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segunda-feira, 29 de abril de 2019

cotidianas #629 - Pílula Surrealista #35


Ele vinha se sentindo enjoado fazia umas duas semanas. Era sempre isso: à medida que tentava controlar os outros, engolindo-os, o corpo reagia. Na maioria das vezes, resolvia pondo pra fora. Foi assim com ela. Vomitou-a. Não que isso significasse desapego nem respeito a ela. Era porque o corpo dele, doente, mandara expelir. Única e simplesmente por isso.

Já ela teve de se acostumar a uma vida nova fora do casulo, desde o inédito contato com a atmosfera até simples atos de uma pessoa cujo organismo é independente do de outro. Afligia-se só de pensar, por exemplo: "se eu precisar espirrar, como se faz?!" "E fome, como é sentir fome?" "Que responsabilidade monstra é isso de caminhar com os próprios pés...", refletia. Assustada.

Não foi preciso se passar muitos dias para que ela, embora um tanto frustrada mas conformada com a própria inabilidade, pedisse para que ele a engolisse de novo. A ele, mesmo doente, foi fácil a recondição, visto que, na verdade, não sabia viver sem algo sob suas entranhas. 

Não mais fome, nem caminhar, nem espirro. Com nada mais ela precisava se preocupar. Viver dentro dos outros tem lá suas vantagens.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 1 de março de 2019

cotidianas #620 - Pílula Surrealista #34



- Ah, lá vem ela de novo cantar! Parece que engoliu uma vitrola!

Não raro era ouvida tal exclamação no escritório quando Karol, a alta e desengonçada como uma girafa Karol, abria a boca para cantar. Vivia cantando, a toda hora do dia, em qualquer ambiente, inclusive no trabalho. Cantava mesmo que não produzisse som através das cordas vocais. Se porventura era pega fazendo silêncios prolongados, podes escrever que não estava pensando, mas, sim, cantando por dentro. Era-lhe irrefreável, instintivo, vinha das vísceras, do âmago, do chakra básico. A música lhe tomava a mente, o coração, os intestinos, os órgãos, o sangue. Os poros.

Respirava música.

No entanto, como visto, não era a todos que agradava. Bem dizer, agradava somente mesmo a si, que se ouvia cantar e se emocionava e se autoestimulava a emitir mais e mais sons em duvidosas harmonias. Sua voz não era lá das piores, não. Porém, a técnica, esta sim lhe faltava. Bastava encontrar aquele momento de maior variação no andamento, que a voz oscilava constrangedoramente como se uma girafa trocasse as patas resvalando sobre uma superfície molhada.

Os colegas de trabalho, quando não reclamavam, riam dela. Mas sabe de uma coisa? Ela até se magoava de princípio dos caçoos, mas passou a não dar mais bola – e continuava cantando. Um dia, um em que estava com muita vontade de cantar, mais do que na maioria dos dias em que a vontade já era suficientemente grande, ela sentou-se no meio ao escritório, deliberada e impiedosamente, numa posição favorável à acústica, para que todos ouvissem, e fez o que mais gostava de fazer na vida. Abriu a boca vagarosamente, sem pressa - pois sabia que, quando iniciasse, seria ininterrupto -, e simplesmente deixou virem os sons. Sem nem precisar mexer os lábios: só abriu a boca e deixou a vitrola rolar.

Para Carol

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

cotidianas #617 - Pílula Surrealista #33



- Por favor, a senhora me vê uma porção de comida viva?
- Sim, senhor. Qual o seu endereço?... O senhor vai pagar no débito ou crédito?... Ok, senhor, de 30 a 40 minutos... Obrigada.
O almoço chegou e ele comeu imediatamente sem muito saborear. O efeito foi até lento, pois somente no final do dia seu corpo esmaeceu. Sem sentir dor alguma, morreu dormindo vitimado pela sopa que ingeriu.
No entanto, um novo organismo tomou conta de si. Tanto que, no dia seguinte, como se não tivesse morrido, acordou pela manhã dentro do mesmo corpo e foi cumprir as tarefas do dia a dia. A comida viva, em metamorfose, matara-o de dentro para fora e tomara sua identidade. Permaneceu com o mesmo nome para facilitar os processos.
Ao meio dia, sentira uma fome danada. Sem nada na geladeira, puxou o celular:
- Por favor, a senhora me vê uma porção de comida viva?


