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quinta-feira, 22 de setembro de 2022

"Carmen", de Cecil B. de Mille (1915) vs. "Carmen", de Carlos Saura (1983)

 



Dois estilos de jogo completamente diferentes. Enquanto o veterano Cecil B. de Mille adaptou, ainda no cinema mudo, de maneira muito próxima, o conto de Prosper Merimée, o espanhol Carlos Saura, fez dela uma versão musical onde a ópera baseada no conto, mergulha dentro de outra história.
Em "Carmen", conto do francês Prosper Merimée, o oficial Dom José relata como fora seduzido pela bela Carmen, a fim de facilitar a passagem de mercadorias dos ciganos, como se junta a eles passando a cometer delitos, sua fuga com ela para Sevilha, e sua derrocada com o assassinato de Carmem diante da negação de seu amor. Com algumas variações, mesmo sem o recurso do som, das falas, De Mille é mais fiel: José é um oficial, cuida da fábrica de tabaco, é preso, comete crimes por causa dela, foge com a amada e a mata em frente a uma arena de touros. Saura é mais complexo e mais poético. Um grupo teatral de dança pretende interpretar a peça "Carmen", ensaia o espetáculo mas, entre os preparativos, realidade começa cá misturar-se com ficção quando uma bela e sedutora dançarina se junta à trupe e chama a atenção do diretor do espetáculo que se apaixona por ela, tal um Dom José. As cenas se misturam, o que é peça está sendo encenado, contudo as emoções são mais reais do que deveriam ser, o que é real é tão operístico que parece teatral, e a realidade acaba engolindo a ficção (ou não?). Tem a cena do protagonista se encantando com a moça, tem a briga das mulheres na fábrica, o confronto dos pretendentes, e tem o assassinato de Carmen, só que tudo isso coreografado ao belíssimo e sensual ritmo do flamenco.

"Carmen" (1915) -
cena do confronto das mulheres na fábrica


"Carmen" (1983) - 
cena do 'confronto' das mulheres na fábrica


Resultado: mesmo menos fiel aos originais, o espanhol Saura põe ritmo no jogo e leva a melhor no clássico. Um, pelo roteiro e pela ousadia da adaptação; dois, pela trilha a cargo de ninguém menos que violonista Paco de Lucia e a coreografia na responsa de Antonio Gades; e três pela cena final, da morte de Carmen, uma verdadeira obra de arte de Carlos Saura. O time de 1915 faz o de honra pelo fato de ser um bom filme e conseguir uma boa adaptação mesmo em uma época ainda tão incipiente e limitada do cinema, ainda mesmo sem o recurso da fala. 3x1, placar final.

A Carmem mais nova, Laura de Sol, mais vigorosa, chama pra dançar, literalmente, a adversária mais velha, Geraldine Ferrer.
O time de Carlos Saura deixa muda a torcida rival na arena.


O futebol bailarino do time de 1983 dá um verdadeiro baile no time de 1915.
Um verdadeiro "olé". 




Cly Reis

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Música da Cabeça - Programa #285

 

Não adianta dizer mentira na ONU ou onde quer que seja. Com o MDC é assim: a gente desmascara e põe pra todo mundo ver! Iluminando o Empire State, o programa de hoje vem com Itamar Assumpção, Zizi Possi, Morphine, Nei Lisboa, John Cale e mais. No Cabeção, o som etéreo e ruidoso da My Bloody Valentine e um Palavra, Lê também especial. Projetando aquilo que deve ser dito, a edição de hoje vai ao ar às 21h na protestadora Rádio Elétrica. Produção, apresentação e #forabroxonaro: Daniel Rodrigues (Ah, sem esquecer também de #tchutchucadocentrão)



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/


Copa do Mundo Gilberto Gil

 



Tá na hora, vamos lá! Copa do Mundo é pra valer! Aqui no clyblog a gente sabe muito bem disso, afinal já temos tradição de, em ano de Copa do Mundo de Futebol, promovermos a nossa Copa do Mundo, mas de música. Já tivemos, acompanhando edições anteriores do certame, competições com músicas de Beatles, Legião Urbana, Madonna, The Smiths e The Cure. Agora, a se notar pelos versos com os quais iniciamos esse texto, já dá pra ter ideia do que vem por aí, já que estamos às vésperas da Copa no Catar. Claro, raça humana: é Gilberto Gil! Motivos tem aos montes: o genial músico baiano, imortal da Academia Brasileira de Letras, além de ser dono de uma obra gigantesca e admirável, completou, agora em 2022, 80 anos de vida. Nada mais justo que ser, então, ele o escolhido para a primeira Copa do Mundo do Clyblog deste ano.

O sistema é o mesmo das edições anteriores: são no total 128 times (ou melhor, músicas). Dessas, 64 são cabeças-de-chave, aquelas clássicas por natureza, as quais Gil tem aos montes: sucessos, hinos de gerações, composições imortalizadas na voz dele e de outros intérpretes, entre outras. Estas, não se enfrentam, por enquanto, mas pegam outras 64, classificando para a segunda fase, onde, aí sim, o bicho pega e qualquer uma pode se topar. Aí, meu rei: a tendência é só de jogaço! É mata-mata até restarem somente duas, as grandes finalistas.

Como das outras vezes, a bancada será especializada para definir os resultados. Integram o colegiado dessa vez nossa contumaz colaboradora Leocádia Costa e o amigo Rodrigo Dutra, que nos prestigia com seus conhecimentos e afeição à obra de Gil. Claro, nós editores, tão fãs quanto, não ficamos de fora.

