“Se Monk está procurando um lugar
no firmamento clássico,
é a música clássica que tem muito a aprender com ela.
Ela pode aparecer ainda mais à medida que o novo século se desenrola,
e as
gerações posteriores invejarão aqueles que conseguiram vê-la viver".
Alex Ross,
jornalista e crítico musical
“A voz humana pode muito bem ser
o Instrumento mais expressivo de todos,
capaz da mais sutil das nuance e da
exclamação mais dramática,
mas poucos exploraram toda a sua gama tão
completamente quanto Meredith Monk”.
John Kelman,
jornalista e crítico
musical
Um jornalista amigo meu, logo após assistir o espetáculo de
Meredith Monk no
Theatro São Pedro durante o 22º Porto Alegre em Cena, em 2015, comentou abismado com o que vira:
“Meredith Monk veio de outro planeta”.
Embora entenda a força de expressão, pois em parte é um asteísmo justo, hei de
discordar dele: Monk não vem de longe, de um lugar desconhecido, mas, sim, do
próprio planeta Terra. De seus recônditos, das profundezas, da natureza mais
genuína e inobservada por nós, reles normais. Em Monk habitam uma índia
shokagawe, uma japonesa
enka, uma bruxa celta, uma inca quíchua,
uma indiana
vadava, uma caçadora
africana, uma fêmea das cavernas. Ou, simplesmente, uma mulher, misteriosa e
mágica, moderna e atemporal, autêntica e viva.
Cunhada na vanguarda dos anos 60, a norte-americana Monk é compositora,
cantora, coreógrafa e criadora da
new
opera, além de música de teatro, filmes e instalações. Uma das artistas
mais originais e influentes do nosso tempo, é pioneira da chamada "técnica
vocal estendida" e "performance interdisciplinar", que muito
caminho abriu para artistas internacionais como
Björk,
Elizabeth Fraser, Laurie
Anderson, Diamanda Galas e brasileiros como
Arnaldo Antunes,
Tom Zé e Walter
Franco. Monk cria obras que prosperam na interseção de música e movimento,
imagem e objeto, luz e som, descobrindo e tecendo novos modos de percepção.
“Dolmen Music”, de 1980, considerada
uma de suas obras-primas, traz uma mostra expressiva desse caldeirão de ideias
e referências.
Contemporânea de conterrâneos como
Philip Glass, Morton Feldman, Terry
Riley, Harry Partch e Steve Reich, Monk é, como estes, parte de uma linha
evolutiva da música clássica através dos séculos. Talvez até mais que eles,
entretanto, ela junta todos os tempos e estilos em um único elemento-base: a
voz. Dona de uma capacidade sintética espantosa, ela faz remontar Palestrina e
Boulez num átimo. Assim, Monk destila em “Dolmen Music”
peças da mais inquietante beleza. Quando muito, conta com a
participação de Steve Lockwood no segundo piano e a percussão e violino do
produtor Collin Walcott (o “CO” do Codona, grupo
avant-garde formado por ele com
DOon Cherry e
NAná Vasconcellos nos
anos 70).
Na primeira parte, é praticamente apenas isso: voz e piano. Suficiente
para Monk, sobre melismas e vocalises, criar paisagens de som que desenterram
sentimentos, energias e memórias para as quais não há palavras. E nem precisam.
Vê-se isso num de seus clássicos: “Gotham Lullaby”, que abre o álbum. Sobre uma
delicada base de piano em contraponto, que, cíclica, engendra dois tempos de 4 compassos
para, obsessiva e incondicionalmente, voltar sempre à mesma nota, ela explora
do mais sentimental registro de soprano a sufocados gritos de desespero. Regravada
por Björk em 2015, é uma canção de ninar de um lugar fictício e obscuro – e
absolutamente interno.
Na minimalista “Travelling”, o piano, tal como já explorara em “Key”,
de 1970, se transforma em elemento percussivo para acompanhar o canto tribal,
que se vale de perfil sonoro prolongado das notas para conferir-lhes variações
de modulação, a exemplo dos gritos de guerra indígenas. Noutra hora, é a
mezzo clássica que aparece, a qual
lembra por demais Liz Fraser do
Cocteau Twins. Sua exploração sonora vai do som
mais gutural ao agudo nasal em exercícios vocais de difícil execução. Já “The
Tale” – que fechou sua apresentação em Porto Alegre numa engraçada
performance de bruxa dos contos de
fantasia – parece brincadeira de criança, mas é de uma complexidade inequívoca.
A breve letra (
“I still have my hands/ I
still have my mind/ I still have my money/ I still have my telephone…”) é
um artifício chistoso para desencadear uma peça de caráter mínimo em que Monk põe
mais uma vez sua interminável capacidade vocal a serviço da imaginação. É
impossível não visualizar uma bruxa encanecida e enrugada, pois, sobre o tema
sonoro picaresco do órgão elétrico, ela encarna a personagem, ornamentando
falas e risadas por meio de ressonâncias e modulações.
