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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Velha Guarda da Portela – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (28/11/2014)




A Velha Guarda no palco da Redenção
(foto; Tita Strapazzon)
Corri pra ver, pra ver quem era/
Chegando lá era a Portela”.

Como são essas coisas da vida, né? Leocádia e eu não pudemos comparecer ao show do guitarrista Stanley Jordan, no Canoas Jazz Festival, o qual eu mesmo havia anunciado aqui no Clyblog como me sendo imperdível. Porém, um dia antes, tivemos a oportunidade de assistir a outro show de total arrebatamento. Pois mesmo sabendo em cima do laço, fomos. Coincidentemente antecipando a semana em que se comemora o Dia Nacional do Samba (2/12), o mais autêntico dos ritmos brasileiros pôs os dois pés em Porto Alegre. Em celebração aos 80 anos de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Velha Guarda da Portela foi convidada para uma apresentação gratuita no Parque da Redenção. Um verdadeiro espetáculo, histórico na cidade, que me fez lembrar outro memorável ocorrido de 1996, quando o nobre portelense Paulinho da Viola tocou no mesmo local.

Mestre Monarco, aos 80 anos,
comandando o samba
(foto: Tita Strapazzon)
 Comandada pelo mestre Monarco (que também completou indizíveis 80 primaveras em 2014), a Velha Guarda da Portela agitou e emocionou, pondo pra sambar e cantar o grande público que esteve presente naquela noite ao ar livre. Sou apaixonado pelo conjunto desde os anos 90 quando, assistindo a um programa Ensaio, da TV Cultura, os descobri cantando junto com um de seus vários integrantes que já foram, Manacéa (o qual estava presente não só em sons como na pessoa de sua filha, Áurea Maria, uma das três pastoras do grupo). Fiquei tão maravilhado com o que vi que, guri afoito por registrar aquilo que gostava, pus um VHS para gravar o restinho de programa, que já havia começado. Bem fiz. Pude, com isso, conhecer, dentre algumas outras, pérolas como a tocante “Quantas lágrimas” (“Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado/ Só em saber que não posso mais/ Reviver o meu passado...”) e o poup-pourriMau Procedimento/ Mulher ingrata/ Nega Danada”, ambas tocadas no show.

Mas foram muito mais que estas. Muito mais. Empolgados com a receptividade do público gaúcho, mandaram ver um show de quase 2 horas e meia, quando executaram não apenas sambas da escola que pertencem, mas de vários outros autores e agremiações, como o Império Serrano Silas de Oliveira, homenageado com “Senhora Tentação” e seu grande sucesso, o samba-enredo “Aquarela Brasileira” (considerada por Monarco como o mais bonito samba já escrito). Todo o público cantou junto de ponta a ponta a canção, que começa com os inconfundíveis versos: “Vejam essa maravilha de cenário/ É um episódio relicário...” Igualmente, a empolgante “É Hoje”, de Didi e Mestrinho, samba-enredo da União da Ilha de 1982, um dos mais célebres da história dos carnavais. Pra arrebatar os amantes do samba, Monarco, com sua voz de barítono e modos elegantes típicos de um monarca do morro, presenteou-nos com “O Sol Nascerá” (“A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois chorando eu via mocidade perdida...”), emblemático samba do gênio mangueirense Cartola. As emoções, no entanto, ainda não terminariam por aí.

Obras da Portela mesmo foi o que não faltou. Paulo da Portela, Chatim, Ventura, Antonio Caetano, Alvaíde, Mijinha, Chico Santana. Os nomes dos poetas e músicos desconhecidos do morro vêm à tona quando a Velha Guarda toca. A começar pelo “abre-alas” “Esta Melodia”, de Jamelão e Babu da Portela, composição híbrida das duas mais tradicionais escolas de samba do Rio, que ficou conhecida na voz de Marisa Monte. Paulo da Portela, fundador, principal compositor e exemplo para toda a geração de sambistas portelenses, foi, obviamente, lembrado mais de uma vez. “Hino Da Velha Guarda Da Portela” dele, foi executada, mas seu nome é mencionado seguidamente, como nas letras de “Corri pra ver” (“Foi mestre Paulo seu fundador/ Nosso poeta e professor”), “Passado de Glória” (“Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”) e “De Paulo a Paulinho”, que Monarco (autor também das duas anteriores) fez para homenagear o mestre e seu discípulo, unindo passado e presente: “Antigamente era Paulo da Portela/ Agora é Paulinho da Viola...”
As pastoras Áurea, Neide e Tia Surica, divinas.
(foto: Tita Strapazzon)
Paulinho, aliás, foi igualmente lembrado. “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” foi entoada com gosto pela plateia. Candeia, outro dos grandes, também não faltou à festa, num samba cantado por Sérgio Procópio, que comandava o cavaquinho. Ele – atual presidente da Portela e parecido com Candeia, inclusive – relembrou “Dia de Graça”, dos clássicos do compositor, muito bem selecionada no set-list, pois soou extremamente adequada àquele público ligado à universidade e pela ocasião comemorativa à UFRGS. Contando a história de um filho de sambista do morro que consegue chegar à faculdade, a poética letra desfecha assim: “E cante o samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de verdade/ Aí então jamais tu voltarás ao barracão”. Dele, também teve a parceria com Casquinha “Falsas Juras”, com aquela impressionante escalada vocal das pastoras no refrão: “Não adianta aos meus pés se ajoelhar/ Pode chorar, pode chorar”.

Em meio a tanta beleza, ainda tiveram a filosófica “O Mundo é Assim” (“O mundo passa por mim todos os dias/ Enquanto eu passo pelo mundo uma vez...”), de Alvaíde; “Tudo azul”, de Ventura; a linda “Lenço”, de Chico Santana e Monarco; e “Você me abandonou”, de letra extremamente feminista (“Você me abandonou/ Ô ô, eu não vou chorar/... O castigo que eu vou te dar é o desprezo/ Eu te mato devagar”), mas composta por um homem, Alberto Lonato. De Monarco, simpático e feliz pela ocasião, não faltaram igualmente suas numerosas composições importantes para o repertório do grupo. Além das já citadas, teve dele também “Portela desde que eu nasci” – seu primeiro sucesso, na voz de Martinho da Vila, quando ele, Monarco, ainda era um mero guardador de carros, nos anos 70 –, sua primeira composição, escrita quando tinha 13 anos, e os hits na boca de Zeca Pagodinho: a gostosa “Vai Vadiar” e a iluminada “Coração em Desalinho”, dos mais lindos sambas jê escritos: “Agora uma enorme paixão me devora/ Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho curto a minha dor”.

