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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

cotidianas #817 - A Lei do Ex





Renata havia sido casada com Kike Diaz. Argentino, pinta de galã, tão famoso pelas façanhas fora de campo como pelos gols dentro dele. A vida de escândalos, traições e incertezas ao lado do Galante Platense, em Paris, quando Kike jogava no Pont Neuf, fez com que Renata Maia, ex-modelo badaladíssima em sua época de passarelas, o deixasse e retornasse com os filhos para o Brasil. Agora era esposa de Ricardo Afonso, jogador típico bom moço, daqueles que não dão problema para o clube e são o sonho de qualquer treinador pois, além de não render preocupação por seu comportamento extracampo, dentro dele fazia o modelo do jogador moderno, daqueles que executam diversas funções, o típico jogador múltiplo, uma espécie de coringa do time.

O casal Renata Maia e Ricardo Afonso era o dengo da mídia brasileira. O jogador exemplar, atleta modelo, educado, articulado, que já começava a suscitar clamores por uma convocação para a Seleção por parte da imprensa esportiva, e a ex-modelo internacional cuja vida pessoal outrora atribulada, parecia agora ter encontrado a paz junto ao homem certo. No entanto, não era segredo para ninguém que o grande amor da vida de Renata fora Kike Diaz. Enquanto estiveram juntos, eram a sensação da mídia esportiva e social, fosse pelos bons momentos, viagens, extravagâncias e até fotos intimas vazadas, mas também pelas brigas, pelas agressões de Kike, suas prisões, fianças, separações temporárias e perdões. Não fosse pela vida intranquila, incerta, insegura, Renata nunca teria deixado Kike. Ela o amava. Mas todo amor tem limite e a bela modelo preferiu a tranquilidade de uma vida normal em seu país a um amor bandido.
Ricardo fora sua tábua de salvação. Ao voltar ao Brasil, logo se conheceram numa festa da Confederação, se aproximaram e em pouco tempo estavam casados. Ela o amava mas era um amor diferente do que sentia por Kike. Era um carinho. Era grata pelo fato do marido lhe proporcionar uma vida normal. Sentia-se respeitada, valorizada única. Kike era diferente... Era algo quente, algo que lhe queimava por dentro. De certa forma, agradecia o fato dele estar do outro lado do oceano.
Mas a distância oceânica seria reduzida a alguns estados de distância. Kike fora contratado por um clube brasileiro e a imprensa, que não dorme no ponto, vendo que aquele assunto rendia, não demorou a botar uma lenha numa fogueira que nem existia, só para ver se pegava fogo. Pegou! Manchetes de sites ou de jornais faziam, supunham, sugeriam um novo contato entre os dois, redes sociais pipocavam se perguntando como Renata reagiria à proximidade com seu ex-affair, e até mesmo programas esportivos respeitáveis não deixavam de largar, nem que fosse, uma frasezinha maliciosa a respeito do assunto.
Aquilo tudo começava a incomodar Ricardo. Ele passara a agir de maneira diferente com Renata. Nunca desconfiara dela mas agora, com toda essa coisa, ficava com uma pulguinha atrás da orelha. Qualquer deslocamento mais longo que ela tivesse que fazer, Ricardo já  pensava que pudesse ter pegado um avião, ido até o outro, e voltado algumas horas depois. Percebeu que era bobagem quando, solicitada por Kike a permitir que visse os filhos, Renata pediu para que sua mãe, a avó dos meninos, viajasse com eles e os levasse até o pai.
Era sinal que ela não pretendia vê-lo, não queria vê-lo, não tinha a menor intenção de reencontrá-lo.
Mas Ricardo sabia que haveria um momento em que os dois, inevitavelmente, estariam muito perto, na mesma localidade, e seria quando o time de Kike fosse jogar em sua cidade. E aquele momento chegara. Seus clubes se encontrariam pelo campeonato nacional e Kike viria junto com seu time. Às vésperas do jogo a imprensa recomeçou a jogar o veneno. "Renata Maia reencontrará seu grande amor", "Te cuida, Ricardo".
A cabeça de Ricardo Afonso foi a mil. Tinha que dar um jeito de tirá-la da cidade por aqueles dias. E se ela tivesse vontade de vê-lo? Se ele insistisse para encontrá-la? Se marcassem um encontro enquanto estava no treino? A inquietação  aumentou quando, certo dia, ao entrar no quarto, Renata interrompera abruptamente uma conversa ao celular assim que percebera sua presença, guardando o aparelho apressadamente. Perguntada sobre a ligação, respondeu que era a Kamille e não, não desligara rápido, já estava mesmo acabando a ligação no momento em que o marido adentrara o dormitório. Ricardo não engoliu muito aquilo. Até por isso, tratou de tomar as devidas providências quanto ao dia do jogo. Renata não iria! Ela que normalmente ia vê-lo no estádio, desta vez ficaria em casa. O marido a convencera a muito custo. Ela não via motivo mas Ricardo alegava que seria melhor assim. Embora jogadores e familiares não frequentassem áreas comuns no estádio, podiam se esbarrar por algum corredor e era melhor evitar que isso acontecesse, sem falar que a imprensa poderia armar um 'encontro surpresa' à  beira do gramado ou depois do jogo só para garantir audiência. Um tanto contrariada, Renata enfim concordou. Ficaria em casa naquela tarde.
Ricardo foi mais tranquilo para a concentração.
Horas depois, no vestiário, pensava em Renata enquanto amarrava as chuteiras. No quanto era feliz com aquela mulher, na sorte que tivera em encontrá-la. Seu pensamento, no entanto, fora interrompido pelo Sávio, o lateral do time: "Viu que o Kike não vai jogar?". Os olhos de Ricardo quase saltaram da cara. "Eu soube agora há pouco por um cara da rádio, aqui na porta do vestiário. Diz que brigou com o treinador. Nem concentrou...". Ricardo queria sair dali e correr pra casa mas era tarde demais. Era hora de entrar em campo e, de mais a mais, o que alegaria para o treinador? O que diria para a torcida? Que estava com medo que o sua mulher estivesse na cama com o atacante do time rival? Que temia que ela fugisse com o ex?
Entrou em campo e jogou.
Jogou mal. Intranquilo, errou passes, foi pouco participativo e acabou substituído. Desceu para o vestiário, nem tomou banho e, aproveitou a oportunidade para para sair mais cedo do estádio. A atitude de Ricardo Afonso, tido como bom moço como atleta exemplar, agora levantava especulações sobre racha no grupo e insatisfação com o treinador.
Não interessava o que pensassem. Queria chegar o quanto antes em casa e certificar-se que a sua Renata estava lá.
Abriu a porta.
"Renata...". Nada na sala. "Renata...?". Nada no quarto. "Renata!!!". Nada em lugar nenhum. Ricardo Afonso arriou no sofá. Ficou ali sentado por um bom tempo com os olhos fixos no chão. Minutos depois a tela do celular acendeu. A mensagem no celular nem deu tempo de lhe dar algum alento. Era a mãe de Renata dizendo que as crianças estavam bem e que mandavam um beijo.
Apenas deixou o aparelho cair a seu lado.
O jogador ainda estava naquele estado de prostração quando ouviu barulho da fechadura. A porta abriu. Era Renata.
Ele não perguntou nada mas seu olhar angustiado ansiava por uma resposta.
"Não aguentei ficar em casa, Ric. Fui te ver jogar.", disse deixando a bolsa no aparador. "Você saiu cedo? Não esperou o time, as entrevistas... Eu fiquei lá te esperando que nem uma boba. Depois que eu os repórteres começaram a dizer que você  tinha saído chateado de campo, que foi embora do estádio...Que que aconteceu?"
Ele não respondeu. Simplesmente levantou-se do sofá, andou em direção a ela, a abraçou e começou a chorar.



