Duas das edições mais conhecidas de "Tabula Rasa": ECM e DG
“A música de Arvo Pärt é como bater em uma parede e um buraco aparece nela, onde você pode ver um novo mundo do qual você não tinha a menor ideia de que existia.”
Thom Yorke
“Pärt dá espaço para o ouvinte, e ele pode entrar e viver ali.”
Björk
O século 21 decretou a morte da música erudita. Dos poucos compositores que restaram dos importantes para a história dessa tradição secular, quase todos sucumbiram. O começo do novo milênio os viu, um a um, se despedirem: Luciano Berio (2003), György Ligeti (2006), Karlheinz Stockhausen (2007), Pierre Boulez (2016), Sir Peter Maxuell Davies (2016). Até mesmo os “trilheiros” John Williams e Philip Glass ficaram sozinhos com a ida, praticamente nas duas últimas décadas, de Jerry Goldsmith (2004), Ennio Morricone (2020) e, mais recentemente, Ryuichi Sakamoto (2023).
Após séculos de permanente produção, de obras-primas da humanidade, de sublimações, de revoluções, de genialidades, de invenções de mundos, a arte musical clássica, enfim, se desgastava. Da era antiga ao Renascimento, do Barroco ao Romantismo, do Modernismo às vanguardas, parece que nada mais restara para se apresentar, entender, aprender ou subverter. Algo haveria de salvar a música clássica desta crise. Mas o quê? A resposta estava na batuta do maestro e compositor estoniano Arvo Pärt, o último bastião da música clássica mundial, que completou 90 anos em 2025. Sua obra-símbolo: “Tabula Rasa”, de 1977, marco na história da música do século 20 e talvez a última grande obra da música erudita – até aqui.
Pärt é um desses compositores cuja produção criativa mudou significativamente a forma como se entende a natureza da música. Em 1976, após anos de pesquisa, interrupções e introspecção, e por ter passado pelos mais variados estilos (neoclassicismo, dodecafonia, serialismo, sonorismo, colagem e aleatoriedade), ele criou uma linguagem musical única chamada tintinnabuli (latim para "pequeno sino"), a qual define seu trabalho até hoje. A técnica, em essência, une duas linhas monódicas de estrutura – melodia e tríade – em um conjunto inseparável. Ela cria uma dualidade original de vozes através da qual confere um novo significado aos eixos horizontal e vertical da música, ampliando a percepção da música tonal e modal em seu sentido mais amplo.
Claro que, como todo compositor talentoso da União Soviética comunista, a exemplo dos conterrâneos Shostakovitch, Prokofiev e Stravinsky, uma vez que sua Letônia só se emancipara do Bloco em 1991, Pärt teve problemas com o governo. Por um lado, ele era visto como um dos compositores mais originais e notáveis de sua geração. Por outro, muitas de suas obras compostas na década de 1960 foram duramente criticadas, sobretudo “Credo”, de 1968, pelo impacto "perigosamente" forte que teve sobre o público. O texto em latim "Credo in Iesum Christum", constante no libreto, era uma confissão aberta e sincera do compositor de sua religiosidade cristã, o que foi considerado provocativo e contrário ao regime soviético da época. “Credo” foi praticamente proibida e Pärt, assim como sua música, caiu em desgraça por vários anos.
Curiosamente, foi justamente nesse período de reclusão e crise interna, o qual durou até 1976, que fez o compositor chegar à sua autoexpressão. Convertido à Igreja Ortodoxa, em 1972, e voltado intensamente para a música antiga, dedicando-se ao estudo do canto gregoriano, da Escola de Notre Dame e da polifonia renascentista, Pärt chega, enfim, ao tintinnabuli. “Tabula Rasa” (“Folha em Branco”, na tradução do latim), dos primeiros trabalhos resultantes desse longo processo do autor, não poderia ter um nome mais significativo.
Concerto de pouco menos de meia hora de duração escrita para cordas, piano preparado e dois violinos solo, "Tabula Rasa" contém apenas dois movimentos: “Ludus” e “Silentium”, que se complementam entre si em estrutura e expressão. “Ludus” (“Jogo”) mostra os dois violinos solo brincando em campos de lá menor, suavemente a princípio (após sua declaração fortissimo do centro tonal) e frequentemente interrompidos por silêncios. O “jogo” cresce em volume e atividade rítmica até explodir em uma cadência climática, um turbilhão de arpejos para os solistas e o piano preparado (ou seja, parafusos de metal e feltros inseridos entre as cordas do piano, produzindo "um efeito de cor tonal alienada"). A sensação gerada por Pärt neste movimento é de elevação. O Deus de Pärt está ali, definitivamente. Impossível o ouvinte ficar passivo à sua força emocional.
Já “Silentium” (“Silêncio”) é puro "tintinnabulismo": com elementos que conversam com a primeira parte, traz suaves oscilações triádicas sobre escalas no baixo. No final, os instrumentos vão desaparecendo gradualmente à medida que a música penetra nas profundezas. Densa, contristada, absoluta de espírito. Sem pressa em sua fé e expressividade.
Pärt e seu tintinnabuli influenciariam grande parte da música contemporânea, como Björk, Steve Reich, Radiohead, PJ Harvey e Nick Cave, que celebram ainda outras obras marcantes do compositor como "Spiegel im Spiegel" (1978), "Cantus in Memory of Benjamin Britten" (1977), "Collage über BACH" (1964) e "Te Deum" (1993). Diferentemente de outros inventores de técnicas composicionais modernos, como o jazzista norte-americano Anthony Braxton e o modernista lituano Osvaldas Balakauskas, cujos métodos são tão intrincados como exclusivos, Pärt, com seu proveito dramático dos silêncios, os ataques poderosos, o uso estratégico das dissonâncias e a expressão de uma profunda espiritualidade, alcançou o coração das pessoas. Se a música erudita tal qual a humanidade conhece acaba em Pärt, ao menos simboliza um final à altura. Mais do que isso, um final em que, curiosa e simbolicamente, termina onde tudo começou: nos primórdios da humanidade. Numa "tabula rasa".