Daniel Rodrigues

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

cotidianas #613 - Pílula Surrealista #32


Quando eu era pequeno, ficava pensando que, um dia, os títulos das novelas da Globo iriam se esgotar. Tantos anos fazendo novelas uma atrás da outra, em vários horários, que o inevitável aconteceria. De tanto usarem todos os títulos possíveis, recorrer a todas as referências literárias, jargões, ditados populares, trocadilhos, traduções, enfim, estes, por decréscimo, extinguir-se-iam. E um dia, um novelista qualquer, ao finalizar as milhares de páginas de uma nova obra, se depararia, faltando-lhe somente aquela última linha a escrever, com um vácuo: “que título posso dar?”. E constataria imediatamente, abismado: “Não tem mais títulos para titular. Todos foram usados!”
Hoje, qualquer um vê que minha suposição da infância não era devaneio. Faltam títulos por todos os lados. Este texto, por exemplo. As próprias novelas, podem notar, não se chamam mais por nada. Basta ligar a tevê e assistir às chamadas durante o intervalo da programação: “dia tal, estreia a ‘nova novela da Globo’: de novelista tal... tela preta.”


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

cotidianas #602 - Pílula Surrealista #31


O morcego deu um rasante e veio parar na sala daquele tranquilo lar, tirando-lhes, pelo menos, por ora, o sossego. A família mobilizou-se com vassouras e lençóis para afugentar o invasor, que desviou dos ataques com elegância e não se constrangeu: sentou-se no sofá, cruzou as pernas com distinção imperiosa e puxou a piteira preta e fina calmamente, posicionando-a entre os dedos. Acendeu e, antes de dar a primeira tragada, perguntou:

- Por que tamanha hostilidade? Por que essa falta de diálogo?

Ninguém ousou responder, absortos em suas certezas.

Comum esse episódio nos prédios altos do Centro, isso de os morcegos entrarem nas casas para puxar conversa. Igual aos humanos, que entram voando janelas adentro em busca de atenção. Menos ágeis para fugir das pancadas, entretanto, quesito no qual os morcegos levam larga vantagem.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

cotidianas #592 - Pílula Surrealista #30



– Oi, amo-ooor!, gritou ela da porta. – Cheguei, finalmente!
– OI, amor! Que saudades!, disse ele, vindo da cozinha secando as mãos no pano de prato. – Como foi de viagem? Vem, que tô terminando o almoç... amor, o... que é isso com as malas?
– Isso aqui? Pois, então: ia te dizer.
– Dizer o que, Lúcia?
– Bom, Ricardo, é que, falou ela, apontando para um porco rechonchudo e rosado preso a uma coleira, esta, por sua vez, presa ao cabo da mala. – Esse é o meu... eu estou casada com ele agora.
– Cumé que é?! Casada?! Com um...
– Sim, Ric, com ele sim.
– Não me chama de Ric, sua vagabunda! Como foi isso? Casada?! Como você faz isso comigo?! Minha mulher volta de viagem e, quando chega, não é mais a minha mulher! Como pode isso?!
– Ah, meu amor: é da vida. Tô cuidando da minha, só isso.
– Eu não acredito! Eu não aceito. Não aceito!, bradou o ex-marido, saindo da sala e batendo a porta do quarto, trancando-se.lá – “Tô cuidando da minha vida”! Agora eu tenho que ouvir essa!, reclamou, dando para ouvir sua voz abafada vinda da outra peça.
– Ué, intrigou-se Lúcia, – E não foi sempre assim: cada um cuida da própria vida?


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

cotidianas #583 - Pílulas Surrealistas #29



A doce e franzina Isabela vivia de encher balões. Balões. Muitos deles. Centenas, milhares de balões enchidos todos os dias por seus frágeis e castigados pulmões. Fazia vento até não mais poder.

Não pode, de fato. Aos poucos, de tanto enchê-los, os balões, seus pulmões enfraqueceram. Esvaziaram-se de ar, o qual faltou a Isabela não só para o cumprimento de sua lida e sina, mas também para o respiro. Perdera o fôlego, a graça. Perdeu a vida a pobre Isabela. 

Dizem, no linguajar vulgar, que “perder a vida” significa morrer.