Cly Reis

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Aqueles 10 filmes argentinos imperdíveis

 

Darín, o grande astro do cinema argentino
contemporâneo e presente em várias obras
Este post vem cumprir uma promessa feita há alguns anos. Conversávamos eu e dois colegas de trabalho durante o almoço e, papo vai, papo vem, lá pelas tantas o assunto caiu – como não é incomum de acontecer comigo e amigos meus – em cinema. O tema: cinema argentino contemporâneo. Compartilhamos ali do mesmo gosto pelo cinema realizado pelos hermanos e começamos a falar sobre nossas preferências dentro desta cinematografia. Foi então que, percebendo-se que alguns dos títulos dos quais eu comentava ambos não tinham visto ainda, eles ficaram curiosos para conhecer e tratamos de que eu fizesse uma lista com os meus filmes argentinos preferidos.

A lista, como se vê, não saiu em seguida. Voltamos do almoço para nossos postos e as obrigações nos fizeram esquecer de qualquer ludicidade. Mas os anos se passaram e o cinema da Argentina segue muy bien, gracias. Vários filmes foram produzidos neste meio tempo, inclusive dignos de comporem uma lista como esta além dos que já haviam sido realizados até então quando daquela nossa conversa. A bem da verdade, desde o brilhante “A História Oficial”, o primeiro Oscar de Melhor Filme para um argentino, em 1985, isso já se anunciava. A meu ver, no entanto, não foi com o hoje cult “Nove Rainhas”, de 2000, o start, pois o ainda considero imaturo e artificial. Porém, o filme, mesmo com suas inconsistências, já era o sinal que o curso do Rio do Prata havia sido achado. A partir dali, só foi “golazo”.

O contundente "A História Oficial":
1º Oscar da Argentina
Pois a indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional de “Argentina, 1985”, certamente um dos novos entrantes deste rol, fez-me resgatar a ideia agora atualizada. Esta amostragem aqui, então, vem resgatar – mesmo com este atraso do tamanho do Obelisco – a tal promessa. As 10 indicações servem tanto para estes meus amigos (espero que esta postagem chegue a eles) como qualquer um que também admire o melhor cinema feito na América Latina nos últimos 30 anos. Sim, porque a Argentina certamente passou o Brasil neste quesito, o que se reflete inclusive nas conquistas e na simples comparação entre um cinema e outro durante este tempo. (e olha que o cinema brasileiro se tornou bastante pujante nas últimas duas décadas!)

Mas não tem comparação: é na terra de Gardel que se atingiu um nível muitas vezes de excelência (e de exigência) técnica que contamina uma grande parte da produção cinematográfica do país. Seja nos roteiros bem escritos, seja na técnica de nível “primeiro mundo”, seja na habilidade cênica, seja no carisma e competência de símbolos desse cinema, como o principal deles: Ricardo Darín. Mas não somente ele: Oscar Martínez, Martina Gusmán, Dario Grandinetti, Leonardo Sbaraglia, María Onetto e outros que brilham nas telas. Tudo está a serviço de um cinema eficiente, que sabe contar bem (e com criatividade) uma história. Um cinema que achou o tão almejado equilíbrio entre arte e entretenimento.

E como se trata de uma produção vultosa (inclusive aqueles que eu nem assisti), teve, claro, o que ficou de fora. Mas se quiserem incluir “Leonera” (Pablo Trapero, 2008), “A Odisseia dos Tontos” (Sebastián Borensztein e Eduardo Sacheri, 2019), “Koblic” (Borensztein, 2016), “Elefante Branco” (Trapero, 2012) e “Neve Negra” (Martín Hodara, 2017), sintam-se perfeitamente à vontade, que também merecem toda audiência.

***********

“O Segredo de Seus Olhos”, Juan José Campanella (2009)

Não se poderia falar em lista de melhores filmes argentinos sem incluir “O Segredo...”. Afinal, não se trata apenas de um dos melhores da história de seu país, mas, tranquilamente, da década de 2000 em todo o mundo, no mesmo patamar de "Match Point", "Cidade dos Sonhos", "Elefante" e "Onde os Fracos não Tem Vez". Muito teria para se falar do filme de Campanella: a atuação sublime de Ricardo Darín, o hipnotismo que a musa Soledad Villamil causa no espectador, do merecido Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, do impressionante plano-sequência do jogo de futebol, enfim. Mas o que pauta esta grande obra é, definitivamente, sua trama, tão envolvente quanto literária, visto que extraída com maestria por Campanella do livro de Eduardo Sacheri (que, aliás, colabora com o roteiro). Thriller, romance, comédia, policial, aventura, drama. Um pouco de tudo e tudo muito bem amarrado. (Amazon Prime)


“Abutres”, Pablo Trapero (2010)

Aqui, duas recorrências próprias do atual cinema da Argentina. A primeira delas, obviamente, é Ricardo Darín, que estrela vários filmes dessa lista e muitos outros dignos de estarem aqui mencionados também. A outra repetição é Trapero, o mais talentoso cineasta de sua geração na Argentina. Em ”Abutres”, ambos dão um show. Numa trama que, como é de costume aos argentinos, envolve drama, denúncia e história de amor, o filme trata de um advogado especializado em acidentes rodoviários, que descobre um esquema de corrupção e desvio de dinheiro às custas do sofrimento de pessoas simples. A cena final, sem dar spoiler, além de um surpreendente desfecho da história, tem o recurso de plano-sequência característico aos encerramentos dos filmes de Trapero. (Star Plus)


“Medianeiras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual”, Gustavo Taretto (2011)

Comédia romântica, mas não como os enlatados de Hollywood, e sim com um olhar muito próprio da vida contemporânea na era que tudo impele a ser digital – inclusive as relações amorosas. Ganhador de melhor direção e melhor longa estrangeiro no Festival de Gramado, “Medianeiras” narra os encontros e desencontros de Martín e Mariana, os protagonistas-símbolo de uma geração emparedada pelas linhas simétricas das metrópoles. Solidão, neuroses, traumas, aflições, desilusões. Tudo sob o olhar da selva de concreto chamada Buenos Aires, que se revela como uma personagem onipresente. Para quem ama comédias românticas inteligentes como “Encontros e Desencontros”, “Bar Esperança”, e “(500) Dias com Ela”, pode por pra rodar “Medianeiras”, que o longa de Taretto é deste naipe. 