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O CD "Tabula Rasa", editado pela Deutsche Gramophon em 1999, traz, além deste concerto, "Fraters", composição da mesma fase e ano que a obra principal, 1977, e a "Sinfonia nº 3", de 1971, considerada uma composição precedente do ainda não criado método composicional pärtiano. Já a versão da ECM, que detém os direitos da obra do compositor estoniano, editada em 1984, reúne duas versões de "Fraters": uma com a luxuosa execução de Gidon Kremer, ao violino, e Keith Jarrett, ao piano, e outra com arranjo da Orquestra de 12 Celistas da Filarmônica de Berlim. Inclui também "Cantus In Memory of Benjamin Britten" (Orquestra Staatsorchester de Stuttgart) e, claro, a própria "Tabula Rasa", que ganha execução da Lithuanian Chamber Orchestra, sob regência de Saulus Sondeckis, piano preparado pelo pianista e compositor russo Alfred Schnittke e violinos de Gidon Kremer e Tatjana Grindenko.
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FAIXAS: Ed. Deutcsche Gramophon:
1. "Fratres" - For Violin, String Orchestra And Percussion (Roger Carlsson, Gil Shaham, Göteborgs Symfoniker, Neeme Järvi) - 09:43 a. "Ludus: Con moto" - 09:50 b. "Silentium: Senza moto" - 13:17 3. "Symphony No.3" (Göteborgs Symfoniker, Neeme Järvi) a. "Attacca" - 06:59 b. "Più mosso Attacca" - 09:09 c. "Alla breve" - 09:09
As redes sociais caíram geral? Sem stress, porque o MDC, ah! este não apresenta falha! Carregando todas as informações, o programa vai acionar Björk, Fellini, Wayne Shorter, Eletrodomésticos e mais. Tem também os quadros fixos e um "Cabeção", que traz uma nova obra do compositor norte-americano Steve Reich. Sem pane, a gente vai ao ar pontualmente às 21h na conectada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e sistema anti-bug: Daniel Rodrigues. E não e te esquece de votar na gente para o Prêmio Press: Música da Cabeça (Programa de Rádio) e em Daniel Rodrigues (Apresentador de Rádio): www.revistapress.com.br/premiopress/
“’Glassworks’ foi meu álbum de estreia em uma grande gravadora. Esta música foi escrita para o estúdio de gravação, embora várias peças logo tenham entrado no repertório do Philip Glass Ensemble. Uma obra de seis ‘movimentos’, ‘Glassworks’ pretendia apresentar minha música a um público mais geral do que estava familiarizado com ela até então”.
Philip Glass
O início dos anos 80 foi ao mesmo tempo desafiador e marcante para o compositor, pianista e maestro norte-americano Philip Glass. Reconhecido como um dos principais autores da esfíngica música contemporânea, o cara já tinha composto de um tudo àquelas alturas e nos mais variados formatos: ópera, concerto, sinfonia, madrigal, trilha sonora, sonata e estudos, de instrumentos solo à grande orquestra. Entretanto, quanto mais produzia, mais parecia afastar-se do gosto comum. Na mesma proporção que quebrava barreiras da música tonal secular, mais seu trabalho se tornava complexo e intelectualizado. Duas de suas mais celebradas obras, “Music in 14 Parts“ (1971-74) e “Einstein on the Beach” (1976), por mais revolucionárias e arrojadas que sejam até hoje – não raro, servindo de influência para grupos de rock –, eram impossíveis de serem executadas no rádio, visto que têm, respectivamente, 4h e 3h20min de duração cada. Como sorver, então, ideias que às vezes soavam demasiado complexas ou até inaudíveis aos ouvidos populares? A resposta veio com “Glassworks”, de 1981.
Havia, entretanto, um bom caminho pelo qual Glass precisaria percorrer para desfazer a imagem de “cabeção”. Nascido em Baltimore, em 1937, estudou, nos anos 60, na Universidade de Chicago, na Juilliard School e em Aspen com Darius Milhaud. Tudo que qualquer músico adolescente e em formação gostaria, certo? Não para o subversivo Glass. Aspirando outras dimensões sonoras, como seus contemporâneos Terry Riley e Steve Reich, as vias tradicionais não lhe bastavam. Insatisfeito com grande parte do que então se passava na música moderna, não via em nada daquilo algo que compreendesse as referências a Stockhausen, Boulez, Cage e Lou Harrison, mas também ao rock, ao jazz e à música do Oriente. Mudou-se, então, para a Europa, onde estudou com a lendária pedagoga Nadia Boulanger (que também ensinou Aaron Copland, Virgil Thomson e Quincy Jones) e trabalhou em estreita colaboração com Ravi Shankar. Retorna a Nova York em 1967, aí sim sabendo o que queria: formou a famosa Philip Glass Ensemble – formada por sete músicos, ele aos teclados, e uma variedade de instrumentos de sopro, amplificados e alimentados por um mixer – e mudou para sempre a forma como se percebe música no Ocidente.
O novo estilo musical que Glass forjou acabou sendo apelidado de "minimalismo", termo ao qual o próprio nunca gostou. Ele prefere chamar-se de um compositor de “música com estruturas repetitivas”. Baseado na reiteração extensa de fragmentos melódicos breves e elegantes que se entrelaçam e saem de uma tapeçaria auditiva, sua música imerge o ouvinte em uma espécie de clima sônico que torce, gira, circunda e se desenvolve. Sua técnica composicional própria de variações engendra uma mudança rítmica constante, somando ou substituindo notas, e fazendo com que segmentos de uma frase se repitam para criar múltiplas dela mesma – duas, três, quatro, cinco, seis vezes – antes de se contrair a dimensões novamente administráveis, o que estabelece, igualmente, relações harmônicas muito peculiares.
Porém, passadas quase duas décadas desde que se tornara um dos principais nomes de sua geração, Glass permanecia admirado pela crítica, mas um ilustre desconhecido. Até na música pop ele havia se ensaiado. Próximo do músico e produtor Kurt Monkacsi, Glass “apadrinhou” junto com este a new wavePolyrock, a quem produziu e fez participações. Dizem nos bastidores que o cérebro da banda era ele e não os irmãos Billy e Tommy Robertson tamanha é a identificação do art rock da Polyrock com a sua música, quase uma versão baixo-guitarra-bateria-teclados do minimalismo glassiano. Porém, seja por grandeza, timidez ou algum problema legal, o fato é que isso não consta nos créditos. Glass continuava, assim, na mesma encruzilhada – mas queria sair dela.
Foi então que Glass matutou, matutou e percebeu que o negócio era recorrer, exatamente, ao conceito daquilo que sua própria música continha em abissal quantidade: a síntese. Primeiro compositor desde Copland a ingressar no selo CBS Masterworks devido a seu prestígio, Glass não quis deixar essa oportunidade escapar para, enfim, se comunicar com um maior número de pessoas. A sacada foi condensar suas ideias em pequenos temas, como “peças performáticas” curtas em que conseguisse resumir suas intenções estético-filosóficas e preservasse a qualidade emocional proposta. Nasceu, assim, “Glassworks”, um sucesso de vendas para os padrões da música erudita, que celebra 40 de seu lançamento em 2021.
Capa da caixa "Glass Box", de 2008, que conta com toda a obra de Glass até então, incluindo "Glassworks", em foto clássica de Chuck Close
Em apenas seis “movimentos”, as “‘Glassworks’ são uma excelente introdução às sonoridades nítidas e pesadas, densamente embaladas, padrões que mudam lentamente e fluxo linear aparentemente imparável deste aspecto importante da música contemporânea”, como bem definiu a Gramophone Magazine. A partir deste trabalho aparentemente menos expressivo se comparado com formatos grandiosos como a sinfonia e a ópera, Glass extraiu inúmeras vezes melodias, acordes, estruturas, trechos e combinações para outras de suas obras, fosse em cinema, câmara e performance ou, até mesmo, sinfonias e óperas. Nelas, Glass produz células sonoras maleáveis e adaptáveis, como um laboratório musical próprio, da qual seguidamente recorre a fórmulas já prontas para recriações em infinitas possibilidades plásticas.
Metalinguístico, “Glassworks” abre com a lírica “Opening”, certamente uma das mais belas composições de todo o vasto cancioneiro do compositor. De uma intrincada construção, que conjuga curtos fluxos de cinco acordes do piano em compasso um ternário, “Opening” cria uma atmosfera onírica e etérea incomum, como se Chopin resolvesse inventar uma fantasia para aplicar hipnose. Capaz de alterar os sentidos, não à toa a música serve de base para “Truman Sleeps”, da trilha do filme “O Show de Truman” (1998), cuja trama percorre, justamente, os caminhos do inconsciente.
Já “Floe” é uma das mais utilizadas pelo próprio Glass em obras subsequentes suas. Impossível não lembrar de “Something She Has to Do”, da trilha de “As Horas” (2003), da trilha sonora de “A Fotografia” (2000) ou da ópera ‘Akhnaten” (1983). Sua estrutura rítmica hipnótica parece colocar quem escuta numa corrida em alta velocidade em que as imagens vão se passando em frente aos olhos rápida e repetidamente. Como lhe é característico, porém, Glass vai construindo seus elementos sonoro-sensitivos aos poucos, e quando se percebe já se está distinguindo da massa sonora (composta por 2 flautas, 2 sax soprano, 2 sax tenor, 2 trompas e sintetizador) um saxofone, que emite notas em clara dissonância com o restante, como se, depois da vertigem, percebesse que podia admirar aquela transformadora viagem. A noção de tempo, característica central da música de Glass tanto no sentido formal quanto cronológico e, por conseguinte, estético-filosófico (além de ser um dos motivos que o aproximam do cinema, cuja linguagem lida com a passagem temporal permanentemente), se estabelece de uma maneira muito peculiar em temas como “Floe”. Em contrapartida, porém, são capazes de gerar uma série de subjetividades. É através da noção de rapidez que se percebe o quanto o tempo depende da perspectiva – material ou imaterial – de quem observa.
“Islands” é outra largamente usada por Glass em outros projetos, haja vista temas como “Tearing Herself Away” ou “Sheba & Steven”, das trilhas sonoras de “As Horas” e “Notas Sobre um Escândalo” (2006), respectivamente. Ambas iguais à sua melodia, só que com leves diferenças em andamentos, tempos e notas, que muito lembram o tema de outra trilha clássica do cinema, “Vertigo”, composta por Bernard Hermann, com sua construção cíclica que provoca uma sensação de espiral, muito propícia, não à toa, a trillers de cinema como os vários para os quais Glass escreve trilhas.
Com um conjunto de madeiras, metais e sintetizador, “Rubric” formula um jorro sonoro motorizado difícil de apreender – mas extasiante de se ouvir. Próprio da música de Glass, seu sistema de ostinatos rítmicos (motivos ou frases musicais sempre repetidos) funciona de modo a provocar uma sensação instintiva de aflição, o que explica ter usado tal expediente nos terceiros e quartos movimentos de sua “DancePieces” (1987) ou para uma das sequências de “Koyaanisqatsi” (1982) que mostram as vertiginosas cenas das multidões das metrópoles em velocidade mais acelerada que a realidade, mas metaforicamente próxima da vida frenética da sociedade capitalista. Novamente, a questão do tempo. Alex Ross, em seu essencial livro “O Resto é Ruído - Escutando o Século XX”, ao descrever essa característica fundamental dos minimalistas, diz saborosamente o seguinte: “Evocam a experiência de dirigir um automóvel por um deserto vazio, as repetições em camadas da música refletindo repetindo as mudanças que o olho percebe – sinais da estrada, uma cadeia de montanhas no horizonte, o som grave e contínuo do asfalto sob os pneus”.
Encaminhando-se para o fim, “Façades” reduz o ritmo de modo a facilitar a captação do ouvido. E se na anterior, assim como em “Floe”, o som eletrônico prevalece, aqui, tal “Opening”, a matriz sonora é basicamente orgânica através das violas e cellos. O andamento adagio carrega um ar de suspense, suave e imponente. Entra um solo pronunciado e de registro estendido de um sax, elegante em suas plasticidade e severidade. Sem pressa, aproveitando cada segundo de desenvolvimento, cada som emitido. Junta-se outro sax ao primeiro, que, em jogos de volumes e tempos, articula um duo. Coisa da cabeça de um gênio. Estrutura vista posteriormente em várias de suas trilhas sonoras cinematográficas, como para os filmes “Janela Secreta” (2004) e “O Ilusionista” (2006), mas também em peças como “Songs from Liquid Days” (1986) e a “Sinfonia nº 7” (2005).
Delicada e rigorosa, “Façades” abre caminho para, mais uma vez metalinguisticamente, Glass fechar, exatamente, com “Closing”. Trata-se da versão forjada para cordas e madeiras para a inicial “Opening”, mas que muito bem se adapta a conjuntos sinfônicos, fazendo com que até nisso “Glassworks” tenha servido de célula-base para outros projetos que o músico viria desenvolver, a exemplo das orquestrações das sinfonias “Low” e “Horoes” (1996) – criadas sobre a obra de David Bowie e Brian Eno –, temas como o do filme “Hambuerger Hill” (1987) ou óperas como “Galileo Galilei” (2001).
