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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

cotidianas #791- Lila

 


Quando cheguei, ali pelas sete, a maioria do pessoal já estava lá. O Nelson falando bobagem como sempre, o Kiko com a filhinha, a Duda e a Rê fofocando na mesa, o Josué, o dono da casa, na churrasqueira e a mãe dele, a dona Leda, servindo os tira-gostos. Cheguei, cumprimentei o pessoal, o Nelson me zoou pelas entradas, pela barrigota, sentei, belisquei um petisco, demos umas risadas e tudo mais. Já tinha dado por completo, na minha contagem, o time dos convidados, quando surge do pátio a Lila. Que enorme surpresa! O resto do pessoal, de certa forma, sempre estivera próximo desde o final da faculdade. Era uma cervejinha de vez em quando, aniversário dos filhos, grupo de Zap, mas a Lila tinha ficado na dela desde o fim do curso. Nossa, a Lila era a mais linda da turma! Desejada por todos os caras no campus. Pelo que se sabia, agora, tava namorando um funkeiro, um tal MC Gutão. Nas redes sociais, só dava fotos deles em Paris, Salvador, Abu Dhabi... Nunca imaginei que ela fosse aparecer no nosso humilde churrasquinho. E agora estava ela ali... de biquíni. Estava brincando na piscininha de plástico com a filha do Nelson. Apareceu na churrasqueira rebolando e cantarolando "Piscininha, amor". Quando me viu, deu uma abanadinha, pegou um pedacinho de carne e veio na minha direção com os braços abertos. Disse que era bom me rever, fez algumas perguntas triviais, trabalho, família, contei da minha filha, se surpreendeu com a minha separação precoce, e, logo, despertada por um funk qualquer, foi arrastada pelo ritmo para a área livre entre a mesa e a churrasqueira, requebrando de uma maneira... ai, que nem é bom falar.

Com exceção da Lila, que era um fato excepcional, o restante da noite transcorreu dentro da normalidade: o Josué contando das suas, o marido da Flávia emburrado num canto, o Nelson e suas piadinhas, a Cláudia falando alto e a Rê passando da conta. Novidade eram os beliscões e reprimendas das mulheres para os maridos por causa da Lila que, por sua vez, parecia nem perceber os olhos masculinos pousando sobre seu corpo magnífico. Só queria saber de rir  brincar e se divertir. Já seca e de roupa trocada, interagiu e conversou com todos, com simpatia e graça, mesmo sob alguns olhares tortos de esposas ciumentas. Era como se nunca tivesse ficado distante, como se tivesse ido a todos os churrascos anteriores, .

Pra mim, tinha dado a hora. Havia deixado minha filha com minha irmã e tinha prometido chegar cedo pra liberar a generosa "babá". Argumentaram que era cedo, se não podia ligar pra minha irmã pra dormir lá em casa com a minha filha... Disse que não dava. Me despedi, beijos, abraço e, de última hora a Lila resolveu que ia descer comigo. Não queria esperar táxi sozinha na rua. Beijos, beijos, promessas de comparecer nas próximas reuniões, e descemos.

Já na calçada, um táxi de aproximava mas, para minha surpresa, a Lila propôs que caminhássemos um pouco. Por mim, eu morava a poucos quarteirões dali, mesmo. Tudo ok exceto pelo fato que ela começou a andar para o lado oposto ao meu caminho. Ainda tentei adverti-la de que eu iria para o outro lado, mas ela já se distanciava alguns passos adiante e parecia se animar com umas luzes, mais à frente, depois da esquina, ensaiando uma corridinha para ver do que se tratava. "Vem, vamos lá  ver o que que é aquilo". Olhei no relógio... Tá bom. Mais uns minutinhos.

Quando a alcancei já  estava na frente do lugar. Era uma espécie de lançamento de empreendimento ou algo assim. Coisa grande! Malabaristas, fonte, barzinho. A Lila estava parada, fascinada, diante de um enorme painel de led passando ininterruptas manobras de surf. Mal parei a seu lado e ela já se desprendia, novamente, seduzida por alguma outra coisa. "Vem ver, vem ver...", ela chamou. Hipnotizado pelo telão, me demorei um pouco mas logo me apressei em sua direção. Era um espelho d'água com um chafariz. "Ah, perdeu! A água tava fazendo uma coisas legais", segundo ela. Me puxou pela mão. "Vamos entrar, quero beber alguma coisa", "Lila, não...", tentei argumentar mas ela já tinha entrado, atravessando um corredor de plantas ornamentais iluminado de verde por holofotes cênicos. No fundo do percurso, depois de conversar brevemente com uma espécie de cicerone do evento, com um gesto de mão e uma carinha de sapeca, Lila me chamava para segui-la. Não quis ser grosseiro, deixar que entrasse sozinha. Tomaria um drinquezinho e depois tomaria meu rumo.

No entanto, um inusitado acontecimento, aparentemente muito banal, acabaria por precipitar essa minha reorientação. Enquanto éramos conduzidos à mesa, ao ar livre, pelo garçom, perto de umas folhagens, algo pareceu passar correndo por trás  dos arbustos. A Lila se assustou. Entrou num pânico desproporcional ao acontecido. Alardeava que era um rato, ao que o garçom, preocupado em não  espantar os outros clientes e convidados, rebatia que devia ser só um miquinho, um esquilo ou algo parecido, e nisso já chegou o gerente oferecendo uma cadeira, uma água e era eu, o garçom e o gerente tentando acalmá-la.

