Diz que a Oasis vai voltar, né? Humm, não sei, não... O que a gente tem certeza é que haverá, sim, uma outra reprise, mas do MDC. Hoje a gente recupera a edição 160, lá de abril de 2020, quando tivemos, além do entrevistado, o jornalista, pesquisador e escritor Marcello Campos, Gal Costa, The Specials, Lulu Santos, Charlie Parker... mas não Oasis. Voltando sempre, o programa vai ao ar na reeditável Rádio Elétrica. Produção, apresentação e versão original: Daniel Rodrigues
1º de abril é dia da mentira? Pra quem diz que "não foi golpe", sim. Sem fake news, o MDC de hoje traz Isaac Hayes, João Gilberto, Lulu Santos, Rush e Tracy Chapman estão aí para comprovar. Ainda, um Cabeça dos Outros no quadro especial e, claro, os 60 anos do golpe militar. Pela verdade, o programa vai ao ar às 21h na verídica Rádio Elétrica. Produção, apresentação e "ditadura nunca mais": Daniel Rodrigues
E ele chegou aos 80. Tomado de significados, o aniversário de Gilberto Gil está sendo uma celebração nacional.
Por vários motivos: ele é a nossa arte maior, o nosso orgulho enquanto povo, a representação da nossa raça, da nossa sapiência espiritual, da nossa resistência
política e cidadã. O Brasil que deu (que pode dar) certo. No Clyblog, basta fazer uma breve pesquisa pelo nome deste
artista que se encontrarão diversas referências, talvez a de maior volume nestes
quase 14 anos de blog.
Tanto é que nós, como se parentes ou súditos muito próximos, haja vista que sua arte perfaz nossas vidas desde crianças, aqui estamos reunidos para celebrar os 80 anos deste baiano que quis falar com Deus e conseguiu. Gentes
de diferentes idades, estados, profissões, mas impregnados da mesma admiração pela
vasta, vastíssima obra de Gil, um autor, assim como o mano Caetano Veloso – o próximo
oitentão da turma – capaz de produzir misteriosamente com uma qualidade superior
por décadas a fio praticamente sem quebras neste alto padrão artístico.
O “nós” a quem me refiro, claro, inclui-me, mas vai além
disso. Somos oito seguidores da egrégora Gil das áreas do jornalismo, da arquitetura, da biblioteconomia,
da arquitetura, da produção cultural e outros e, claro, da própria música. O talentoso
músico paulista Mauricio Pereira, que já versou Gil n’Os Mulheres Negras, é um
dos que generosamente colaboram conosco elencando suas preferidas. Como ele, tivemos a árdua tarefa de escolher
cada um10 músicas, chegando, devota e festivamente, à soma de 80, igual a suas primaveras
completas no último 26 de junho.
Creio que, daqui a 2 anos, quando Chico Buarque completar esta
mesma idade (o que todos esperamos), talvez haja comoção parecida. Mas somente
parecida. Gil guarda particularidades junto ao coração das pessoas que somente ele é capaz de provocar. Tanto que não foi assim quando Roberto chegou ao time dos oitentões, nem com Erasmo, Tom Zé, Flora, Hermeto, Donato e nenhum outro da música brasileira que já tenha rompido
a barreira das oito décadas. Além de recentemente sentar-se na cadeira da
eternidade da Academia Brasileira de Letras, ratificando o que construiu ao
longo de 60 anos de carreira, a própria imortalidade, este aniversário de Gil é
um aniversário de todos: dos fãs, dos brasileiros, da América preta e mestiça,
da África diáspora, da cultura latino-americana, da arte universal. De nós.
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Kaká Reis
produtora cultural (Rio de Janeiro/RJ)
"Gil sempre fez parte da minha vida. Meus dois irmãos (autores desse blog), mais especificamente Daniel, sempre trouxeram suas melodias e letras para perto e realmente conquistaram meus ouvidos a ponto de 'Tropicália 2' ser, com ainda uns 7 anos de idade, meu disco favorito. Um ancestral vivo, ativo, criativo, que eu posso ver com meus olhos, ouvir com os ouvidos e sentir com a alma… assim é Gil. Um griot da sabedoria!”
