quarta-feira, 26 de julho de 2017
"Led Zeppelin IV: Led Zeppelin", de Erik Davis, coleção O Livro do Disco - ed. Cobogó (2014)
terça-feira, 23 de maio de 2017
The Stooges – “Fun House” (1970)
O script da carreira de qualquer artista da música pop é o de, à medida que sua obra avança, a sonoridade e o estilo irem se aperfeiçoando. Embora depois possa fazer incorrer numa amenização ou até perda do viço inicial, isso acontece porque uma banda ou cantor do rock faz muitas vezes do jeito que dá o primeiro disco. O debut, por conta disso, acaba ou deixando a desejar em relação ao que ainda se virá a produzir ou, pela falta de recurso, não consegue expressar com completude as qualidades que já se tem – o que caberá, aí, aos discos seguintes mostrarem. Afinal de contas, todos querem melhorar com o tempo, certo? Errado em se tratando de The Stooges.
A avassaladora estreia no disco homônimo, de 1969, trazia a secura e a energia do punk, porém encapsulado pela minuciosa produção do craque John Cale. O ex-Velvet Underground conseguira tornar consideravelmente pop – mas sem perder o vigor – o baixo feroz de Dave Alexander, as guitarras barulhentas de Ron Asheton e a bateria alta de seu irmão Scott Asheton. Isso, claro, sem falar na intensidade irrefreável do vocalista e líder Iggy Pop, o mais alucinado front band do rock norte-americano à época. Uma banda normal chegaria à lógica conclusão: “Galera, deu certo a receita do nosso primeiro trabalho. Vamos melhorar no nosso próximo disco?”. Bem, como disse, não se trata de um grupo comum. Oriundos da cena underground de Detroit, os Stooges encarnavam uma massa de jovens deslocados, sem emprego e desvalorizados. Eram verdadeiros transgressores vindos de baixo para lutar contra o sistema. Então, por melhor que tenha sido a experiência com Cale, eles eram mais toscos que aquilo. Tanto que propositadamente deram um “passo atrás” em seu segundo e, para muitos, melhor álbum: “Fun House”, de 1970.
“Fun House” é daqueles acontecimentos em que se confundem vida e arte. A contestação típica do rock ‘n’ roll toma a forma mais punk que poderia: com niilismo e sarcasmo. Disponibilizando um orçamento mais modesto do que da primeira vez, a gravadora Elektra chamou para dar um jeito naquela gurizada outro tarimbado produtor Don Galucci (lendário, aos 14 anos tocara órgão na versão de "Louie, Louie", da garage band Kingsmen, sucesso em 1963). Afinal, o primeiro disco, mesmo cultuado, vendera mal e a turma só queria saber mesmo era de se chapar e de putaria. A genial resolução veio da cabeça de Galucci: por que não registrar, então, EXATAMENTE isso? “Se é de sexo, drogas e rock ‘n’ roll que os Stooges entendem, vamos colocá-los a fazer o que sabem”.
Reproduzindo a atmosfera selvagem e performática dos shows da banda e da própria Fun House – a casa em que todos viviam entre picos de heroína, sexo, confusões e muita música –, eles entraram no estúdio em Los Angeles para tocar ao vivo. E de forma a se sentirem totalmente ambientados, com o aparato usado durante os shows. Iggy se pintando de tinta, trocando roupas, esfarrapando outras ou se lambuzando com cobertura de bolo, cujo branco se misturava ao vermelho do sangue que tirava de si mesmo cortando-se com cacos de vidro. Para completar, depois das sessões de gravação, a “Casa dos Prazeres” se transformava num motel onde orgias e drogas, em looping, geravam o conteúdo musical e conceitual que compõe o disco.
O resultado é uma sonoridade consideravelmente mais tosca do que a do primeiro disco, com a cara de som de garagem que queriam, onde prevalecem a guitarra em altíssimo volume; um baixo grave e permanentemente presente; uma bateria que parece uma lata sendo socada; e... Iggy. Ah! Iggy estava mais junkie e ensandecido do que nunca, o que se nota tanto nos vocais quanto nas letras. Perceptível isso na estupenda faixa de abertura, “Down on the Street”. Um cartão de visitas furioso, cru, liricamente violento. “Descendo a rua onde os rostos brilham/ Flutuando ao redor dela cabisbaixo/ Visualizando coisas bonitas/ Sem muros!/ Sem muros! Sem muros!...” Um dos melhores riffs de todo o cancioneiro punk-rock.
“Loose” segue no embalo “from hell”, mandando ver noutro riff matador da guitarra de Ron, enquanto ele mesmo executa noutra guitarra distorções que emporcalham o fundo. “Eu levei uma gravação de músicas lindas/ Agora as mostro pra você direto do inferno”, dizem os versos. O início da faixa, clássico, com a virada de Scott e os gritos de Iggy, virou sample da Chico Science & Nação Zumbi na faixa "Manguetown", de “Afrociberdelia” (1997).
Uma das músicas que melhor traduzem o clima de “Fun House” é a pogueda "T.V. Eye", gíria inventada pela irmã de Ron e Scott, Kathy, que significa algo como “Interesse sexual”. Um reflexo direto das noitadas da banda e do conhecido sex appeal de Iggy, àquelas alturas um símbolo sexual da cena. Scott parece que vai furar a caixa tamanha força das batidas, repetidas energicamente. O baixo de Dave está destacado sobre todo o resto, fazendo evoluções inteligentes sobre a base. A guitarra rasga o ar, mais rosnando do que outra coisa, haja vista que é do baixo que se percebe o riff. Iggy, por sua vez, é um caso à parte. Que performance! O número não começa: irrompe! O Iguana solta um grito literalmente animalesco, que chega a dar um susto em quem escuta. Sexo. Drogas. Rock ‘n’ roll. Na veia! “Vê aquela gata?/ Sim, eu a quero/ Você vê aquela gata?/ Sim eu quero você/ Ela está com um T.V. Eye sobre mim...” Importante não só para aqueles que viam nos Stooges uma referência, como Richard Hell, Ramones, Suicide, Dead Boys e outros, mas também dentro do repertório da banda, “T.V. Eye” inspiraria pelo menos duas canções de cunho altamente apimentado do disco seguinte da banda, “Raw Power”: “Penetration” e “Shake Appeal”.
“Dirt”, conforme o próprio Scott define, “é um exemplo perfeito de como era nossa atitude: ‘Foda-se toda essa merda! Somos lixo e não nos importamos.’” São 7 min lisérgicos sobre uma base 1x5 cuja batida cadenciada e a linha do baixo abrem campo para a guitarra literalmente sujar o ambiente com distorções de wah wah e muita viagem sonora. Isso sobre as frases soltas, gritadas, destroçadas de Iggy, que dizem a certa altura: “Ooh, eu estive sujo/ E eu não me importo/ Porque eu estou queimando por dentro/ Eu sou apenas um anseio interior/ E eu sou o fogo da vida”.
Se o pessimismo de “Dirt” dizia que os sentimentos eram todos suplantados diante da realidade irremediavelmente imunda daquele início de década (Guerra do Vietnã, ditaduras nas Américas, reflexos de 1968, crise do petróleo, desemprego, inflação), o que salvava era extravasar por meio das emoções mais instintivas. “1970”, outro petardo punk – cuja métrica propositadamente lembra a de “1969”, do disco anterior –, fala que os loucos sábados à noite daquela época eram, afinal, a escapatória: o prazer carnal: “Linda gata/ Alimente o meu amor a noite toda/ Até eu explodir/ Toda a noite até que eu exploda/ Eu me sinto bem/ Baby, oh baby, queime meu coração”. Para completar a sonoridade de uma das grandes faixas do disco e de todo o repertório da banda, o sax de Steve Mackay, tão enlouquecido que, dissonante e estridente, lembra o dos “loucões” do free-jazz Ornette Coleman e Albert Ayler.
A faixa-título, um blues ruidoso e quebrado, tem uma bateria martelada e a guitarra solando desde o início junto com o sax – e claro, também dos gemidos e urros de Iggy. O baixo, que de início segura a base, passa a ter o acompanhamento de Ron e Mackay por um tempo, mas logo em seguida estes desvirtuam novamente e passam a solar cada um para um lado. O vocal de Iggy é extraordinário, capaz de impor seu belo timbre a serviço da mais assustadora insanidade. “Iggy era perigoso”, declarou certa vez o amigo e empresário da banda à época Danny Fields.