Ela pegou minha mão... Disse que ficara assustada, pediu para que eu não fosse embora e ficasse com ela. Eu prometi que não iria. Disse que só ia pegar uma bebida para ela e voltaria logo e que, enquanto isso, o garçom tomaria conta dela. Ela resistiu em largar minha mão, mas permitiu que eu fosse. Fui até o balcão  do bar. Achei que algo mais forte poderia fazer um efeito mais imediato então pedi um uísque. Quando estava voltando com a bebida, dei com o garçom que ficara com ela. Perguntei por que a deixara, uma vez que estava tão perturbada. Ele me acalmou dizendo que quando a deixara já  estava bem melhor, que nem parecia a mesma que quase desmaiara minutos atrás.

Achei que era minha deixa. Entreguei-lhe o copo e pedi para que levasse para ela, e que dissesse que tive que ir, e para que me perdoasse.

Contornei o bar e saí pelo mesmo caminho de palmeirinhas iluminadas que atravessara antes. Minha filha estava me esperando em casa. 



Cly Reis

domingo, 7 de agosto de 2022

Caetano Veloso - “Estrangeiro” (1989)




“'Estrangeiro' é um grande disco (...). Foi feito em Nova Iorque e foi produzido por Arto, que eu conhecia desde que cheguei a Nova Iorque, em 1982 ou 83, e queria muito produzir um disco meu. Arto conhecia bem minha música, porque tinha vivido muito tempo no Brasil e adora o trabalho dos tropicalistas. Ele queria que aqueles procedimentos tropicalistas fossem conhecidos e reconhecidos internacionalmente (...) O 'Estrangeiro' tem também a marca muito forte do Peter Scherer - sempre a partir das coisas que eu estava fazendo, das ideias que vinha tendo - e de muitas ideias musicais do Arto: sempre resultado das conversas que tínhamos os três.” 
Caetano Veloso


Em “O Cru e o Cozido”, Claude Lévi-Strauss sustenta que todo compositor musical é perpassado pelos mitos os quais o definem como indivíduo em uma coletividade. “O mito da mitologia”, define. Esta acepção, articulada em 1964, parece se adequar a Caetano Veloso, que chega gloriosamente às oito décadas de vida. O mesmo antropólogo francês que Caetano diz ter detestado a Baía de Guanabara na música que dá título ao disco “O Estrangeiro”, de 1989, talvez tenha este conceito de um dos cartões-postais do Rio de Janeiro e do Brasil justamente por ser alguém de fora e distanciado da mitologia a qual não pertence. Não é nem a falta de elogio, e sim o fato de que este olhar estrangeiro dá vantagens as quais Caetano não só não contrapõe - embora discorde - como entende muito bem. 

Como em qualquer mitologia, porém, nem tudo é perfeito. Pode soar pouco festivo, mas a chegada de Caetano Veloso aos 80 anos simboliza um Brasil que nunca se realizou. Menos pessimista, que seja: uma promessa de Brasil. Caetano, tanto quanto alguns de sua dourada geração – Gil, Chico, Nara, Hermeto, Elis, Edu, Jards – mas mais do que todos eles em alguns aspectos, estetizou o Brasil assim como fizeram alguns dos ícones da nossa cultura: Villa-Lobos, Portinari, Machado de Assis e Mário de Andrade. E o fez, em grande parte, pela discordância. Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento, num movimento constante de imersão e submersão, de identificação e distanciamento. Isso faz com que ponha no mesmo pentagrama axé music e microtonalismo, pop e vanguarda, e nos ensine a não só ouvir, como pensar essas diferenças/semelhanças para chegar a um fim maior: o âmago da própria mitologia. A dissonância aprendida na bossa nova de João Gilberto aplica em tudo sem nunca, sobretudo, fugir do embate. Ele, que discutiu com universitários esnobes e alienados no FIC de 1968; que se exilou por causa da Ditadura; que sempre disse o que pensava e não admite desaforo. 

“Estrangeiro”, um dos melhores discos da extensa obra do baiano, materializa em sons, letras e forma essa utopia tropicalista quase policarpiana de ser mito e mitologia ao mesmo tempo. A começar pela capa, reprodução da maquete concebida pelo Hélio Eichbauer para a peça "O Rei da Vela", do Oswald de Andrade, montada em São Paulo pelo Zé Celso Martinez Corrêa nos anos 60, pensada por Caetano quando este estava fora do Brasil. 

A faixa de abertura, igualmente, é uma daquelas grandes composições de Caetano em letra e música, e traduz a ideia dual do álbum, em que diversos ritmos se cruzam e se hibridizam em tonalismo e atonalismo, assonância e dissonância. O reggae conversa com eletrônico, que conversa com o batuque, que conversa com world music, que conversa com a art rock e o jazz contemporâneo. Naná Vasconcelos, no esplendor da maturidade, e Carlinhos Brown, já um grande entre os grandes, são dois dos principais contribuintes da sonoridade do disco, visto que integram, através de suas percussões universais, aquilo que há de mais visceral e de mais moderno em arte musical. Sem refrão, numa verborragia típica do seu autor, “O Estrangeiro” (“Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?/ Uma arara?/ Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara” ou “À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura/ Do branco das areias e das espumas/ Que era tudo quanto havia então de aurora”), reflexiona o ser brasileiro se colocando numa posição quase brechtiana de distanciamento e proximidade com o objeto. Até o videoclipe, dirigido pelo próprio Caetano, é um exercício de cinema de arte, extensão do experimental “O Cinema Falado”, único filme dirigido por ele três anos antes. E convicto de sua posição, ainda arremata: “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento/ Sigo mais sozinho caminhando contar o vento”. A música, aliás, inaugura algo que se poderia chamar de brazilian-post-jazz, o que o próprio Caetano, que atribui a Gilberto Gil a criação não reclamada do “samba-jazz-fusion”, mostra-se ainda mais modesto ao também desdenhar tamanho feito. 