“Biography”, outra assistida no show de 2015, é uma das mais incríveis
canções escritas nos últimos 50 anos na música mundial. Não é exagero o que
digo, afinal, “Dolmen Music” como um todo é considerado um dos 20 trabalhos fundamentais
para se entender a música da segunda metade do século XX conforme aponta o
crítico e pesquisador musical italiano
Piero Scaruffi. E este tema, composto em
1973, é bastantemente representativo dentro do repertório de Monk. Não à toa
sua execução deixa todo mundo pasmado como ocorrera em Porto Alegre, um misto
de estarrecimento e encanto. Nela, Monk parece sintetizar todo o sofrimento da
condição feminina neste mundo opressivo e desigual ao contar a biografia de uma
anônima e simbólica mulher. Tudo sem precisar de palavras, somente através dos
sons. O triste tema do piano faz base para o canto que vai da mais íntima
angústia à histeria. Os melismas aprontados por Monk vão pouco a pouco se
transformando, ganhando mais intensidade mas, igual e fatalmente, aproximando-se
do insano. O choro aflito é desenhado em traços dissonantes e atonais,
remetendo aos arranjos vocais lancinantes de
Ligeti em “Requiem” e de
Penderecki em “Canticum Canticorum Salomonis”. A loucura avança aos limites, e
Monk passa a articular palavras sem sentido em vibratos, tremulos e glissandos.
Um pássaro ferido grita, um animal acuado na jaula grita. Há momentos em que, alucinada,
a mulher conversa consigo mesma, alternando a própria voz e tentando fazer
emergir o que ainda lhe resta de sanidade. Até sucumbir de vez. Em sustenidos,
o piano, impassível em sua melancolia, anuncia que, enfim, tudo terminou.
Música que vale ouvir e reouvir sempre.
A segunda metade do disco é totalmente dedicado à faixa-título, miniconcerto
para seis vozes, piano, violino, violoncelo e percussão. O arsenal técnico e
criativo de Monk é explorado aqui com maior complexidade, mas sem se descaracterizar
do restante. Afinal, é a voz que permanece no comando, capaz de fazer-nos
projetar mundos exóticos e sem distinção temporal. “Overture And Men's Conclave”,
primeira parte da peça, começa nas três vozes femininas e cello repetindo uma pequena célula de 4 compassos, em que a última nota
se estende. As vozes masculinas, monódicas como a dos modos gregorianas e
microtonais como a dos cantos tibetanos, entram em contracanto. O uso do “kobushi”,
vibrato lento muito usado como ornamento música japonesa, passa a dar cores
cada vez mais orientais à música, cuja intensidade aumenta, fazendo a música
avolumar-se.
A predominantemente ressonante “Wa-ohs”, na sequência, é trazida do
repertório de “Songs from the Hill/Tablet”, trabalho de Monk de um ano antes.
Novamente, a referência à música do Oriente é visível, haja vista que o coro
forma um quase um mantra de monges budistas. Percussivas, as vozes funcionam
como gongos soando. Logo após, acordes cadenciados de cello conduzem a bela “Rain”, em que os timbres femininos vão
entrando em frases esparsas até encurtarem seus espaçamentos e construírem um
andamento mutável, em que as modificações das células rítmicas vão se alterando
no decorrer e ganhando novas conformações.
Cheia, a polifônica “Pine Tree Lullaby” conta apenas com as vozes em
cascata, engendrando um canto litúrgico e zen ao mesmo tempo. Não menos
impressionante, “Calls” aproxima-se do arrojo do rock ao usar o violoncelo
sendo friccionado pelo arco, mas não na horizontal como normalmente, e sim na
direção vertical. O efeito é de um som trasteado, vibrado, atritado. Soma-se a
isso ainda as baquetas de percussão no próprio instrumento, que não necessariamente
percutem o cello, mas, sim, colocadas bem próximas às cordas, deixam-se
percutir pela vibração gerada pela esfregação da crina do arco. As vozes
retornam para a derradeira “Conclusion”, onde novamente Monk resgata o
lamentoso tema central da abertura da peça, adicionando agora gemidos, ruídos,
palavras quebradas e onomatopeias das mais diversas.
Se se pensar a obra de Meredith
Monk dentro de uma linha evolutiva da música clássica se perceberá que sua música
abarca todas as épocas. Vem desde a Idade Média, passando pelo Renascimento,
Barroco, Romantismo, Ópera, Decadentismo, Modernismo até chegar ao nas
vanguardas do século XX e todos os seus inúmeros direcionamentos. Por este ângulo,
é fácil explicar o porquê da minha emoção quando a vi no palco. Era a emoção de
estar vivenciando algo superior. O privilégio de vê-la ao vivo é como
presenciar uma ópera de Wagner regida por ele mesmo, é como escutar um recital
de Chopin com o próprio ao piano. Monk, no panteão dos compositores clássicos,
nos traz essa exploração da voz como uma linguagem que expande os limites da
composição musical na história de arte, uma linguagem eloquente em si própria.
E que nos faz identificar algo submerso em nós mesmos. Nós, esses habitantes de
um indistinto planeta Terra que Monk nos faz reconhecer.
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FAIXAS:
1. “Gotham Lullaby” -
4:14
2. “Travelling” - 6:15
3. “The Tale” - 2:47
4. ”Biography” - 9:26
5. “Dolmen Music” -
23:39
a. “Overture And Men's Conclave”
b. “Wa-ohs”
c. “Rain“
d. “Pine Tree Lullaby”
e. “Calls”
f. “Conclusion”
todas as composições de autoria
de Meredith Monk.
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OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues