“Embora ele defina grande parte de seu estilo através do chamativo 'pop' dos Estados Unidos, sua música mantém raízes nas correntes cruzadas dos ritmos africanos, ritmos extraídos de maneira incomum e com efeitos de acordes assombrosos, que são tão autenticamente brasileiros quanto os sons suaves e oscilantes que muitos fãs do gênero tradicional esperam”.
George W. Goodman, para o New York Times, em 1984
“Djavan é foda!”
Caetano Veloso
Brasileiro é, definitivamente, um bicho torto. A subserviência
ao que vem de fora e a famigerada
“síndrome de vira-latas” prejudicam sobremaneira
a aceitação de uma identidade brasileira. Isso, é claro, recai sobre a cultura.
Na música, por exemplo, quantas vezes já seu viu um músico brasileiro ser
ignorado no próprio país e só passar a ser valorizado quando os gringos, livres
dessas amarras psicológicas, dão o seu aval? Outro fator determinante vem também
se aglutinar a isso: a abundância de talentos. São tantos, mas tantos talentos,
que o brasileiro, mal-aceito consigo mesmo, nem acredita. Não acredita que seus
pares são capazes, então prefere achar que o bom mesmo vem de fora. É mais
fácil. Talvez por isso artistas incríveis como
Djavan, um monstro sagrado em
qualquer país em que tivesse nascido, não recebam a idolatria que mereçam
dentro de casa. Se Djavan fosse, digamos, natural da Dinamarca, ele viveria num
trono. Não precisa nem ir ao Velho Mundo, haja vista que deuses da música
como
Quincy Jones e
Stevie Wonder são dois dos que se renderam a Djavan
imediatamente ao escutá-lo.
Este alagoano, aliás, tem musicalidade já no nome: apenas uma
vogal, a letra “A”, a mais latina de todas, repetida duas vezes, que se
entremeia a quatro consoantes, formando uma marca altamente artística, forte e
de fácil assimilação: Djavan. Mas a sua originalidade não é só na teoria. Dono de uma
alma que transpira suingue e hábil em criar inusitadas divisões rítmicas,
carrega igualmente a precisão e a complexidade dos acordes certos da linhagem
jobiniana. Músico completo desde sempre, veio a público pelas mãos do midas da
MPB Aloysio de Oliveira, que lhe produziu o primeiro disco, em 1976, “A Voz, o
Violão, a Música de Djavan”. O canto de timbre macio e anasalado denota
profundo trabalho vocal, o qual se alia à assombrosa capacidade compositiva.
Igualmente, seu toque do violão supera a tradição do samba e o dedilhado da
bossa nova para lhe adicionar o jazz, o blues e a soul norte-americanas, além dos
ritmos latinos. E, claro, um punhado de tonalidades brasileiras: o baião, o
samba de roda, a toada, o batuque.
Em seu terceiro álbum,
“Alumbramento”, que completa 40 anos
de lançamento, Djavan está mais aperfeiçoado musical e mercadologicamente,
visto que incrementa parcerias que se tornariam algumas das mais celebradas da
história da música braseira. Produzido por Mariozinho Rocha, o disco tem a
participação ainda de mestres como
Aldir Blanc,
Cacaso e
Chico Buarque, três
dos mais importantes letristas da música brasileira, que se rendem às quebradas
rítmicas do autor de “Meu bem querer”. Esta, aliás, letra e música dele que, se
hoje é um clássico, à época foi o grande sucesso do álbum, entrando
imediatamente para o rol de clássicos do cancioneiro brasileiro.
Quanto às parcerias, Djavan se vale da saborosa pegada carioca
de Aldir em “Tem Boi Na Linha”, que abre o disco num samba suingado
irresistível e com a linguagem barroco-suburbana típica de Aldir (“Café com pão
no Vera Cruz/ Jejum limão em Japeri/ A bolsa e a vida dançam nesse trem/ Te
cuida!/ Sacola, cabaço, futuro, tutu/ Tem boi na linha, seu Honório Gurgel”).
Das ruas do Rio de Janeiro para o coração de Minas Gerais. Assim é “Lambada De
Serpente”, esta, escrita com Cacaso. Reflexiva, interiorana, muito mineira: “Cuidar do pé de milho/ Que demora na semente/
Meu pai disse: ‘meu filho/ Noite fria, tempo quente’/ Lambada de serpente/ A
traição me enfeitiçou/ Quem tem amor ausente/ Já viveu a minha dor”.
