quarta-feira, 22 de abril de 2015
"O Irmão Alemão", de Chico Buarque - Companhia das Letras (2014)
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Chico Buarque - "Chico" (2011)
Fui cheio de dedos ouvir o novo CD de Chico Buarque emprestado pela minha irmã que é mais louca que eu pela música do cara. Estranho foi que esta fãzoca me advertira que o disco não era ‘lá essas coisas’, meio fraco e coisa e tal, só que para ela colocar alguma restrição a um trabalho dele, olha..., era realmente de recear pelo pior. Como agravante, de minha parte já considero há algum tempo que, atualmente, Chico Buarque de Hollanda está mais para um ótimo escritor que faz música do que propriamente para um grande músico, o que tornava minha muito provável minha concordância com o conceito da fã em questão, dona do CD.
Peguei então para escutar descompromissadamente, meio assim, durante o café da manhã; e talvez por não esperar muito, a cada faixa que se seguia se me apresentava uma positiva surpresa. O disco não era tão mal quanto ela tinha pintado. Não, não! De fato é um bom disco. Passa a falsa impressão de ser ‘fraco’ por ser mais lento, ter um andamento mais cadenciado que de costume mas definitivamente para ruim não serve. O problema é que, também, o parâmetro de comparação de Chico Buarque é a própria obra de Chico Buarque, especialmente até a metade dos anos 80, e aí é covardia com ele mesmo cobrarmos sempre um “Almanaque”, um “Chico Buarque (1984), e coisas do tipo. Não é sempre que se faz discos assim.
Mas “Chico” (2011) é sim um bom disco. Ao longo das faixas a gente vai gostando, vai percebendo detalhes, méritos, qualidades e virtudes. “Querido Diário” que abre o CD e que funcionou como uma espécie de faixa-promocional, lançada previamente na internet, não é nada mais que simpática e dá a falsa impressão de que não teremos nada muito melhor pela frente ; “Rubato”, que a segue, é uma marchinha inusitada que causa uma certa estranheza pelo sutil descompasso de melodia e voz numa estruturação ousada de Chico com o parceiro João Helder.
Claramente sob efeito dos encantos de uma jovem, que minha irmã me informou ser a nova musa do compositor ds olhos verdes, Chico deixa transparecer em algumas faixas essa inspiração, mais evidentemente em “Essa pequena”, onde de alguma forma fala das diferenças deles dentro desta relação com idades tão distantes; mas também dá ‘letrinhas’ do assunto na ótima “Tipo um Baião”, ("Não sei para que outra história de amor a essa hora...") a melhor do disco na minha opinião, e na gostosa “Se eu soubesse” uma adorável valsinha que parece algo meio como a visão dela da coisa ("Ah, se eu pudesse não caía na tua conversa mole, outra vez/ Não dava mole à tua pessoa (...)/ Mas acontece que eu sorri para ti / E aí, larari, lairiri, por aí").
Se o Chico compositor está sempre rondando o Chico escritor, o inverso também vale e em faixas como na muito legal “Barafunda” toda a verve romancista com o traço característico dos seus livros está lá, com uma grande ‘confusão’ de memória que embaralha fatos, lugares e pessoas. Em “Nina” pode notar-se traços ou ideias não aproveitadas do seu romance "Budapeste" e em “Sinhá” alguma coisa talvez descartada ou resultante da concepção de "Leite Derramado".
Merecem também destaque o samba composto com Ivan Lins, já conhecido a voz de Diogo Nogueira, “Sou eu”, que lembra de certa forma sua antiga “Deixa a Menina”; e a retomada da parceria com João Bosco, que já havia feito com ele a ótima "Mano a Mano" , na já referida, “Sinhá”, um comovente e triste samba de senzala que encerra o disco.
Não é o "Construção" , é verdade, não é um “Paratodos”, tá bem, mas não é em nada desprezível o novo trabalho musical deste grande escultor das palavras. Até que dá para dar um crédito para este escritor aí que andou se aventurando a gravar um CD. Tem futuro, tem futuro o garoto.