Fechando esse soco sonoro que é “Fun House”, "L.A. Blues", como não poderia deixar de ser, mais um soco. Quase 5 min de gritos lancinantes, improvisos, distorções, microfonias, dissonâncias. O blues mais sórdido que se pode ter notícia. É possível enxergar a performance de Iggy e Cia. somente ouvindo-os. Conforme conta Alan Vega, do Suicide, no livro “Mate-me, Por Favor – A História sem Censura do Punk”, Iggy Pop “não era teatral, era teatro. Alice Cooper era teatral, ele tinha todo o aparato, mas com Iggy não era encenação. Era a coisa real”. Neste sentido, “Fun House” soa tão honesto que não pode ser considerado um retrocesso, mas, sim, uma obra genuína. Ao contrário da maioria, os Stooges precisavam regressar para serem eles mesmos. Tamanha originalidade faz com que o disco, presente entre os primeiros em qualquer lista de melhores da história do rock e dos anos 70, seja cultuado por toda a geração desde que foi lançado – e não apenas de roqueiros, haja vista que o jazzista Miles Davis, pai do cool jazz, era fã declarado da banda.
Se “Fun House” já representava uma devolução, os Stooges conseguiram se superar em “Raw Power”, de 1973, em que as músicas eram ainda mais furiosas e a produção foi relegada a segundo plano, tornando-o (saudavelmente!) inaudível em alguns momentos. Mais um passo em direção ao depauperamento deliberado que Iggy Pop e Stooges promoviam na indústria fonográfica, provando aquilo que os punks entenderam muito bem: no rock, menos pode muito bem ser mais.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018
Jorge Ben - "Solta o Pavão" (1975)
do texto da contracapa original do disco
Na metade dos anos 70, Jorge Ben, que ainda não tinha se tornado o Benjor que assumiria a guitarra elétrica no lugar do violão, já havia alcançado tudo que um artista popular podia. Estouro no disco de estreia, altas e baixas vendagens, idolatria e ostracismo, adesão a movimentos (sambalanço, soul, tropicalismo), participação e vitória em festivais, hits nas paradas, gravações internacionais e até briga judicial por plágio (vencida por ele sobre um Rod Stewart metido a esperto). Mas principalmente, desde que começara a carreira, o “Babulina” foi responsável pela talvez mais extensa e irreparável sequência de discos de um artista na indústria fonográfica no Brasil. Somente nos primeiros cinco anos daquela década, enfileirou os álbuns “Força Bruta”, “Negro é Lindo”, “Ben” e “10 Anos Depois”, isso sem falar dos registros ao vivo com o Trio Mocotó e dos clássicos absolutos “Gil & Jorge/Xangô Ogum” e “A Tábua de Esmeralda”. Com estes dois, principalmente o segundo, o autor de “Chove Chuva” atingia o ápice da criatividade e forjava uma linguagem totalmente peculiar, com melodias de alta inventividade, harmonias despojadas, estilo de cantar próprio e ritmo, muito ritmo. Seu samba-rock, carregado de referências ao esoterismo, à religião, à filosofia e a uma visão humanista do mundo, é igualmente sustentado na cultura popular da ginga, do país tropical, do amor, das moças bonitas e da cordialidade.
O que faltava, então, a um artista consagrado por crítica e público? Explodir. Isso que é “Solta o Pavão”: uma explosão de sonoridade, de balanço, de misticismo, de religiosidade, das paixões. Aquilo que Ben trouxera em “A Tábua...” se intensifica neste seu último disco antes da adoção de vez da guitarra, ocorrido um ano depois noutro disco emblemático, “África Brasil”. Está nele toda a bruta brasilidade de Ben, encharcada de matizes africanas e influenciada por elementos da cultura pop, do funk norte-americano ao gospel, da soul ao blues, do rock ao jazz. “Solta...”, assim, com seus riffs inspiradíssimos, sua percussão carregada e arranjos modernos, tem o despojamento e o peso de um disco de rock – sem dever nada em densidade a outros de roqueiros daquele ano, como “Fruto Proibido”, de Rita Lee, ou “Novo Aeon”, de Raul Seixas –, mas ainda com um pé no Jorge Ben do “Samba Esquema Novo”: o da batida percussiva no violão de nylon, malemolente, suingado, malandro, enraizado no morro.
A abertura dignifica todas essas qualidades: um riff de violão como um Neil Young acústico e a batida potente da percussão ao fundo. Prenúncio do arrasador samba que irá começar: “Zagueiro”, uma ode ao “anjo da guarda da defesa” no futebol. Quem sustenta a coesa cozinha, além da Admiral Jorge V Group (João “Van da Luz”, piano; Dadi “Aroul Flavi”, baixo; João “Zim” da Percussão, ritmo; e Gusta “Von” Schroeter, bateria) são os Cream Crackers, grupo formado por ninguém menos que o percussionista e arranjador Zé Roberto, o não à toa intitulado Mestre Marçal e um jovem pernambucano já muito afim com o samba chamado Bezerra da Silva. Todos comandados pela batuta de Jorge “Sanctus” Ben.