Mas não foi bem isso que aconteceu com Isabela. Atenciosos, os anjos sopradores deixaram de lado por alguns instantes as suas trombetas para lhe ajudarem a encher balões. Dois foram suficientes: amarrados aos braços de Isabela, ela, pluma, foi sendo suspensa devagarzinho, numa viagem ascendente e sem lágrimas. 

Chegando lá, os amigos alados tiram-lhe os infláveis e a acomodaram numa fofa nuvem branca, quando pode Isabela descansar, enfim. Ela ouviu um familiar fado, e descobriu, então, que tocam fado no céu. Sob aquele som agradável, sua visão enxergou os balões distanciarem-se sem explodirem, solenes como numa legítima despedida.

para Izabella

Daniel Rodrigues

terça-feira, 17 de julho de 2018

cotidianas #580 - Pílulas Surrealistas #28





Josiah tinha o hábito de mandar os áudios pelo WhatsApp de frente para o espelho. Reouvia-os sempre após gravar, e acabava, por fim, sempre convencendo-se de que eram mensagens pra si mesma.



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 7 de maio de 2018

cotidianas #565 - Pílula Surrealista #27



Os dois jovens dançarinos foram contratados para executar uma performance durante o coffee break de um evento corporativo. Um Congresso de Governança, monótono e sepulcral como o tema exige. Há quem nem saiba o que isso significa na prática, inclusive eles, artistas cuja mixaria que lhes foi paga pela apresentação talvez nem justificasse tamanha descontextualização. Eles, vestidos de Terpsícore, gesticulavam harmonicamente rodeados de esgravatados morbidamente parados. Houve quem, sem notar-lhes a atuação em meio aos presentes fingindo educação ao se servirem, quase lhes esbarrasse. Não era nem desrespeito, pois os executivos engravatados nem sabiam o que respeitar. Arte não lhes existia. A coisa ia nesse nível, empurrando-se para o final antes de as atividades, em si, começarem, quando no último ato, como que por mágica, todos dançaram.

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 9 de abril de 2018

cotidianas #562 - Pílula Surrealista #26



Um andava pelas ruas conversando com pessoas invisíveis. Nome não tinha, pelo menos nunca o dissera entre as falaçadas boca e avenidas afora. O outro escutava tudo que diziam a seu redor e não pronunciava uma palavra sequer, só a receber e nada dar. Tivera um dia um nome, sim, mas de tanto tempo de silêncio, se esquecera. A vida, nada inventiva, por essas faltas de coincidências peculiares dela, nunca fez com que os caminhos de ambos se cruzassem, e morreram inúteis sem que um ajudasse a aplacar a loucura do que tudo falava e nem sequer este a revelar a genialidade do outro que, sabiamente, desistira de dirigir a palavra a qualquer um dos desprezíveis homens.


Daniel Rodrigues.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

cotidianas #555 - Pílula Surrealista #25


Ele voltou pra casa:
- Lucas, você aqui?!
- Sim, amor, voltei.
- Mas nos havíamos dado um tempo. Eu fui para um lado e, você, pra outro. Lembra? Foi de comum acordo!
- Sim, eu sei. Só que eu já fui e já voltei.
- Aonde você foi?
- Para o outro lado. Eu me despedi de você (não sem lágrimas nos olhos, devo admitir) e segui na direção oposta, como acordamos.
- E dai?
- E dai que eu fui adiante. Caminhei por todo o chão que foi possível. Quando acabou o chão, eu mergulhei no mar e nadei. Nadei, nadei. Nadei bastante.
- Sim...
- E depois mais pedaços com chão, com montanhas, geleiras, pontes, mangues, saleiras. Sabia que no Japão eles plantam arroz nas encostas? Passei por lá.
- Você passou por tudo isso? Pelos maremotos, pelo sol, pelo frio, pela noite, pelos monstros marinhos, pelos sírios refugiados, pelas guerras?...
- Sim, e os trouxe comigo. Estão todos aí fora.
Ela então abriu a porta da entrada e os viu todos aguardando quietos e obedientes como cachorros de estimação, o maremoto, a noite, o sol, o frio, os monstros do mar, os sírios e as guerras.
Impressionada, ela pensou alguns segundos exatamente nas palavras que iria dizer, mas preferiu trocá-las por outras.
- Você deve estar com sede, né? Deixa a mochila aí e vamos lá na cozinha navegar num copo d’água.