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Ouça:
Chico Buarque - "Chico" (2011)
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015
"Sniper Americano", de Clint Eastwood (2015)
O novo herói de Clint Eastwood
por Paulo Moreira
Clint Eastwood tem baseado sua carreira como realizador na busca e identificação do herói americano. Ou do anti-herói. Desde o começo de sua carreira, no seriado “Rawhide” ou nos gloriosos spaghetti-westerns de Sérgio Leone, Clint se interessa pela figura mítica que, em tempos idos, salvava o mundo de suas mazelas.
Assim aconteceu com “Dirty Harry”, o vigilante que fazia a justiça pelas próprias mãos. Só que poucos notaram que Harry Callahan era um policial. Portanto, autorizado pela sociedade para fazê-lo. Seus cowboys – o pistoleiro sem nome de “High Plains Drifter” ou “Josey Wales, o fora -da-lei” - reforçavam este mito, destruído depois pelo próprio Clint em “O Cavaleiro Solitário” onde interpretava um pregador e, especialmente em “Os Imperdoáveis”, onde o personagem Will Munny era um pistoleiro aposentado. Mesmo nos filmes em que não protagoniza, como “Um Mundo Perfeito”, “Sobre Meninos e Lobos” e “Invictus”, a figura do herói aparece, mesmo que combalida. Por outro lado, em filmes como “Bird”, “A Conquista da Honra” e “J.Edgar”, o herói é falho, humano, cheio de defeitos, como o Walt Kowalski de “Gran Torino”, um ex-combatente de guerra que odeia seus vizinhos descendentes de coreanos, mas que passa a vê-los com outros olhos, diante de uma ameaça maior. Se antigamente Eastwood acreditava no poder do herói, a partir de um determinado momento, começa a analisar as causas desta mitologia ufanista reforçada em inúmeros filmes vindos de Hollywood.
Bradley Cooper como um herói de guerra
cheio de conflitos internos
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Depois de um grande tempo para se readaptar à vida em sociedade, espantando seus fantasmas, Kyle chega ao final do filme aparentemente pronto para enfrentar o dia-a-dia. Uma análise mais simplista poderia dizer que “Sniper Americano” é um filme ufanista. Clint Eastwood usa todo seu arsenal narrativo – aprendido certamente com o seu mestre Don Siegel – e impede o discurso final. Aos 85 anos a serem completados em maio, podemos exagerar e dizer que Clint Eastwood chegou em sua maturidade criativa. Grande e poderoso filme.
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Consigo Mesmo Sob a Mira
por Daniel Rodrigues
Bradley muito bem no papel do sniper Chris Kyle |
domingo, 12 de junho de 2016
COTIDIANAS nº 440 ESPECIAL DIA DOS NAMORADOS - Namorada... é que é serpente
segunda-feira, 10 de agosto de 2020
"Essa Gente", de Chico Buarque, ed. Companhia das Letras (2019)
No fim das contas, embora não seja ruim e tenha lá seus méritos, a gente lê "Essa Gente" e sai com aquela sensação de "Tá bom, né...", mas, no íntimo, lá no fundo querendo mais. E a gente quer mais porque sabe que dali sai mais. É que Chico meio que nos deixou mal acostumados. Depois da boa estreia com "Estorvo", aquela crescente empolgante com "Benjamim", "Budapeste" e "Leite Derramado", nos fez esperar sempre por coisas maravilhosas e às vezes vem coisas... normais. Coisas que parecem ter saído de um escritor comum. O problema é que nós sabemos que não é.
sábado, 18 de setembro de 2021
cotidianas #728 - O Ginógrafo *
" (...) Eu era um jovem louro e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa. Ao ouvir cantar Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu para ter ciúme, deu para me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora para Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa. Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava para escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda a concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saíam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa. (...)"
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
"Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)", de Alejandro Ganzáles Iñárritu (2014)
por Paulo Moreira
Edward Norton e Naomi Watts, ambos em
atuações destacadas
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por Cly Reis
Dia desses, na casa de serra do meu cunhado, meu sobrinho emprestado assitia a um filme que tinha gravado enquanto eu, na mesma sala, apenas brincava com a minha filha. Só que de repente, numa olhada que outra para a tela, aquele filme me começou a chamar a atenção. Porque não cortava. Não tinha cortes. Um plano sequência longo, longo, longo, com várias cenas e situações se desenvolvendo, câmera viajando, mudando de ambientes, personagens entrando e saindo de cena. O que era aquilo? Era "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)" (2014), um dos concorrentes a melhor filme para o Oscar deste ano e por sinal, um dos filmes com maior número de indicações.