Videoclipe de "O Estrangeiro", de e com Caetano Veloso 


Não à toa, “Estrangeiro” é produzido por dois músicos além-fronteiras: os Ambitious Lovers Peter Scherer e Arto Lindsay – este último o qual, assim como Caetano, faz uma permanente ponte entre o nordeste brasileiro e cosmopolitismo, visto que norte-americano de nascimento, mas criado em Pernambuco. Ligados a cena do jazz M-Base de Nova York e a nomes ultramodernos como Ryuichi Sakamoto, Laurie Anderson, John Zorn e Brian Eno, Arto e Peter edificam a melhor e mais bem acabada produção da discografia de Caetano até então, algo que o músico não só repetiria a dose (“Circuladô”, de 1991) como serviria de base para revolucionar a música brasileira do início dos anos 90 inaugurando-lhe um novo padrão produtivo, a se ver por trabalhos marcantes como “Mais” e “Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão" (1992 e 1994), ambos de Marisa Monte, “The Hips of Tradition”, de Tom Zé (1992), e “Alfagamabetizado”, de Carlinhos Brown (1996).

Na sequência de “O Estrangeiro” vem o lindo pop afoxé “Rai das Cores”, que evoca as colorações sonoras tanto da canção-irmã “Trem das Cores”, composta por Caetano em 1982 para “Cores Nomes”, quanto outra ainda mais antiga: “Beira-Mar”, em parceria com Gil e gravada por este em seu primeiro disco, de 1966. A reiteração do “azul” como símbolo de beleza e pureza (“Para o fogo: azul/ Para o fumo: azul/ Para a pedra: azul/ Para tudo: azul”) dialoga com os belos versos finais da balada cantada em ritmo de bossa-nova pelo parceiro: “É por isso que é o azul/ Cor de minha devoção/ Não qualquer azul, azul/ De qualquer céu, qualquer dia/ O azul de qualquer poesia/ De samba tirado em vão/ É o azul que a gente fita/ No azul do mar da Bahia/ É a cor que lá principia/ E que habita em meu coração”. Já “Branquinha”, esta, aí sim, deixa de lado modos mais modernos para voltar à bossa-nova a qual Caetano nunca se desligou homenageando com graciosidade a então recente esposa Paula Lavigne, ainda hoje companheira e com quem ele teria dois filhos, Zeca e Tom, ambos músicos como o pai. Quão lindos, sensuais e apaixonados estes versos: “Branquinha/ Carioca de luz própria, luz/ Só minha/ Quando todos os seus rosas nus/ Todinha/ Carnação da canção que compus/ Quem conduz/ Vem, seduz”. E, mais uma vez ciente do deslocamento no mundo, ele diz: “Vou contra a via, canto contra a melodia/ Nado contra a maré”. 

Mais um grande momento de “O Estrangeiro”: “Os Outros Românticos”. Samba-reggae potente, a música discute os conceitos de modernidade e racionalidade propostos no livro “O Mundo Desde o Fim” do não apenas compositor, poeta e parceiro Antonio Cícero, mas também filósofo. Além disso, traz os teclados firmes de Peter, as guitarras abrasivas de Arto e a sonoridade dos tambores afro de Salvador, que tanto começavam a fazer sucesso àquele final de anos 80 com a Olodum e a qual o próprio Caetano se valeria bastantemente dali para adiante, como em “Haiti” (“Tropicália 2”, 1993), “Luz de Tieta” (trilha sonora de “Tieta do Agreste”, 1997), “Alexandre” (“Livro”, 1997) e “Ó Paí Ó” (trilha do filme, 2007). Afora isso, a letra, análise sociopolítica contundente com referência ao olhar “universal” do cineasta alemão Win Wenders em “Asas do Desejo” (“Anjo sobre Berlim”), é daquelas altamente poéticas de Caetano: “Eram os outros românticos, no escuro/ Cultuavam outra idade média, situada no futuro/ Não no passado/ Sendo incapazes de acompanhar/ A baba Babel de economias/ As mil teorias da economia”. Para emendar com “Os Outros...”, a ainda mais internacional “Jasper”, parceria de Caetano com seus produtores. Outro ponto alto do disco, afora a brilhante melodia de ares eletro-funk e afro-brasileiros, traz por trás do inglês do cantor belos versos como: “Tempo é tão leve como a água”.

Ainda mais autorreferente, a segunda parte do álbum começa com a tocante “Este Amor”, que se pode classificar como a “Drão” de Caetano. Assim como a clássica canção de Gil dedicada à antiga esposa quando da separação dos dois, em “Este Amor” Caê versa para Dedé Gadelha, com quem vivera quase 20 anos e tivera Moreno, outro talentoso músico, espelhando-a dentro do disco com a anterior “Branquinha”, feita para a atual mulher. Ao contrário da balada melancólica de Gil, no entanto, a de Caetano é um afoxé suavemente ritmado e um canto sereno de um homem maduro, entrando nos 50 anos, capaz de olhar para trás e enxergar sem mágoa a beleza do que se viveu. “Se alguém pudesse erguer/ O seu Gilgal em Bethania... Que anjo exterminador tem como guia o deste amor?”. 

Assim, espelhando-se mais uma vez na família de sangue e de vida, o disco prossegue com “Outro Retrato”. Se fez presentes Gal Costa, a irmã Maria Bethânia e Gil – também oitentão como ele em 2022 –, Caetano agora retraz a sua maior devoção: João Gilberto. Em ritmo caribenho, a música diz: “Minha música vem da música da poesia/ De um poeta João que não gosta de música/ Minha poesia vem da poesia da música/ De um João músico que não gosta de poesia”. Traços do arranjo de “Outro...” inspirariam canções futuras, como “Neide Candolina” e “"How Beautiful a Being Could Be", como os contracantos e a pegada pop sobre o ritmo latino. É o mesmo João que evoca, mas aqui junto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, em “Etc.”, melancólica e romântica como os primeiros sambas da parceria clássica da bossa nova. 