Daniel Rodrigues

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

cotidianas #552 - Pílula Surrealista #24



Espírito sonhador e infantil tinha Mia. Encantava-se pelos meninos da escola, um a cada mês diferente, praticamente conforme o tempo de tentativa pela atenção nunca recebida de volta. Esquecido o primeiro, então, partia para próximo, sempre com paixão e tesão renovados. Ao final do solitário flerte ao escolhido da vez, chorava e se entristecia. Eles só queriam saber de futebol, celulares e das meninas gostosinhas, não de gordinhas e retraídas como ela. Talvez fosse por causa das manias... Mia tinha manias, quase sempre inocentes, inofensivas. Hábitos estritamente particulares, mas os meninos deviam suspeitar. Comer pão com uma pitada de açúcar por cima, por exemplo. Pingar apenas uma gota de café para vê-lo espalhar-se aos poucos sobre o leite também. Igual, assistir tevê de ponta-cabeça no sofá, que lhe dava uma sensação divertida de suspensão.

Outra ideia meio besta que não lhe saía da mente de adolescente era também o seu maior temor: o de um inseto entrar-lhe ouvido adentro. Mosquitos, moscas, cigarras, abelhas, besouros, gafanhotos, escaravelhos, zangões. Todos lhe davam pavor só de imaginar. Por isso mesmo, punha-se a sondar as mais improváveis situações em que um bicho desses invadisse sua cabeça através das orelhas. Acampamento na natureza, passeios desavisados pelo parque, sonos profundos demais ou fechar os olhos por muito tempo na rua. Imaginava-os vindo voando ou rastejando seus cascos e asas lentamente sobre o travesseiro em direção a seu cérebro enquanto dormia à noite. A passos silenciosos chegavam e se acomodavam no novo lar.

Tanto foi, que aconteceu. A libélula copulou lá dentro, soltou seus ovos e fizeram-se as ninfas, que se desenvolveram durante meses até ganharem asas. Várias delas e ao mesmo tempo, todas batendo asas no interior da cabeça de Mia. De primeiro, sentira coceiras e zunidos incômodos dentro da caixa encefálica. A sensação ruim se dissipou quando as libélulas, afoitas pelo céu, ergueram a menina pelo crânio e a carregaram num voo sobre a cidade. Mia sobrevoara a estação do trem, o lago, a praça e a escola, vitoriosa como nunca tivera sido.

Daniel Rodrigues

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

cotidianas #547 - Pílula Surrealista #23


Acordou sonolento e, cambaleante, pegou uma reta do quarto em direção ao guarda-roupa. Não havia nem lavado o rosto ainda. Sabia trilhar aquele trecho de poucos metros de olhos fechados, mesmo quando à noite. Com os olhos quase fechados, apanhou de dentro uma camiseta branca empilhada sobre outras 39 igualmente brancas, iguais. Levou-a à cabeça para vestir, quando, pelo torpor, desequilibrou-se levemente para trás. Não caiu. Firmou, sim, o pé esquerdo na areia de um aparente deserto, que seria deserto por suas características não fosse a enormidade de flores rosa-claro que tomavam a paisagem sem fim. A luz era difusa, filtrada, intensa a ponto de quase cegar. Mas agradável ao mesmo tempo, estranho. Mirou em volta e sentiu na epiderme o silêncio daquele ambiente, cujo horizonte se perdia em dunas de areia, flores róseas e sol filtrado. O sol, ao norte, aliás, não era exatamente um sol. Havia lá em cima sobre sua cabeça uma outra formação celeste, uma espécie de imensa esponja amarelada na qual dava para ver com clareza cerdas que dela se destacavam para fora, num formato quadrilátero. Parecia estar tão perto, inclusive... E pulsava, chamava-lhe atenção, expelindo líquido para fora. Como um edema recém pisado latejando e expurgando sangue através dos poros ressentidos. E a sensação do tempo também era diferente. Piscava os olhos e as coisas congelavam por segundos para depois retornarem à vida. Esquisito, mas familiar. Numa das piscadelas, tornou a abrir os olhos e já estava no topo de um iceberg. Ele e um pinheiro, a seu lado, fincado, equilibrado na água congelada. A raiz parecia muito profunda, tanto quanto a altura que ganhava para cima. Recostou-se no tronco da companheira e de lá, do cume gelado, não quis mais sair. O tempo parecia não passar, e isso era tão reconfortante! A camisa branca, a qual não havia vestido completamente ainda, jogou fora iceberg abaixo. Era frio, mas era quente ao mesmo tempo. Não morreu, mas aproveitou para fechar os olhos e nunca mais abrir.