Me prendeu. Não parei mais de ver. Parei de brincar com a minha filha, passei a tarefa pra minha esposa pelas 2 horas seguintes e mergulhei na telinha. Como havia perdido o início, assim que acabou, voltei para ver desde o começo e quase acabo assistindo todo ele novamente.
Riggan perseguido pelo seu próprio personagem. |
No que diz respeito a direção, só o fato de conduzir o filme praticamente todo em planos sequência (sutilmente interrompidos, é verdade), entrelaçando as situações de maneira tão hábil, fazendo de forma muito competente com que elementos da vida dos personagens confundam-se com o roteiro da peça encenada por eles dentro do filme, já são motivos muito fortes para que o bom, cada vez melhor, Alejandro Gonzáles Iñárritu, de "21 Gramas", "Babel" e "Biutiful", saia da cerimônia do próximo dia 22 de fevereiro com a sua estatueta na mão.
Por razões parecidas, por essa integração que ao mesmo tempo é um conflito do andamento da história com o da peça, com o desenvolvimento dos personagens, em especial com a vida do personagem Riggan Thomson, vivido por Michael Keaton, é que acho que, também, é impossível ignorar a qualidade de um roteiro assim, simplesmente brilhante e deixar de premiá-lo com o Oscar da categoria. E aí que me intriga que a edição não tenha sido indicada, uma vez que para fazer funcionar uma direção sem cortes e um roteiro tão bem concatenado, a montagem, preciosa e crucial para o filme, se destaca como ponto alto e inevitavelmente ligada às duas outras indicações que qualificam o filme.
Conflito de bastidores entre diretor e ator. |
O filme de Iñárritu é a mesmo tempo uma crítica e uma homenagem ao mainstream, à fama, à voracidade da indústria do entretenimento que é capaz de elevar alguém a uma condição de idolatria desmedida, quanto tem o poder de devorar esta mesma pessoa.
Inteligente, dinâmico, mordaz, engraçado, lúdico, poético, reflexivo, na minha opinião, "Birdman" só não leva o prêmio principal por aquelas coisas da Academia que a gente sabe como são. O tal "Doze Anos de Escravidão", um bom filme, porém bem comunzinho, levou o grande prêmio no ano passado, né? Pois é. Diretor estrangeiro, andamento atípico, humor negro... Fatores que podem contar a favor ou contra. Nunca se sabe quais os critérios que o pessoal de Holywood vai adotar.
Mas independente de premiações, fiquei muito satisfeito por, assim, quase sem querer, ter topado com um filme como esse. Daqueles que deixam quem gosta de cinema, em todos os seus detalhes, plenamente satisfeito. Daqueles que enchem a alma de satisfação.
terça-feira, 28 de novembro de 2023
“A Guerra dos Botões”, de Yves Robert (1962)
Botões, bolitas e bytes ou A mesma guerra*
Não é de se estranhar que crianças ou adolescentes, ao perceberem a divisa que se lhes impõe entre infância/adolescência e a desencantada fase adulta, pensem assim. Um dos filhos da psicanálise, o cinema, invariavelmente, toma-lhe emprestado conceitos teóricos para, a seu modo, evidenciar a condição humana e as mudanças sociais. Pois mesmo que nem sempre dita da boca pra fora, esta frase ecoa através das últimas décadas através de filmes que, historicamente pontuais, revelam sentimentos em comum no comportamento juvenil da idade contemporânea. Terreno onde se encontram e dialogam “A Guerra dos Botões” de Yves Robert (“La Guierre des Boutons”, França, 1962), “Os Meninos da Rua Paulo” e “A Rede Social”.
Se a tal frase é proferida em apenas um dos filmes, o fato de não aparecer nos dois outros é quase detalhe. Aliás, nem precisaria, de tão implícita que está. Afinal, todos os três se compõe do mesmo barro: a construção do sujeito e seus limites de razão e moral.