“O Clã”, Pablo Trapero (2015)

Trapero de novo. E aqui impecável. A assustadora história da família acima de qualquer suspeita, os Puccio, que sequestra pessoas ricas, cobra o resgate e assassina as vítimas assim que coloca a mão no dinheiro, guarda o aspecto de crítica político-social própria do cinema argentino. Baseado num caso real, mais do que apenas evidenciar fragilidades de seu país, “O Clã” revela perversidades obscuras sorrateiramente entranhadas na sociedade platina. Afinal, como duvidar que tamanha maldade aconteça numa sociedade que, em parte, acolheu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina? Memoráveis as cenas em que "Afternoon Tea", da Kinks, rola enquanto o circo de horrores acontece e, como de praxe quando se trata deste cineasta, o plano-sequência. Vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor em Veneza, Trapero faz seu melhor filme - e isso significa bastante considerando sua filmografia quase irretocável. (Star Plus)


“Relatos Selvagens”, Damián Szifron (2014)

A tradição dos filmes de episódios dos europeus e mesmo do Brasil nos anos 60 e 70 é inteligentemente recuperado, claro, pelos argentinos. E que filme! Potente, ferino, mordaz, grotesco. "Relatos Selvagens" reúne seis histórias distintas, que se complementam entre si por um fio condutor subjetivo mas evidente: o conflito entre barbárie e civilização. E pior: a primeira, fatalmente, sempre vence de algum jeito, seja nas vias de fato após, seja com uma bomba que exploda tudo. Darín, igualmente, não poderia estar de fora, estrelando o episódio em que um engenheiro de minas que se revolta contra o sistema e resolve se vingar com aquilo que ele melhor sabe fazer: explodir bombas. Embora não tenha levado, foi selecionado para os dois maiores prêmios do cinema mundial: a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. (HBO Max e Amazon Prime)


"O Pântano”, Lucrécia Martel (2001)

Além do já mencionado Trapero, o cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.


“Um Conto Chinês”, Sebastián Borensztein (2011)

O típico filme do novo cinema da Argentina: comédia dramática, com roteiro envolvente, referência a traumas nacionais (Guerra das Malvinas), um toque de romance e, claro, a estrela de Ricardo Darín. A trama é relativamente simples, mas convidativa: o ranzinza Roberto (Darín) trabalha numa loja de ferragens e vive de maneira metódica, mas sua rotina muda quando um chinês que não fala uma palavra de espanhol aparece em seu caminho, e ele decide ajudar o adorável forasteiro. Longe de se resumir a uma fórmula como no tradicional cinema comercial, “Um Conto...” faz uso desses elementos narrativos para compor um filme divertido e delicioso de se assistir, sem deixar de propor reflexão. Diversão com cérebro. Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano. (Star Plus)


“Vermelho Sol”, Benjamín Naishtat (2019)

Esqueça o formato "diversão inteligente" de “Relatos...”, o toque romântico de “O Silêncio...” a comicidade de “Um Conto...”. “Vermelho Sol” é pura tensão e embrulho no estômago. Contando a história de um advogado arrogante, que vê sua vida perfeita desmoronar quando um detetive particular chega na sua pacata cidade para investigar um desaparecimento, o longa de Naishtat se assemelha a filmes marcantes do cinema que souberam narrar, com acuidade, o "começo do fim", como “A Fita Branca”, de Michael Haneke, para com a Primeira Guerra, ou “O Ovo da Serpente”, de Ingmar Bergman, que previa o que levou ao Holocausto. Duro, forte e absolutamente real. Afinal, por trás dos segredos dos personagens de “Vermelho...” havia uma ditadura militar se anunciando. Premiado em diversos festivais, como Toronto, Havana, San Sebastian, Rio de Janeiro e Recife.


“Nascido e Criado”, Pablo Trapero (2006)

Antes de “Leonera”, de “Abutres” e de “O Clã”, Trapero realizou está pequena obra-prima tocante e profunda sobre os limites da existência, confrontando o inato e a superfície, a natureza e a convenção social. Conta a história da família de Santiago, um jovem dedicado à decoração e à restauração de antigos objetos, que vive um repentino acidente na estrada, o qual desencadeia uma tragédia familiar e um violento giro em sua vida. Numa paisagem gelada do extremo-sul argentino, Santiago, irreconhecível, reaparece empregado num aeroporto perdido no fim de mundo. O cineasta volta sua lente para dois interiores: o humano e o das paisagens rústicas do pampa, para onde o personagem principal se refugia de si próprio. Na mesma medida, Trapero, dado a este olhar penetrante, atinge outro interior: o do espectador. (Prime Vídeo)


“Argentina, 1985”, Santiago Mitre (2022)

Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro (não levou o Oscar por pouco, pois merecia muito mais do que o badalado “Sem Novidades no Front”), "Argentina, 1985" narra a história verídica dos promotores públicos Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, que ousaram investigar e processar a ditadura militar mais sangrenta da Argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla, amparada por uma jovem equipe de universitários engajados, encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas. Não apenas Darín, que faz Strassera, mas Juan Pedro Lanzani, no papel de Ocampo, estão fenomenais. Igualmente, magnífica a cena da leitura da acusação no tribunal, um dos textos mais pungentes que o cinema latino-americano já viu. (Prime Video)




Daniel Rodrigues

sábado, 11 de março de 2023

"Argentina, 1985”, de Santiago Mitre (2022)

 

“Marte Um” é um dos melhores filmes brasileiros do século XXI e um dos melhores do cinema nacional. Mas por que abrir falando deste filme e não de “Argentina, 1985”? Pelo fato de que, mais uma vez, o Brasil não é representado no Oscar. O filme de Gabriel Martins era o candidato brasileiro a concorrer à estatueta, o que não se confirmou mais uma vez como vem ocorrendo há 25 anos, desde “Central do Brasil”, em 1998. E por que a comparação entre os países? Porque, embora “Marte Um” tenha sido preterido a títulos de outros quatro países que não só a Argentina, é inevitável a comparação entre o cinema feito no Brasil e na terra de Gardel, vizinhos e afins em uma série de aspectos. O fato é que este último vem, há aproximadamente duas décadas, se sobrepondo de tal maneira ao primeiro – inclusive no próprio Oscar, com a indiscutível vitória de “O Segredo dos Seus Olhos”, em 2004, e a indicação de “Relatos Selvagens”, em 2015 – que chega a eclipsar um grande filme como “Marte Um”.

