"O
horror! O horror!"
Acabo
de ler
"Marlon Brando - A face sombria da beleza", do
jornalista francês François Forestier, que já biografou JFK e
Marilyn Monroe. O presentaço veio do amigo Francisco Bino, que, na
dedicatória, fez uma previsão um tanto cômica: "Che, tu vai
ler tão rápido que vai parecer ejaculação precoce - desse mal
Brando não sofria". Na verdade, acho que foi o único mal do
qual esse puta ator não padeceu.
Brando teve infinitas personalidades. Ora anjo, ora monstro. Mais monstro do
que anjo, diga-se. Na arte dramática, soube ser Midas; na vida real,
foi Medusa. Único, rebelde, encantador, arrogante, trágico. Ao
mesmo tempo em que conquistava todos à sua volta, fazia-se
repugnante. Antes de filmar algumas cenas de "Uma rua chamada
pecado", praticava um ritual que começava por uma leve
masturbação, depois molhava a calça jeans e, por fim, abria a
braguilha. Pronto, agora Stanley Kowalski poderia se exibir aos
colegas - em especial, à Blanche DuBois-Vivien Leigh.
Desdenhava
a profissão. Não lia roteiros, não decorava falas. Improvisava e
tomava conta dos sets como se fosse o dono de estúdio - havia
exceções, como com John Houston e
Francis Ford Coppola, por
exemplo. Ainda no teatro, quando fazia "Um bonde chamado
desejo", tinha como hobby "brincar de boxe" com
figurantes e atores substitutos. Certo dia, levou um direto no rosto
que quebrou seu nariz. O autor da proeza: um jovem desconhecido
chamado Jack Palance, que se orgulharia a vida inteira do feito. Sua
grande diversão era chocar, chamar a atenção. E conseguiu. Todas
as mulheres do universo, de Hollywood ao Taiti, do México às
Filipinas, caíram em tentação. Entre as que sucumbiram, Ava
Gardner (então namorada de Frank Sinatra, que mandou capangas darem
um "recado" a Brando envolvendo a palavra "castração"),
Marilyn Monroe (a quem ele não dava bola -
"era muito
bunduda") e Vivien Leigh (então esposa de Laurence Olivier,
bissexual e grande referência para Brando, tanto no cinema quanto no
teatro).
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Na adolescência como
protagonista de
"O Selvagem" |
O
homem que virou rei de Hollywood, que defendeu indígenas e panteras
negras, nunca escondeu a sexualidade aflorada, intransigente,
desafiadora, inquietante. Gostava de mulheres exóticas - Rita
Moreno, Movita Castañeda, Katy Jurado, Tarita Teririipaia. E de
homens, também. Entre eles, os parceiros de toda vida: Wally Cox e
Christian Marquand. Brando nunca negou sua bissexualidade. Bernardo
Bertolucci teria se apaixonado por ele, incutindo sua obsessão nas
transgressões entre Brando e Maria Schneider em "O último
tango em Paris". O ator gostava tanto de gente quanto de Russel,
seu guaxinim. Teimava, no entanto, em não gostar de si. Ainda que
não bebesse ou consumisse drogas (influência pela vida errante
levada pela mãe, Dodie), Brando maltratava o próprio corpo comendo
desenfreadamente. A grande paixão? Sorvete. Potes e mais potes, que
o faziam engordar quilos de um dia para o outro. Aos 30 anos, por
estar "muito rechonchudo", quase perdeu o papel de "O
selvagem" para Montgomery Clift - que fazia sombra a Brando
desde "Uma rua chamada pecado", sendo, na época, um dos
grandes queridinhos de Hollywood. Monty era bonito, educado,
inteligente e homossexual. Ainda que tomasse conta de qualquer
ambiente, Brando baixou a bola para um colega de "O selvagem".
Um ex-fuzileiro naval mal-encarado chamado Lee Marvin fazia-no
tremer. Para Marvin, aquele motoqueiro falso requebrava um pouco além
da conta. "Maricão", dizia. "Não passa de um
monte de merda".