”A Guerra dos Botões” equilibra realidade e sonho, empunhando aspectos sociais universais através de um olhar sincero e lúdico, mas não menos satírico e crítico. Ao estilo dos realistas fantásticos (além de Vigo, lembra bastante Renoir na sua suave complexidade humanística), conta a história de um grupo de estudantes da interiorana e pobre Longeverne, que, liderados pelo rebelde Lebrac, declaram guerra aos da vizinha e igualmente carente Velrans. A ideia é arrancar todos os botões e confiscar os cintos dos “presos”, para que, mais do que serem castigados pelos pais ao voltarem para casa, percam sua honra ao deixar à mostra as cuecas. Revoltado contra a tirania dos adultos, Lebrac - um símbolo inconsciente da criança que quer ter o direito de ser criança - foge para não ser internado no orfanato. Através de uma temperada fotografia p&b e do clima fantástico proporcionado pela ambientação silvestre Robert mostra como o ser humano, a partir de sua tomada de consciência da realidade, elabora as questões de afeto, orgulho, rejeição e socialização.
Peanuts e Ozu
Não à toa, a ”A Guerra dos Botões” foi premiado com o Jean Vigo de Melhor Filme infanto-juvenil, pois presta uma justa homenagem ao diretor de “Zero de Conduta” (1933) a ponto de parecer-lhe uma obra póstuma. Robert, assim como Vigo, joga sua perspicaz lente sobre as questões da criança numa pequeno universo, ajustando o foco sobre os desajustes sociais, o abismo entre as gerações e os valores decaídos. Seu enquadramento lembra o plano rebaixado das tirinhas Peanuts de Charles Schultz e dos filmes do japonês Yasujiro Ozu, tal é a sintonia que estabelece com a vida das crianças. Os adultos aparecem aos poucos, como “fantasmas”, como uma triste materialização do erro a que aquelas crianças se tornarão no futuro.
A turma de Charlie Brown e "Filho Único", de Ozu: Ocidente e Oriente na visão das crianças |
Feito sete anos depois, sob uma textura de cores oníricas que valoriza a tonalidade natural (como o amarronzado da terra, da madeira e das peles coradas da meninice), o húngaro “Os Meninos da Rua Paulo” (“A pál-utcai fiúk”, dirigido por Zoltán Fábri e inspirado no clássico do escritor Ferenc Molnár) se assemelha bastante a “A Guerra dos Botões” estrutural e formalmente falando. A narrativa, os elementos simbólicos, as atribuições de valores, a dinâmica e a variedade dos enquadramentos, etc. Porém, diferente do primeiro, onde o personagem Lebrec revolta-se contra o opressor sistema da família e da escola, neste, é o pequeno Nemecsek quem paga pela bravura ao desafiar os rivais, acamando-se com pneumonia por causa de um banho gelado e, consequentemente, morrendo..
A paisagem inocente de “A Guerra...” é substituída por uma capital Budapeste do final do século XIX de ares bucólicos, uma cidade grande ainda por se tornar grande como aquelas crianças. Os “botões morais”, aqui, se trocam por bolitas de gude – e tão importantes moralmente quanto botões. Se o orfanato antes representava a pena por virar adulo, aqui, passa pela perda do amigo e pelo progresso social que avança ao ser construído sobre o terreno da rua Paulo, palco das divertidas guerrinhas, um moderno e imponente prédio.
Rua Paulo
Pois ambas as obras se unem por um ponto: a necessidade de se inventar convenções de interatividade social. A psicologia infantil julga natural que a criança imite o adulto como um “ensaio para o futuro”. Hoje, no entanto, na era da Internet, jogar gude ou fazer guerrinha na floresta já não é tão interessante às crianças como prática de interação social, e a esta etapa fundamental do que se chama de Psicologia do Desenvolvimento se põe um imenso vazio. A mídia, ditadora de padrões e proto-verdades, ocupa o lugar dos pais em aspectos relevantes da criação, como a elaboração dos valores e a orientação cognitiva. Isso faz com que as crianças/adolescentes pulem etapas, agindo não só cada vez mais igual aos adultos como, também, “amadurecendo” precocemente.