De uma obra gigantesca em quantidade e importância, Glass tornou-se, principalmente após “Glassworks”, um raro pop star da música clássica. O que talvez explique o agrado a gregos e troianos é o fato de, mais do que comunicar-se com outras formas artísticas - principalmente o cinema, que tanto lida com as emoções das pessoas -, a sua arte tem uma profunda relação com a essência da natureza. Os átomos, as células, a vida interna dos seres e das coisas emana dos sons que produz, quase numa leitura hinduísta de vida e morte, de nascer e renascer, de comunhão entre opostos. Talvez por isso sua música tenha tamanha identificação com elementos elementares da existência, como o tempo e o espaço. Na prática, a penetração do estilo glassiano está em qualquer propaganda de automóvel minimamente premium ou comerciais institucionais dos mais diversos tipos de produto. O mais impressionante é que Glass conseguiu isso fazendo o inverso do que geralmente é comum aos estetas: ao invés de desvelar uma obra mais ampla em excertos para outras menores, foi, justamente, da mais enxuta (as “Glassworks”, somadas, não passam de 41 min), que melhor destrinchou elementos essenciais para toda uma musicografia – viva, pulsante e profícua. Mais do que um gênio da música, Glass é um sabedor da arte da abreviação.
“Lou e eu tivemos uma conversa, e se tornou muito mais importante expor o que nós dois tínhamos [de relação com Andy Warhol], criando um show com apenas duas pessoas no palco, para que todos vissem nossa história. Achei que era mais importante – quase mais importante do que a música”.
John Cale
“O que você experimenta por meio desse registro é o relacionamento entre nós e Andy. Não se trata apenas de Andy; não é apenas, ‘oh! ele fez isso, ele fez aquilo’. Quando você experimenta ‘Drella’, é sobre John e eu, é sobre mim e Andy, e é sobre John e Andy. Queremos que você conheça melhor Andy Warhol, que você o sinta como John e eu o sentimos, para que você possa vivenciar a presença dessa pessoa única e incrível e se aproximar dela.”
Lou Reed
Há quem contradiga o ditado de que “dois raios não caem no mesmo lugar”. Se for considerar a parceria entre Lou Reed e John Cale, essa máxima realmente não se aplica. Tanto pela raridade do fenômeno quanto por sua fugacidade, em todas as ocasiões em que os dois estiveram juntos ao longo de quase quatro décadas, o céu proporcionou um espetáculo irrefreável de belezas, mas também não demorou a se precipitar com violência. E isso, não apenas uma, mas duas, três vezes pelo menos. Tal como forças da natureza semelhantes e intensamente fortes, não suportam uma a outra pela tamanha atração que exercem entre si, repelindo-se mutuamente tão logo realizem seu feito.
Foi assim com Reed e Cale desde sempre. Dois dos maiores talentos de sua geração de prodigiosos jovens artistas nascidos no pós-Guerra, são figuras essenciais para a cena da contracultura nova-iorquina, que mudou os rumos da vida social na segunda metade do século XX. Isso, contudo, não impediu que as desavenças se manifestassem. Pelo contrário, era-lhes como dar mais munição. Já na Velvet Underground, histórica banda que cofundaram com Moe Tucker e Sterling Morrison nos anos 60 e espinha dorsal do rock junto a Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones, isso já acontecia. Mesmo com a alta sinergia artística que os unia e os colocava como o principal núcleo criativo do grupo – capaz de inventar algumas das mais elevadas obras da música contemporânea, como “Heroin”, “Venus in Furs” e “Sister Ray” –, as diferenças falavam mais alto do que as semelhanças. A Velvet continuou com Reed até este partir para sua própria carreira no início dos anos 70, mas Cale, incomodado com o parceiro, não suportou mais do que dois discos e saltou fora um ano após a estreia no clássico "Disco da Banana" para voos solo e na produção musical.
Já veteranos, os integrantes da banda promoveram uma nova aproximação somente 25 anos, em 1993, para o memorável show “Live MCMXCIII”. A turnê comemorativa, que vinha emocionando fãs por onde passava, entretanto, mal havia começado e teve de ser subitamente interrompida por causa de brigas entre os dois líderes. De novo os iluminados raios se chocavam e faziam fechar o tempo, transformando a situação festiva em um dilúvio de ferozes descargas elétricas.
A Velvet com Nico: apadrinhados por Andy
Somente um milagre da natureza para fazer com que tanto talento (e ego) pudesse permanecer minimamente em harmonia por algum tempo, mesmo que curto, sem que se provocasse imediatamente mau-tempo. Esse milagre tinha nome e lhes era um velho conhecido desde os tempos das performances multimídia da Exploding Plastic Inevitable, nos primeiros anos da Velvet. Chamava-se Andy Warhol. Fazia já três anos que o pai da pop art e padrinho artístico da turma havia dado adeus, deixando neles uma sensação de dívida para com a figura que, junto com eles – mas também abarcando-os –, havia transformado os cânones da cultura mundial para sempre com sua proposta artística ousada e conectada com a pós-modernidade. No entanto, ainda precisou que um segundo raio teimasse em se lançar no mesmo ponto: praticamente um ano depois, a cantora e modelo alemã Nico, parceira do histórico primeiro disco da Velvet e musa musical de Cale por vários anos, também morria. A despedida de Nico, que dera voz a alguns das principais composições da dupla, como “All Tomorrows Parties” e “Femme Fatalle”, deixou a Cale e Reed mais do que evidente que aquele 1990 lhes trazia um aviso do firmamento. Sim, precisavam unir-se. Foi então que, entre tempestades e quietações, nasceu “Songs for Drella”, o qual completa 30 anos de lançamento.