Muita música teve que ficar de fora, infelizmente. Dentro de um formato racional de competição, limitando o número de participantes, seria impossível colocar todas as mais de 500 músicas de Gil. Por isso, procuramos contemplar as mais significativas e acreditamos não termos deixado nenhuma importantíssima de fora.

E quando a gente diz que a Copa Gil já começou, não estamos de brincadeira! Já tem os confrontos da primeira fase! Confrontos empolgantes, que mexerão com a emoção dos nossos jurados. Confira abaixo os jogos da primeira fase. Os vencedores desses embates serão divulgados nos próximos dias.













segunda-feira, 19 de setembro de 2022

cotidianas #770 - Fui, então, trabalhar... vagabundo


 
Recentemente, a política de cotas nas universidades públicas brasileiras completou 10 anos com êxito na inclusão reparatória de pessoas negras à educação superior. Fico feliz de, com todas as dificuldades que ainda serão superadas, presenciar um importante momento como este. Entretanto, eu mesmo não sou fruto do sistema de cotas, pois minha formação, do início dos anos 2000, é anterior a este marco. Lembro que, na faculdade, privada, era um dos únicos negros que começaram o curso e dos pouquíssimos que o concluíram, realidade que se modificou muito de lá para cá em virtude das cotas, ainda que não suficientemente.

E se eram raros os meus pares na universidade, imagine-se as referências. Em quem se espelhar? Dilema comum aos negros de minha geração a das anteriores. Para mim, contudo, essa questão estava desde sempre apaziguada por causa de minha família. Base de minha formação humana e ética. Aprendi em casa que qualquer trabalho se faz com dedicação, persistência e amor, e isso se basta para muita coisa preconceituosa ou não. Tanto não me sentia menor em nada, que me aventurei, já no primeiro semestre da faculdade de Comunicação, como poucos de meus colegas ousariam ou se sentiriam capazes, a buscar um estágio em uma empresa da área. 

Consegui. No almoxarifado. Era uma das principais agências de Publicidade de Porto Alegre à época e, mesmo não sendo exatamente no Jornalismo, valia-me a pena pela experiência. Mas embora meu inconsciente ato de ocupação e resistência, estava, sim, num ambiente majoritariamente branco e brancocentrado. Eu era, diante dos privilegiados, sensatos ou não, no fim das contas e para além de minha consciência, o guri negro do almoxarifado - e eles, meus colegas, os detentores do espaço social. 
Quantas ocasiões que aquele limiar entre preconceito e mal-entendido não deve ter ocorrido sem eu notar... Um deles, no entanto, me marcou e que hoje consigo não apenas ressignificá-lo como, igualmente, tirar-lhe a essência. Descia eu com uma pilha de jornais nos braços pelo elevador quando um dos jovens publicitários pegou carona. Descontraído, o rapaz loiro me olhou executando aquele leve trabalho braçal e, do alto de suas tarefas altamente desenvolvidas e criativas, inventou de cantar para mim os versos de uma música:

"Vai trabalhar, vagabundo
Vai trabalhar, criatura..."

Era a letra de "Vai Trabalhar, Vagabundo", de Chico Buarque, da trilha sonora do filme homônimo de Hugo Carvana, de 1976. E eu sabia disso. Lembram da minha falta de noção diante de possíveis situações de racismo que me referi anteriormente? Eu poderia ter me enfezado, mas tomei aquela provocação como um mero embate intelectual. E me chamar para uma disputa com Chico Buarque no meio foi um grande erro estratégico que ele cometeu! Logo a mim, amante e colecionador de música e conhecedor de cinema desde a infância! Era pedir para ser derrotado. Foi então que, sem perder o tempo do compasso, complementei a deixa cantando-lhe os versos seguintes:

"Deus permite a todo mundo
Uma loucura
Passa o domingo em família
Segunda-feira, beleza
Embarca com alegria
Na correnteza..."

A expressão de embasbacamento dele foi tão visível que, para arrematar, sem perdão ainda deu tempo de lhe comentar antes de a porta se abrir que "Construção" era o melhor disco de Chico e que (capciosamente) entre suas melhores músicas estavam "Apesar de Você" e "Tire as Mãos de Mim". Foi como uma goleada de 7 x 1 entre Alemanha e Brasil, só que ao contrário. Se na hora achei que vencia uma disputa de egos, hoje vejo que ali, ainda que para com um estagiário tanto quanto eu, demarcava o espaço sociopolítico que me pertence. O espaço do saber, da cultura, da resistência. Naquele momento eu fazia minha (desavisada) ocupação. 

Passados os anos e ocupando hoje um raríssimo cargo para um negro de coordenador no segmento de Comunicação Corporativa no Rio Grande do Sul, é possível dizer que houve evolução. Mas, infelizmente, não tanta. Refletindo sobre aquele episódio do passado, consigo enxergá-lo com o criticismo da maturidade, mas também com uma doçura renovadora. Se por um lado a minha ingenuidade de jovem protegido pela família tapava-me a visão para uma séria questão a qual me depararia diariamente em uma sociedade arraigada em preceitos escravagistas como a brasileira, por outro minha reação diante de um obstáculo sociopolítico foi talvez a melhor resposta que eu poderia ter dado. 

Não avançamos tanto quanto poderíamos? Mas vamos avançar, com certeza. Trabalho, dedicação e resiliência não faltam a nós negros. Os espaços, seja por políticas ou enfrentamentos pessoais, é que precisam ser cavados para termos uma efetiva diversidade. Parafraseando a mesma canção de Chico Buarque novamente, posso dizer:

"Prepara o teu documento
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento".

Só não perde a razão.


Daniel Rodrigues
Texto originalmente publicado no site Coletiva.net