Esta comparação denota o quanto o cinema argentino soube encontrar o seu lugar na indústria internacional. “Argentina, 1985” traz as qualidades e o hibridismo que caracterizam a produção audiovisual recente dos hermanos. Baseado em fatos reais, o filme conta a história dos promotores públicos Julio Strassera (o lendário Ricardo Darín) e Luís Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani, ótimo no papel) e sua jovem equipe, que tomam a inédita missão de processar os militares da ditadura argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas.  O processo todo ouviu 850 testemunhas e durou cerca de 530 horas de audiência, vindo a resolver-se no fatídico ano que denomina o título.

Impressiona a capacidade do cinema argentino de saber contar histórias de forma equilibrada e sem pesar demasiadamente para o superficial ou para o denso. Isso coloca a obra no difícil limiar entre o cinema de arte e o filme popular, química facilmente identificada em outros títulos argentinos como “Família Rodante”, “Um Conto Chinês” e “Medianeiras”. No longa de Santiago Mitre, há sempre porções bem conjugadas de drama, humor, romance e registro histórico-documental. Neste ponto, a reconstituição de cenas, principalmente as de tribunal, são capazes de fazer reviver o passado. Além disso, o roteiro vale-se do recurso da construção de narrativas “paralelas” (o pretensamente perigoso namoro da filha Strassera) e a complementaridade de perfis entre os personagens, o que transmite uma percepção de coesão ao espectador.

Recuperando a história: acima, foto do julgamento
original; abaixo, a reconstituição do filme

Há de se ressaltar também aquele que é a cara e o coração do novo cinema argentino: Ricardo Darín. Em mais um exímio papel, ele interpreta Strassera com a habilidade cênica a que o público já se acostumou. Resultado este, porém, nada fácil de se encontrar, visto que perscruta a alma do personagem. O público sabe o que isso quer dizer, basta lembrar de seu protagonismo em filmes como “Neve Negra”, “A Odisseia dos Tontos”, “Koblic”, “Truman” e nos já citados “O Segredo dos Seus Olhos” e “Relatos Selvagens”. A entrega de Darín é tocante, pois capaz de transmitir as inseguranças, as mudanças e os conflitos deste funcionário público tão essencial para a história recente da Argentina, humanizando-o para o espectador. Mais do que humanizá-lo, é um trabalho de recriação e materialização de um personagem que supera o simples cargo de um promotor. É. sim, um símbolo da democracia, da justiça e de resistência.

Darín em mais uma atuação de pura entrega
Afora estes aspectos técnicos comumente impecáveis no cinema da Argentina, este também cumpre outra função fundamental, visto que espelha questões culturais e sociológicas que muito servem de exemplo para a América Latina (incluso Brasil). A porta aberta pelo corajoso e também oscarizado “A História Oficial”, de 1985, denota a consciência de um povo latino-americano que não foge ao compromisso cívico de mexer nas próprias feridas. A sangrenta ditadura que acometeu o país é talvez a principal delas. No momento em que vizinhos como o Brasil saem de um período de trevas pelo conflito permanente entre o comando de um ditador e um regime democrático, bem como a ebulição política recente de países como o Chile, Peru, Nicarágua e Bolívia por motivos semelhantes, que é a sombra fétida do totalitarismo, filmes como “Argentina, 1985” têm muito a ensinar.

Tudo indica que a Argentina levará mais uma vez a estatueta para casa. A se medir pelo grande adversário, o alemão “Nada de Novo no Front” (o qual também concorre a Melhor Filme, pelo qual pode ganhar), a obra de Mitre tem tudo para deixar este e os outros para trás. Assim como deixou o belo “Marte Um”, que por melhor que seja, evidencia o quanto não o Brasil, mas a Argentina achou o caminho para um cinema representativo da América Latina.

trailer de "Argentina, 1985"



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

CLAQUETE ESPECIAL 13 anos do ClyBlog - The Who - Live at Isle of Wight Festival 1970, de Murray Lerner (1996)


LOUCA PERSPECTIVA DA ILHA
por  E L E N I C E   M I C H E L O N



 
"Senhoras e senhores, 
desocupem os seus sacos de dormir 
e sejam bem vindos!"
Jeff Drexler, 
mestre de cerimônias do Festilval de Wight, 
convocando o público a acordar, às 4 da manhã,
e assistir ao show



Como dizia o grupo Língua de Trapo, “Foi no dia de São João Batista que conheci Deusdéti; naquele tempo eu já era Marxista e ela ainda ia em discoteque”. Posso dizer que conheci o The Who numa ilha, aos vinte e poucos anos, tendo já vivido várias utopias, algumas teorias e já abandonado algumas delas. Caiu-me nas mãos o DVD do Festival da Ilha de Wigth de 1970 através de um amigo.

Como diz o título, o que relato nestas linhas é minha louca perspectiva ao vivenciar, infelizmente não possuo uma máquina do tempo, o que até hoje minha razão insiste em negar. 

Primeiro ato: luzes apagadas, um vulto de branco corta rapidamente o palco; expectativa do público e minha. Eis que explode um som que invade meu cérebro como uma marreta, sendo a dor surpreendentemente agradável.

Me deparo com um guitarrista vestindo um macacão alguns números menores, creio que propositalmente, ou não... coisas de gênios. Em outra cena, desce um esqueleto marionete (em minha mente, juro que vi), Ás do baixo, coadjuvante digno de um Tony Awards.

Segundo ato: prefaciado por "I Cant’ Explain" e diante de uma platéia atônita, surge um deus de longos cabelos encaracolados, franjas balouçando aos seus movimentos, dorso quase nu; sem esforço algum, sem nada pedir, na fração de segundos em que minha retina capta sua visão, se torna meu sex symbol, pondo Robert Plant “no chinelo”, utilizando uma expressão popular. A voz incomparável ressoava pelo teatro/ilha ou vice versa.

Extasiada, sentidos aguçados, perscruto o tablado e emerge o ator principal; pensaram que o Tony estava garantido, ante minha eloquência ao falar de Roger Daltrey? Ledo engano... olhos insanos, baquetas incontroladas, porém dominadas a seu bel-prazer, trejeitos peculiares e autênticos, inteiramente entregue... talvez no decorrer desta existência fugaz, eu consiga definir o que senti e ficou incrustrado em meu ser, tamanha foi a intensidade de sua presença naquele show e os estilhaços de loucura que Keith Moon desferiu em minha alma; (uma pitada de poesia é necessária).

Terceiro ato: harmônica nos lábios do Roger e mais curtição por parte do Keith... Blues na medida para quem é exímia apreciadora desse gênero, dentre outros, como a música clássica. The Who soava como uma afinadíssima orquestra e certamente seriam ovacionados por Beethoven e sua trupe, destacando-se a saudação de Chopin, o mestre maior (preferência minha, ok?).