Precavidos do próprio histórico, a combinação foi a seguinte: por três meses, os dois – e somente os dois –, suportariam o confinamento e baixariam a cabeça para comporem conjuntamente um repertório inteiramente novo em memória a Andy. Três meses apenas. O que talvez seja muito pouco tempo para alguns, foi mais do que suficiente para que os conflituosos, mas não menos experientes e afinados companheiros, compusessem uma obra-prima única em vários aspectos. A começar pela ocasião em si, para a qual Reed e Cale conceberam também algo especial, uma vez que sabiam da responsabilidade que lhes cabia: somente eles podiam cumprir aquela tarefa. Embora a vastidão da influência de Andy para a arte, estabelecendo nesta um "antes" e um "depois" de si, eram Reed e Cale seus verdadeiros herdeiros na música. Por isso, entendiam que a homenagem a Andy pedia pompas. Afinal, somente um indivíduo ímpar na humanidade poderia juntar Drácula com Cinderella (daí, o apelido “Drella”). Com isso, “Songs” saiu não apenas um disco, mas uma ópera-rock, que respeita toda a estrutura clássica tal como o rock havia incorporado ao narrar uma história de apogeu e miséria e final necessariamente trágico. Outra excepcionalidade é ter apenas os dois no recinto tocando, cantando, gravando, mixando e produzindo a si próprios. O resultado é um disco de sonoridade minimalista mas altamente expressiva, em que não há percussão, sopros, orquestra ou outras vozes, apenas as cordas vocais dos dois falando pela de Andy e intercalando-se e a de seus instrumentos: guitarras, baixo, viola e piano/teclados.
Cale, Reed e Andy em 1976: relação antiga e muito cúmplice
Para narrar a trajetória de Andy, Cale e Reed determinam, então, 15 movimentos em que se ouvem a sofisticação do art rock, a fúria do punk, a ousadia da vanguarda, a tradição clássica europeia e o palpável da canção pop. Tudo que Andy lhes legou em ideias e conceitos, desde a Velvet até as suas carreiras solo, era revisado e revisitado de forma altamente madura e concisa, mas também emocional e devota. Num teor erudito, a provocativa “Smalltown” começa como uma espécie de minueto ternário em allegro em que a voz de Reed faz resgatar o desejo do jovem Andy antes de mudar-se para a cosmopolita Nova Yprk nos anos 50. Gay, estranho e totalmente deslocado em sua Pittsburgh natal, ele tinha uma única certeza: a de que queria sair dali. “De onde é que Picasso vem/ Não há Michelangelo vindo de Pittsburgh/ Se a arte é a ponta do iceberg/ Eu sou a parte mais ao fundo“.
A percepção de que o destino de Andy era mudar os padrões da sociedade começa a ser desenhada a partir do momento em que ele pisa na Big Apple, mais precisamente quando “abre a casa” na 81st Street, em Manhattan, para receber toda a fauna de artistas e doidões de uma Nova York em plena ebulição criativa. Era a Factory, seu lendário estúdio de onde a arte ocidental entrou de um jeito e saiu de outro para nunca mais ser a mesma. A dupla dá a este momento ares litúrgicos e ambientais, mas ao mesmo tempo recorre ao minimalismo nas três notas repetidas que formam o núcleo melódico de "Open House", o mesmo que usaram em "Waiting for the Man", outra sua do repertório da Velvet.
Enquanto Cale canta a busca de Andy por patrocínio junto aos mecenas endinheirados, a quem apresenta um portfólio com suas embalagens de Brillo e uma tal banda chamada Velvet Underground (“Style It Takes”), Reed, na sequência, sob um ruidoso e minimalista rock, traz o artista em atividade (“Work”) fazendo lembrar o som hipnótico e sequencial de contemporâneos de anos 60, mas estes, da cena avant-garde da Califórnia, Philip Glass e Steve Reich. Logo começam, entretanto, os problemas. “Trouble With Classicists”, numa melodia neo-renascentista quase declamada por Cale, traz as idiossincrasias entre a arte moderna e classicismo, bem como o embate com os críticos.
A efervescência nova-iorquina agora está nas veias de Andy. A intensa “Starlight”, com as guitarras distorcidas de Reed e o toque atonal do piano de Cale, fala da casa LGBT que abrigou seus pares: Ingrid, Viva, Little Joe, Baby Jane, Eddie S. “Starlight aberto/ Luz das estrelas abre sua porta/ Isso se chama Nova York/ Com filmes na rua/ Filmes com pessoas reais/ Que você recebe é o que você vê”. Desses personagens reais surgem as famosas fotografias e serigrafias como as que imortalizou de Marylin Monroe, Elvis Presley ou Truman Capote. O genial e inquieto rapaz do interior agora se encontra totalmente consigo mesmo. Criador e criaturas se homogeneízam. Para Andy, cantado no elegante timbre de Cale numa das mais brilhantes do disco, “rostos e nomes são tudo a mesma coisa”. Kitsch, celebridades, sexo, drogas, noite, ruas. Em "Faces and Names" a arte sai pelos poros, seja pela pintura, cinema, teatro ou música. São os “15 minutos de fama” e muito mais. Andy, no auge, prossegue formando novas figuras, como Reed canta noutra maravilha de “Songs”, “Images”. A viola ao estilo La Monte Young de Cale e a guitarra com efeitos de pedal de Reed formam um corpo dissonante só para registrar que, além do figurativo, o abstrato também integra o repertório pictórico do artista visual.
A dupla em 1990 na rara reunião para homenagear o pai da pop art
Tanta exposição resulta na primeira grande crise, fato presente nas cinco faixas seguintes, que é a tentativa de assassinato que Andy sofreu da feminista radical Valerie Solanas, a qual se sentira ofendida com ele em razão de um desacerto profissional. A melodiosa “Slip Away (A Warning)” fala justamente do conselho de amigos para que fizesse o movimento inverso do que vinha procedendo: ao invés de “open house”, fechar seu estúdio. Pressentimento do pior. A barra segue pesada com “It Wasn't Me”, em que Andy tenta convencer Solanas a não se suicidar e de que ele não tinha culpa. O tiro, literalmente, saiu pela culatra: em 3 de junho de 1968, ela invade a Factory armada e desfere três tiros contra Andy, o que lhe deixou sequelas físicas e emocionais para o resto da vida. “I Believe”, outra ótima, narra com detalhes e urgência a cena do atentado, da chegada dela ao local à agonia de Andy no hospital. Solanas, que passou três anos na prisão pelo ocorrido, morreria 14 meses depois de Andy (e dois antes de Nico) em abril de 1988.
O belo country “Nobody But You” versa ainda sobre o traumático episódio (“Eu realmente me importo muito/ Embora pareça que não/ Desde que eu fui baleado/ Não há ninguém além de você”), encaminhando o musical para um desfecho, como se sabe, melancólico como em todas as óperas. Na discursiva e etérea “A Dream”, Cale traz sua veia new age e neoclássica captada junto a outros parceiros, como Terry Riley, Brian Eno e Kevin Ayers. A letra é um fluxo de pensamento de Andy, cuja descrição de um sonho traça um panorama de vários momentos de sua biografia: os primeiros anos, a Velvet, pessoas de convivência, a amizade com Reed e Cale, o incidente na Factory e as feridas que a vida lhe trouxe. A indagação: “Puxa, não seria engraçado se eu morresse neste sonho antes que eu pudesse inventar outro?”, quase ao final da faixa, denota o pressentimento de que os últimos traços de um artista sublime estavam sendo dados.