Caetano acompanhado de Brown e Moreno
na turnê de "Estrangeiro", em 1989
Quase fechando o álbum, a faixa que talvez tenha surpreendido até Caetano tamanha repercussão que fez: “Meia-Lua Inteira”. Primeira de autoria Brown com maior projeção popular, a música estouraria nas rádios depois de entrar na trilha de “Tieta”, uma das telenovelas de maior sucesso da Rede Globo, e roubar o protagonismo, inclusive, da canção-tema, que abria o programa. Na época, até poderia soar um tanto modístico aquele samba-reggae colorido como os que Olodum, Banda Reflexus e Luiz Caldas vinham fazendo. Mas Caetano é Caetano. Tropicalista, mais uma vez adiantava-se ao que a crítica supunha entender e fincava a bandeira das manifestações populares e urbanas. “Meia-Lua Inteira”, aliás, mesmo sendo Caetano um artista desde muito acostumado com as paradas, pode ser considerado o seu abre-alas para as grandes vendagens, o que ocorreria pelo menos mais três vezes com “Não Enche” ("Livro"), “Sozinho” (“Prenda Minha – Ao Vivo”, 1998) e "Você não me Ensinou a te Esquecer" (trilha de "Lisbela e o Prisioneiro", 2003).

Para desfechar, Caetano vai buscar, enfim, a própria mitologia. O poeta retorna ao seu âmago, à sua origem, às suas reminiscências da infância em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde nasceu, com a brejeira “Genipapo Absoluto”. No livro “Sobre as Letras” (2003), Caetano diz que um dado da letra que lhe emociona é que essa canção fala de sua identificação com o pai (“Onde e quando é jenipapo absoluto?/ Meu pai, seu tanino, seu mel”). Mas declara, em seguida: “minha mãe é minha voz”. Quando canta os versos “Que hoje sim, gera sóis, dói em dós”, inclusive, ele o faz imitando a de Dona Canô. E outro tocante refrão: “Cantar é mais do que lembrar/ É mais do que ter tido aquilo então/ Mais do que viver, do que sonhar/ É ter o coração daquilo”. Ao citar a irmã Mabel em certo momento, também é possível fazer ligação com outra antiga melodia sua: “Alguém Cantando”, do disco “Bicho”, de 1977, igualmente uma faixa de encerramento e cuja voz, literalmente, não é a sua, mas da outra irmã do compositor, Nicinha.

Caetano, tão nativo quanto forasteiro, decifrou o Brasil nestas últimas oito décadas de vida e seis de carreira unindo alta e baixa cultura, provando por que, pela visão tropicalista, é possível, sim, levar o pensamento aprofundado a “quem não tem dinheiro em banco” e catequisar “as pessoas da sala de jantar”. Utopia? Pode ser, mas sua obra gigantesca e da qual “Estrangeiro” é um dos mais significativos exemplares, está aí para ser sorvida. “Todo mundo pode aprender tudo”, disse ele certa vez. Mais do que apenas misturar, a diferença de Caetano está na sua visão, uma visão para além do óbvio, para além da própria música e da poesia, visto que filosófica. Caetano, literato e intelectual, ensinou o Brasil a pensar-se. "As coisas migram e ele serve de farol"... Mito e mitologia, ajudou a fundar a nossa modernidade. Ele, que é o tropicalista mais convicto de todos, visto que dialoga com a mesma potência poética "a delícia e a desgraça" como escreveu sobre os estrangeiros americanos. O estrangeiro que canta, na verdade, é ele próprio, num país que nunca, de fato, se realizou. 

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FAIXAS:
1. “O Estrangeiro” - 6:14
2. “Rai Das Cores” - 2:37
3. “Branquinha” - 2:35
4. “Os Outros Românticos” - 4:58
5. “Jasper” (Caetano Veloso, Peter Scherer, Arto Lindsay) - 4:58
6. “Este Amor” - 3:26
7. “Outro Retrato” - 5:00
8. “Etc.” - 2:06
9. ”Meia-Lua Inteira” (Carlinhos Brown) - 3:43
10. “Genipapo Absoluto” - 3:22
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Edu Lobo e Antonio Carlos Jobim - “Edu & Tom/Tom & Edu” (1981)




“Edu sabe música, orquestra,
arranja, escreve, rege,
 canta e toca violão e piano.
O Edu é um compositor fabuloso, formidável.”
Tom Jobim, sobre Edu Lobo


“Mais do que a alegria e o prazer deste trabalho,
 fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim



Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock, que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.

Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então, de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez, uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu, claro, gostou da ideia.

Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius, como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura, descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta de novo a pergunta: “Era só isso?”. Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.

Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa “Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio, que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito por ele.

Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros –, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é “Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica “Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra, igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil. Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.

Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973. Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina, lança, através de anáforas e epíforas (“Um homem pode...” e “se for por você”), versos da mais alta beleza poética: “Juntar o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.

Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius, esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.

Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult “Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as obras. “Vento virador no clarão do mar/ Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda, no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com brilhantismo.

E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom & Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”, reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira – que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito, o flugehorn impecável de Marcio Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de DebussyRavel, Bach e Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.

O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco (pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60, entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som, conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele (os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora certa às faixas.

Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que, segundo ele, emocionaram Tom. “De todos os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência, para saber definir: “Edu e Tom, Tom e Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.