Quarto ato: não poderia faltar humor, o que ficou por conta do “gênio e o insano”, culminando com uma bofetada indolor. Após a delícia que foi presenciar tal cena, irrompem os vocais agudos de Apolo, na inesquecível "Water". Nesse instante, arrebatada por algo surreal, no despertar da Kundalini, senti-me transcender.

Os acordes de Jonh Entwistle transformaram o antes marionete, no próprio titereiro, tamanho controle exercido pelo seu dedilhar.

Como se não bastasse, me servem um aperitivo de Beatles e após um Southern Confort à la Janis; confesso que saboreei cada gole, enquanto Roger adicionava ao whisky seu gelo vocálico. Ah, desejava embriagar-me e queria mais. Atendida generosamente pelo Olimpo, solos de guitarra jorraram sem cessar, aliados às performances de seu criador Peter Thownshend.

Enquanto afinam seus instrumentos, permitam que lhes conte que nesse ano Gilberto Gil e Caetano Veloso, exilados, se apresentaram no Festival, representando a Tropicália. Não é à toa que são dois dos melhores artistas do Brasil e quiçá do mundo.

Último ato: Tommy não poderia deixar de comparecer, afinal, “ninguém” é tão especial quanto “ele”, ou marcou tanto, rendendo artigos à parte. Foi o ápice do Maior Espetáculo da Terra (recomendo o filme com esse mesmo nome).

As cortinas se fecham, gritos de “Bravo!!!” presos na garganta, aplausos contidos, não ouso levantar-me... Quedo-me, sorvendo o último gole.

John Entwistle, e sua indumentária cadavérica, com
o alucinado Keith Moon, destruindo tudo, lá atrás, na bateria.


Assista:
The Who - Live at Isle of Wight Festival -1970


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Elenice Michelon
tem 49 anos, mora em São Marcos/RS e tem duas filhas, Morgana e Heloiza.
É formada em Administração de Empresas, e por amor às palavras, atualmente cursa a faculdade de Letras Português/Inglês.
É apaixonada por poesia, principalmente Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Florbela Spanca, Pablo Neruda e Carlos Drummond de Andrade, curte rock, blues, música clássica, MPB e ópera, e aprecia as artes em geral, sem preconceitos de qualquer natureza.
Seus hobbies são artesanato (tricô, crochê), violão, ler e o contato com a Natureza.
Eterna aprendiz, busca conhecer um pouco de cada cultura, extrair e absorver o máximo do que lê, assiste e vivencia.
Futilidades não lhe interessam, pois aprecia conversas inteligentes que a façam pensar e que possam enriquecê-la, bem como a simplicidade das coisas, que, segundo ela "é onde reside o mágico, o belo e o segredo do universo...o Surreal".



"Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro,
envergá-las pro chão, corrompê-las, -
até que padeçam de mim e me sujem de branco."
- Manoel de Barros






domingo, 10 de maio de 2020

Mãe é Mãe - Algumas das Mães Mais Marcantes do Cinema


Todo mundo tem mãe e, como não podia deixar de ser, no cinema, todo personagem tem mãe. Muitas vezes elas não são mencionadas, não aparecem, são secundárias, não tem sequer relação com a história, mas sabemos que elas existem. Contudo, em outros casos, elas são tão essenciais ou têm participação tão destacada na trama que é impossível não lembrar delas. o ClyBlog destaca algumas dessas mães aqui. Sei que cometeremos injustiças, vai faltar uma que outra, alguém vai dizer que essa ou aquela não podia faltar, mas procuramos fazer uma lista interessante e heterogênea em características, estilos, época, nacionalidade, ambiente, gênero cinematográfico, etc.
Então, vamos à lista:
* (Cuidado! Pode conter spoilers)


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Ela, inatingível, pairando sobre tudo.
1. "O Espelho", de Andrey Tarkovski (1975) - Para mim, desde que vi pela primeira vez, "O Espelho", filme semiautobiográfico do diretor russo Andrei Tarkovski, representa uma obra sobre mães. No filme Maria (Margarita Terekova), uma mãe abandonada pelo marido, voluntário para o exército, vive com seus dois filhos em uma propriedade campestre e ali acompanhamos parte do cotidiano desse núcleo familiar corajosamente conduzido por uma mulher. Filme cheio de simbologias e metáforas, embora traga elementos como infância, saudade, nostalgia e seja passível de diversas interpretações, para mim, é a maternidade o elemento que mais chama atenção e emociona. O olhar e as imagens sempre poéticas de Tarkovski mostram aquela mulher como uma espécie de entidade superior, uma criatura inabalável, altiva, incólume, impenetrável, mesmo com o mundo desabando à sua volta. A cena de sonho em que ela flutua, elevada da cama, confere a ela ares de divindade, de magia, de alguém com um poder inexplicável que talvez até ela mesmo desconheça. E, na maioria das vezes, não é bem assim que são nossas mães?



2. "Psicose", de Alfred Hitchcock (1960) - Esse é o caso de uma mãe que é fundamental para a trama mas, na verdade, não está presente fisicamente o tempo inteiro durante o filme. 
Hitchcock, genial como era, até nos deixa com a pulga atrás da orelha num primeiro momento, sugerindo alguma farsa ou assombração, uma vez que nos tornando conhecedores do fato que a mãe do dono do motel, Norman Bates, está morta, faz aparecer um vulto feminino na janela da casa, nos deixa ouvir uma bronca de voz feminina envelhecida no filho Norman e, por fim mostra-nos uma senhora de cabelos brancos e coque esfaqueando a cliente loura no chuveiro, numa das cenas mais clássicas do cinema. "Como assim?", pergunta-se o espectador de primeira viagem. Acho que não  vou dar *spoiler porque a essas alturas, mesmo quem não  viu, está  cansado de saber que é o próprio Norman que, perturbado e esquizofrênico assume o papel da mãe, vestindo-se como ela e punindo quem quer que seja que venha a despertar algum tipo de desejo no reprimido Norman.
É  incrível mas uma das mães  mais célebres  do cinema, não está verdadeiramente no filme. Loucura!

"Psicose" e sua famosa cena do chuveiro.