A comoção não parou por aí. Vieram outros clássicos como “O Amanhã” (“Como será o amanhã/ Responda quem puder...”), clássico samba-enredo, e “Portela na Avenida” (Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro), imortalizada por Clara Nunes, que pôs tudo mundo pra sambar e cantar, acendendo a galera, num verdadeiro êxtase: “Salve o samba, salve a santa, salve ela/ Salve o manto azul e branco da Portela/ Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”. Simplistamente um espetáculo.

A delicadeza, a simplicidade, a pureza da poesia destes sambas, unida às engenhosas e límpidas melodias que se situam entre o partido-alto, o sambe-enredo, o samba-de-roda, o batuque, o maxixe. Assim são os sambas que a Velha Guarda da Portela, com o perdão do trocadilho, guarda. Já escrevi sobre isso no meu blog: a Velha Guarda abre um real espaço documental de registro de obras que, não fosse a valorização de apreciadores ilustres – como Paulinho e Marisa, que, em épocas diferentes, motivaram sua existência e manutenção –, perder-se-iam no terreiro de Madureira num pagode qualquer e, talvez, caíssem no esquecimento dos tempos. Ainda bem que não, para o bem de amantes desses sambas como nós que podem, ainda hoje, ser arrebatados como fomos naquela histórica noite na (ou “de”) Redenção.




quinta-feira, 15 de maio de 2014

O Jogo da Sua Vida #4 - Grêmio 0 x Flamengo 0 (1989)