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FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13
2. Prá Dizer Adeus (Edu Lobo/Torquato Neto) - 4:41
3. Chovendo Na Roseira (Tom) - 3:24
4. Moto-contínuo (Chico Buarque/Edu) - 3:30
5. Ângela (Tom) - 3:10
6. Luíza (Tom) - 2:59
7. Canção Do Amanhecer (Edu/Vinicius De Moraes) - 3:30
8. Vento Bravo (Edu/Paulo César Pinheiro) - 4:16
9. É Preciso Dizer Adeus (Tom/Vinicius) - 4:18
10. Canto Triste (Edu/Vinicius) - 3:44

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OUÇA O DISCO





terça-feira, 2 de junho de 2015

Caetano Veloso – “Circuladô” (1991)


Considero ‘Circuladô’
um dos momentos mais altos
da produção de Caetano.
É um CD no qual ele retoma
a interessante linha de experimentalismo
do disco ‘Araçá Azul’, de 1973,
harmonizando-o com o cantabile
de suas canções mais pulsivas e singelas”.
Haroldo de Campos




Meu amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”. Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPMLegião UrbanaTitãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam. Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em 1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me dava condições de perceber com clareza as ricas construções melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e “Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era, evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular que se apresentava à minha frente.

E teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de 1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe), onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava Caetano.

“Fora da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto. Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje. Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão, Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental. Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa literatura.

O próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento 'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é, todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral dos trovadores medievais”.

Minhas emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”, ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem” e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os versos.

Igualmente, toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom, ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas, boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”), cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas); e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.

Dando uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela” carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação, cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica” “Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”, de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme “São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak, nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia” (1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do memorável disco "Transa", de 1972.

Se “Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem. Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final, depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de trompete bem jazzístico.

Viro de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”, em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida, “Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e, principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o compositor japonês mais brasileiro da world music. São os efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção, que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.

Tanto quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra. Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas” e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa” – ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz: “Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/ Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou um sinal” por ser uma “preta correta democrata social, racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno (mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.

O clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa, carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu, ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).

Não deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada) Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas: primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o pernambucano mais norte-americano da world music.

Canção irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô” é tão representativo que passou a servir como referência para outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a musicalização de autores da literatura como tema principal do projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco) ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de “Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii et Zie”).

Quanto a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior. Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida. Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto, mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.

vídeo de "Fora da Ordem", Caetano Veloso

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FAIXAS:
1. Fora da ordem
2. Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3. Itapuã
4. Boas vindas
5. Ela ela (Veloso/Arto Lindsay)
6. Santa Clara, padroeira da televisão
7. Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8. Neide Candolina
9. A terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O cu do mundo
11, Lindeza

todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO:







terça-feira, 17 de março de 2015

ARQUIVO DE VIAGEM / Salvador


Banzo de não estar



Faz uma semana que retornei da cidade de São Salvador. Uma viagem em maravilhosa companhia de my love Daniel Rodrigues que ambos desejávamos fazer em período de férias faz muitos anos. Apesar dos sete dias terem se passado, parte de mim permanece lá. E a outra que se deslocou para o RS em estado de banzo.

Muitos diriam, mas por quê? Qual motivo disso?

Antes da viagem tive os mais variados relatos. Amor e ódio permeiam a relação dos visitantes com a cidade. Alguns não toleram ver in loco a miséria, o devaneio e o abandono de alguns cidadãos que vagueiam pela cidade. Outros se defrontam com o medo e o ódio por assaltos ou a permanente insistência dos vendedores ambulantes oferecendo colares, fitinhas, bebidas e drogas. Ainda há os que não conseguem estar senão nas praias que conquistam pela limpeza das águas, a temperatura agradável e a natureza naturalmente bela.

Minha intenção era somente estar lá. Conhecer é claro tudo o que fosse possível no curto espaço de tempo de cinco dias, permeando 500 anos de história, porque Salvador foi a primeira capital brasileira, tendo seu nascimento com a chegada das primeiras naus. Queria ser surpreendida, conquistada e envolvida pelo que até hoje repercute lá. E não falo dos tambores afro-brasileiros, não. Falo de história, de gente e de cultura do viver.

Voltei de lá com algumas vivências muito transformadoras na bagagem e com a certeza de que lá é um pouco a minha casa. Destaco alguns comentários deste que poderá ser meu lar, algum dia, como dizia Vinícius de Moraes, que viveu lá por seis anos, no bairro de Itapuã: “Meu tempo é quando.”


Largo do Cruzeiro com a Igreja
e Convento de São Francisco de Assis (ao fundo)
Fachada do solar Ferrão que abriga coleções primorosas,
datado do século XVIII foi abrigo de Jesuítas e
Centro Operário da Bahia
Vista das fitinhas da grade da Igreja Nossa Senhora do rosário dos Pretos e
acima o Museu da Bahia e a Fundação Casa de Jorge Amado, no Largo do Pelourinho
Altar de uma das lojas comerciais do Pelô
e o sincretismo histórico da Bahia


Pelourinho: os relatos sobre a marginalidade no Pelô são muitos, e, sim, há certa violência/abandono pairando no ar e na visita dos desavisados, principalmente à noite, mas nada que não haja em outras cidades ou bairros do país. Ficamos hospedados no Hostel Laranjeiras, bem situado no Pelô: vizinho do Olodum, do Museu da Música Brasileira, da antiga fábrica de camisas, da Igreja e Convento São Francisco de Assis, do Largo do Cruzeiro, do Ilê Ayê e do Museu do Ferrão, entremeados por Largos outros, Teresa Batista, Quincas Berro D´Água e Pedro Arcanjo. Perto dali, muitas opções gastronômicas e culturais. Mas estar no Pelô excede essa questão prática do que se ver e degustar. Ali, cenário antigo de atos criminosos contra escravos, maltratados e exibidos publicamente em açoites, hoje se apresenta com uma população residente peculiarmente negra que ocupa com altivez e classe todos os espaços do bairro, senhores da sua história. O Pelô é um local de resistência, cultivo e difusão da cultura e história negra. É principalmente um espaço onde povos de outras nações (franceses, alemães, coreanos e americanos) podem conhecer essa história, deparar-se com pessoas que nos recebem com tamanha amorosidade e que não precisam se autoafirmar como vítimas nem mártires, porque dentro dessa biografia tem-se um estado de ser e estar no mundo.