A arquitetura narrativa de “Songs” - que mantém um exemplar equilíbrio entre densidade e leveza, tonalismo e dissonâncias, agitação e calmaria, classicismo e vanguarda, agressividade e lirismo - surpreende mais uma vez na virada da contemplativa e extensa “A Dream” para o blues ultramoderno “Forever Changed”, talvez a mais impactante de todo o álbum. Ciente da proximidade da morte, Andy compreende igualmente a sina de todo grande artista: a permanência do seu legado. “Eu fui”, mas tudo “mudou para sempre”. A consciência da eternidade. Se Cale emenda as duas anteriores, é Reed quem tem o privilégio de desfechar este réquiem. Isso porque, ao invés de prosseguirem a narrativa na terceira pessoa, como que falando pela voz de Andy, são as próprias palavras de Reed que compõem a letra de“Hello It's Me” numa emocionante carta de despedida. “Andy, sou eu, não te vejo há um tempo/ Eu gostaria de ter falado mais com você quando você estava vivo”, abre dizendo na singela balada, mais uma como “Femme Fatale” e “Sunday Morning” composta pelos dois em meio aos vários proto-punks raivosos e sinfonias ruidosas dos tempos de Velvet.
Terminada a gravação, também não durou muito a turnê de “Songs”. Após algumas apresentações, Cale e Reed separaram-se novamente, como raios excelsos que entram em choque depois de mal se aproximarem. A última ocasião, o reencontro da Velvet, três anos dali, foi sentenciada com a partida de Sterling Morrison dois mais tarde e a do próprio Reed, em 2013. Antes da tormenta, contudo, o tempo colaborou para que registrassem este impecável e sui generis disco, que evidencia o quanto figuras como Andy Warhol fazem falta sempre. E por quê? Porque, como um Michelangelo, um Mozart, um Picasso, um Shakespeare, ícones revolucionários invariavelmente deixam lacunas impreenchíveis, simplesmente. Ouvir “Songs” hoje, a três décadas de seu lançamento, dá a dimensão do que existências como as de Andy, Reed, Nico e Morrison significam depois que partem e da importância dos que ficam, como Cale e Moe. Raios muito raros que, incrivelmente, caíram no mesmo lugar. Justo por isso que o disco tenha se concluído com estes versos: “Bem, agora Andy, acho que temos que ir/ Espero de alguma forma que você goste deste pequeno show/ Eu sei que é tarde, mas é a única maneira que eu sei/ Olá, sou eu/ Boa noite, Andy”.
Show de"Songs for Drella", deLou Reed e John Cale (1990)
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FAIXAS:
1. “Smalltown” - 2:03
2. “Open House” - 4:16
3. “Style It Takes” - 2:54
4. “Work” - 2:36
5. “Trouble With Classicists” - 3:40
6. “Starlight” - 3:26
7. “Faces And Names” - 4:11
8. “Images” - 3:28
9. “Slip Away (A Warning)” - 3:04
10. “It Wasn't Me” - 3:29
11. “I Believe” - 3:17
12. “Nobody But You” - 3:44
13. “A Dream” - 6:33
14. “Forever Changed” - 4:49
15. “Hello It's Me” - 3:03
Todas as composições de autoria de Lou Reed e John Cale
Mafalda, fica de boa que você não ficou sozinha: o MDC tá contigo pra tentar salvar um pouquinho as coisas. Além de falar de Quino, Zuza Homem de Mello e Eddie Van Halen, que nos deixaram esta semana, o programa hoje terá também João Gilberto, Charles Mingus, Pato Fu, Roy Orbison, Gal Costa e mais. Além disso, um Cabeção que celebra o aniversário do minimalista Steve Reich. É hoje, 21h, na Rádio Elétrica. Com produção e apresentação de Daniel Rodrigues. Lamentamos, Mafalda, mas seguimos a vida.
“Se Monk está procurando um lugar
no firmamento clássico,
é a música clássica que tem muito a aprender com ela.
Ela pode aparecer ainda mais à medida que o novo século se desenrola,
e as
gerações posteriores invejarão aqueles que conseguiram vê-la viver".
Alex Ross,
jornalista e crítico musical
“A voz humana pode muito bem ser
o Instrumento mais expressivo de todos,
capaz da mais sutil das nuance e da
exclamação mais dramática,
mas poucos exploraram toda a sua gama tão
completamente quanto Meredith Monk”.
John Kelman,
jornalista e crítico
musical
Um jornalista amigo meu, logo após assistir o espetáculo de Meredith Monkno Theatro São Pedro durante o 22º Porto Alegre em Cena, em 2015, comentou abismado com o que vira: “Meredith Monk veio de outro planeta”.
Embora entenda a força de expressão, pois em parte é um asteísmo justo, hei de
discordar dele: Monk não vem de longe, de um lugar desconhecido, mas, sim, do
próprio planeta Terra. De seus recônditos, das profundezas, da natureza mais
genuína e inobservada por nós, reles normais. Em Monk habitam uma índia shokagawe, uma japonesa enka, uma bruxa celta, uma inca quíchua,
uma indiana vadava, uma caçadora
africana, uma fêmea das cavernas. Ou, simplesmente, uma mulher, misteriosa e
mágica, moderna e atemporal, autêntica e viva.
Cunhada na vanguarda dos anos 60, a norte-americana Monk é compositora,
cantora, coreógrafa e criadora da new
opera, além de música de teatro, filmes e instalações. Uma das artistas
mais originais e influentes do nosso tempo, é pioneira da chamada "técnica
vocal estendida" e "performance interdisciplinar", que muito
caminho abriu para artistas internacionais como Björk, Elizabeth Fraser, Laurie
Anderson, Diamanda Galas e brasileiros como Arnaldo Antunes, Tom Zé e Walter
Franco. Monk cria obras que prosperam na interseção de música e movimento,
imagem e objeto, luz e som, descobrindo e tecendo novos modos de percepção. “Dolmen Music”, de 1980, considerada
uma de suas obras-primas, traz uma mostra expressiva desse caldeirão de ideias
e referências.