Dali
em diante, entre péssimos filmes e parcas boas exceções, como o
genial
"Sindicato de Ladrões" (novamente de
Kazan), Brando
via seu peso aumentar na mesma medida em que as confusões sucediam
em sua vida pessoal - sempre envolvendo mulheres. No começo dos anos
70, foi parar em
"O Poderoso Chefão", já gordo e
decadente, com 58 anos, depois que o papel fora recusado por Laurence
Olivier e George C. Scott. Brando estava desacreditado, assim como o
filme, negado por vários diretores até parar nas mãos de um jovem
de 31 anos chamado
Francis Ford Coppola. Sem dinheiro e credibilidade, Brando trocou 5% de participação na bilheteria por
U$ 100 mil. Deixou de ganhar, por baixo, U$ 10 milhões. Mas
recuperou a estima, a aura que havia ido pelo ralo. Depois dos
primeiros dias de filmagem, quando quiseram trocar Coppola pelo velho
mestre de Brando, um dedo-duro do Macartismo chamado
Elia Kazan, Don
Corleone acariciou um gatinho e bateu pé: "se tirarem Coppola, também saio". Assim, Coppola ficou. Ficando, fez uma
obra-prima. Ficou rico e conseguiu dinheiro e renome suficiente para
realizar seu maior sonho, uma insanidade chamada "Apocalipse
Now". Tão insano quanto os 125 quilos com os quais Brando
chegou às locações, nas Filipinas.
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Brando encarnando o célebre
Cel. Kutz em "Apocalypse Now" |
Sobre
"
Apocalipse Now", Forestier escreve: "
As filmagens
seriam afetadas por um furacão, que destrói os cenários; o ator
principal, Harvey Keitel, não podia ser mais irritante. É pior que
Brando, no estilo Actors Studio. A cada saleiro depositado na mesa,
Keitel pergunta: ‘Mas por quê? Desde quando? Qual a história
desse saleiro? E dessa mesa?’. Coppola o manda embora. O
substituto, Martin Sheen, é satisfatório, mas... sofre um ataque
cardíaco, de cansaço. Passam-se os dias. A película prende nas
câmeras, por causa da umidade. Os técnicos fumam, se drogam,
contraem doenças desconhecidas. Os mosquitos atacam os brancos. Os
bifes importados dos Estados Unidos chegam descongelados, ou mesmo
podres. Encantadoras figurantes incitam os atores e maquinistas a se
entregarem a atos imorais - mas saborosos. O próprio Coppola cede
aos encantos das coelhinhas da Playboy que participam das filmagens.
O exército filipino recusa-se a emprestar helicópteros. Brando
raspa a cabeça. Dennis Hopper, o bad boy
de ‘Sem Destino’,
chega. Drogado até o pescoço, recusa-se a tomar banho. Passada uma
semana, ninguém mais lhe dirige a palavra - exceto por telefone. Ao
fim de 40 dias, passa a ter direito a um ônibus particular: ninguém
mais quer entrar na condução com ele. Brando desaparece na selva."
Em
2004, aos 80 anos,
Marlon Brando morreu. Apesar de ter tido o mundo
ao seu dispor, pereceu sozinho, assistindo uma comédia sem graça de
Abbot & Costello. Talvez comendo um McDonald´s daqueles que eram
jogados por cima do muro por um funcionário da lancheria mais
próxima de sua casa, em Mulholand Drive. Partiu não sem antes ter
vivido uma sequência de tragédias que, se fosse transformada
roteiro de cinema, perderia credibilidade - tamanho surrealismo. Em
1990, seu filho Christian Brando, um drogado problemático de QI
abaixo da média, dá um tiro na cabeça do cunhado, Drag Dollet, na
sala da casa do ator. Brando presencia os momentos seguintes e
procura inocentar o filho "atuando" no tribunal. Cheyenne,
a filha viúva, é outra problemática. Viciada em drogas e remédios,
estava grávida do agora finado namorado. Depois de inúmeras
tentativas de suicídio, a garota conseguiu se enforcar (“com
sucesso”) em 1995, aos 24 anos.
Entre
a sedução de Kowalski, a luta de Zapata, a ingenuidade de Terry
Malloy e a sagacidade de Vito, fico com a insanidade de Kurtz. Ou de
Brando, tanto faz. Ao fim e ao cabo, this will never be the end.
por
Ricardo Lacerda
Ricardo Lacerda é jornalista, chato e curioso. Desde que se conhece
por gente, vê filmes e escuta música de “gente velha” – como
diziam os amigos do colégio. É aficionado por folclore
latino-americano, curte Paulo Leminski e Pedro Juan Gutierrez –
entre doses de Salinger e Hesse. Na tela, aceita quase tudo – salvo
exceções. Foi editor da revista APLAUSO. Formado pela PUC, tem
especialização em Relações Internacionais pela ESPM e é sócio
da República – Agência de Conteúdo, de onde escreve para
publicações como Superinteressante, AMANHÃ, Voto e Jornal do
Comércio.