se produziu – e nem desqualificar a inquestionável contribuição que a geração desses precursores do novo cinema gaúcho deu. No entanto, explicar o desinteresse com a causa dos negros pela simples ausência de contato com esta é, além de muito confortável, fraco e irresponsável de quem se espera, como agente cultural importante do Estado, algo bem mais refletido. “A questão que surgiu na live, a partir da fala da produtora Luciana Tomasi, era a de uma impossibilidade de dialogar com a história e temáticas não brancas, que compõem a história e a sociedade porto-alegrense, pois sua herança sanguínea europeia, assim como a de alguns dos participantes da live, impossibilitava essa abordagem”, observa Leão. Os dois referidos longas de Furtado são produzidos por Luciana Tomasi, e não à toa deixei para voltar a referi-los aqui. O que talvez pudesse ser um lapso de desaviso soa, agora, como reconfirmação desse descompromisso anacrônico e segregador.

Mariani Ferreira: articulação
intelectual e condição de
mulher negra 
Ligado a esse aspecto, o outro que destaco se resume num vocábulo, o qual, infelizmente, diz muito mais do que se gostaria. Luciana, ao discorrer que pessoas com sobrenome como o dela ou Schünemann, Adami, Gerbase e de semelhante ascendência europeia, diz não ter condições, pelas razões citadas anteriormente, de fazer um filme da “senzala”. Leão nota nessa fala o quanto só se consegue perceber os grupos não brancos dentro da história gaúcha ou nacional a partir da abordagem de submissão da escravização negra – e isso é muito grave. “A percepção sócio-histórica manifestada nessa fala impossibilita uma ruptura com esse estereótipo, que é construído dentro de um processo de racialização imposto e construído pelo branco, que não se entende historicamente como raça, nem tampouco como privilegiado ao definir os nichos onde cada um dos grupos não brancos são categorizados histórica e socialmente”, completa.

Quando o roteiro de “O Dia em que...” foi escrito – coassinado por Furtado, Goulart, Tabajara Ruas, Ana Luiza Azevedo e Giba Assis Brasil –, intencionalmente o protagonista, tão veículo de pré-concepção quanto de denúncia, não tinha sobrenome. Era Dorival e pronto. Precisava-se, por meio desse elemento narrativo, evidenciar a desumanização. Hoje, reivindica-se, com probidade, a menção a Oliveira Silveira. Eu, cria daqueles ricos mas também atrasados anos 80, vi, por muito tempo, as manifestações contra o racismo – vindas invariavelmente apenas dos próprios negros – justificadamente reativas, mas pouco argumentativas. Agora, é diferente.

O sistema foi estremecido, e não demorou para que o meandro estrutural do racismo, sustentado pelo preconceito arraigado, aparecesse. Agora, é hora de romper o silêncio e encará-lo. “Torna-se necessário”, diz Leão, “pensar a visão brancocêntrica acrítica, que só permite pensar os não brancos dentro de determinados nichos, o que, em si, faz parte do que chamamos de racismo estrutural”. Para ele, é necessário romper essa nada apreciável tradição gaúcha, que tenta buscar ainda uma positivação racial branca europeia disfarçada de étnica. A continuidade da política de cotas nas universidades, que já vem mostrando resultados consistentes de transformação e inclusão social, e o fomento a projetos como Macumba Lab, por exemplo, são fundamentais para essa mudança de realidade. Segundo a professora doutora de filosofia Andrea Maila Voss Kominek, “conhecer nossas raízes e repensar nossa realidade representam o único meio possível para uma sociedade justa e igualitária. Desconsiderar o problema do racismo no Brasil é ser conivente. É permitir que a desigualdade se perpetue. Reconhecê-lo, conhecê-lo e discuti-lo constitui o primeiro passo rumo a uma sociedade livre”.

De fato, o audiovisual gaúcho levou um grande susto ao ver emergir o racismo das grades que o escondiam, fosse na cela do personagem Dorival, fosse na referida senzala onde indiretamente condena-se a existência de uma raça. Políticas estão sendo tomadas, posições estão sendo revistas, governo e entidades estão correndo contra o tempo para responder a essa lacuna social e moral deixada pela brutal escravatura no Brasil e (tão bem) assimilada entre os homens. Mas as sociedades avançam, e isso é irrefreável, inclusive no autocomplacente Rio Grande do Sul.

