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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

"Leite Derramado" de Chico Buarque - Companhia das Letras (2009)



Definitivamente a carreira literária de Chico Buarque está consolidada com êxito e qualidade. Mesmo já tendo sido lançado há quase um ano, somente agora tirei da estante para ler seu último livro, “Leite Derramado”, e este é ainda melhor que o ótimo “Budapeste”. Naquele anterior, Chico ainda tratava de brincar com as palavras, com o tempo, com o espaço, num jogo quase musical, mas neste, constitui verdadeiramente um romance de escritor, deixando um pouco de lado o compositor, sem, contudo, perder sua poesia.
“Leite Derramado” é uma saga de uma tradicional família da aristocracia brasileira contada através das memórias de um velho moribundo, mas de uma maneira muito breve e sucinta ao contrário da maior parte das obras do gênero que se estendem em épocas, personagens e contextualizações. Não que um “O Tempo e o Vento”, por exemplo, seja chato por conta disso, mas dentro da proposta, do ritmo pretendido, das características dos personagens, acaba sendo meritória esta objetividade. O barato é que como tratam-se de lembranças de um ancião, sua trajetória e de sua família vão sendo montadas com uma proposital desordem, conduzidas pela ausência de linearidade das memórias do velho; remontando momentos do Brasil e contextualizando as situações no tempo, sem uma ordem cronológica correta.
Com este recurso, de contar a história em primeira pessoa pela voz de um centenário supostamente semi-senil, Chico ao mesmo tempo que nos dá, nos tira informações. Por conta da memória fraca, do estado físico, da fraqueza, do sono ou dos remédios, o velho Eulálio Assumpção, enquanto relata ora a enfermeiras, ora à filha que o visita, ou a talvez ninguém; acaba ou se repetindo cansativamente, ou omitindo detalhes ou mesmo mentindo em seus longos monólogos. Nisso magicamente, um fato que é contado num capítulo é desmentido em outro como se o velho tentasse enganar a si mesmo ou inventar uma outra realidade; fatos são minimizados mas logo acabam-se revelando extremamente relevantes adiante; idéias são repetidas como se fossem apenas esclerose de velho, mas pela reafirmação mostram-se marcas profundas naquela vida; e personagens vão ganhando força e expressão aos poucos, a ponto de se tornarem quase míticos como a esposa Matilde, um espécie de Capitu-Lucíola-Gabriela, que desde já inscreve-se entre as grandes personagens femininas da literatura brasileira.
Sinceramente, eu ainda tinha minhas reservas quanto ao Chico escritor. Não por não ter gostado do que já tinha feito – muito antes pelo contrário - mas por achar que estava acertando, sim, porém sem se arriscar muito e que seus maiores méritos como romancista vinham muito dos recursos dos quais já se utilizava freqüentemente como letrista. Mas não. Eu estava errado. O processo evolutivo era gradual mas evidente e depois de uma roda-viva como a de “Budapeste”, é num livro sem ação, passado num leito de hospital, num romance sólido e seguro, sem grandes arroubos criativos, mas com uma admirável estrutura, que Chico Buarque se inscreve decididamente, na minha opinião, entre os grandes escritores da literatura brasileira contemporânea.



Cly Reis

quarta-feira, 22 de abril de 2015

"O Irmão Alemão", de Chico Buarque - Companhia das Letras (2014)



Decepção não seria uma palavra correta tampouco justa para classificar meu sentimento em relação a “O Irmão Alemão” de Chico Buarque. Eu poderia dizer, sim, é que o todo ficou aquém das minhas expectativas. Letrista consagrado, de inegáveis méritos compositivos e linguísticos, Chico teve êxito imediato na carreira de escritor apresentando um crescimento literário evidente desde seu primeiro romance, até por isso, de minha parte, esperava algo realmente arrebatador. Não foi bem assim.
“O Irmão Alemão”, livro semi-autobiográfico que narra a história de um homem, no caso o próprio autor, que por acaso, em uma carta perdida entre livros, descobre que o pai tivera um filho na Alemanha, antes do casamento, no período entre guerras, e passa a empenhar-se por encontrá-lo, perde-se um pouco exatamente nesta tentativa/intenção de colocar a ficção na realidade o que a meu entender impediu o autor de soltar-se completamente no romance. Ainda que traga as inegáveis qualidades de escrita de Chico, a condução, o ritmo, a sonoridade das palavras e aquela quase musicalidade da narrativa, “O Irmão Alemão” não consegue emplacar, não engrena, não tem a fluência natural que conquiste o leitor. A 'confusão' comumente proposta por Chico Buarque de presente-passado-anseio-devaneio-sonho' tão bem utilizada em "Leite Derramado", por exemplo, não funciona tão bem desta vez e não colabora para o desenvolvimento da trama de maneira tão consistente quanto nos trabalhos anteriores.
Talvez um pouco pela questão emocional, pelo envolvimento, Chico não tenha conseguido tirar o máximo de si como romancista, sempre tendo que prender-se um pouco à sua própria história e de alguma forma ser fiel aos fatos. Fato é que para mim, “O Irmão Alemão” não passa de uma leitura interessante, não é chato, não é cansativo, mas também não é nada de excepcional. Talvez meu pequeno desapontamento e cobrança residam no fato que o crescimento qualitativo era tão progressivo; do bom “Estorvo”, para o muito bom “Benjamim”, para o ótimo "Budapeste", até o excelente "Leite Derramado"; fosse de se esperar algo 'fora do comum'. E não foi. Foi comum.
Mas qualidade e talento é que não faltam em Chico Buarque e tenho certeza que os próximos estarão à altura do que ele pode fazer. Fica pra próxima.