4. "Abre o Olho" ("Gilbert0 Gil Ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca", 1974)
5. "Refazenda" ("Refazenda", 1975)
6. "Sarará Miolo" ("Realce", 1979)
7. "Quanta" ("Quanta", 1997)
8. "Parabolicamara" ("Parabolicamará", 1992)
9. "Nos Barracos da Cidade" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
10. "Drão" ("Um Banda Um", 1982)
Leocádia Costa
publicitária, produtora cultural e locutora (Porto Alegre/RS)
"Escolher 10 canções na imensa e maravilhosa discografia de Gilberto Gil, Ave, é desesperador. Quando recebi o convite de participar dessa homenagem por ser uma fã dele e da sua expressão, precisei estabelecer algum critério para escolher 10 canções. Gostar, gosto de praticamente tudo o que ele canta, então esse não seria um critério adequado. Depois, pensei naquelas canções que me tiram do chão, me fazem vibrar em espirais que só ele produz. A missão de escolher ficou ainda mais complexa, porque algumas canções de Gil dizem o que meu coração gostaria de dizer, ou aquilo que minha cabeça pensaria, ainda coloca na minha boca a indignação ou a descoberta mais sensível dos inúmeros graus da Espiritualidade que ele percorre. Então, descartei esse critério também. Daí me dei conta que boa parte das iniciais 33 canções que eu havia escolhido se dividiam entre canções que estão eternizadas na voz do Gil e outras que eu escuto na voz dos seus intérpretes sendo praticamente deles (Cássia Eller, "Queremos Saber"; Rita Lee, "Panis et Circenses", João Donato, "Bananeira"; Dominguinhos, "Só quero um xodó"; Elis Regina, "Rebento"; e Cazuza, "Um trem pras estrelas", só para citar algumas, sendo impossível nominar as composições de Gil e Caetano que me nutrem a alma). Então, cheguei ao critério que me fez melhorar um pouco a seleção para chegar nas 10 escolhidas: destacaria somente aquelas canções que, para mim, são ouvidas na voz do compositor e que me marcaram profundamente e aí estão elas!"
1. "Lamento Sertanejo" ("Refazenda", 1975, com Dominguinhos)
2. "Sitio do Pica-Pau Amarelo" (Trilha sonora "Sítio do Pica-Pau Amarelo", 1977)
3. "Filhos de Gandhi" ("Gil & Jorge" ou "Xangô/Ogum", 1974, com Jorge Ben)
4. "Drão"
5. "Tempo Rei" ("Raça Humana", 1984)
6. "Vamos Fugir" ("Raça Humana", 1984, com Liminha)
7. "Domingo no Parque"
8. "Zumbi (A Felicidade Guerreira)" (Trilha sonora "Quilombo", 1985, com Wally Salomão)
9. "Aquele Abraço" ("Gilberto Gil", 1969)
10. "São João, Xangô Menino" ("Gilberto Gil ao vivo em Montreux", 1978, com Caetano Veloso)
Tatiana Viana
assessora de planejamento da Secretaria da Cultura de Viamão (Viamão/RS)
"Acho que ele tem lugar garantido no coração, em algum lugar da memória afetiva de todo brasileiro, uma obra ampla, maravilhosa, que fala dos dilemas humanos, de amores e sofrimentos da vida de um modo geral, a desigualdade social, cultura. Gil é um pouco de cada um de nós e nós carregamos um pouco dele em nossas vidas."
1. "Emoriô" (por João Donato, "Lugar Comum", 1975, com Donato)
2. "Extra" ("Extra", 1983)
3. "Nos Barracos da Cidade"
4. "Tempo Rei"
5. "Esotérico" ("Um Banda Um", 1982)
6. "Drão"
7. "Andar com Fé" ("Um Banda Um", 1982)
8. "Parabolicamará"
9. "Buda Nagô" ("Parabolicamará", 1992)
10. "Metáfora" ("Um Banda Um", 1982)
Maria Joana Lessa
jornalista (Rio de Janeiro/RJ)
“Eu acho que Gil é um orixá vivo”.