A Jogada do Zico

Não é de hoje que digo que meu interesse por futebol se restringe ao Sport Club Internacional. Cada vez mais, ao longo dos anos, desde que, guri, fui ao Gigante da Beira-Rio, em meados dos anos 80, assistir a um Inter e Coritiba levado por meu pai e meu irmão, percebo que não gosto propriamente do esporte em si, mas do meu time. Minha impressão é que, nascido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, como sou, se, por acaso do destino, os irmãos Poppe não tivessem fundado uma agremiação que sustenta, até hoje, o desígnio sincero de “clube do povo”, e isso significasse que restasse apenas o arquirrival como alternativa, não torceria por clube nenhum. Por isso, deve ser estranho para quem está lendo ver no enunciado que, justamente, no jogo que considero o da minha vida o Inter não seja um dos disputantes. E pior: não só não ser jogo do Inter como ser do Grêmio! E um 0 a 0?
Pois essa aparente incoerência tem explicação, inclusive a ausência de gols. O referido jogo, quartas-de-final do Campeonato Brasileiro de 1988-1989, tinha, sim, direta ligação com o Inter. E com a minha vida, ou melhor, com a preservação dela. Grêmio e Flamengo disputavam uma das vagas na semifinal do certame nacional, enquanto o Inter enfrentava o Cruzeiro mirando a mesma finalidade. E o Inter daquele ano, treinado por um jovem técnico chamado Abel Braga, tinha boas chances de avançar. Contávamos com um centroavante goleador, Nílson, um ponta-direita rápido e atrevido, Maurício, o goleiro da Seleção Brasileira, Taffarel, além de um meio campo e uma zaga de qualidade. Depois de uma ótima campanha (1º colocado, com 47 pontos, considerando os dois primeiros turnos), estávamos embalados e chegávamos às quartas confiantes.
Porém, avançar de fase também significava, além do esperado aumento da dificuldade do confronto, a possibilidade de dar um Gre-Nal inédito numa semifinal de Brasileirão. Podíamos topar com o Grêmio logo à frente, e isso era bem provável. Meu irmão e eu havíamos ido a todos os jogos ocorridos no Beira-Rio naquela campanha, fosse na geral, fosse na saudosa “coreia”, ora acompanhados de amigos e parentes, ora somente nós dois. Não perdemos uma partida, e comungávamos da mesma confiança de todos os colorados naquele ano. Entretanto, se para meu irmão assustava a possibilidade de cruzar com o Tricolor na fase seguinte, a mim, mais irresponsável, agradava. Queria a emoção de derrotá-los num confronto inédito e sem precedentes na história.
Aconteceu de o jogo de ida do Inter contra o Cruzeiro ser no Mineirão, em Belo Horizonte, num domingo. Assistiríamos pela TV uma partida que terminou em 0 x 0. Entretanto, no dia anterior, sábado, num fatídico 28 de janeiro de 1989, Porto Alegre receberia outra partida, ou seja, nós dois não ficaríamos sem atração naquele fim de semana, mesmo que não fosse diretamente do nosso time. Era o primeiro enfrentamento da outra chave, o tal Grêmio e Flamengo. Queríamos ver de perto nosso possível adversário, fosse um ou outro. Então decidimos assistir ao jogo no estádio Olímpico. Na torcida do Grêmio.
Isso não foi uma escolha, bom que se diga. Tendo definido em cima do laço de irmos ao jogo, não deu tempo de articularmos a compra de ingressos na seção destinada aos torcedores visitantes, no anel superior. Aliás, seria quase trocar seis por meia dúzia, uma vez que compartilhamos ainda hoje quase da mesma antipatia com relação ao Flamengo a que dedicamos ao Grêmio. Resultado: usando camisetas de cores neutras (dois colorados usarem azul, jamais!), eu e meu irmão, sem nenhum outro colorado corajoso que tenha aceitado nos acompanhar, compramos entradas para a geral do Olímpico e sentamos atrás de uma das goleiras. Rodeados de gremistas. Ali assistimos ao jogo “na nossa”, sem falsas manifestações de exaltação, como se fôssemos torcedores pacatos e concentrados no evento.
Essa junção de fatos fez toda a diferença para este episódio.
O estádio estava inexplicavelmente não-lotado, e eu e meu irmão, sem dizer uma palavra, nos entreolhamos com cumplicidade e espanto crítico como que dizendo: “como esses gremistas conseguem não lotar o próprio estádio num fim de semana e numa quartas-de-final de Brasileiro?”. Assistimos a uma partida morna. Os adversários se equiparavam, o que motivou um jogo de meio campo, com poucas oportunidades para os dois lados. A não ser por uma jogada. Do Zico.
Arthur Antunes Coimbra, o Zico, já era um dos maiores jogadores que a história do futebol havia visto. Craque desde os anos 70, havia comandado seu Flamengo, em 1981, na conquista do título Mundial, e, no ano seguinte, embora derrotado pela Itália, fez parte da inesquecível Seleção Brasileira ao lado de Sócrates, Júnior, Falcão, Éder e outros – para muitos, o melhor selecionado canarinho de todos os tempos. Artilheiro, driblador, armador, exímio cobrador de faltas. Jogador inteligente, rápido e habilidoso, havia quem o apelidasse de “Pelé branco”, alcunha que por si só já fala tudo. Mesmo a desclassificação para a França na Copa do Mundo de 1986, a qual foi um dos principais responsáveis ao perder um pênalti no segundo tempo que selaria a vitória brasileira, não ofuscara a idolatria a Zico. Somava-se a essa mitologia o fato de, um ano antes da Copa do México, um zagueiro chamado Márcio Nunes ter-lhe propositadamente quebrado o joelho esquerdo numa jogada covarde e criminosa. À época, de pré-informatização e de uma medicina esportiva ainda pouco avançada, uma contusão como aquela geralmente tirava um jogador para sempre dos gramados. Zico, no entanto, com persistência, curou-se, ajudou seu Mengo a ganhar o Módulo Verde da Copa União, em 1987 (em cima do Inter!) e, naquele 1989, disputava mais uma vez a temporada nacional.
E ele estava em campo naquele sábado. Além dos jogos pela TV e da Copa de 86 – a primeira a qual me lembro com clareza de assistir e torcer –, já o tinha visto jogar duas vezes ao vivo, ambas contra meu Inter. Gabo-me disso. Uma, em 1987, num 2 x 0 para nós (contra um Flamengo treinado por Telê Santana e que tinha ainda em campo Renato Gaúcho, Zinho, Leonardo, Andrade e Jorginho); e num histórico 3x1, já válido por aquele campeonato, em que, afora os dois gols de Nilson e um de Edu, foi ele, Zico, quem marcou pelo Rubro-Negro. Numa jogada na ponta da grande área, do lado direito, o Galinho cortou o zagueiro para dentro e, na frente da área, enfiou um chute seco e certeiro no ângulo, descontando. Nunca me esqueci da habilidade e velocidade de movimentos e pensamento de Zico naquele lance, que calou por uns instantes todo o estádio, ainda eufórico com o segundo gol do Inter um minuto antes. Eu assistia, coincidentemente, também atrás do gol.
Era onde eu e meu irmão estávamos. Mas não na nossa casa, Beira-Rio, e, sim, no Olímpico em uma tarde nublada em todos os sentidos. Quase o mesmo ângulo. Porém, ao contrário do movimentado confronto do time carioca com o Inter (com quatro gols, três só no primeiro tempo), aquele Grêmio e Flamengo chegava a dar sono. Intervalo, e zero a zero. Na segunda etapa, as equipes voltam a campo com uma tentativa de jogar melhor. Tentativa. Seguia o mesmo marasmo, e já se começava a ouvir reclamações aqui e ali por conta de uma jogada mal concluída, um passe errado, um chute não arriscado. Os torcedores gremistas já perdiam a paciência – e nós, ali, secadores enrustidos, na maior satisfação.
Até que, por volta dos 35 minutos, uma jogada marcaria para sempre a mim, não necessariamente por sua beleza futebolística, mas por outro motivo. Zico, pouco inspirado naquele dia como todos os companheiros, havia mudado seu estilo de jogo depois que voltou das contusões, substituindo seu ímpeto e dribles rápidos pela cadência, toques de primeira e lançamentos. Mas, como diz Jorge Ben naquela música dedicada ao Camisa 10 da Gávea: “quando não está inspirado, ele procura a inspiração”. Afinal, craque é craque, né, meu amigo? De repente, mesmo num dia ruim, pode tirar da cartola uma jogada e mudar o destino. E, além do mais, um Zico com 60% de capacidade equivale a 100% da maioria dos jogadores. Pois, numa surpreendente arrancada da intermediária, Zico, a quem os defensores gremistas não esperavam tal atitude, driblou um e avançou rápido rumo ao gol, carregando a bola, como nos velhos tempos. Havia outros dois adversários à sua frente, e seria difícil supô-los. Pois foi que ele se livrou do primeiro na velocidade e, já chegando na ponta da área, do lado esquerdo, aplicou o mesmo drible curto e ligeiro sobre o zagueiro tal qual havia executado meses antes contra o Inter. Parecia que via a repetição da jogada, porém do lado inverso. Mas dessa vez era contra o Grêmio, então, pensava na minha cabeça de torcedor: Zico tinha a minha permissão para acertar. Ele disparou o chute seco mirando o ângulo do goleiro Mazzaropi.
Ao contrário da primeira ocasião, no entanto, Zico, dessa, não fez o gol. O chute bateu na rede, mas pelo lado de fora. Aquele tradicional: “uhhhh!!” ecoou no estádio. Foi só um susto para a torcida tricolor, que terminou quando a bola foi para fora. Porém, para nós dois, o susto permaneceu. Meu irmão, empolgado com a jogada e com a possibilidade de o Flamengo abrir vantagem contra o Grêmio fora de casa (podendo administrar o jogo no Maracanã no jogo de volta e, assim, eliminar os gaúchos), acompanhou a investida de Zico de pé na arquibancada feito um torcedor flamenguista, mas sem dar bandeira até então. Quando o atacante errou o alvo, porém, ele não conteve a “coloradisse” e, apontando o dedo para o campo, gritou, a plenos pulmões: “Filho da puuuuutaaaa!...” Sim, as reticências colocadas por mim após o xingamento são propositais. Foi exatamente isso que aconteceu naquele momento: reticências. Dando-se conta do que acabara de fazer, ele congelou. E eu junto. A impressão era de que toda a geral havia silenciado para entender aquela reação. Foram segundos intermináveis, que demoraram mais tempo do que aqueles sonolentos 80 minutos de partida até ali. “Como vamos sair dessa?”, pensei incrédulo, olhando-o sentado e boquiaberto com o rabo de olho. Haviam visto que estávamos juntos, e, afora isso, somos bem parecidos de rosto. Não tinha como negar que eu não conhecia aquele cara. Então, se ele apanhasse, eu apanhava também. De toda a geral do Olímpico.
Senti cerca de 30 mil pares de olhos gremistas nos olhando sem entender aquela atitude do meu irmão, todos já armando um ar de fúria de quem está prestes a atacar caso se confirme a suspeita: a de que nós éramos infiltrados. Estávamos prestes a sermos linchados em plena arquibancada. No entanto, por alguma graça enviada pelos deuses colorados, meu irmão teve a espirituosidade que só o instinto de preservação oferece nessas horas e completou aquela desastrosa e obscena fala com um: “Mas coooomo vocês deixam o cara entrar assim na área?!”. A expressão enrubescida de raiva dos gremistas, ao ouvir aquilo, passou em milésimos da confusão para concordância e indignação mútua. Um de nosso lado falou: “É! Isso mesmo: coooomo vocês deixam o cara entrar assim na área?! Mandou bem, cara”, parabenizando meu irmão. Olharam-nos orgulhosos por aquela reação incontida de indignação por amor a seu time, coisa que só um gremista de verdade poderia manifestar... Meu irmão sentou-se novamente com a promessa de não abrir mais a boca até a eternidade e só levantou de novo para irmos embora quando acabou o jogo. Entreolhamo-nos novamente em silêncio, dizendo um para o outro com os olhos: “Ufa! Escapamos dessa!”.
Meu irresponsável desejo se realizara. O Grêmio bateu o Flamengo em pleno Maracanã e o Inter venceu o Cruzeiro no jogo de volta diante da sua torcida. Em 1º de fevereiro, o aguardado e temido Gre-Nal, o do Século (depois de um 0 x 0 no primeiro jogo), aconteceu. Vencemos o Grêmio: 2 x 1, um jogo que ficou marcado na história, o qual também tive a felicidade de presenciar, porém desta dentro do nosso Templo. Perdemos o campeonato para o Bahia na final, mas o melhor já tinha vindo. Afinal, depois de termos passado aquele sufoco em nome da paixão pelo Internacional, nós merecíamos pelo menos essa recompensa.
Agora imaginem o que aconteceria se o Zico tivesse acertado aquele lance...