Dia 3 de julho foi o dia desse avanço em direção a entendimentos mais amplos e plurais, mesmo que para isso tenha-se que brigar, apontar erros e expor aquilo que precisa ser dito. O dia em que o cinema gaúcho encarou o racismo. Só assim cidades como Porto Alegre podem ter, cada vez mais, representada nas mais diversas áreas não apenas a influência europeia, mas a de outras culturas como a africana. Como a brasileira, aliás, única, pois mestiça e universal. E que pessoas como Dorival possam, resgatadas suas dignidades, responder com nome e sobrenome. Assim, um sobrenome ao mesmo tempo comum e digno, como um Oliveira Silveira ou o de quem assina este artigo.


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curta “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”
de Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1984)



 por Daniel Rodrigues
Artigo originalmente publicado no Blog Roger Lerina escrito a convite do jornalista

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Os meus 10 melhores filmes gaúchos


Furtado, cineasta com mais títulos na lista entre
longas e curtas
Por conta de um grupo do qual participo, fui instigado a pensar nos filmes produzidos no Rio Grande do Sul em toda a sua história cinematográfica. Isso, incluindo até os não necessariamente feitos por cineastas/equipes gaúchas, mas também rodados ou produzidos. São diversos os talentos que são ou saíram desse extremo-Sul brasileiro, como Jorge Furtado, Carlos Reichenbach, Carlos Gerbase, Ana Luiza Azevedo, Paulo José, Walmor Chagas, José Lowgoy, Ítala Nandi, entre outros técnicos e realizadores. Por isso, e até em razão do recorte ao qual se pretende chegar com essa pesquisa a qual me referi, senti-me à vontade para montar uma lista dos meus filmes preferidos feitos no Estado onde nasci e vivo. Assim, bem pessoal e cinéfila.

Bastante prolífica, a produção gaúcha data do início do século, sendo dessas terras de onde saiu a primeira produção de cinema que se tem registro no Brasil: “Os Óculos do Vovô”, de 1913, de Francisco Santos, realizado numa cidade com a qual mantenho saudável proximidade, Pelotas. Não bastasse essa importância histórica para o cinema nacional, o Rio Grande do Sul também é dos estados de maior produção ao longo do último século e, certamente, deste em que estamos. Somente do ano 2000 para cá, há cerca de 100 longa-metragens, além de uma infinidade de curtas – formato, aliás, no qual se construiu considerável tradição no audiovisual gaúcho, principalmente a partir dos anos 80.

Além disso, a grande maioria do que fora rodado não se trata apenas de negativos gastos sem finalidade. Criatividade, diversidade de estilos e gêneros e qualidade técnica pautam uma parte considerável dos filmes. Goste-se ou não do resultado, trata-se de uma produção qualificada e, por outro ângulo, sociologicamente importante em seu papel de registro da cultura gaúcha. Por ser um estado froteiriço, muito de sua produção audiovisual tem influência dessa proximidade com os vizinhos platinos, tendo papel essencial para a realização de coproduções com Argentina e Uruguai principalmente.

Em termos de projeção, igualmente. É na ponta de baixo do País que ocorre o festival de cinema mais longevo e ininterrupto do Brasil, o Festival de Gramado. No que se refere a premiações, não são poucos os premiados no Brasil e no exterior ao longo da história, chegando-se ao apogeu com o multipremiado curta “Ilha das Flores”, que abocanhou láureas na França, Alemanha, Estados Unidos e no próprio País.

Isso tudo coloca a terra de P.F. Gastal tranquilamente entre os cinco polos cinematográficos mais importantes do Brasil, atrás apenas de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e, quiçá, igualado por Bahia. Claro que, desses, tenho meus preferidos, que lanço aqui os 10 principais, incluindo curtas, aliás. Pude, por isso, dispensar títulos de produções rodadas no Estado, como os ótimos “A Intrusa”, produção carioca do cineasta argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen, ou “Cão sem Dono”, do paulistano Beto Brant. Assim, predominam os filmes da Casa de Cinema de Porto Alegre e dos anos 80, tendo Furtado o destaque, com três deles. Porém não podia deixar de elencar o essencial "Vento Norte", primeiro longa sonoro feito nesses pagos, e dois títulos da nova safra, somando, junto com outro de Furtado, três realizações do século XXI.
Então, vamos à lista:


1 – “Ilha das Flores”, de Jorge Furtado (1989)










2 – “Verdes Anos”, de Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase (1984)
3 – “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
4 – “Vento Norte”, de Salomão Scliar (1951)



5 – “Deu Pra ti, Anos 70”, de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil (1981)
6 – “O Mentiroso”, de Werner Schunemann (1988)
7 – “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (2003)
8 – “3 Minutos”, de Ana Luiza Azevedo (1999)




9 – “A Mulher do Pai”, de Cristiane Oliveira (2016)
10 – “Castanha”, de Davi Pretto  (2014)


O ator José Carlos Castanha interpretando a si mesmo no
impressionante filme de Davi Pretto


por Daniel Rodrigues