Contemporânea de conterrâneos como Philip Glass, Morton Feldman, Terry
Riley, Harry Partch e Steve Reich, Monk é, como estes, parte de uma linha
evolutiva da música clássica através dos séculos. Talvez até mais que eles,
entretanto, ela junta todos os tempos e estilos em um único elemento-base: a
voz. Dona de uma capacidade sintética espantosa, ela faz remontar Palestrina e Boulez num átimo. Assim, Monk destila em “Dolmen Music”peças da mais inquietante beleza. Quando muito, conta com a
participação de Steve Lockwood no segundo piano e a percussão e violino do
produtor Collin Walcott (o “CO” do Codona, grupo avant-garde formado por ele com DOon Cherry e NAná Vasconcellos nos
anos 70).
Na primeira parte, é praticamente apenas isso: voz e piano. Suficiente
para Monk, sobre melismas e vocalises, criar paisagens de som que desenterram
sentimentos, energias e memórias para as quais não há palavras. E nem precisam.
Vê-se isso num de seus clássicos: “Gotham Lullaby”, que abre o álbum. Sobre uma
delicada base de piano em contraponto, que, cíclica, engendra dois tempos de 4 compassos
para, obsessiva e incondicionalmente, voltar sempre à mesma nota, ela explora
do mais sentimental registro de soprano a sufocados gritos de desespero. Regravada
por Björk em 2015, é uma canção de ninar de um lugar fictício e obscuro – e
absolutamente interno.
Na minimalista “Travelling”, o piano, tal como já explorara em “Key”,
de 1970, se transforma em elemento percussivo para acompanhar o canto tribal,
que se vale de perfil sonoro prolongado das notas para conferir-lhes variações
de modulação, a exemplo dos gritos de guerra indígenas. Noutra hora, é a mezzo clássica que aparece, a qual
lembra por demais Liz Fraser do Cocteau Twins. Sua exploração sonora vai do som
mais gutural ao agudo nasal em exercícios vocais de difícil execução. Já “The
Tale” – que fechou sua apresentação em Porto Alegre numa engraçada performance de bruxa dos contos de
fantasia – parece brincadeira de criança, mas é de uma complexidade inequívoca.
A breve letra (“I still have my hands/ I
still have my mind/ I still have my money/ I still have my telephone…”) é
um artifício chistoso para desencadear uma peça de caráter mínimo em que Monk põe
mais uma vez sua interminável capacidade vocal a serviço da imaginação. É
impossível não visualizar uma bruxa encanecida e enrugada, pois, sobre o tema
sonoro picaresco do órgão elétrico, ela encarna a personagem, ornamentando
falas e risadas por meio de ressonâncias e modulações.
“Biography”, outra assistida no show de 2015, é uma das mais incríveis
canções escritas nos últimos 50 anos na música mundial. Não é exagero o que
digo, afinal, “Dolmen Music” como um todo é considerado um dos 20 trabalhos fundamentais
para se entender a música da segunda metade do século XX conforme aponta o
crítico e pesquisador musical italiano Piero Scaruffi. E este tema, composto em
1973, é bastantemente representativo dentro do repertório de Monk. Não à toa
sua execução deixa todo mundo pasmado como ocorrera em Porto Alegre, um misto
de estarrecimento e encanto. Nela, Monk parece sintetizar todo o sofrimento da
condição feminina neste mundo opressivo e desigual ao contar a biografia de uma
anônima e simbólica mulher. Tudo sem precisar de palavras, somente através dos
sons. O triste tema do piano faz base para o canto que vai da mais íntima
angústia à histeria. Os melismas aprontados por Monk vão pouco a pouco se
transformando, ganhando mais intensidade mas, igual e fatalmente, aproximando-se
do insano. O choro aflito é desenhado em traços dissonantes e atonais,
remetendo aos arranjos vocais lancinantes de Ligeti em “Requiem” e de
Penderecki em “Canticum Canticorum Salomonis”. A loucura avança aos limites, e
Monk passa a articular palavras sem sentido em vibratos, tremulos e glissandos.
Um pássaro ferido grita, um animal acuado na jaula grita. Há momentos em que, alucinada,
a mulher conversa consigo mesma, alternando a própria voz e tentando fazer
emergir o que ainda lhe resta de sanidade. Até sucumbir de vez. Em sustenidos,
o piano, impassível em sua melancolia, anuncia que, enfim, tudo terminou.
Música que vale ouvir e reouvir sempre.
A segunda metade do disco é totalmente dedicado à faixa-título, miniconcerto
para seis vozes, piano, violino, violoncelo e percussão. O arsenal técnico e
criativo de Monk é explorado aqui com maior complexidade, mas sem se descaracterizar
do restante. Afinal, é a voz que permanece no comando, capaz de fazer-nos
projetar mundos exóticos e sem distinção temporal. “Overture And Men's Conclave”,
primeira parte da peça, começa nas três vozes femininas e cello repetindo uma pequena célula de 4 compassos, em que a última nota
se estende. As vozes masculinas, monódicas como a dos modos gregorianas e
microtonais como a dos cantos tibetanos, entram em contracanto. O uso do “kobushi”,
vibrato lento muito usado como ornamento música japonesa, passa a dar cores
cada vez mais orientais à música, cuja intensidade aumenta, fazendo a música
avolumar-se.
A predominantemente ressonante “Wa-ohs”, na sequência, é trazida do
repertório de “Songs from the Hill/Tablet”, trabalho de Monk de um ano antes.
Novamente, a referência à música do Oriente é visível, haja vista que o coro
forma um quase um mantra de monges budistas. Percussivas, as vozes funcionam
como gongos soando. Logo após, acordes cadenciados de cello conduzem a bela “Rain”, em que os timbres femininos vão
entrando em frases esparsas até encurtarem seus espaçamentos e construírem um
andamento mutável, em que as modificações das células rítmicas vão se alterando
no decorrer e ganhando novas conformações.
Cheia, a polifônica “Pine Tree Lullaby” conta apenas com as vozes em
cascata, engendrando um canto litúrgico e zen ao mesmo tempo. Não menos
impressionante, “Calls” aproxima-se do arrojo do rock ao usar o violoncelo
sendo friccionado pelo arco, mas não na horizontal como normalmente, e sim na
direção vertical. O efeito é de um som trasteado, vibrado, atritado. Soma-se a
isso ainda as baquetas de percussão no próprio instrumento, que não necessariamente
percutem o cello, mas, sim, colocadas bem próximas às cordas, deixam-se
percutir pela vibração gerada pela esfregação da crina do arco. As vozes
retornam para a derradeira “Conclusion”, onde novamente Monk resgata o
lamentoso tema central da abertura da peça, adicionando agora gemidos, ruídos,
palavras quebradas e onomatopeias das mais diversas.