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Jorge Ben - "Camisa 10 da Gávea"


(A meu quase-algoz Clayton)
torcedor do Internacional



terça-feira, 22 de abril de 2014

João Bosco - "Galos de Briga" (1976)




Não é o sucesso, é o contrário: é o sufoco mesmo,
é a vontade de cantar e de falar.
Só que de repente isso não foi possível de acontecer a nível popular,
porque a cada dia as pessoas têm mais medo, não têm defesa,
cada vez sabem menos o que está acontecendo.
Aí você vem e começa a cantar umas coisas
que elas gostariam de dizer e cantar.
A razão do sucesso, então, não é bem ele mesmo.
Talvez a razão dele seja o fracasso de todo mundo.”
João Bosco,
em entrevista de 1976
sobre o disco “Galos de Briga”



Este mês de abril de 2014 não ficará marcado apenas pelas vésperas de Copa do Mundo no Brasil (quando se espera dos cidadãos, sem querer pedir muito, civilidade) ou pelas celebrações de 222 anos pela memória do “patrono cívico” brasileiro, Tiradentes, mas, também, por outra data de importância patriótica menos feliz, porém necessariamente rememorável: os 50 anos do começo da Ditadura Militar, em 1º de abril de 1964. Diante de tantas manifestações contra a realização da Copa, de mais um feriado que não se acessa o verdadeiro motivo da paralisação nacional e de tantas controvérsias em razão dos arquivos ainda velados dos porões da ditadura, o que seria capaz de unir de alguma forma futebol, liberdade civil e política, representando essas três datas distantes cronologicamente, mas próximas em simbologia?

Um disco que une esses três polos como nenhum outro é “Galos de Briga”, terceiro da carreira de João Bosco. Gravado em 1976 pela RCA Victor, este sucesso de público e crítica à época é fruto, curiosamente, de um momento de alta ebulição no Brasil: enquanto Geisel iniciava seu governo anunciando uma “abertura lenta e gradual”, o AI-5 inda vigorava e barbaridades aos direitos humanos ainda ocorriam em todos os cantos do País. A Lei Falcão punha uma mordaça na oposição política; a estilista e mãe de guerrilheiro Zuzu Angel, pedra no sapato dos militares, morria num ainda inexplicado acidente de carro no mesmo fatídico abril; meses antes, o jornalista Vladmir Herzog era assassinado dentro do DOI-CODI. Torturas tomavam os porões do DOPS e pessoas desapareciam sem praticamente ninguém saber. Porém, a resistência se mostrava forte: o rabino Henry Sobel e Dom Evaristo Arns comandam a missa ecumênica em nome de Vlado na Praça da Sé, reunindo milhares de pessoas que, sob o olhar e a mira dos policiais, rezam silenciosamente; Ulysses Guimarães fundava a OPB, Ordem dos Parlamentares do Brasil, associação sem vínculos partidários, religiosos ou sociais que representava a luta pela abertura política; o PCdoB, esfacelado na Guerrilha do Araguaia, voltava a se reorganizar através das lideranças estudantis. O Brasil estava pegando fogo, e a classe artística, obviamente, ansiava por se manifestar, por resistir de alguma forma.

Eis então que, no início dos anos 70, através do meio universitário, se dá o encontro de João Bosco com Aldir Blanc. João, um mineiro que virou carioca, mas que nunca perdeu a vastidão poética de Minas Gerais dentro de si. Aldir Blanc, típico poeta maldito da Rio de Janeiro carnavalesca e vadia, do fervor pelo futebol e pela militância política. A fusão dessas duas forças artísticas foi explosiva, e eles criam com “Galos de Briga” uma obra que é tapa contundente na cara do regime em mensagens inteligentes aos milicos e aos mantenedores do sistema. Com crítica social, combatividade e um posicionamento de esquerda visível, o álbum só podia ter este título, uma vez que, como animais de rinha, eles vão para o enfrentamento com as armas que têm: os sons e a palavra.

Exímio violonista e compositor, amante de Clementina de Jesus, dos mitos da Rádio Nacional, de sambas antigos, de João Gilberto e do populacho das rádios AM, João consegue criar desde boleros emanados dos puteiros do baixo meretrício da Lapa até sambas gingados, passando por ritmos portugueses e marchas da antiga. Isso, aliado à poesia afiada de Aldir. É esse arsenal rítmico e melódico que “Galos de Briga” traz, como uma dupla de atacantes habilidosos que tiram da cartola jogadas inesperadas. O clássico samba "Incompatibilidade de Gênios" dá o pontapé inicial com seu humor ácido, já pontuando a crítica social de um país que persegue e mata seus filhos enquanto, dentro dos lares, a violência e a incompreensão reinam. A referência ao futebol, tanto como paixão do brasileiro como fuga da realidade, já aparece no primeiro verso na rusga entre marido e mulher: “Dotô, jogava o Flamengo, eu queria escutar/ Chegou, mudou de estação, começou a cantá...” Na mesma linha, porém ainda mais aguda, “Gol Anulado” usa o futebol de forma metafórica para expressar a mesma incompatibilidade entre amor e o momento político de dureza e opressão, o que, numa sociedade ignorante, machista e inculta, desemboca na válvula de escape, o futebol. É o caso do marido que espanca a mulher por que ela mentia ser vascaína como ele, mas, na verdade, torcia pelo rival Flamengo. “Quando você gritou Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem pensar o cinto/ E bati até cansar...” E desfecha, reforçando esse simbolismo maléfico que o entretenimento futebol desgraçadamente pode ter: “Eu aprendi que a alegria/ De quem está apaixonado/ É como a falsa euforia/ De um gol anulado”.