Daniel Rodrigues

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

cotidianas #533 - Pílula Surrealista #22


Noite de balada, ele saiu de casa perto da meia noite para pegar a hora quente da festa. Roupa nova, banho tomado, perfume no pescoço, cabelo penteado. Foi. Entrou na boate, e a festa estava realmente bombando. Muita gente, muita mulher, todos devidamente vestidos, banhados, perfumados e penteados. Já entrosado, dançava na pista quando, atrás dele, um rapaz, percebendo sua presença, virou-se e, incrédulo, indagou-lhe:

- Ei, cara, o que você tá fazendo aqui?!

Embora surpreso com o porquê da abordagem, percebeu que era, sim, com ele. Não conhecia aquele rapaz, que se mostrava bastante irritado e hostil, aliás. Não conseguiu articular-se para responder, até que um outro - bem maior de tamanho e ainda mais bravo -, notando o zum-zum-zum, também se manifestou:

- Éééé! O que você tá fazendo aqui, cara? Pensa que pode entrar na festa, assim, sem mais?!

Assustado, ele tentou ao menos esboçar reação:

- Sim... Eu vim à festa. Por que, tem algum... problema? Eu conheço vocês?

Pronto: questionamentos suficientes para irritar não apenas os dois estranhos interlocutores, mas também suas namoradas e mais um bolo de umas cinco ou seis pessoas. Que logo se transformou num monte de mais seres humanos, praticamente todos da festa entre aqueles que passaram a se dar conta que ele estava lá dentro.

- Quem você pensa que é pra estar aqui?! – ralhou um dos incomodados. – Só porque o cara não deve nada pra ninguém, é um cidadão que trabalha, paga suas contas e circula livremente na rua pensa que pode entrar na festa! Ora, vejam só! – disse, olhando em volta para os outros, os quais, igualmente inconformados, riram, murmuraram coisas ruins ou até esbravejaram. Teve quem salivasse de ainda mais raiva.

O linchamento foi ali mesmo, na pista de dança, sob o tunt-tunt do tecno. Nem se fez menção de parar a música e nem de se chamar segurança, quanto menos a polícia. Era coisa muito vulgar, sem importância, de ser resolvida ali mesmo. O corpo ficou próximo ao pé de uma mesa no canto da pista, para onde foi arrastado, de modo que não atrapalhasse a divertida noite dos outros - que estava, como se sabe, bombando. Não demorou muito entre a agonia e a morte em si.

Mereceu.

Daniel Rodrigues

terça-feira, 3 de outubro de 2017

cotidianas #529 - Pílula Surrealista #21



Chovia. Ela, então, decidiu sair à rua com seu guarda-chuva com todas as cores do espectro. Não havia nada o que fazer na rua. Apenas, saiu. A tarde caía, e antes que acontecesse o crepúsculo, o sol, até então desacorçoado, voltou à sua posição para, junto com ela e suas cores, compor um arco-íris.