1. "Extra"
2. "Afoxé É" ("Um Banda Um", 1982)
3. "Abre o Olho"
4. "Sarará Miolo"
5. "Refazenda"
6. "Back in Bahia" ("Expresso 2222", 1972)
7. "Domingo no Parque"
8. "Filhos de Gandhi"
9. "Babá Alapalá" ("Refavela", 1977)
10. "São João, Xangô Menino"
Clayton Reis
arquiteto, cartunista e blogueiro (Rio de Janeiro/RJ)
"Tarefa dificílima! Sempre me ocupei meramente em apreciar e nunca em elencar minhas preferidas. Numa obra tão linda, nunca me preocupei em saber se eu gostava mais dessa ou daquela. Enfim, aí estão as 'do momento'. Talvez depois me arrependa e pense em alguma injustiçada que não entrou. Mas por agora, minhas 10 são essas aí..."
1. "Drão"
2. "Febril" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
3. "Domingo no Parque"
4. "Refazenda"
5. "Roque Santeiro (O Rock)" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
6. "Raça Humana" ("Raça Humana", 1984)
7. "Ela" ("Refazenda", 1975)
8. "Back in Bahia"
9. "Parabolicamará"
10. "Lamento Sertanejo"
Luciana Danielli
bibliotecária (Niterói/RJ)
"Gil, baluarte da música brasileira e o maior ministro da cultura que o Brasil já teve! Grande artista!!!! Parabéns Gil! Feliz 80!"
1. "Marginália II" ("Gilberto Gil", 1968, com Torquato Neto)
2. "Refazenda"
3. "Tempo Rei"
4. "Aquele Abraço"
5. "Toda Menina Baiana" ("Realce", 1979)
6. "Domingo no Parque"
7. "Expresso 2222" ("Expresso 2222", 1972)
8. "Lamento Sertanejo"
9. "Refavela" ("Refavela", 1977)
10. "Pela Internet" ("Quanta", 1997)
Daniel Rodrigues
jornalista, escritor, radialista e blogueiro (Porto Alegre/RS)
"'Gil engendra em Gil rouxinol', cantou Caetano usando as palavras do poeta Souzândrade para falar de Gilberto Gil. A obra de Gil é gigante em vários sentidos, por isso, misteriosa. Inclusive no assombroso volume de canções da primeira linha da música mundial. E quantas que eu adoro tiveram que ficar de fora da minha lista! 'Aqui e Agora', 'O Oco do Mundo', 'Haiti', 'Febril', 'Rock Santeiro (O Rock)', 'Beira-Mar', 'A Balada do Lado sem Luz'... Apenas 10 é pouco para representá-la e representá-lo, mas creio que, sim, muito bem representadas quando junto às 10 de todos nós. Viva Gil!! Axé!"
1. "Filhos de Gandhi"
2. "Lamento Sertanejo"
3. "Back in Bahia"
4. "Drão"
5. "Cores Vivas" ("A Gente Precisa Ver o Luar", 1981)
6. "Domingo no Parque"
7. "Palco"("A Gente Precisa Ver o Luar", 1981)
8. "Queremos Saber" (por Erasmo Carlos, "A Banda dos Contentes", 1976)
9. "Cinema Novo" ("Tropicália 2", com Caetano Veloso, 1993)
10. "Lamento de Carnaval" ("Quanta Gente Veio Ver", 1998, com Lulu Santos)
Maurício Pereira
músico e jornalista (São Paulo/SP)
“Difícil demais escolher 10 músicas do Gil pra passar pra vocês, o repertório dele tem coisas fundamentais, de cara eu já pensei numas 30… E não tou falando não como o Maurício músico ou compositor, não. Falo como ouvinte, como um brasileiro comum que se serviu da poesia, da sensibilidade, da inquietude filosófica, da visão de mundo desse artista, pra poder tentar entender e viver o mundo (e o Brasil) dum modo mais profundo e mais misterioso. Salve o Gil! .”