Os cidadãos do bairro surgem como que emoldurados por uma cortina do tempo de ontem e de hoje. Para percebê-los em meio ao ambiente vivo e intenso, tem que ter calma. Daí surgem artistas, transeuntes, habitantes das ruas, senhores dos santos, verdadeiras entidades que emocionam. Cada qual ao seu jeito, ao seu tempo, ao seu estilo e no seu turno de viver contemporâneo. Nem todos se deixam fotografar, mas parte deles esta aqui nas fotos. Outros ficarão na memória como seres saídos de uma história a que desejo retornar sempre.


Baiana moradora do Pelourinho
Comerciante do Pelourinho
Mestre Ivan do Atelier Percussivo Lua Rasta
no Pelourinho
Artista plástica do Pelourinho


Gatos: a população de felinos impressiona. Lentos mais do que o habitual, porque o calor é intenso em todas as horas do dia, eles observam o ritmo de visitantes do Pelô. Deitados, em busca de comida, em meio a brincadeiras, lá estão misturados entre os turistas, moradores e transeuntes. Não se deixam pegar, mas desfilam e posam para as fotos quando acordados é claro, rsrs. Gregório o mais jovem, encontramos no meio da rua, onde vez em quando passam carros. Ele atrás de um copo de plástico brincava sem medo. Ficamos apreensivos pelo seu porte (menos de um mês de idade) e por estar sozinho, sem a companhia de outros gatos. Mas logo vimos que era “gato safo” ao nos ver correu para a porta de um ateliê em que estava não somente sua residência como sua cuidadora. Ela nos contou sobre a chegada dele e daí ficamos sabendo seu nome. Uma figura – que não andava, mas pulava entre os paralelepípedos do Pelô.






Gregório, o gato mais jovem


Habitantes das ruas: vivem vendendo sua arte, oferendo seus colares/fitinhas ou apenas aguardando um dinheiro para consumo de drogas/afins. Conhecemos um deles, que vive acompanhado da sua cachorra Doidinha. Ele e Doidinha perambulam pelo Pelô oferecendo sua arte em azulejo. Ele as cria na hora, pinta as mãos e rosto por causa da técnica que mistura éter a tinta forte que gruda no azulejo. E quase sempre as comercializa junto aos estrangeiros, devido à insistência com que as oferece. Ficou nosso amigo depois que lhe oferecemos um prato de comida. Na realidade, ele (que não soubemos o nome) nem lembrava qual era a sua relação conosco, mas nunca nos perdeu de vista durante o tempo em que lá estivemos, sempre fazendo referência alegre ao cabelo afro do Daniel e nos chamando de “casal feliz”.

Casal de enamorados nas imediações
da Baixa do Sapateiro


Crianças e Idosos: os menores e mais jovens sempre voando pelo bairro, circulam indo para as escolas públicas ali existentes, os projetos sociais de música ou então brincando ao cair da noite – de bola, de pega-pega, de olhar o celular nas calçadas. Elas disputam o espaço democraticamente com as famílias que sentam na frente das casas e senhores de maior idade que jogam dominó até antes do anoitecer.
Menino subindo o Pelô rodopiando
Senhor nas escadarias do Pelourinho
Ciclista descansando nos bancos da Praça Senhor do Bonfim

Ciclista descansando nos bancos da Praça Senhor do Bonfim.

Perambular: caminhar nas ruas de Salvador é uma alegria. Tudo é sentido na pele: o calor, a proximidade das pessoas, o cheiro, as cores, tudo estimula os sentidos. A cidade ferve, faz muito calor, mas é seco. Por vezes a pressão cai e quase vivenciamos um estado de desmaio, mas logo passa. Um astral eleva o prana e aos poucos deixa você com um ar mais descontraído. As pessoas sorriem, conversam, dançam e cantam sem nenhum motivo aparente. Todos são autênticos. Isso é maravilhoso.


Ruazinha do Pelô
(ao fundo a Biblioteca da Faculdade de Medicina)
Baianas do comércio do Largo do Cruzeiro e imediações/
Pelourinho
Ruazinha do Pelô