Daniel Rodrigues

terça-feira, 15 de agosto de 2017

cotidianas #522 - Pílula Surrealista #20


Suzana não gostava de completar data. A cada ano – como ocorre com muita gente, aliás –, ao invés de comemorar aquela primavera, batia-lhe, sim, tristeza. Mesmo assim, família e amigos reunidos em volta do bolo para os parabéns como todo dia 10 de junho. Cansada de tamanha hipocrisia, ela pede a palavra antes de soprar a vela:
"Sei que vocês estão aqui por minha causa, mas não vou dizer que estou contente. Todo ano é isso: bolinho, algazarra, risadas, apaga a luz pras palmas, acende a luz pra cortar o bolo, rá-tim-bum... Que troço idiota, gente! Afinal, como gostar de ter um ano a menos de vida? Não gosto, não adianta: não gosto! Vamos parar com essa imbecilidade de celebrar uma data como essa! Tenho consciência de que meu futuro é, a cada ano que passa, de perder as pessoas. Cada ano uma idade a menos, cada ano mais jovem, até chegar ao feto e, depois, desaparecer no ventre da mãe. Veja o que aconteceu com você, tia Dulce, por exemplo: no início, lá pelos 70 anos, todos te davam atenção e te bajulavam, não é? Agora, assim, aos 9 anos, quase completando 8, quem quer saber de ti? Hein?!”
Tia Dulce apenas baixou a cabeça e chorou em silêncio pela verdade dita.
“E você, Luiz? Não vem mentir pra gente que, quando eu chegar ali aos meus 3, 2 anos de idade, você vai continuar me querendo, me cuidando, me amando! Faltam alguns anos pra isso, eu sei. Mas eu sei também o que me espera: abandono e solidão. E não é essa a verdade, gente? Vamos parar de mentir pra nós mesmos! É isso que nos acontece, a todos nós. É assim que sempre acabamos: sós”.
Luiz, ofendido e calado, retirou-se.
“Quer saber... acende essa vela de uma vez pra acabar com essa encenação, que eu detesto esses dias de desaniversário”.

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 15 de junho de 2017

cotidianas #514 - Pílula Surrealista #19



Cumpria bem a sua função na firma. Cordata, fala miúda, solícita e sorridente a todos, mesmo que o arco do sorriso não passasse de determinado ângulo indiscriminadamente. Não por timidez: é que não tinha mais sorriso para oferecer além daquilo. Ninguém exigia mais, entretanto, até porque a maioria
dos colegas da fábrica - escapavam uns dois ou três -  não se prestava a prestar atenção sequer no que ela oferecia dentro das suas limitadas condições faciais e emocionais. Sem formosura, então: descartada. Dos 30 e poucos anos que somava, pelo menos a metade tinha o peso dos mesmos 30. Alguns deles perdera pelo caminho entre idas e vindas do trabalho para casa, da casa pro trabalho. 4 horas para ir, 4 para voltar. Ainda, a prevalência desde cedo da vida escassa camuflava o que talvez ali restasse de beleza, e, como bem se sabe (e ela mesma sabia com tocante aceitação), gente feia não se enturma. Sozinha na sua rotina, batia o ponto desacompanhada e voltava pra casa cheia de gente em volta mas sempre solitária. Depois das segundas 4 horas perdidas daquele dia, estava em casa novamente sozinha, agora, completamente. Nem alívio, nem tristeza. Tudo dependia se ele aparecia. Quando sim, a visita fazia com que pelo menos aquele dia tivesse valido a pena. Sentado no banquinho acomodado permanentemente ao lado do liquinho, pois foi onde que parou desde a primeira vez, o menino africano surgia. O mesmo que ela, um dia assistindo ao noticiário, fez materializar-se ali: pernas juntas, mãos sobre os joelhos, roupa esfarrapada, rosto tristonho, barriga de bicho. A princípio, pareceu-lhe tétrico, visto que o garoto não se movia, mas à medida que ela ia contando-lhe as histórias, sorria e soltava gargalhadas. Daquelas que só criança solta, mesmo as desnutridas e desumanizadas. Não falava nada, somente ria. Eram histórias infantis, histórias de vida dela, coisas que inventava na hora. Tudo os divertia. Não havia o que fosse capaz de romper o cordão que ligava aqueles dois. Ficavam ali, sabe-se lá por quanto tempo, rindo os dois, ela contando histórias, ele a ouvir. A trocarem olhares de cumplicidade, de afeto. Até que uma hora ela caía no sono exausta da lida interminavelmente cíclica. Acordava no dia seguinte com o banquinho já desocupado, decerto desde que a sessão de histórias cessara. Era hora de lavar a cara e arrumar-se para mais um dia de trabalho e indistintos sorrisos pela metade.

Daniel Rodrigues

terça-feira, 30 de maio de 2017

cotidianas #512 - Pílula Surrealista #18



Atento feito um gavião faminto, o helicóptero sobrevoava o céu da cidade à noite lançando jorros de luz feito holofotes cinematográficos e soltando o rugido de suas asas, que se desvencilhavam do vento com tamanha violência que o som se espalhava por quilômetros. As operações da polícia, mesmo que já corriqueiras, sempre alarmam a população. Assim, pelo menos, os cidadãos de bem, os beneficiados, se sentem devidamente protegidos. E não haveriam de estar?! Glória à polícia!