1. "Retiros Espirituais" ("Refazenda", 1975)
2. "Jeca Total" ("Refazenda", 1975)
3. "Vitrines" ("Gilberto Gil", 1969)
4. "Aquele Abraço"
5. "Louvação" ("Louvação", 1966)
6. "Raça Humana"
7. "Domingo no Parque"
8. "Batmacumba" (por Os Mutantes, "Tropicália" ou "Panis et Circensis", 1968, com Caetano Veloso)
9. "Meio de Campo" (por Elis Regina, "Elis", 1973)
10. "Tradição" ("Realce", 1979)
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As mais votadas
- "Domingo no Parque" - 7 votos
- "Drão" - 5 votos
-"Lamento Sertanejo", "Refazenda" e "Tempo Rei" - 4 votos
- "Back in Bahia" , "Parabolicamará", "Aquele Abraço" e "Filhos de Gandhi" - 3 votos
- "Abre o Olho", "Raça Humana", "Extra", "Sarará Miolo", "Nos Barracos da Cidade" e "São João, Xangô Menino" - 2 votos
- "Super-homem, a Canção", "Haiti", "Quanta", "Sitio do Pica-Pau Amarelo", "Vamos Fugir", "Zumbi (A Felicidade Guerreira)", "Emoriô", "Esotérico", "Andar com Fé", "Buda Nagô", "Metáfora", "Afoxé É", "Babá Alapalá", "Febril", "Roque Santeiro (O Rock)", "Ela", "Marginália II", "Toda Menina Baiana", "Expresso 2222", "Pela Internet", "Cores Vivas", "Palco", "Queremos Saber", "Cinema Novo", "Retiros Espirituais", "Jeca Total", Vitrines", "Tradição", "Meio de Campo", "Batmacumba" e "Louvação"- 1 voto
Agora que estamos combinados que a terra é redonda, podemos ouvir o MDC só no embalo das rotações. Mas não só em torno do sol, mas também da agulha! Saca o que vai ter hoje: Lulu Santos, Edu Lobo, Metallica, Sade, Titãs e uma homenagem aos 100 anos de Astor Piazzolla. No Cabeça dos Outros, também rola um Teenage Funclub novinho em folha. O programa hoje, 21h, vem assim: acompanhando a órbita da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e globo terrestre sobre a mesa: Daniel Rodrigues. (#foraterraplanistas e #vemvacina)
O Brasil não é só verde-anil-amarelo: o Brasil também é cor-de-rosa e verde! Se a Mangueira trouxe um alento de consciência e resistência com seu samba campeão, o Música da Cabeça segue nessa onda positiva rodando Lulu Santos, Joy Division, Ed Motta, Walter Franco, Vangelis e muito mais. E mais: “Música de Fato”, “Palavra, Lê” e um “Sete-List” cinematográfico. Vem pro lado certo da história com a gente e ouve o programa de hoje, às 21h, nas páginas reescritas da Rádio Elétrica. Produção e apresentação: o índio, negro e pobre Daniel Rodrigues.
Fotografia da série Antropologia da Face Gloriosa, de Arthur Omar (1997)
Para muitos é um pecado, ô, ô, ô Que do imposto que pagamos ao estado E do lucro que damos ao mercado Um pedaço seja destinado ao carnaval Para outros no entanto, ô, ô, ô Da magia do tambor, da cor do canto É que vem o calor que seca o pranto Em seus olhos já cansados de ver tanto mal Hoje é dia de folia Hoje eu canto pra esquecer Que a escola do bairro está sem professor Amanhã depois da festa A cidade que protesta Entrará pela fresta da porta do corredor Não adianta fugir Não adianta fugir, seu doutor Não adianta trancar a porta Não adianta fugir, seu doutor Para alguém neste momento, ô, ô, ô Sua condição de dor e sofrimento Deve ser cimentada com o cimento Do rancor, do desespero, da exasperação Para um outro, o lamento, ô, ô, ô Da triste canção levada pelo vento Pode ser uma luz no firmamento Uma noite estrelada em seu coração Não adianta fugir Não adianta fugir, seu doutor Não adianta trancar a porta Não adianta fugir, seu doutor ********************* Lamento de Carnaval (Gilberto Gil/ Lulu Santos) Ouça a música
Hoje de manhã Quando eu acordei E olhei no espelho, baby Não acreditei
Fora do tempo Fora do espaço Fora da moda, baby Eu perdi o passo