Turbantes e Tambores: as baianas e os músicos encantam. Alguns parecem de mentira de tão belos. Por toda a cidade escutam-se sons. Às vezes, misturados como na saída do Elevador Lacerda, formando uma massa nem sempre agradável aos ouvidos, mas com um que de composição livre e coletiva. No Pelô, os tambores tocam cadenciados ao anoitecer, como rezas de santos, levando sua alma além dos telhados, durante o jantar. Noutras vezes, surgem com meninos em grupos aprendizes de timbau. Surpreendem num cortejo de pessoas acompanhando os tamboreiros, que invadem nossos ossos e repercutem cá dentro, chegando a nos fazer chorar de emoção. Descobri dois músicos na loja de Ademar em pleno Terreiro de Jesus, o talentoso Tiganá e o lendário Mateus Aleluia. A música de ambos arrepia e comove. Gosto muito de trazer das viagens sonoridades da região. Eles cantaram para mim, e eu os trouxe juntos. Falam com algo muito profundo da nossa essência negra. Falam com nossos mentores. Iluminam. Pretendo escrever sobre eles, aguardem. Olodum, Filhos de Gandhi, Ilê Ayê e Ballet Folclórico da Bahia vivem no Pelô. No Memorial das Baianas, nos arredores do Pelô, sabe-se da relação do turbante afro com o turbante islâmico. Algumas baianas que circulam pelo bairro, lembram grandes bonecas de santo de tão belas. Outras que circulam pela cidade ostentam seus lenços coloridos amarrados de forma muito particular, comunicando aos entendidos sua origem, sua nação, até seu orixá. Nas ruas do Pelô escuta-se um pouco de cada toque ritmado que ora pode ser uma reza, ora um ritual mas sempre um som que transforma seu estado emocional. Ninguém passa imune às baianas e aos tambores. E a pergunta: Qual seu orixá? Antes mesmo de saber o seu nome.


Loja de instrumentos de percussão
no Largo do Pelô
Turbante feito por Dona Nilzete
do Camafeu de Oxóssi
Grupo Tambores e Cores
do Pelourinho
Baiana e a abençoada água de côco
da Praça Senhor do Bonfim


A Cubana e Ribeira: no calor de Salvador uma das opções irresistíveis de sobremesa é degustar sorvetes. Entre as opções pela cidade duas são imperdíveis: A Cubana (com fábrica no Pelô, mas diversos pontos de venda pela capital) e a Sorveteria da Ribeira, que fica longe do Centro mas te arrebata independente do sabor escolhido. Todo final de tarde, a visita A Cubana do Pelô era pontual. O ambiente lembra as sorveterias antigas em azulejos, mas o que vale mesmo são os sorvetes. Meus prediletos: Menina Bonita (castanha com leite), Mangaba e Tiramissu. Outros igualmente maravilhosos: Cajá, Umbu e Cupuaçu. Ah, sempre duas bolas bem servidas!


Sorvetes A Cubana (Pelourinho) -
cada dia um novo sabor!
Cardápio de opções da sorveteria Ribeira:
difícil é escolher um!


Exu, Amado, Abelardo, Verger e Nosso Senhor do Bonfim: Bem, aqui, o devaneio é total. Admira-se ainda mais o literato e homem de religião, Jorge Amado e sua fiel companheira Zélia Gattai. Extrapola-se a admiração pelo educador e colecionador Abelardo Rodrigues, que expõe no Museu do Ferrão parte de sua Coleção de Arte Sacra que deixa alguns acervos de Minas Gerais para trás dada a seleção primorosa das peças e a abrangência de períodos e artistas. E compreende-se porque o francês mais brasileiro e soteropolitano do mundo, Pierre Verger, fotografou, morou e tornou-se um dos maiores estudiosos e práticos da religião afro. Estando em Salvador, não deixe de ir à Fundação Casa de Jorge Amado, na residência A Casa do Rio Vermelho de Jorge Amado e Zélia Gattai e na Fundação/Galeria Pierre Verger. A Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, que é uma atração distante do Centro, vale por toda a sua história, simbologia sincretista e axé. Lá no alto do morro no bairro do Bonfim ela está soberana. Rodeada de pais de santo que te dão um aconchegante axé, você pode perceber a fusão do candomblé e do catolicismo. Ah, e claro, nas ruas, sempre encontramos com os Exus ou “Esu” (Guardião das aldeias, cidades, casas e do axé, das coisas que são feitas e do comportamento humano) está onde há movimento. Vê-se em estatuetas em lojas, na entrada de centros culturais e em obras públicas antes da roda de Orixás no Dique do Tororó.

(Exu em ferro que guarda a Fundação Casa de Jorge Amado
a pedido do escritor)
(Fachada de uma casa que hoje é um bistrô mas que
foi cenário de personagens de Jorge Amado)
Espaço reservado ao Candomblé e sua relação com o escritor Jorge Amado
na Casa do Rio Vermelho
Detalhe do altar da igreja Nossa Senhora do Bonfim...
... e imagem integrante do acervo do
Memorial das Baianas que reproduz
o dia da lavagem da escadaria da Igreja.

Zélia, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Yemanjá: Zélia foi casada com Jorge Amado e além de escritora também foi fotógrafa. É dela o acervo de quase 30 mil fotografias existente da vida a dois desse casal que mesclou amor, arte e religiosidade. Em breve escreverei um pouco mais sobre ela, porque descobri uma Zélia que não conhecia; aguardem. As Igrejas em Salvador são um capítulo à parte. Visitar a todas tem sua emoção pela antiguidade, pela história e santos sincréticos. A que mais gostei foi a Igreja na base do Largo do Pelourinho: Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Ali acontecem todas as terças-feiras uma missa ecumênica. Ganhei um dos mais gostosos abraços no meio da missa! Uma das senhoras da comunidade desta Igreja e suas amigas/familiares fez questão de me abraçar e desejar as boas-vindas. O abraço dela era quem sabe como o da Mestre Indiana Amma, que é conhecida por esse acolhimento fraterno e gostoso, de abraçar com o coração. Além disso, todo o missal teve atabaques, cantos e até MPB da melhor qualidade: “Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. Um final de dia inesquecível, que reverenciou também Santo Antônio de Categeró através da distribuição dos pãezinhos como aqui em Porto Alegre, acontece na Igreja Pão dos Pobres. Yemanjá, a mãe de todos os orixás, como diz a Mãe de Santo Stela de Oxóssi, é a senhora de Salvador. Ela está onipresente em todos os recantos. No bairro dela, Rio Vermelho, local historicamente indígena onde desembarcou o então Caramuru, ela está presente no Largo das Mariquitas, nas embarcações beira-mar, no mar, nas imagens ou nas peças decorativas das lojas do bairro. Rio Vermelho é também o bairro mais boêmio, aquele bairro de galera, da noite cool. Yemanjá é saudada em todos os lugares de Salvador, às vezes de maneira criativa, como neste ponto comercial em pleno Pelô: Ye-Manjar, pode?