De igual potência crítica, “O Cavaleiro e os Moinhos”, das canções imortalizadas na voz de Elis Regina (lançadora de João e Aldir em 1972, ao gravar-lhes o hit “Bala com Bala”), inicia com um provocador ritmo de marcha militar sob os versos: “Arrebentar/ a corrente que envolve o amanhã/ Despertar as espadas/ Varrer as esfinges das encruzilhadas...”. De repente, o clima marcial se transforma numa debochada rumba! E a letra, pontuda como um bico de galo, continua atacando: “Todo esse tempo/ foi igual a dormir num navio/ sem fazer movimento/ mas tecendo o fio da água e do vento/ Eu, baderneiro/ me tornei cavaleiro/ malandramente/ pelos caminhos”. E, exaltando os diversos grupos da guerrilha armada, finaliza referenciando Cervantes: “Meu companheiro/ tá armado até os dentes/ já não há mais moinhos/ como os de antigamente”. Afinal, numa época como aquela, quem era o “louco Quixote” e quem era o “moinho”?

O suingue caribenho reaparece na gostosa “Rumbando”, assim como o bolero nas não menos deliciosas “Latin Lover” (já gravada por Simone um ano antes) e “Miss Suéter”, o antigo certame que destacava as jovens que apresentavam os bustos, digamos, mais avantajados. Aldir penetra no universo brega de forma engraçada e crônica (“Eu conheço uma assim/ Uma dessas mulheres/ Que um homem não esquece/ Ex-atriz de TV/ Hoje é escriturária do INPS/ E que, dia atrás/ Venceu lá no concurso de Miss Suéter...”) e João realiza o sonho de fazer duo com uma de suas divas, Ângela Maria, que executa uma impressionante progressão tonal no riff com sua treinada voz de contralto.

Embora ainda tenha o divertido partido-alto “Feminismo no Estácio“ e o samba-canção “Vida Noturna”, típica fossa-boemia-carioca, o negócio naquele momento era mesmo partir para a briga. Aí é que o jogo engrossa! “Transversal do Tempo”, outra eternizada por Elis (foi título de disco e espetáculo dela, em 1978), que fala sobre pobreza (“As coisas que eu sei de mim/ São pivetes da cidade/ Pedem, insistem e eu/ Me sinto pouco à vontade/ Fechada dentro de um táxi/ Numa transversal do tempo”), exílio (“As coisas que eu sei de mim/ Tentam vencer a distância/ E é como se aguardassem feridas/ Numa ambulância”) e desesperança (“Acho que o amor/ É a ausência de engarrafamento”). Pungente. Igualmente, o fado lusitano que dá título ao álbum, de poesia rebuscada e caráter combativo: “Não o rubrancor da vergonha/ mas os rubros de ataduras/ o rubro das brigas duras/ dos galos de fogo puro/ rubro gengivas de ódio/ antes das manchas do muro”. (Sim, não é coincidência que a imagem das pichações com palavras de ordem contra a ditadura venha à cabeça.)

Mas não para por aí. A raiva de toda a sociedade civil oprimida e sem voz parecia não caber em apenas poucas músicas para João e Aldir. Tinham que falar, exatamente, desta raiva, deste inconformismo. Pois então, toma!: “O Ronco da Cuíca”. Tal samba-enredo, literalmente, enredou a censura que, burra e limitada, embaralhou-se com seus versos circulares e envolventes, que a denunciavam como que dizendo: “vocês até podem parar nossa reação através das força, mas jamais serão capazes de conter nosso desejo pela liberdade”. Uma “Opinião”, de Zé Keti, revisitada. Letra e música geniais, que expande os sentidos e simbologias das palavras (como na personificação do instrumento “cuíca”, dando-lhe vida e politizando-o), uma vez que o próprio termo “fome” tanto pode significar a crítica econômico-social da falta de comida ao povo (talvez tenha sido isso que induzira os milicos ao erro) quanto, num espectro maior, a urgência da democracia.

Pra terminar, o “tiro de misericórdia” (não à toa, título do LP seguinte de João Bosco, de 1977): “O Rancho da Goiabada”, uma marcha-rancho aparentemente festiva mas que, como em poucas obras do cancioneiro brasileiro, denunciam algo que se falava somente nas esquinas e a boca pequena: a situação desumana dos boias-frias – trabalhadores rurais escravos apelidados assim por causa das refeições que levavam em recipientes sem isolamento térmico desde que saíam de casa, de manhã cedo, o que faz com que estas já estejam frias na hora do almoço. Os versos pintam um quadro sócio-profissional perturbador, que contrasta com o ritmo de carnaval da melodia: “Os boias-frias quando tomam umas biritas/ Espantando a tristeza/ Sonham, com bife a cavalo, batata frita/ E a sobremesa/ É goiabada cascão/ com muito queijo...”. E finaliza condenando sem meias-palavras os latifundiários criminosos em suas fantasias de homens poderosos comparando-os aos soberanos egípcios cujo tempo já passou dizendo que, bravamente, os boias-frias: “São pais de santos, paus de arara, são passistas/ São flagelados, são pingentes, balconistas/ Palhaços, marcianos, canibais, lírios pirados/ Dançando, dormindo de olhos abertos/ À sombra da alegoria/ Dos faraós embalsamados”.

João e Aldir criaram um disco que é o retrato de um país em período de mudanças, as quais só se concretizaram por que artistas corajosos como eles, junto a centenas de opositores ativos – entre estes, vários desaparecidos –, ofereceram resistência, seja em armas ou em ideias. Estes são grandes responsáveis pela democracia que se vive hoje num País capaz de receber, inclusive, uma Copa do Mundo sem a sombra da vigília militar como ocorrera na Argentina em 1978. Afinal, naquele tempo, quem se opunha sabia claramente o porquê de estar fazendo. Não era por 20 centavos: era para viver num país livre.