E logo eu, que era o campeão do TWIST Naquele tempo, eu era tão feliz Hoje eu não consigo impressionar Mais ninguém com isto
Ainda pensei que durasse mais um ano Até que alguém na rua me chamou de suburbano
O que fazer? Como evitar Que a onda passe Sem eu nela surfar
E logo eu que era o campeão do TWIST Radical chic... Vamp. Vanguarda. Psicodélico retrô
Nouvelle Vague Velha cascata Um papo antigo que furou! A nova droga O novo olhar Me diga quando E com quem ir A que lugar
Em que pensar Como me sentir O que beber Quem entregar O que enrustir
E logo eu que era o campeão no DISCO Naquele tempo, eu era tão feliz Hoje não consigo impressionar Mais ninguém com isto ********************* "Twist (Disco)" Lulu Santos Ouça: Lulu Santos - "Twist (Disco)
Sinceramente pensei que havíamos perdido Gal Costa. Por quase duas décadas, ela,
uma das maiores cantoras do Brasil e do mundo havia se afundado numa fase
obscura de falta de criatividade e trabalhos opacos que nem a voz cristalina
conseguia impulsionar. Parcerias ruins, projetos mal elaborados, repertórios
duvidosos, ações de marketing ineficientes. Tudo contribuía para pior a ponto
de quase tirar o brilho da intérprete de tantas glórias e êxitos. Porém, em
2012, renascida das cinzas, Gal Costa chama o “mano” Caetano Veloso para
exorcizar seus demônios e lança o “divisor de águas” "Recanto", no qual não só
retoma uma série de referências que havia deixado no passado quanto,
obviamente, se ergue de novo musicalmente.
Não é mesmo à toa que “Recanto” tenha esse título, pois de
fato a partir dele tudo mudou para Maria da Graça Costa Penna Burgos, que
completa louváveis 50 anos de carreira em 2015. E uma das mostras dessa mudança
para melhor é o novo CD “Estratosférica”,
cuja turnê passou por Porto Alegre numa memorável apresentação da baiana e sua
banda de jovens rapazes. Aliás, a nova geração é que, sob a batuta dessa
experiente cantora, dá o tom dos novos trabalho e show. A começar pela direção
musical, a cargo de Pupilo (Nação Zumbi), certamente responsável em boa parte
pelo tom de rock do show. Igualmente, o repertório é recheado de canções de
compositores de agora, como Mallu Magalhães, Marcelo Camelo, Criolo, Zeca Veloso
(sim, filho de Caetano!) e Alberto Continentino.
Maravilhosamente bem iluminado e com uma Gal em boa forma
física e principalmente vocal, “Estratosférica” é uma aula de construção de
repertório e conceito de espetáculo. Mesclando as novas músicas com sucessos e
clássicos da carreira, Gal não faz apenas o que se espera como, assim, reassume
a função que sempre foi sua desde que se tornou a revolucionária resistente do
tropicalismo e a dona de hits incontestes das rádios: a de servir de canal
transformador entre o novo e o tradicional na música brasileira. Afinal, foi
ela uma das principais responsáveis por gravar, nos anos 60 e 70, os então
jovens Caetano, Gilberto Gil, Tom Zé, Jards Macalé, Luiz Melodia, Jorge Ben e
vários outros. stoneano “Sem medo nem esperança”, música
do novato Arthur Nogueira com poesia do veterano Antonio Cícero dando o recado
pela intérprete: “Nada do que fiz/ Por
mais feliz/ Está à altura/ Do que há por fazer” (assim é que nós gostamos
de ver, Gal!). Esta emenda com “Mal Secreto”, de Jards e Waly Salomão, gravada
por ela no histórico “Fa-Tal” ou “Gal a Todo Vapor”, de 1971. Voltando mais no
tempo, Gal revive o ápice do tropicalismo com “Namorinho de Portão”, de Tom Zé,
que ganha arranjo tão parecido com o de 1969 que a guitarra de Guilherme
Monteiro soa até com aquele distorcido rasgado de Lanny Gordin. Grande momento.
Gal e sua excelente banda.