Se se pensar a obra de Meredith
Monk dentro de uma linha evolutiva da música clássica se perceberá que sua música
abarca todas as épocas. Vem desde a Idade Média, passando pelo Renascimento,
Barroco, Romantismo, Ópera, Decadentismo, Modernismo até chegar ao nas
vanguardas do século XX e todos os seus inúmeros direcionamentos. Por este ângulo,
é fácil explicar o porquê da minha emoção quando a vi no palco. Era a emoção de
estar vivenciando algo superior. O privilégio de vê-la ao vivo é como
presenciar uma ópera de Wagner regida por ele mesmo, é como escutar um recital
de Chopin com o próprio ao piano. Monk, no panteão dos compositores clássicos,
nos traz essa exploração da voz como uma linguagem que expande os limites da
composição musical na história de arte, uma linguagem eloquente em si própria.
E que nos faz identificar algo submerso em nós mesmos. Nós, esses habitantes de
um indistinto planeta Terra que Monk nos faz reconhecer.
A época de shows está ótima! Além das recentes apresentações de Jorge Benjor, no Rio de Janeiro, Toquinho & Maria Creuza, no Teatro Bourbon
Country, eGerson King Combo, na Quadra
dos Bambas da Orgia, estes dois últimos, em Porto Alegre, outras três
programações musicais interessantíssimas – e totalmente diferentes umas das
outras – estão por vir nos próximos dias e meses. E à medida do possível,
claro, vou relatando-as aqui no ClyBlog. Papel e caneta para me agendar:
28/8 – Caetano Veloso & Gilberto Gil, Auditório Araújo Vianna: Já falei num post exclusivo sobre
esse verdadeiro espetáculo histórico que Porto Alegre presenciará. Dois dos
maiores artistas da modernidade. Muita expectativa.
04/09 – Meredith Monk &
Vocal Emsemble, Theatro São Pedro: Uma das cabeças mais geniais da música
erudita contemporânea, a multiartista norte-americana abre o Porto Alegre em
Cena. Indizível o privilégio de assistir a essa que é, junto com Philip Glass,
Steve Reich e sir. Maxwell Davies, a maior compositora viva da música de
vanguarda.
19/10 – Ratos de Porão, Bar
Opinião: Pra arrematar (por enquanto), que tal o hardcore furioso do Ratos tocando na íntegra seu seminal
“Crucificados pelo Sistema”, que completa 30 anos de lançamento? A regalia não
termina aí: a abertura será d’Replicantes. Tá bom pra ti?
Alice
Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde
costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York.
Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como
ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das
obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”,
relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo.
Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música
que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo,
tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava
de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que
também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do
outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo
indica, também contrição), havia composto integralmente todas as
músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música
em todos os tempos: “A Love Supreme”.
Gravado
em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em
fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma
referência essencial não só para toda a geração posterior do
jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock
clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell,Santana,Jimi Hendrix), punks (Patti Smith,Tom Verlaine,Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob Gillespie, Moby, Peter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye,Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester
Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical,
“A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto
política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o
discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers,
quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você
entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver
pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto,
terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”,
sentencia o baixista Reggie Workman, que
tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a
criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e
pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.
O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De
fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com
saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios,
deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em
1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou
tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40,
integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria
dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie
Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird
já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu
reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico
quinteto de Miles Davis ao lado de Red
Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no
final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história
do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época),
no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa
recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à
ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.
É
justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o
impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua
época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as
experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis
e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop,
jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista
Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro
interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo
protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir
em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que
incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a
cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da
presença de Deus.
Nas
breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk,
jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se
furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças
rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por
exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e
“Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época,
também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias
gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta
formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de
vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette
Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963,
“A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O
que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá
com sua música?”, indagavam.
A
resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A
Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e
improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro
ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto
foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo
“menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a
obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade
vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do
jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de
Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock,Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como
ser espiritual.
As
quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”,
ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa
original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em
um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement”
acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da
discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros
pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma
radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em
sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto
junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma
suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é
vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação
dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de
levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas,
que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som
as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que
naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”?
Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show
multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um
passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento
e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao
microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas
vezes.
Antes,
no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de
intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e
firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta,
sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo
inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então,
ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de
sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual
remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda
sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é
característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa
desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos
ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda
ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis
Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá
para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e,
depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff
pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce
um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.
Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a
colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution”
– minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do
álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy
como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece
que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e
a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho,
engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues.
Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e
Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente
exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e
imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente,
providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando
liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto
para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu
sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones.
Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e
precisas com outras longas e ressonantes.
Cabe a
Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no
prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante –
que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey,
Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker,Keith Moon,Mitch Mitchell) –,
inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”.
Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque
caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se
incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos
timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e
bumbo.
A
“procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos
nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take.
Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na
verdade, não para de solar até o fim de sua participação na
faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e
engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma
sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando
quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus
característicos voicings, saltos de três intervalos acima da
tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia,
pura música.
Detalhe
para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece
segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico
Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe
perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando
Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no
calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas.
Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema
original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo
isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior
expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é
“A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como
diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.
Mas
não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente
cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros,
atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma
fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde
com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem
definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha
viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de
realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema
do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são
ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como
classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.
Depois
da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o
clima meditativo do início do disco vem com força total para
finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece
isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração.
Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take),
é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de
Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia
cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes
atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos
pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos
de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo,
solene e raveliano. E quem “declama”
é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de
“Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a
palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia.
Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos
do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi
salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado
o divino.
Em
vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho
fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante
entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência
que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e
“ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um
câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência
antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por
seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao
que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical
nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a
única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na
França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de
sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia
em torno de Coltrane e sua obra.
No
entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...”
foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que
se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu
lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se
entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28
anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade
o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o
legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John
Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da
vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando
alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento
de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de
John.”
Não
tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A
Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47