A missão era, obviamente, buscar e prender delinquentes, vagabundos, facínoras, meliantes. Aqueles que não são “cidadão de bem”, trocando em miúdos. Os policiais cumpriam a estardalhante e grandioculente missão aérea quando um deles solta a pergunta: “Vem cá: como a gente vai prender esses caras que tão lá embaixo se a gente tá aqui em cima?” Os outros se entreolharam, visivelmente pelo fato de não terem pensado nisso. O óbvio e assertivo questionamento não teve nem tempo de ser debatido, pois, voando alto, o piloto não percebeu que a nave ia na direção da Lua e, como num videogame: bum! Espatifou-se contra a estrela, esta, que nada sentiu. A Lua ganhou apenas mais uma de suas várias crateras – e das pequenas. A operação militar, esta sim, sofreu maiores efeitos: considerada inútil e sem sentido a partir de então, não ganhou mais verba do Secretário de Segurança para ser realizada depois que este passou por aquele vexame todo nos jornais do dia seguinte.

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 11 de maio de 2017

cotidianas #509 - Pílula Surrealista #17





Ele vinha se sentindo enjoado fazia umas duas semanas. Não tinha o que fizesse passar aquilo, fosse remédio, chá, comida. O que não vomitava, fazia-o enjoar mais ainda. Não ocorreu a ninguém, entretanto, o óbvio: estava grávido. Apenas 19 semanas bastaram para que desse a luz a uma linda batedeira elétrica, desses marca-diabo que não duram mais do que umas poucas usadas. No nascimento, entretanto, o rebento não chorou nem emitiu som algum ao sair lá de dentro – aliás, como se exige dos pequenos hoje desde cedo. Mudez total. A cena, esta sim, foi bonita, como a de todo acontecimento que trazem à luz uma nova vida. Ele com o filho ao colo, próximo do rosto, respirações próximas uma da outra, estabelecendo a ligação eterna que dali se depreende. De parto normal, o homem ainda recuperava-se do esgaçamento da uretra, por onde o eletrodoméstico saiu meio enviesado. Normal. Coisa da natureza. É sabido que a pior das dores é a dor do parto.



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 6 de abril de 2017

cotidianas #505 - Pílula Surrealista #16


Voltavam animados e bêbados os quatro da festa, que tinha bombado aquela noite. Ainda excitados, entre risadas e tirações de sarro, as quais escondiam as intenções sexuais de pelo menos dois dos três homens em relação à moça do grupo, iam em direção ao ponto de táxi. Na esquina, correram desengonçados antes que o sinal abrisse, mas um deles, abobado pelo álcool, ficou para trás. Teve que esperar o semáforo abrir novamente. Do outro lado, os amigos faziam-lhe caretas e gargalhavam alto e compulsivamente. Ele riu também, mas logo achou bastante sem graça rir sozinho do outro lado da rua e seriou de repente. Nada pra fazer, pôs a mão no bolso e descobriu ali pedaços de papéis sem utilidade. No lixo ao lado, ali a acompanhá-lo, jogou fora o que achou. Como não havia nada melhor para ocupar-se naqueles segundos até atravessar, investigou os outros bolsos da calça e da jaqueta e achou mais inutilidades. Foi se desfazendo de tudo que já não mais prestava: cartões de visita, chaveiro, lenços de papel, moedas, chaves sem utilidade. Tudo ia para aquela pertinente lixeira, a nova amiga onde agora despejava também a carteira, o celular, os sapatos, a roupa, os documentos. Apercebia-se que, no frigir dos ovos, não precisava de nada daquilo de fato. E antes que o sinal abrisse enfiou-se ele mesmo pela boca da lixeira e de lá não mais saiu. Não havia mais quem atravessar a rua, e os carros avançaram desimpedidos. Os amigos, impassíveis em seu estado de animação, retomaram o passo rumo ao ponto de táxi aliviados: seria preciso agora um carro apenas para devolvê-los a seus lares.

Daniel Rodrigues