Nessa linha, o show começa detonando com o rockzão
Como todo bom concerto de rock, a base harmônica está na
guitarra, que ganha ora peso ora groove, auxiliado pela bateria de Thomas
Harres, pelo baixo de Fábio Sá e, principalmente, pelos teclados do ótimo Maurício
Fleury, ora modernos ora retrô-psicodélicos, servindo como elemento climático e
de textura. Soa assim a versão de outro clássico, “Não Identificado”, de Caetano,
cujos efeitos do sintetizador cobrem muito bem a orquestração intensa e
espacial de Rogério Duprat da original. “Pérola Negra”, de Melodia, é outra das
antigas que conquista o público. As canções novas não deixam, no entanto, nada
a dever para as já consagradas. É o caso de “Quando você olha pra ela”, gostoso
samba-rock assinado por Mallu com cara do melhor Jorge Ben: melodia suingada, linha
vocal assimétrica e a docilidade romântica de uma “Ive Brussel” e “Moça”.
Aliás, Benjor é reverenciado mais de uma vez: primeiro numa embasbacante
“Cabelo”, parceria com Arnaldo Antunes que ganha arranjo de funk-rock pesado, tipo Parlaiment/Funkadelic (o que é aquilo!). Lá no fim, Babulina volta em alto
estilo para encerrar o show com uma improvável (mas maravilhosa) "Os Alquimistas Estão Chegando", misto de indie
e samba-soul (o que é aquilo, de novo!).
Voltando às novas, ainda surpreendem a doce bossa-nova “Pelo
fio”, de Camelo, com ares de Carlos Lyra ou Ronaldo Bôscoli; “Ecstasy”, joia
nova de João Donato e Thalma de Freitas; a interessante faixa-título, de Maria
Poças, Romário Oliveira Jr. e Barreto; e, principalmente, a genial “Por baixo”,
um malicioso baião eletrônico de Tom Zé encomendado pela conterrânea: “Por baixo do vestido: a timidez/ Baixo da
timidez: a seda fina/ Baixo dela: uma nuvem de calor/ Baixo de calor: um
perfume da China...”. Ainda, a bela “Você me deu”, de Caetano e seu filho
Zeca, revisitando o conceito de “Recanto”; “Muita Sorte", última música
escrita pelo saudoso Lincoln Olivetti (morto em 2014), "Amor, Se
Acalme" (de Marisa Monte, Arnaldo e Cezar Menezes); a sensorial “Anuviar”,
de Moreno Veloso e Domenico; e a rica “Dez Anjos”, parceria de Criolo e Milton Nascimento, também feita especialmente para Gal. Aliás, para abrilhantar a
noite no Araújo Vianna, Bituca, na cidade para um show que faria dali a dois
dias, foi prestigiar a amiga.
Como nos velhos tempos, voz e violão.
O clima especial de quem está reverenciando sua própria obra
faz com que a artista passe por pontos importantes, e Caetano está presente aí
novamente. Além de ser personagem fundamental no resgate da companheira de
Doces Bárbaros e o único a ter quatro composições no set-list, é dele ainda outro feito: a primeira canção gravada por
Gal (ainda como Maria da Graça), “Sim, Foi Você”, em 1965. Para tocá-la, a
própria volta a empunhar o violão, numa das horas emocionantes do show.
A pulsante “Casca” (Jonas Sá e Alberto Continentino), das
melhores do show e que novamente remete ao tom kratrock de “Recanto”, fecha muito bem com o hino “Cartão Postal”,
de Rita Lee e Paulo Coelho, resgatada com muita sensibilidade por Gal. É o que
acontece também com “Arara”, de Lulu Santos, e no desbundante blues de “Como 2
e 2”, em que a cantora repete a performance que faz com que sua interpretação
seja tão definitiva quanto a de Roberto Carlos. Por falar em Roberto, é a
parceria dele com Erasmo Carlos escrita em homenagem à própria em 1969, o
sucesso “Meu nome é Gal”, que fecha o show no bis. Ainda teria mais um
impressionante arranjo, este para o samba dor-de-cotovelo de Lupicínio Rodrigues “Vingança”, que vira um bolero modernista, para encanto dos gaúchos.