3. "O Bebê de Rosemary", de 
Roman Polanski (1968) - Rosemary (Mia Farrow) é uma futura mãe que pressente uma ameaça ao filho que ainda está  em sua barriga, vinda de seus vizinhos, um casal de velhotes estranhos e enxeridos e, por incrível que pareça, de seu próprio marido. Tudo começa quando se mudam para o novo apartamento, conhecem os vizinhos e não muito tempo depois, o esposo, um ator pouco valorizado, ganha um papel importante em um filme em virtude da morte do ator que interpretaria o papel. O marido passa agir estranhamente, os velhos passam a estar constante e inconscientemente presentes em sua casa e sua vida e até mesmo administram à grávida uma estranha dieta à base de algumas ervas de origem e efeitos duvidosos. Aos poucos Rosemary, fragilizada física  e emocionalmente, começa a desconfiar estar sendo vítima de alguma espécie de seita para a qual o bebê que leva dentro de si, provavelmente, virá a ser elemento chave.
Paranoia, imaginação, ansiedade, fantasia, reflexo de sua fraqueza física, estresse da gravidez? Exagero ou não, essa mãe vai brigar até o último instante para proteger seu filho de algo que, na verdade, nem ela sabe bem ao certo do que se trata mas que, pelo que vai se apresentando a ela, parece algo muito, muito maligno.




4. "Sexta-Feira Muito Louca", de Mark Walters (2003) - Quantas vezes já não ouvimos que só estando no lugar da outra pessoa para saber como ela se sente, não? Pois é, "Sexta-Feira Muito Louca" promove essa possibilidade justamente em uma relação de uma mãe e uma filha. Relação difícil, intolerância, falta de compreensão mútua... Só mesmo uma troca de corpos para fazer com que cada uma perceba as dificuldades da vida da outra. E nessa confusão quem sai ganhando é o espectador com situações muito divertidas, com Jamie Lee Curtis fazendo uma adolescente no corpo de uma "coroa", e da maluquete Lindsay Lohan curtindo uma de senhora responsável presa num corpo de garota de colégio. Mamãe vai entender, ou talvez lembrar, que existe pressão por notas, coleguinhas implicantes e insuportáveis, professores chatos, paqueras, necessidade de privacidade, tempo para lazer, etc. e talvez, a partir de tudo isso, se remodelar; e a filhota vai perceber que ser mãe, ter obrigações, preocupações, casa, trabalho, e, principalmente filhos aborrecentes, não é tarefa para qualquer uma.



 
Mães e filhas e suas histórias.
5. 
“Clube da Felicidade e da Sorte”, de Wayne Wang (1993) – Filme emocionante sobre mulheres que foram filhas, se tornaram mães e viram as filhas se tornarem mães.
Quatro chinesas com histórias diferentes em seu país de origem, vão parar nos Estados Unidos e lá constroem famílias, se conhecem e tornam-se grandes amigas. Muitos anos depois, após a morte de uma delas, Suyuan, é revelado à sua filha June, que as filhas gêmeas que a mãe tivera na China e que abandonara bebês durante a guerra em circunstâncias pouco esclarecidas, às quais todos acreditavam não terem sobrevivido, estavam, sim, vivas e dispostas a conhecê-la. Então, a festa de despedida de June, que embarcará para a China para conhecer as irmãs, serve de pano de fundo para conhecermos as histórias de vida de cada uma delas, de suas dificuldades na China, das particularidades das relações com suas próprias filhas quando crianças, e dos problemas da vida adulta destas como mulheres.
Traumas, reminiscências, roupa-suja, desabafos, remorsos, sacrifícios, esqueletos dentro do armário são trazidos à tona em momentos chave do filme de modo a preencher lacunas em aberto e colocar as coisas nos seus devidos lugares e apenas reafirmar aquilo que todos sabemos: que ela pode ter todos os defeito que tiver, mas que não existe ninguém como a mãe da gente.



6. "Dançando no Escuro", de Lars Von Trier (2000) - Tudo o que Selma queria era guardar um dinheirinho para fazer a cirurgia de olhos de seu filho para que ele não acabasse como ela, quase sem enxergar nada, uma vez que herdara dela a doença progressiva de perda de visão. Mas um vizinho, um policial proprietário do terreno onde ela vive num trailer com o filho, descobre sobre o dinheiro e rouba as economias da pobre coitada que, além de tudo, acabara de ser demitida da fábrica onde trabalhava. Tentando recuperar seu dinheiro, Selma acaba matando o vizinho e é presa por isso. Uma história dura, dramática, pesada, é verdade. Mas a vida de Selma, de certa forma, é embalada e seus momentos difíceis amenizada pela música. Amante dos musicais cinematográficos, Selma foge mentalmente de sua realidade imaginando estar em cenas de filmes musicais onde tudo à sua volta suscita sons e canções, desde as máquinas da metalúrgica onde trabalha ou mesmo passos, enquanto é levada pelos guardas na cadeia.
Filme do sempre controverso , com atuação brilhante da cantora Björk, no papel da protagonista, que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes.
Eis uma mãe que deu cada centavo de seu trabalho e fez tudo que estava a seu alcance pelo bem do filho. Até as últimas consequências.

"Dançando no Escuro", 107 passos




A maluca mãe de Carrie, disposta tudo para
que a filha continue pura.
7. "Carrie, A Estranha", de Brian De Palma (1976) - Não tem como falar em mães no cinema e não lembrar da maluca, crente e super-protetora mãe de Carrie White. Fanática religiosa, Margareth mantém a filha afastada e alienada em relação ao mundo que a rodeia, expondo a jovem a constrangimentos diários como, por exemplo, o do início do filme em que se desespera por ter menstruado e é ridicularizada pelas outras meninas no vestiário da escola. Ah, mas não é uma boa ideia zoar com uma garota como Carrie com poderes psicocinéticos que se manifestam especialmente quando ela se altera emocionalmente, e essa galera que adora tocar um terror nos outros, vai entender isso da forma mais dolorosa possível.
Uma das garotas do bullying no vestiário, verdadeiramente arrependida e na boa intenção de se redimir com Carrie, convence o namorado, os gostosão da escola, a convidá-la para o baile, de modo que a esquisitinha se enturme, socialize. A mãe, brilhantemente vivida por Piper Laurie, tenta evitar de todas as maneiras que a filha vá, utilizando-se de seus argumentos religiosos, chantagens psicológicas e sua por fim de sua autoridade de mãe, mas Carrie, decidida a viver pelo menos um dia de sua vida, começa a mostrar seus poderes em casa, contra a própria mãe e termina de fazê-lo na festa, onde vítima de um trote de muito mau gosto, do restante da turminha da pesada, proporciona um banho de sangue em uma das cenas mais marcantes da história do cinema.

A velha podia ser louca, mas não dá pra dizer que ela não avisou.