É com Chico, no entanto, que o diálogo entre músicos parece
ir ainda mais fundo. Primeiro, pela coautoria da faixa que dá título ao disco e
na qual o autor de “Olhos nos Olhos” parece querer mergulhar no universo de
Djavan. “Curioso é como a canção conta a história do alumbramento do próprio
Djavan: a descoberta da verdadeira relação de amor, que é a parceria de
trabalho, e a descoberta de uma relação mais aberta com a música brasileira,
para além do seu próprio universo poético musical”, escreveu o crítico musical
e autor da biografia de Djavan Hugo Sukman. É, de fato, uma canção especial
onde cada um dispõe um pouco de si, numa verdadeira comunhão. Djavan tira do
violão uma bossa nova vagarosa, sensual, que se esgueira em acordes de uma preguiça
satisfeita. Chico, por sua vez, lança as palavras exatas para esse universo
onírico e amoroso do tema: ”Deve ser bem morna/ Deve ser maternal/ Sentar num
colchão e sorrir e zangar/ Tapear tua mão/ Isso sim, isso não/ Deve ser bem
louca/ Deve ser animal”.
Tamanha conexão não poderia ficar em apenas uma faixa, e é
aí que entra o delicioso samba “A Rosa”. Tradução da nova e empodeirada figura
feminina a qual Chico já percebia àquela época, ambos cantam em versos hilários
(mas não menos cronistas) o encantamento incondicional de um homem por sua
musa, esta, por sua vez, totalmente independizada e emancipada das amarras
sociais que recaem sobre as mulheres. Rosa é amoral, não deve satisfação pra ninguém e comprometida consigo
mesma antes de mais nada: carinhosa, mas muda de humor e de opinião sem
constrangimento e explicação; gosta de
sexo, mas não necessariamente só com o parceiro; é “do lar” quando quer, mas
não titubeia em pegar as coisas e sair de casa sem aviso prévio. O homem, por
seu turno, totalmente desarmado, é incapaz de enxergar defeitos nela e a admira
cada vez mais. Os engraçados versos iniciais comprovam: “Arrasa o meu projeto
de vida/ Querida, estrela do meu caminho/ Espinho cravado em minha garganta/
Garganta/ A santa às vezes troca meu nome/ E some/ E some/ Nas altas da
madrugada”. Somente de Chico, a música tem tanta cara de Djavan, que é normal
confundirem se tratar de uma coautoria.
Mas quem é mestre como Djavan sabe se virar muito bem
sozinho. Sé dele são o delicado samba-canção “Sim e Não” e a lúdica “Dor e Prata”, assim como o samba sincopado de
alta maturidade melódica “Sururu de Capote”, esta última, tão
emblemática do estilo de Djavan que se tornou, a partir de então, o nome da
banda que o acompanharia nos palcos. Haveria lugar ainda para mais um samba em parceria com Aldir,“Aquele Um”, e para a influência do Clube da Esquina com "Triste Baía de Guanabara", de Casaso e Novelli.
Já no trabalho seguinte a “Alumbramento”, “Seduzir”, de um
ano adiante, Djavan seria gravado por Roberto Carlos, o que o tornaria,
definitivamente, popular em terras brasileiras. Dois anos depois, em “Luz”,
gravado em Los Angeles, Quincy Jones o produz e o mundo do jazz norte-americano
se rende a seu talento. Mas parece pouco. Mesmo com o sucesso internacional e empilhando
hits anos 80 afora, como “Samurai”, “Açaí”, “Flor de Lis”, “Lilás”, “Capim”, “Oceano”
e outros, até hoje parece haver um descompasso. É tão normal no Brasil uma obra
gigantesca em qualidade como a de Djavan considerando a
existência de vários monstros sagrados da MPB como Chico,
Caetano,
Gil,
Tom Jobim,
Milton Nascimento e outros, que ocorre uma espécie de amortecimento.
Sabe-se da qualidade, mas não se tem condições para se admirar suficientemente.
Pelo contrário: parte do público brasileiro, incapaz de apreciar com um pouco
de profundidade, ainda imputa-lhe a pecha de inventor de letras “sem sentido”. Para
piorar a situação, o próprio Djavan recentemente veio a público manifestar-se a
favor do atual Governo, desgostando muitos fãs e contrariando toda uma
ideologia de respeito aos direitos humanos que alguém que escreveu músicas como
“Soweto” e popularizou as tranças rastafari no Brasil parecia acreditar. Mesmo assim,
nada atinge a excelência de sua música. Se fosse na Dinamarca, seu trono
estaria garantido.
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FAIXAS:
1. "Tem Boi Na Linha" (Djavan/Aldir Blanc/Paulo Emílio) - 2:39
2. "Sim ou Não" - 3:16
3. "Lambada de Serpente" (Djavan/Cacaso) - 3:27
4. "A Rosa" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:24
5. "Dor e Prata" - 2:54
6. "Meu Bem Querer" - 3:26
7. "Aquele Um" (Djavan/Aldir Blanc) - 3:07
8. "Alumbramento" (Djavan/Chico Buarque) - 3:32
9. "Triste Baía de Guanabara" - (Novelli/Cacaso) - 2:59
10. "Sururu de Capote" - 2:54
Música de autoria de Djavan, exceto indicadas
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OUÇA O DISCO:
Djavan - "Alumbramento"
Daniel Rodrigues