Foi mais um show deste histórico momento de comemorações de
50 anos de carreira e/ou de 70 anos de idade, aos quais já presenciei de dois
anos para cá de Caetano e Gil (tanto juntos quanto separadamente), Milton, Maria Bethânia e da norte-americana Meredith Monk. Ou seja: a celebração de uma
geração que, na faixa ou acima dos 70 anos (ponham-se aí os Rolling Stones, Paul McCartney, Stevie Wonder, Bob Dylan e outros precursores), ainda nos tem
muito para dizer. E Gal, para sorte de todos, voltou ao time de forma inteira. Total.
Legal. Fa-tal. Estratosférica.
Meu
amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”.
Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse
artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me
ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que
apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPM, Legião Urbana, Titãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam.
Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em
1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um
dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me
dava condições de perceber com clareza as ricas construções
melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional
de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o
mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua
obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas
versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e
“Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era,
evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais
atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular
que se apresentava à minha frente.
E
teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O
Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a
grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o
eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me
fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de
1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal
bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste
filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a
produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no
videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o
antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do
álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração
Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe),
onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz
e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de
leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões
e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente
verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão
discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem
Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu
não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de
diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava
Caetano.
“Fora
da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente
rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit
dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da
frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora
da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o
português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando
vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto.
Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse
de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A
do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje.
Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os
dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa
que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia
do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por
Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão,
Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas
essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao
repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz
a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos
populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental.
Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente
os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O
povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da
maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o
eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa
literatura.
O
próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo
destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento
'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente
admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube
restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é,
todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores
nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral
dos trovadores medievais”.
Minhas
emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais
velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional
que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas
arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o
cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível
não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol
me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”,
ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu
cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais
depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e
espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem”
e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os
versos.
Igualmente,
toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região
de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista
celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom,
ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas,
boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”),
cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos
e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná
Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas);
e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de
cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros
músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de
interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.
Dando
uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela”
carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com
Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça
avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com
sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação,
cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu
piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões
exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas
magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo
vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da
guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de
puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao
dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes
externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da
vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica”
“Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”,
de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme
“São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo
estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak,
nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia”
(1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do
memorável disco "Transa", de 1972.
Se
“Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa
Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem.
Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da
tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente
atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre
vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo
que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe
recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a
tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que
cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final,
depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de
trompete bem jazzístico.
Viro
de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a
versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”,
em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça
extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível
técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida,
“Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante
arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o
ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e,
principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o
compositor japonês mais brasileiro da world music. São os
efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção,
que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.
Tanto
quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a
professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e
com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive
minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O
significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito
parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra.
Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas”
e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim
Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no
caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa”
– ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para
o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz:
“Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/
Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades
e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e
centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado
exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um
fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter
e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou
um sinal” por ser uma “preta correta democrata social,
racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno
(mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes
como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um
erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.
O
clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e
contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima
do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras
parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de
Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa,
carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante
melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são
de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as
árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu,
ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das
águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu
tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas
em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).
Não
deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com
direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das
mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada)
Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas
na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido
sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu
do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma
aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de
libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que
descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida
que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas:
primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal
precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos
depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os
microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch
Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de
corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o
pernambucano mais norte-americano da world music.
Canção
irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria
gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e
suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão
o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para
finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos
por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano
desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de
aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e
em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas
parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô”
é tão representativo que passou a servir como referência para
outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de
repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa
resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como
os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a
musicalização de autores da literatura como tema principal do
projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco)
ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de
“Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii
et Zie”).
Quanto
a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior.
Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no
antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida.
Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade
estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto
Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se
interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver
um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração
do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto,
mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei
pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor
por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.
vídeo de"Fora da Ordem",Caetano Veloso
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FAIXAS:
1.
Fora da ordem
2.
Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3.
Itapuã
4.
Boas vindas
5. Ela
ela (Veloso/Arto Lindsay)
6.
Santa Clara, padroeira da televisão
7.
Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8.
Neide Candolina
9. A
terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O
cu do mundo
11,
Lindeza
todas
as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.