Sarah Connor não vai permitir que robô nenhum 
se meta com seu filho.
8. "O Exterminador do Futuro II – O Julgamento Final", de James Cameron (1991) - Tá certo que no início, lá no primeiro filme, por mais que tivesse sido informada por um carinha do futuro que seria a mãe de um líder da resistência humana numa guerra contra as máquinas, Sarah Connor estava mais interessada era em salvar a própria pele do que de um bebê que, a bem da verdade, ela nem tinha certeza se viria a existir mesmo. Mas a partir do momento que se convenceu, da pior forma possível, depois de ter sido perseguida por um ciborgue sanguinário e impiedoso, de que o papo de apocalipse das máquinas era quente, foi determinada em ter a criança e, no pouco tempo em que teve com ele antes de ser internada num hospital psiquiátrico, em treiná-lo e prepará-lo para cumprir seu destino no front dos humanos contra as máquinas.
Durante todo o tempo em que esteve mantida no manicômio penitenciário por ter destruído uma fábrica de eletrônicos e alegar que o fizera porque um robô exterminador teria vindo do futuro para matá-la e a seu filho, Sarah (Linda Hamilton) sempre ficou pensando numa maneira de sair dali para proteger o filho. A desconfiança que o garoto tem, posteriormente no filme, quando a resgata do hospício, de que a mãe está mais preocupada com a humanidade do que com ele, não demora para se desfazer diante de toda o amor com que ela o protege.
Ela é fria é pragmática, objetiva, dura, durona, mas não poderia ser de outra maneira quando se sabe que seu filho, além de já ser naturalmente importante somente por ser seu filho, pode ser a salvação da humanidade.




9. "Leonera", de Pablo Trapero (2008) - Circunstância estranhas... Um homem morto, outro ferido, uma mulher inconsciente. Um dos dois seria o assassino? Teria sido uma quarta pessoa? Por que não ela não lembra de nada? Teria sido drogada? Ou não quer lembrar? O fato é que nesse mistério todo, a garota é quem vai parar na cadeia, só que grávida como se encontra, é enviada a uma instituição onde é permitido que as internas tenham lá seus bebês e depois permaneçam com as crianças no presídio, até os 4 anos de idade. Revoltada com a gravidez, relutante e resistente em ter o filho, num primeiro instante, Julia Zarate (Martina Gusmán), aos poucos vai sendo conquistada pelo seu pequeno rebento e seu instinto e amor de mãe acabam prevalecendo, fazendo dela uma mãe atenciosa e carinhosa, mesmo dentro daquele ambiente prisional.
O lugar, mesmo com as características tradicionais de uma instituição carcerária, em muitos momentos acaba parecendo uma creche e a presença das crianças acaba iluminando um pouco o lugar e garantindo-lhe, de certa forma, sempre um rasgo de alegria e esperança.
Só que em meio às situações corriqueiras de um presídio, envolvimentos íntimos, desavenças com outras internas, visitas do advogado, audiências de apelação, Julia vê-se às voltas com as investidas de sua mãe para levar o neto dali daquele ambiente que considera pouco apropriado para a criação  de uma criança. Sob pretexto de tratar um resfriado do menino, a avó consegue convencer a mãe a tirá-lo de lá, em princípio, apenas para uma consulta médica, com a promessa de levá-lo de volta. Só que isso não acontece e aí Julia vai fazer de tudo para ter seu filho de volta.
Filme de uma mãe que até hesita um pouco no ofício divino que lhe é concedido mas que a partir do momento que se sente mãe, não vai deixar que ninguém tire isso dela. Uma leoa que protege sua cria a qualquer custo.




10. Kill Bill – vol.2”, de Quentin Tarantino (2004) – No final do volume 1 é revelado, apenas para o espectador, que a criança que a noiva baleada na cabeça num massacre numa igrejinha de interior, sobrevivera à chacina. Recuperada de um coma de quatro anos, a mãe, uma assassina treinada que não perdera seus instintos mortais, depois de se vingar de parte do grupo que tentara matá-la, vai agora em busca do líder e ex-amante, Bill. O tempo inteiro, a grande motivação da vingança de Beatrix Kiddo (Uma Thurman), também conhecida como a Mamba Negra, é o fato de terem-lhe tirado seu bebê, tanto que a primeira coisa que faz quanto desperta do coma, sem noção de quanto tempo estivera ali, é levar a mão à barriga e perceber que não tem mais ali a criança. Aquela é a vingança de uma mãe. Cada um que sucumbe a ela paga pelo fato de terem lhe tirado a oportunidade de poder ter um filho, estar perto da criança, curtir cada momento. Ah, todos terão que pagar por isso! O que ela não contava é que, às portas de seu confronto final, ao encontrar Bill, encontraria também uma graciosa menina, doce, dengosinha e com carinha de anjo. Ah, amigos, ela desaba! A determinação com que ela adentra a vila onde habita o algoz, de arma em punho, pronta para aniquilar o homem que lhe causara tanto sofrimento e privação, é completamente desestruturada assim que vê a menina.
Ele, cavelheiresco como é, apesar de seu ofício, permite a elas algumas horas juntas antes do inevitável duelo final entre os dois, que serão os momentos mais gostosos e bem aproveitados por aquela mãe. Horas que valerão por anos, até porque, ela não sabe o que acontecerá assim que sair daquele quarto e colocar sua espada Hatori Hanzo em ação contra a de seu oponente, o tão perseguido, Bill.



11. “Volver”, de Pedro Almodóvar (2003)Almodóvar gosta de destacar mulheres em seus filmes e não raro, trata especificamente de mães, como acontece, por exemplo em "Julieta" (2016), "A Flor do Meu Segredo" (1995) e, é claro, "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999). Mas não vamos cair na obviedade de destacar o filme que explicitamente dedica, já no título, sua temática às mães e sim um outro do qual gosto muito e que traz as questões das relações entre mães e filhas de uma maneira mais leve, mesmo contendo elementos dramáticos, polêmicos e sombrios. "Volver" é uma espécie de comédia surrealista onde uma mãe, Irene, brilhantemente interpretada por Carmen Maura, "retorna dos mortos" para alguns acertos, alguns ajustes, uma reconciliação com suas filhas, especialmente com Raimunda, vivida por Penélope Cruz, com quem nunca tivera, em vida, uma relação muito boa. Raimunda, diante da novidade da misteriosa volta da mãe, ainda vê-se às voltas com o assassinato cometido por sua filha adolescente  Paula,que matara o padrasto que tentara abusar sexualmente dela. A não ser pelos relatos de Raimunda, não sabemos como era a mãe quando viva, mas o que sabemos é que a Irene "fantasma" é um personagem adorável que dá um brilho todo especial ao filme de Almodóvar. Um filme delicioso com uma mãe que vai nos mostrando, e às filhas, que tudo o que sempre fez, foi protegê-las, assim como a filha Raimunda faz agora em relação à sua pequena Paula. Aquele instinto que passa de mãe para filha.