O pensamento sobre o ser humano ganhava suma importância na obra de Ben àquela época. Se o filosofia alquimista do Egito de 1.300 a.C. fora responsável pela letra de “Hermes Trismegisto Escreveu” em “A Tábua...”, agora Ben volta sua abundante musicalidade para dar cores aos densos escritos do filósofo oficial da Igreja da Idade Média: São Tomás de Aquino. Capaz de musicar até bula de remédio (e torná-la suingada!), Ben adapta trechos do complexo livro “Suma Teológica”, escrito no século XIII, e o transforma num samba cheio de molejo. Em “Assim Falou Santo Tomás de Aquino” ele consegue imprimir no hermético texto escolástico frases sonoramente cantaroláveis, como: “Senhor, que tens tido feito o nosso refúgio” ou “Estão enganados, puramente enganados/ Estão errados, puramente errados”.
O clima de devoção sambada continua na sequência numa das melhores do disco – e, por que não, da carreira de Ben. “Deus todo poderoso eterno pai da luz, da luz/ De onde provem todos bens e todos dons perfeitos/ Imploro vossa misericórdia infinita, infinita/ Deixai-me conhecer um pouco de vossa sabedoria eterna”. Esses versos dão a ideia da contrição contida na lindíssima "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros", misto de prece franciscana e canto humanista. De ritmo vibrante e contagiante, passa longe de ser piegas. Pelo contrário, a música tem uma aura especial, tanto por causa da melodia quanto pelo coro alto e intenso, que traz o mesmo “Ôôô” de “Os Alquimistas Estão Chegando”, de “A Tábua...”, porém, usados em outro tom para dar uma atmosfera de canto litúrgico. Ben, como em todo o disco, está solto, tocando o violão com total desembaraço, brincando com vocalizes e melismas e inventando cantos na hora da execução.
Por falar em brincadeira, a divertida "Cuidado com o Bulldog" é, além disso, um show de musicalidade. Começa em um ritmo de rock com o band leader esmerilhando o violão e Dadi mandando ver numa base de baixo no melhor estilo Novos Baianos, ambos acompanhados por uma bateria que abusa dos rolos. Até que, de repente, um breque, e a música dá uma virada para se transformar num samba gingado daqueles de não deixar ninguém parado. A impressão é de farra, mas os músicos estão fazendo um samba-jazz do mais alto nível. Ben aproveita para se divertir com o tema, lançando grunhidos como se estivesse sendo mordido pelo cão (um desses, sampleado pela Nação Zumbi no início de “Cidadão do Mundo”, do disco “Afrociberdelia”, de 1996) e bolando frases engraçadas como: “Bulldog, mandíbulas de ouro” ou “Bulldog não perdoa, Bulldog morde”. Registro ao vivo no estúdio – assim como tudo dos álbuns dele à época –, lembra a naturalidade e a descontração das jam sessions com Gilberto Gil do então recente “Gil & Jorge”. Impagável.
"O rei chegou, viva o rei", com sua linha de metais tropicalista, segue o conceito letrístico de prosa medieva (“Então vierem os cavaleiros com seus uniformes brilhantes/ Garbosos e triunfantes/ Um abre-alas lindo de se ver/ E logo atrás/ Separado por lanceiros/ Vinha a guarda de honra, orgulhosa, polida, agressiva/ Porém bonita/ Anunciando e protegendo o rei”), estilo que serviria, entre outras semelhantes de Ben, de inspiração a Caetano Veloso para escrever “Alexandre”, do disco “Livro”, de 1997. Também prosada e tomada de suingue, "Luz Polarizada" (“Coloque o teu grisol sob a luz polarizada/ Ó meu filho/ Lava as escórias com a água tri-destilada/ Pois aquele que forja a falsa prata/ E o falso ouro/ Não merece a simpatia de ninguém”) lembra a psicodelia de “O Homem da Gravata Florida”, do disco anterior. Ben, totalmente à vontade com os companheiros no estúdio, chama-os para o “La, la, la, la, la, la” do refrão dizendo: “Quero ver o coral agora!”