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Certamente, foi por uma causa nobre como esta que, naquele mesmo 1976, João Bosco e Aldir Blanc recusaram o prêmio Golfinho de Ouro, conferido pelo Governo do Rio de Janeiro, pois queriam que o premiado fosse Cartola, uma vez que consideravam, sem modéstia burra, o trabalho do compositor daquele ano, o histórico LP com “As Rosas não Falam” e “O Mundo é um Moinho”, melhor do que o seu. A dupla recebeu, então, o troféu de Compositores do Ano pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco.
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FAIXAS
1 - Incompatibilidade de Gênios
2 - Gol Anulado
3 - O Cavaleiro e os Moinhos
4 - Rumbando
5 - Vida Noturna
6 - O Ronco da Cuíca
7 - Miss Suéter
8 - Latin Lover
9 - Galos de Briga
10 - Feminismo no Estácio
11 - Transversal do Tempo
12 - O Rancho da Goiabada
todas as músicas são de autoria de João Bosco e Aldir Blanc

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OUÇA O DISCO






segunda-feira, 21 de abril de 2014

Copa do Mundo The Cure - Campeã


E chegou a hora, torcedor !
Um clássico local, ou seja, duas músicas do mesmo álbum, "M" e "A Forest" do "Seventeen Seconds" de 1980, decidem a Copa do Mundo The Cure.
Nossos especialistas Christian Ordoque, Daniel Rodrigues, Anderson Reis, juntamente comigo e contando com as manifestações dos amigos da nossa página no facebook, elegeram a grande campeã.
Confira abaixo as avaliações da bancada cureística e seu 'verdedito' final:




>>> "M" x "A FOREST" <<<



Cly Reis
Não tem jeito. "M" pode ser muito boa, muito certinha, uma ótima representante do pós-punk do Cure, mas diante de "A Forest" não segura. "A Forest" simplesmente se impõe e faz 3x0. Mas não aquele três a zero humilhante de goleada. É um 2x0 no primeiro tempo, tirando o pé do acelerador quando vê que o jogo tá sob controle e um golzinho no segundo tempo, no contra-ataque só pra sacramentar. Não tinha como dar outra. 
A FOREST VENCE.






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Anderson Reis
Nem preciso pensar. É "A Forest", certo! Sinceramente, eu acho que dá uns 3x0 para "A Forest". 
A FOREST VENCE.






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Christian Ordoque
Baaaaahhhhhh, complicado! Repito o que disse sobre A Forest no confronto anterior: M perde para A Forest por um simples motivo: Foi a única música que vi tocada ao vivo onde milhares de pessoas a aplaudiu NO MEIO da execução ! A Forest é a Hey Jude do The Cure. Pode parecer monótona ou coisa de fã, mas só quem está no meio da multidão pode saber e sentir do que se trata. A Forest é a vencedora deste confronto e pela minha escolha é a campeã.
Não tem como ser diferente.
A FOREST VENCE





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Daniel Rodrigues
Dois tempos bem distintos. No primeiro, “M”, com personalidade e a confiança de quem passou por pedreiras como “End” a “A Night Like This” por estar ali, sai apavorando, botando pressão, inesperada para “A Forest”. E deu resultado. Aos 14, “M” marca o primeiro numa roubada de bola na intermediária, passe pro atacante matador que ainda dribla um zagueiro e chuta cruzado, meio mascado, mas suficiente pro goleiro não alcançar e estufar as redes. 1 x 0 surpreendente no inicinho do jogo. E agora, “A Forest”, e o favoritismo? E os prognósticos da imprensa que lhe davam vantagem? E a campanha irreparável, em que bateu fortíssimos concorrentes do calibre de “Friday I’m in Love”, “The Caterpillar” até com facilidade? É, o negócio ficou feio pro lado de “A Forest”: aos 21, logo em seguidinha do primeiro gol, “M” botou uma na trave e, mais pro final do primeiro tempo, quase marcou de novo, numa cabeçada do zagueiro no escanteio, que o goleiro fez milagre. Mas acabou assim os primeiros 45 min, com vantagem para “M”, que podia ter sido maior, mas não foi.
Mas aquela máxima do futebol que não falha: quem não faz leva. “M”, que teve duas chances claras de marcar no primeiro tempo e fechar definitivamente o placar, levando o caneco pra casa, desperdiçou. Então que os deuses do futebol não perdoam. Aguerrido e agressivo como na sua versão do “Concert”, “A Forest” tira da cartola um empate aos 30 min e dali pra diante, meus senhores, foi um verdadeiro filme de terror pra “M”. Bola pra área, chute da intermediária, pênalti claro pra “A Forest” que o juiz não marcou. Bombardeio. No abafa, na pressão, “A Forest”, aos 41, num escanteio ensaiado, o lateral esquerdo escora a bola na segunda trave e o zagueiro central entra com tudo no meio da área de cabeça. Gol da vitória que sacramenta o título. 2 x 1 e...

A FOREST VENCE


 A FOREST CAMPEÃ
A MELHOR MÚSICA DO THE CURE


The Cure - A Forest 

terça-feira, 4 de junho de 2013

Jamelão - "Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues" (1972)





“Eu não sou músico, não sou compositor,
não sou cantor, não sou nada.
Eu sou é boêmio.”
Lupicínio Rodrigues


Há quem ironize que Lupicínio Rodrigues era, como cantor, um grande compositor. O célebre músico gaúcho é, inegavelmente, um dos maiores nomes da história da música brasileira, precursor do chamado samba-canção, antes mesmo de contemporâneos seus como Cartola, Herivelto Martins e Nelson Cavaquinho. É reconhecido nacionalmente – mesmo nunca tendo saído da (até hoje) nada promissora mercadologicamente terra-natal Porto Alegre – e já foi gravado por centenas de intérpretes das mais distintas gerações e vertentes, que vão de Orlando Silva a Elis Regina, de Ângela Maria a João Gilbertode Isaura Garcia a Caetano Velosode Nelson Gonçalves a Arrigo Barnabé. Mas era comum acharem que Lupi não servia para cantar. A voz miúda, a la Mário Reis, dolorida como suas letras, não tinha, principalmente naquele longínquos anos 30, quando surgiu para a música, nada a ver com o, este sim, apreciado vozeirão dos cantores impecáveis e técnicos da Rádio Nacional, a “Globo” da época, primeira era Vargas.

Há controvérsias. Tanto que o histórico “Roteiro de um Boêmio”, álbum com quatro discos de 78 rpm gravado em 1952 por Lupicínio com seu vocal original, daquele jeito mesmo, cool e sutil, é considerado por fãs como o definitivo registro do autor de “Se Acaso Você Chegasse”. Mas o jornalista e compositor Hamilton Chaves, mesmo tentando dar uma força ao amigo, mandou-lhe ver na veracidade: “Tu não é cantor, rapaz. Põe na tua cabeça! Neste país subdesenvolvido, cantor é quem tem voz operística”. O próprio Lupi sabia que estava longe de um Caruso. Considerava-se, antes de tudo, um boêmio – o que, de fato, era acima de qualquer coisa. As paixões, os remorsos, as angústias, as brigas, as bebedeiras, as traições, as desilusões, enfim, tudo o que há de mais intenso e sentimental vivido por ele de bar em bar pelas ruas da cidade servia de substrato para o universo de suas composições. Misto de Lord Byron com Nelson Rodrigues, este dândi do subúrbio compôs, fosse sozinho ou com parceiros de copo e canção (como Alcides Gonçalves, Felisberto Martins e David Nasser), obras-primas do chamado samba “dor-de-cotovelo”, uma magnífica metonímia inventada por ele próprio para classificar seu estilo mais característico.