12. "Indochina", de Régis Wargnier (1992) - Eliane (Catherine Deneuve), dona de uma vasta extensão de seringais na Indochina francesa e mãe adotiva de uma garota indochinesa, se apaixona e tem um romance com um oficial francês da Marinha, Jean-Baptiste, mas o rapaz também cai nas graças da filha Camille em um incidente na rua onde o militar salva sua vida. Em parte por ciúmes, em parte para protegê-la do cenário efervescente pela libertação da colônia, Eliane, rica e influente consegue fazer com  que transfiram o oficial para os quintos-dos-infernos, numa ilha, literalmente, lá na cochinchina, de modo que fique longe da filha, imaginando assim que a jovem desista dele e, por fim, o esqueça. Só que aquela mãe não contava que o amor da menina pelo oficial fosse muito maior do que ela imaginava. A menina atravessa o país atrás do seu amor e, agora sem a proteção de sua posição social, como uma indochinesa comum e misturada a seu povo,  conhece a relidade local, se afeiçoa à sua gente ele e se solidariza com sua luta pela independência.
A busca e Camille por Jean-Baptiste é comovente e tem momentos verdadeiramente lindos, mas em paralelo a isso, a mãe, verdadeiramente amorosa apesar do ato egoísta, desesperada, não mede esforços para encontrar a menina e move mundos e fundos para tê-la de volta. Mas aí já é tarde, a pequena e frágil Camille já virou uma revolucionária procurada e praticamente uma lenda em seu país.
O fato de ter afastado a filha da pessoa que ela amava pode parecer desqualificar Eliane no quadro das grandes mães. É verdade, ela foi um tanto egoísta, autoritária, até insensível. Mas não se engane, leitor. É o tipo do caso da mãe que acha que está fazendo o melhor para o filho, mesmo que isso tenha que custar algum sacrifício o qual, neste caso específico, era para ambas. A gente até fica com uma raivinha dela durante o filme mas na cena do reencontro das duas é de morrer de pena daquela mãe.
mostrando que mãe adotiva é tão mãe quanto qualquer outra.


"Indochina" - trailer



Uma das mortes clássicas de "Sexta-Feira 13".
Jason aprendeu direitinho com a mamãe.
13. “Sexta-Feira 13”, de Sean S. Cunnigham (1980) – Quando pensamos em “Sexta-Feira 13”, a primeira lembrança que nos vem à mente é o assassino psicopata da máscara de hóquei, Jason Voorhees, mas pouca gente lembra que quem mata no primeiro filme da franquia (alerta de spoiler) é a mãe de Jason. Sim! Pamela Voorhees traumatizada e perturbada pela morte do filho, afogado por negligência dos monitores do acampamento de Crystal Lake, responsabiliza, de um modo geral, a todos os jovens cheios de vida e resolve que deve se vingar de todos aqueles que venham a acampar no lugar onde o filho morreu. E a mamãe capricha! É um banho de sangue com algumas cenas das mais clássicas do terror slasher como, por exemplo, a que Kevin Bacon, estreando, novinho ainda, tem a garganta atravessada por uma faca, deitado na cama. Caso em que o filho aprendeu direitinho os ensinamentos da mãe pois, dali em diante, nas  sequências da franquia, é Jason quem assume o facão e mostra-se extremamente competente em sua tarefa.
Quem assistiu a “Sexta-Feira 13 – parte 1”, jamais vai esquecer a frase, dita com aquela vozinha fininha, imitando a de uma criança, sempre antecedendo mais uma atrocidade: “Mata ele, mamãe!”.



14. "A Troca", de Clint Eastwood (2009) - Agora, imagina se seu filho desaparece, você denuncia o fato às autoridades e depois de algum tempo eles vem pra você com uma outra criança e querem que você engula e aceite aquilo. Cara, é exatamente o que acontece em "A Troca", filme dirigido por Clint Eastwood e estrelado por Angelina Jolie, e o pior é que a coisa toda é baseada num fato real ocorrido em Los Angeles na década de 20. 
Aquela mãe insiste, Christine Collins, reafirma que não é o mesmo menino que sumira, tenta provar de todas as maneiras, com os professores, com exames médicos, com fotos, mas a polícia não só tenta lhe impor que é o garoto que ela procura como a acusa de insanidade mental por não reconhecer o próprio filho.
Uma história angustiante em que ficamos cada vez mais envolvidos e torcendo por aquela mãe. Mas infelizmente, amigos, tenho que revelar que a situação só piora.
Caso de uma mulher que não desiste do filho, não desiste da verdade, mas que, mãe solteira, vê-se impotente e cada vez mais sufocada pelas autoridades, pelo machismo e pela conjuntura social de sua época.



15. "Mãe!", de Darren Aronofsky (2017) - Essa é a mãe de todos nós. Salvo outras possíveis interpretações, a Mãe, interpretada por Jennifer Lawrence no filme de Darren Aronofsky, representa mãe natureza, a vida. E tudo o que aquela mãe mais quer é viver em paz e preservar sua casa, que é, na verdade, a nossa casa. A casa em questão, uma propriedade retirada em reformas, é onde ela vive com Ele, um escritor em crise criativa, vivido por Javier Barden, que, vaidoso e inconsequente, permite visitas inconvenientes que cada vez mais vão tumultuando a vida e o lar dos dois. Primeiro são um homem e uma mulher, convidados por Ele (Adão e Eva); depois uma multidão mal-educada que chega para o funeral de um dos filhos do homem e da mulher, morto pelo irmão (Caim e Abel), e com seu mau comportamento, mesmo diante de todas as advertências, acabam causando um enorme vazamento (Dilúvio) e a ira da dona da casa; e por fim, quando ela já está grávida, os convidados que chegam para celebrar a nova obra do escritor que finalmente rompera seu bloqueio criativo e que assim que ela tem o bebê, em meio à sua noite de consagração, exibido, faz questão de levar e entregar seu filho, recém nascido à turba de insensatos que..., (* alerta de spoiler)  literalmente, o devoram (Jesus Cristo).
Um filme complexo, para o qual cabem diversas outras interpretações ou variações, mas que não deixa dúvida quanto a uma coisa: o zelo que uma mãe tem pelo seu lar e pelos seus.
À parte as reflexões religiosas, com "Mãe!" você vai entender melhor o desespero da sua mãe quando chegava em casa e via aquele lugar de cabeça pra baixo. 



Alguns outros filmes com mães marcantes que merecem destaque e poderiam perfeitamente estar na nossa lista: "O Óleo de Lorenzo", de George Miller (1992); "Mamãe Faz Cem Anos", de Carlos Saura (1979); "Mommy", de Xavier Dolan (2014); "Minha Mãe é Uma Peça", de André Pellenz (2013); "Tudo Sobre Minha Mãe", de Pedro Almodóvar (1999); "Mom", de Ravi Udyawar (2017); "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert (2015); "O Quarto de Jack", de Lenny Abrahamson (2016);  "Precisamos Falar Sobre Kevin", de Lynne Ramsay (2012), "Juno", de Jason Reitman (2008); "Zuzu Angel", de Sérgio Rezende (2006)





por Cly Reis