Entrada da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Jardim da Casa do Rio Vermelho onde estão as cinzas dos
escritores Jorge Amado e Zélia Gattai
Praia das Mariquitas
Missa ecumênica na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Oferendas (pãezinhos) oferecidos após a Missa
Comércio do Pelourinho


Mercado Modelo e Gastronomia: Os mercados públicos das capitais brasileiras são sempre um espaço único. Estar ali é meio que reunir o que de popular existe naquele local. Então guias, santos, axés, produtos baianos dos mais variados estão à disposição do visitante. O que se pode levar em quantidade são as pulseirinhas do Bonfim, as cocadas, as pimentas e os enfeites (colares, balagandãs, tecidos entre outros). Ali está um ponto gastronômico importante da cidade: os restaurantes conjugados: Maria de São Pedro (de 1925, com mais de 80 anos de existência e mantido pelos filhos de Dona Maria 100% baiano) e o angolano Camafeu de Oxóssi. Optamos por almoçar duas vezes no Camafeu de Oxóssi, por sua variedade de pratos e por Dona Nilzete, que nos atendeu com sua simpatia, amorosidade e alegria. Ali degustamos o melhor pastel de camarão da cidade, os melhores bolinhos de bacalhau, uma carne seca de primeira acompanhada de farofa de dendê, macaxeira e feijão fradinho. Foi lá que ganhei meu primeiro turbante feito carinhosamente por Dona Nilzete, que me deu várias dicas de como amarrá-lo. No Mercado Modelo fizemos amizade com Deco, administrador da loja Encontro com as Águas, que comercializa objetos lindos, e nos deu dicas dos passeios as ilhas mais próximas de Salvador. Com ele adquiri a guia dos Filhos de Gandhi para quem sabe num carnaval futuro, desfilar, na ala Filhas de Gandhi!

Loja Encontro das Águas - Mercado Modelo
Balagandâ (utilizado na cintura para os dias de festa pelas escravas e,
segundo os comerciantes do Mercado Modelo, ao completar todos os pingentes
recebia alforria
Comerciante do restaurante Maria de São Pedro/
Mercado Modelo com vestimenta típica
Sob as lojas do Mercado
os guardiões e os axés

Ilhas, Praias e o Mar: Ir a Salvador e não estar navegando, a beira-mar ou dentro d´água, é o mesmo que não ter ido até lá. O mar e suas belezas mais próximas do litoral soteropolitano encantam. O canto das águas nos chama a passear. Fomos então a Ilha dos Frades, Ilha de Itaparica e praias da capital, um pouco mais afastada o Farol de Itapuã. O que dizer se lá somente se pode ver, sentir e navegar? O mais apropriado é vá e conheça. O acesso é fácil, mas precisa de pelo menos um dia e meio para aproveitar um pouco.

Leme da embarcaçõa para as ilhas
Vista da Ilha dos Frades
Pesca no Farol de Itapuã
Final de tarde na orla entre as praias da Paciência e Ondina
Guardo comigo todas as imagens, todos os sabores, todas as cores, todos os cheiros, todos sons, toda atmosfera que Salvador gentilmente nos deu. Guardo o olhar direto e afetivo de seu povo. Guardo ainda aquela descontração de quem está ali essencialmente vivendo. De quem sabe o que é valoroso na vida. O que não podemos esquecer diariamente de cuidar: da integração entre corpo e mente. Da ampliação de estarmos aqui vivendo em comunhão com tudo o que nos faz sentirmos vivos. Da simplicidade de termos nossa historia, nossa fé e nossas cores, dentro e fora. De acreditar que tudo está em sintonia. De que nem tudo está dito, mas sentido. De que há muitas coisas que estão vivas entre a nossa percepção humana que não dependem do racional, mas somente do coração. Assim levo Salvador comigo. A partir de hoje, sempre, cá dentro ritmado com meu tambor cardíaco, colorido como minhas cores e vivo na historia que guarda a minha e muito de nós todos, brasileiros.

Turbante feito por Dona Luzia do Memorial das Baianas
Nas aldeias africanas situadas no Brasil quando se falava em “banzo”, a maior referência era ao sentimento de melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade praticada contra a população escravizada. A prática do banzo era uma forma de protesto caracterizado como uma greve de fome, um protesto muito sentido. Também eram comuns, como forma de resistência na época, o suicídio, o aborto, o infanticídio, as fugas individuais e coletivas e a formação de quilombos. Atualmente, nos estados da região Norte do Brasil, “banzo” também é usado de forma irônica para designar uma melancolia injustificada, sinônimo de choramingo. Deixo aqui meu choramingo verdadeiro e pontual de banzo por não mais estar lá, mas com muita vontade de voltar e, quem sabe, permanecer lá por mais tempo. Tempo suficiente de conhecer o que não foi possível, de aprofundar esses laços que mantenho bem fortemente atados em meu ser. Como diz o encantado Gil e a quem uso os versos emprestados: “Eu vim da Bahia, mas eu volto pra lá! Eu vim da Bahia mas algum dia eu volto pra lá.” Que os orixás me deixem retornar, estendendo sua licença ao entrar em terras tão fortemente iluminadas: Mojubá agô! Que assim seja.





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