Porém, como dizia outro célebre sambista, Ataulfo Alves, “a maldade desta gente é uma arte”, e a desconfiança com sua autointerpretação sempre pairou, ainda mais por quem, a estas alturas, já tinha sido imortalizado na voz de Francisco Alves, Cyro Monteiro e uma penca de cantores “oficiais”.

Até que surge alguém para dar ponto final à discussão. Amigo pessoal de Lupicínio desde quando, excursionando pelo Rio Grande do Sul nos anos 50, o conheceu, o ilustre Jamelão se encantou com a obra de Lupi e passou a incluir suas músicas em seu repertório tanto de shows como em discos. Autointitula-se, então, sem o menor zelo, como seu principal intérprete. E tinha razão. Nem a impostação excessiva, nem o minimalismo asséptico, mas, sim, um canto possante com toques da malandragem do morro. A lapidação disso está em “Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues” (Continental, 1972), que traz 12 joias representativas do tesouro que é a obra deste autor, desde as primeiras canções “Meu Pecado” e “Sozinha”, os sucessos radiofônicos “Exemplo” e “Vingança” até clássicos absolutos, como “Nervos de Aço” – aqui, bonita num compasso mais ligeiro que o normal.

Carrancudo e de personalidade forte, Jamelão, antes de tornar-se marca registrada do Carnaval do Rio de Janeiro como o maior puxador de sambas-enredo pela escola Mangueira, desde os anos 60, já era conhecido nas gafieiras como crooner por sua voz encorpada tomada de intensidade e sentimento. E o cancioneiro de Lupicínio fecha totalmente com isso. Acompanhado da excepcional Orquestra Tabajara, uma big-band ao estilo dos grandes grupos de jazz norte-americanos, Jamelão dá um verdadeiro show. Os arranjos, notados com perfeição pelo maestro Severino Araújo, também caem como uma luva, o que não é de se estranhar, uma vez que a melodia lupiciniana, marcadamente escrita em tom menor, carrega com bastante originalidade o arrebatamento sensual do tango e a breguice cult do bolero - além, é claro, da malemolência do samba carioca. Jamelão, por sua vez, solta o gogó a serviço da obra do amigo, um constante flerte entre o vulgar e o sofisticado, entre o coloquialismo e a alta literatura, entre a ironia e o drama. As versões incluídas neste trabalho ganham, assim, a força interpretativa do cantor e o apuro das harmonias, achando a roupagem certa que a música do mulatinho merece.

“Vingança”, de abertura pontuada no naipe de sopros, é notável. “O remorso talvez seja a causa/ Do seu desespero/ Ela deve estar bem consciente/ Do que praticou/ Me fazer passar tanta vergonha/ Com um companheiro/ E a vergonha/ É a herança maior que meu pai me deixou”. Versos de um gênio. A interpretação, que parece sair do âmago de Jamelão, é intensificada pela orquestração, que intercala o andamento suave do piano com os arroubos emocionados da orquestra. “Ela disse-me assim”, a respeito da culpa torturante de um homem pego com as calças na mão pelo marido da amante com ela, é outro destaque do disco: cadenciada, sentida, quase chorosa.

Mais uma história tragicômica é contada em “Um favor”, em que um pobre-diabo pede a quem lhe possa ajudar a encontrar a amada que lhe deu um pé na bunda (“Faça esse mundo acordar/ Para que onde ela esteja/ Saiba que alguém rasteja/ Pedindo pra ela voltar”). O arranjo é especial, principalmente na “deixa” metalinguística da letra ao clamar que músicos e seus instrumentos auxiliem neste chamado desesperado. Claro que a “flauta o trombone e clarim” atenderam. E assim segue em todas as faixas, repletas de dor, angústia e amores não correspondidos como é típico na música de Lupicínio Rodrigues. E Lupicínio Rodrigues cantado por Jamelão, aí mesmo que fica insuperável.

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FAIXAS:

1. Meu recado (Felisberto Martins/ Lupicínio Rodrigues)
2. Homenagem
3. Sozinha
4. Um favor
5. Exemplo
6. Quem há de dizer (Alcides Gonçalves/Lupicínio)
7. Cigano (Martins/Lupicínio)
8. Amigo ciúme (Onofre Pontes/Lupicínio)
9. Torre de babel
10. Nervos de aço
11. Ela disse-me assim
12. Vingança

todas de Lupicínio Rodrigues, exceto indicadas

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Ouça:




quarta-feira, 16 de maio de 2012

Van Morrison - "Moondance" (1969)



"Não me encaixo nos padrões do showbiz, definitivamente"
Van Morrison



 Depois de um trabalho ‘difícil’, introspectivo, de vendagens baixas, um projeto conceitual quase acústico, como foi "Astral Weeks", o inquieto e criativo Van Morrison tirava da cartola outra obra-prima. “Moondance” de 1969, visitava o jazz, o soul, o blues, o folk, com beleza, sutileza e sofisticação. “Moondance” a canção que nomeia o disco é exemplo perfeito desse apuro sonoro, num jazz-rock charmoso cheio de metais e de interpretação impecável do cantor.
As baladas “Crazy Love” e “Brand New Day” são duas preciosidades, a primeira com uma bela linha gospel das backing vocals e a outra altamente sofisticada em sua composição misturando jazz, country e gospel de uma maneira incrível, com destaque para o trabalho de piano e para uma slide-guitar chorosa que conduz a canção.
“These Dreams of You” é bem blues; já “Into the Mystic” vai mais pelo lado regionalista, interiorano, explorando de certa forma uma veia folk no trabalho de Morrison; e “Caravan” destaca-se sobemaneira pela interpretação envolvida e intensa do cantor. “And It Stoned Me”, que lembra bandas fúnebres de New Orleans por causa dos metais, é absolutamente notável; a embalada “Come Running”, carregada no soul é espetacular; “Glad Tidings”, que também vai por essa linha black-music não faria feio pra nenhum James Brown; e o rock-barroco “Everyone” ainda é resquício do trabalho anterior de Morrison pela levada acústica e uso de flautas.
Se parecia que Van Morrison tinha chegado ao máximo com "Astral Weeks", “Moondance” estava lá, pelo menos para botar aquela duvidazinha na cabeça dos fãs e críticos.
Eu sou um que fico com essa dúvida? Qual o melhor, “Moondance” ou "Astral Weeks"?
Na dúvida, tenha os dois.