Mas se tem algo que está no mesmo pé que a religiosidade e o esoterismo em “Solta...” são elas: as musas. Como um menestrel medieval apaixonado, Ben canta para várias delas: "Dumingaz", um samba “maravilha” e “sensual”, como classifica o próprio enquanto canta; “Luciana”, a “canção singela” feita pra lembrar-se do seu trovador quando se ouvir no rádio (clara homenagem a Gil por "Essa é pra Tocar no Rádio", que gravaram juntos em "Gil & Jorge" um ano antes); "Jesualda", samba-rock de riff puxado no assovio que conta a história da mulata saída da favela que ganhou a vida no exterior; e "Dorothy", outra irretocável, com destaque para o arranjo de flautas de Ugo Marotta.
“Solta...” ainda tem a gostosa "Se Segura Malandro", tema do filme homônimo de Hugo Carvana (na linha de “O Namorado da Viúva”, de “A Tábua...”) e um dos mais inspirados temas da história da música brasileira: “Jorge da Capadócia”. Um hino da MPB, regravado por Caetano, Fernanda Abreu e Racionais MC’s, que virou um símbolo do próprio autor, xará do Santo Guerreiro e filho de Ogum, o correspondente ao santo católico no Candomblé pelo sincretismo. Musicando a oração de São Jorge, Ben atinge um clímax como apenas em especiais momentos de sua carreira conseguira – talvez, parecidas, só “5 Minutos” e “Zumbi”, faixas que cumprem o fechamento dos discos “A Tábua...” e “África Brasil”. Isso porque, ao evocar as preces ao Jorge dos Céus, o Jorge da Terra o faça com tamanha potência que a música acaba ganhando uma dimensão mais profunda, etérea e espiritual. O Coral do Kojac entoa o título da canção repetidas vezes num samba marcado e intenso sob um riff de guitarra (sim, de guitarra!). Porém, a exaltação se arrefeça para, aí sim, serem declamados os emocionados versos: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge/ Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem/ Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem/ Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam/ E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal”. Ben, com sua voz oscilante, funde canto de escravos à dicção do morro. Um teclado entra para fazer a base, enquanto o violão sola e a percussão, estilo jazz-fusion, desenha um compasso arrastado e assimétrico. Para terminar, retorna a melodia da abertura, porém ainda mais enérgica, mais volumosa, mais expressiva. Um desbunde.
Guardadas as devidas proporções, “Solta...” é o “Magical Mystery Tour” de Jorge Ben: ao mesmo tempo em que é a continuidade natural de uma obra-prima revolucionária (“Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, no caso dos Beatles, “A Tábua...”, para o músico brasileiro), também a consolida, redimensionando-lhe as ideias e conceitos originais. Assim, tanto este quanto o da banda inglesa passam longe de serem meros “volumes 2” das obras-irmãs, haja vista que são tão únicos quanto estas e até mais ousados. “Solta...” é, sim, um feliz acontecimento da música brasileira de um momento em que Ben, figura única no panteão da MPB, está com toda vitalidade e alegria. Um artista pleno, que concebeu, na linha evolutiva de sua própria obra, o mais livre e completo trabalho. Majestoso e colorido como a cauda de um pavão.
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FAIXAS:
1. "Zagueiro" - 3:05
2. "Assim Falou Santo Tomaz de Aquino" - 3:04
3. "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros" - 3:16
4. "Dorothy" - 3:58
5. "Cuidado com o Bulldog" - 2:53
6. "Para Ouvir no Rádio (Luciana)" - 4:20
7. "O rei chegou, viva o rei" - 3:03
8. Jorge de Capadócia" - 3:53
9. "Se Segura Malandro" - 2:53
10. "Dumingaz" - 3:30
11. "Luz Polarizada" - 2:20
12. "Jesualda" - 4:06
todas as composições de autoria de Jorge Ben
sexta-feira, 4 de março de 2016
Talking Heads - "True Stories" (1986)
para aquela leva de músicas,
começamos a ensaiar um material
que poderia render ainda mais um disco,
mas que eu havia composto para o filme.
Quando ‘Little Creatures’ saiu,
eu já estava no Texas para filmar ‘True Stories’.
Levei as fitas de multicanal com as nossas faixas-base
para as músicas do filme até o set de filmagens em Dallas
e adicionei um pouco do tempero texano”.
domingo, 7 de agosto de 2022
Caetano Veloso - “Estrangeiro” (1989)
Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem.
Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo.
“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil.
A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito.
Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso
Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious Lovers Peter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).
Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”.
Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.
Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”.
Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova.
Caetano acompanhado de Brown e Moreno na turnê de "Estrangeiro", em 1989 |
Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.
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