Tamanha multiplicidade é tão difícil de se absorver que o próprio Cale só as conseguiu reunir todas a gosto depois de 50 anos de carreira. Após trabalhos das mais diferentes linhas – "Vintage Violence" (1969), pop barroco; "The Academy in Peril" (1972), modern classical; "Slow-Dazzle" (1975), proto-punk; “Church of Anthrax” (com Terry Riley, 1971), minimalismo; “Songs for Drella” (1989, com Lou Reed), art rock; “N'oublie Pas que Tu Vas Mourir” (1995), sonata –, "HoboSapiens", seu 13º da carreira solo, pode ser considerado o da síntese. O conceito está no próprio título: a ideia de ciência, de criação ("robô"), atrelada à uma consciência originária, aquilo que determina o saber da espécie ("sapiens"). Mas a sonoridade de “HoboSapiens” vai ainda além, visto que se vale de todas estas e outras referências anteriores e ainda as amalgama com o synth-pop e o experimental da modernidade.
A brilhante "Zen" abre com a qualidade sintética que é comum às primeiras faixas dos discos de Cale, que articula com habilidade a difícil química entre atonalismo e música pop para impactar de saída assim como fez com "Fear Is A Man's Best Friend" ("Fear"), "Child's Christmas In Wales" ("Paris 1919"), "My Maria" ("Helen of Troy") ou "Lay My Love" ("Wrong Way Up", com Brian Eno). O conceito "HoboSapiens", assim, é acertado no alvo: de cara, ouvem-se ruídos que parecem saídos da natureza. Porém, em seguida percebe-se que este som é manipulado por instrumentos eletrônicos, ou seja, não-natural. Este, por sua vez, transforma-se numa base, que mantém o clima denso e suspenso para entrar uma batida programada de acordes mínimos, suficientes para formar um ritmo funkeado.
Pop-rock de alto nível vem na sequência com "Reading My Mind" e “Things”, esta última, aliás, que Cale espelhará na segunda parte do disco com a sua versão B, “Things X”, mostrando que é incontrolável sua tendência velvetiano de “sujar’ a melodia. União de opostos. "Look Horizon", no entanto, volta a “problematizar”, injetando um clima soturno com uma percussão abafada e o tanger de seu instrumento-base, a viola, que acompanha a elegante voz do galês. Mas a criatividade transgressora de Cale não fica somente nisso. Lá pelas tantas, a música dá uma virada para um funk contagiante com lances egípcios, que dialogam com a letra: “Atravessando o Nilo/ A Terra do Faraó está desenterrando seu passado/ Os amuletos quebrados da história/ Espalhados em nosso caminho”. Assim como “Zen”, das matadoras do álbum.
O caleidoscópico Cale, que chegou aos 80 anos em março |
Cale não para, provando para os que desconfiavam à época do lançamento que o velho músico vinha com tudo após 7 anos sem um trabalho autoral. Com muita cara de Depeche Mode e da Smashing Pumpkins de “Adore”, "Twilight Zone" é um exemplo maduro do synth pop. "Letter from Abroad", a subsequente, contudo, é outra das destruidoras. Uma sonoridade típica árabe dá os primeiros acordes como que sampleados, visto que repetidos em trechos simétricos. Isso, para entrar um ritmo funkeado. Percussões, rosnados de guitarra, acordes soltos de piano, vozes que rasgam e se cruzam, coro em contracanto. Letrista de mão cheia, em “Letter...” Cale experimenta sua veia literata: “É uma pequena cidade esquálida com uma beleza tênue/ As molhadas frias manhãs são tão atraente/ Pessoas acordar de repente no meio da noite/ Muito desapontado”.
Para acabar, uma daquelas músicas que já saem grandiosas do forno: "Over Her Head". Com a amplitude sonora de outras de sua autoria, “Forever Changed”, de “Songs for Drella”, ou "Half Past France" ("Paris 1919"), prossegue com um piano bastante clássico e efeitos de guitarras até quase o final para, então, entrar a banda com tudo e terminar lá em cima sob os acordes os dissonantes da inseparável viola dos tempos de The Theatre of Eternal Music e Velvet Underground. Junção radical e inequívoca do rock com a vanguarda.
Tão versáteis como Cale? Poucos. Bowie, Byrne... Ryuichi Sakamoto talvez seja um caso, porém quase nunca como cantor front man. Quincy Jones é outro, senhor de todos os estilos da música negra norte-americana mas que, no entanto, também passa muito mais pela figura do compositor e produtor e, ademais, bem longe do indie. Os brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso, idem: trânsito pelos mais diferentes gêneros, só que distantes da cena rock propriamente dita. Isso faz com que Cale seja, por todos estes motivos, único. Ele chega aos 80 anos de vida e quase 60 de carreira com uma obra tão vasta como a sua importância e seu cabedal. Como todo bom roqueiro, mantém acesa a chama do inconformismo. Por outro lado, acumula conhecimentos que circulam somente pela nobreza. Mas o que o diferencia é, justamente, a veia rocker: ao invés de harmonizar as inúmeras referências que absorve, ele as digladia, choca-as, embate-as, como que para provocar o estranhamento entre o orgânico e o instrumento, a consciência e a tecnologia, o inato e a ciência, o saber e a criação. Sua música, assim, encontra uma zona de perturbação que a torna improvável e seus métodos para evidenciar essa tese são os mais originais e transgressores. Por isso tudo, ele – e somente ele – pode ser chamado de um clacissista selvagem. Ou vice-versa.
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2. "Reading My Mind" - 4:11
3. "Things"- 3:36
4. "Look Horizon" - 5:40
5. "Magritte" - 4:58
6. "Archimedes" - 4:40
7. "Caravan" - 6:43
8. "Bicycle" - 5:05
9. "Twilight Zone" - 3:49
10. "Letter from Abroad" - 5:10
11. "Things X" - 4:50
12. "Over Her Head" - 5:22
Faixa bônus da versão em CD:
Daniel Rodrigues