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FAIXAS:
1. "And It Stoned Me" — 4:30
2. "Moondance" — 4:35
3. "Crazy Love" — 2:34
4. "Caravan" — 4:57
5. "Into the Mystic" — 3:25
6. "Come Running" — 2:30
7. "These Dreams of You" — 3:50
8. "Brand New Day" — 5:09
9. "Everyone" — 3:31
10. "Glad Tidings" — 3:42

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Ouça:
Van Morrison Moondance


Cly Reis

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

João Gilberto - "João Gilberto" (1973)



“Melhor do que o silêncio, só João.”
Caetano Veloso



"João Gilberto", de 1973, não é tão importante quanto “Getz/Gilberto” (1964), obra-prima e definitiva difusora da bossa nova para o mundo; não sustenta a idolatria e o pioneirismo de “Chega de Saudade” (1958), precursor de todo o movimento e referência a TODOS os artistas de MPB a partir de então; nem é tão clássico quanto “Amoroso” (1977), cujo repertório escolhido a dedo traz orquestrações que se harmonizam à voz e ao violão com assombroso requinte. Mas “João Gilberto” é, certamente, o mais João Gilberto dos João Gilberto. Mínimo, detalhista, preciso, econômico, delicado. Perfeito.
De fato, é difícil apontar apenas um disco de João como fundamental. Sua obra é um verdadeiro evangelho de toda a música popular brasileira moderna. E isso se reafirma a cada esporádica gravação que faz. Seu estilo revisita toda a tradição do samba, de Nazareth ao batuque do morro. Moderno e tradicional ao mesmo tempo, o modo de cantar de João passeia com naturalidade de Orlando Silva a Chet Baker, passando por Mário Reis, Carlos Gardel, Vicente Celestino, Cartola, Bola de Nieve e Elizeth Cardoso num lance. Isso tudo aliado a uma técnica inovadora de tocar e, mais do que isso, de estruturar a melodia.
Até o advento da bossa nova, as notas dissonantes nunca haviam sido empregadas em música popular em nenhum lugar do mundo com tamanha exatidão e consciência e em sintonia perfeita (mesmo quando “fora” do compasso, coisa comum em João) como as que consegue extrair de seu violão. Toda essa gama de referências poderia muito bem virar uma salada sonora ininteligível; mas nas mãos e no gogó dele se cristalizaram no mínimo, no volume baixo e apenas audível, no controle absoluto da voz e dos silêncios. Num acorde tão bem elaborado e executado que vale por uma escola de samba inteira.
O que dizer, então, do álbum? Para começar, nada mais, nada menos, talvez a mais bela gravação da mais bela música já composta nesses pagos tupiniquins: “Águas de Março”, de  Tom Jobim .
Já está ali a tônica do disco: voz e violão perfeitamente modulados – a ponto de se escutar os trastes do violão, a respiração e a umidade da língua – acompanhados de uma econômica percussão. Nada mais (e precisa?). A harmonia feita sobre esta melodia indefectível é de uma beleza tamanha que chega a me fugir à compreensão. Faz-me lembrar o que o fã incondicional Caetano Veloso  diz sobre o ídolo: “ninguém consegue mudar tanto mudando tão pouco”. É, de fato, complexo e mínimo como um traçado de Niemeyer, como uma remoinhante de Van Gogh, como um solo de  Miles Davis .
Na sequência, “Undiú”, das raras composições do próprio João e uma de suas mais inspiradas. Trata-se de um samba-de-roda meio baião Gonzaga, meio valsa minimalista, meio canto de pescadores a la Caymmi, em que João articula, com uma afinação incrível, alguns fonemas sem sentido sintático, mas repletos de sentido melódico. Em seguida, o baiano verte outro clássico da MPB. Ou melhor: o reelabora. “Na Baixa do Sapateiro”, de Ary Barroso, vira uma peça instrumental tão bem arranjada e executada que sua partitura poderia muito bem servir como o 13º Estudo para Violão de Villa-Lobos.
Em “Avarandado” e “Eu Vim da Bahia”, dos então “novos baianos” Caetano Veloso e Gilberto Gil , respectivamente, o “velho baiano” tem a coragem de gravar os amigos conterrâneos recém retornados do exílio – ou seja, ainda sob vigília pelo governo militar. Mas João nem quis saber. E as duas músicas são lindas: “Avarandado”, brejeira e apaixonada, e “Eu vim...”, aquele samba radiante e colorido cheio de África-Brasil por todas as notas como só Gil sabe fazer.
Entre as que mais escuto estão “Falsa Baiana” e “Eu Quero um Samba”, tomadas de “requebros e maneiras”, de um swing pleno e natural. Aí vem “Valsa” ou “Bebel” ou “Como São Lindos os Youguis”, outra de autoria de João composta para a filha, a hoje mundialmente conhecida Bebel Gilberto, à época com 6 anos. É uma bela “valsa de ninar”, sem letra, só cantarolada. Imagino que os “Youguis” do subtítulo deviam fazer muito sentido para aquela criança (tanto que os considerava “lindos”). Mas que privilégio ser ninada com uma maravilha dessas, hein? Só podia virar cantora.
A triste “É Preciso Perdoar” e o divertido samba-crônica “Izaura”, a única em que divide os vocais – o que o fez muito bem com Miúcha, mãe de Bebel e então esposa –, fecham este disco inigualável dentro da música brasileira por sua simplicidade e coesão. Seria ridículo dizer que aqui João Gilberto atinge a maturidade musical, pois se trata de um artista que já nasceu maduro. Mas faz sentido pensar que, nesses idos, início dos 70, a bossa nova teve tempo de ser criada, exportada e assimilada por tropicalistas e outrem, a ponto de suas notas dissonantes se integrarem ao som dos imbecis. Tom, Vinícius e ele já haviam entrado para a história pela criação de um estilo musical tão rico que somente meia dúzia de jazzistas, roqueiros e eruditos da vanguarda conseguiram tal feito no século XX. Então, era hora de pegar o banquinho, o violão, aquele amor e 10 canções selecionadas com primor como João sempre soube fazer. Tudo isso para quê? Para ensinar ao mundo como se ouve o silêncio.

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FAIXAS:
1 - "Águas de Março" (Tom Jobim) – 5:23
2 - "Undiú" (João Gilberto) – 6:37
3 - "Na Baixa do Sapateiro" (Ary Barroso) – 4:43
4 - "Avarandado" (Caetano Veloso) – 4:29
5 - "Falsa Baiana" (Geraldo Pereira) – 3:45
6 - "Eu Quero um Samba" (Janet de Almeida, Haroldo Barbosa) – 4:46
7 - "Eu Vim da Bahia" (Gilberto Gil) – 5:52
8 - "Valsa (Como são Lindos os Youguis)" (João Gilberto) – 3:19
9 - "É Preciso Perdoar" (Alcivando Luz, Carlos Coqueijo) – 5:08
10 - "Izaura" (Roberto Roberti, Herivelto Martins) – 5:28

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Ouça:
João Gilberto 1973