"Os Meninos...": os conflitos reais entre realidade e sonho |
É o caso do jovem Mark Zuckerberg, do bom “A Rede Social” (“The Social Network”, 2010). No filme do talentoso David Fincher, a não-assimilação das frustrações da vida adulta, como o fora da namorada e a rejeição pela “fraternidade” a qual dava tanto valor, inflamaram a necessidade de pertencimento do protagonista, levando este “herói pós-moderno” a criar, em resposta, a sua própria “fraternidade”. Mas não sem pena: cunhar o bilionário Facebook (hoje Meta, agrupando aí o Instagram) rendeu-lhe fama e divisas (ou seria “admiração dos coleguinhas” e “muitas bolitas”?), mas também algo mais grave, típico dos dias atuais: o isolamento – tal qual num orfanato ou uma cama de enfermo. Mas se os personagens de “A Guerra...” e “Os Meninos...” lograram reconhecimento, por conta de suas condutas pautadas em símbolos comuns ao grupo, a amoralidade despreocupada de Mark, característica da Geração Y, abre espaço para uma nova ética. A razão, nos dias atuais, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli, dá lugar à lógica da “hedonização”, à fragmentação dos sentimentos e emoções no coletivo, e não mais no âmbito pessoal.
Assim, os três filmes, mesmo produzidos em épocas tão distintas, se conectam por esta necessidade de criação de significados que justifiquem a existência. Junto ao “rito de passagem” que marca a fase inicial da vida para aquilo que se será até a morte brota a insegurança do esvaziamento de sentidos, da perda de algo genuíno, de si mesmo. “Serei, a partir de agora, só mais um ‘boboca’”? “O quão inevitável é esse ciclo”? Como em “Zero de Conduta”, onde as impostas verdades da escola interna oprimiam principalmente as crianças que se opunham àqueles cambaleantes valores do mundo entre-Guerras, a vida moderna coloca, hoje, situações que, embora diferentes em forma, implicam no questionamento de signos semelhantes.
Zero de conduta
Poster do clássico de Vigo |
Entretanto, mais do que isso, outro fator une ideologicamente essas obras: os limites entre as razões moderna e pós-moderna. Se nos dois filmes mais antigos ainda se preservava uma crença na razão, esta passa, agora, a não ter peso. N’”A Guerra dos Botões” há uma cena que, no meio da batalha na floresta, os dois exércitos se unem para socorrer um coelho com a pata machucada. Naquele momento, todos pararam de guerrear, e se estabeleceu uma fronteira entre real e imaginário. Igualmente, ao perceberem que cometeram um erro ao roubar à força as bolas de gude do pequeno Nemecsek, de “Os meninos...”, os grandalhões e valentões do grupo rival reveem sua conduta e devolveram-nas a seu dono. Em “A Rede Social” tudo isso cai por terra. Mark rouba ideias descaradamente e “puxa o tapete” de amigos sem culpa. E isso, na sua “crença”, é normal. Afinal, para que lhe servem valores de lealdade ou justiça com tanta fortuna e 500 milhões amigos (virtuais)?
Mark, Lebrac, Nemecsek
Mark é astuto como Lebrac e Nemecsek, mas moralmente alheio. Algo dentro de pessoas da sua geração, desta geração, se perdeu, e não é de se estranhar que justo a palavra “amizade” soe ao mesmo tempo tão poderosa e irônica nas redes sociais. Já não se acodem mais coelhos machucados nem se arde em febre até a morte para se preservar dignidade. Para aquele jovem Zuckenberg, não é isso que tem valor. O negócio é se proteger. Encarar as emoções de frente dá margem a se demonstrar fraco. É mais fácil fechar-se num tubo de mensagens curtas e de distâncias físicas seguras; pois, se não, a guarda se abre para que se lhe arranquem os botões e lhe caiam as calças.
Zuckenberg: astúcia sem tempos de hedonização |
Pensando bem, parece, sim, estar se falando de dignidade; só que de outra forma, assim como de reconhecimento, proteção, laços, amor... e talvez “A Rede Social” também seja um filme sobre crianças... e sejamos todos meio bobocas.
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trailer de "A Guerra dos Botões"