Cly Reis

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

"Estorvo", de Chico Buarque - Ed. Companhia das Letras (1991)

 

À esq., capa original, de 1991; à dir.,
nova capa da edição comemorativa de 30 anos da obra
Dias atrás li na postagem de uma amiga de redes sociais a pergunta capciosa de quando Chico Buarque ganharia uma indicação para Nobel de Literatura. O comentário vem em um momento bem apropriado, pois, além do lançamento recente de um novo livro, “Anos de Chumbo”, seu primeiro de contos, a trajetória literária do celebrado autor carioca atinge um marco importante em 2021: os 30 anos de “Estorvo”. Embora não seja o primeiro livro de Chico, homem da música mas também das letras desde os anos 60 (sua primeira peça para teatro, “Roda Viva”, data de 1968), este pequeno romance determina-lhe o começo de uma carreira editorial propriamente dita. Tamanha importância, inclusive, justifica-se no relançamento da obra em caprichada edição comemorativa.

Narrado em primeira pessoa, "Estorvo" é a saga de uma caçada de um homem sem rosto a um homem tolhido por sombras e fantasmas. Uma trajetória obsessiva, constantemente no limite entre o sonho e a vigília, pela qual o protagonista se depara com situações e personagens estranhamente familiares. Através da metáfora de um olho mágico, que distorce a imagem humana, engendra projeções de um desespero subjetivo e uma crônica do cotidiano.

Passadas três décadas de dedicação ora aos livros, ora à música, intercalando projetos entre um universo e outro com domínio incomum, é evidente que Chico evoluiu em termos literários de lá para cá. Seja por berço ou por talento próprio, Chico carrega em si o trato com a palavra, a se ver por toda sua obra. A exatidão do emprego dos verbos, o proveito da musicalidade vocálica e o uso preciso das possibilidades gramaticais e sintáticas infinitas do português lhe são inegáveis, seja na música, no teatro ou no cinema. Depois de “Estorvo”, entre seis discos novos de estúdio, escreveu o mesmo número de obras, entre as quais “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003) e “Leite Derramado” (2009), esta última, uma obra-prima da literatura brasileira do século XXI. Como prêmios, o próprio “Estorvo” levou Jabuti em 1992, feito repetido por “Leite Derramado”, em 2010. Em 2019, pouco antes de lançar “Essa Gente”, nova consagração: o Prêmio Camões, maior reconhecimento dado a um escritor em língua portuguesa.  

Mas o que “Estorvo” trouxe a este exitoso caminho de Chico pelas palavras escritas? A começar que, se houve evolução em seu estilo, muito já estava presente neste primeiro romance. A prosódia machadiana, farta de elementos visuais e psicológicos, e o ritmo e construção narrativos muito bem armados (não raro, de pegada musical) estão ali muito mais conscientes do que em “Fazenda Modelo”, novela escrita nos anos 70, esta sim, o primeiro impulso estritamente literário do artista sem que houvesse alguma relação com o teatro. Outra característica de “Estorvo” amplamente desenvolvida nas obras subsequentes, é o olhar social crítico e o universo imaginário, que coloca o leitor em uma fronteira interessante entre o surrealismo e a vida real. A isso soma-se, ainda, outra peculiaridade da escrita do autor de “Vai Passar”, que é o humor – por vezes, ácido dada a ocasião em que se lhe usa –, o que ajuda tanto a quebrar o estranhamento para com surreal quanto, em igual tamanho, condicionar o leitor à proposta narrativa.

Este trecho de “Estorvo” denota bem esta composição formal muito própria de Chico:

“O porteiro quer porque quer carregar a mala, quer correr para me abrir o elevador, quer me chamar de patrãozinho e diz que o bom filho à casa torna. Negro quase azul, embora perdendo o lustre ultimamente, já tinha a cabeça branca trinta anos atrás. Usa sempre o mesmo colete listradinho, com que fica parecendo escrevo de cinema. Anda num passo miúdo, sofre de artrose, e vive contente da vida. Certa vez comprou um rádio e deu para escutar programas de variedades, desses em que as pessoas falam de todos os assuntos com eco na voz. O aparelhinho era potente, irradiava do hall para o poço do elevador, e daí para o prédio inteiro. Uma noite meu pai foi me buscar na rua, e já desceu impaciente, porque quando chegava em casa queria ver todo mundo lá dentro. "Qualquer dia eu entro e passo o ferrolho na porta!" Arrastou-me de volta pelo pescoço, cruzando o hall pela terceira vez seguida, com o locutor lendo o horóscopo, meu pai mandou o porteiro desligar aquela porcaria. E disse que nunca viu empregado ligar para astrologia, ainda por cima crioulo, que nem signo tem. O porteiro achou aquilo coisa mais engraçada. Vendeu o rádio e passou meses rindo muito e repetindo: "crioulo não tem signo, crioulo não tem signo."

“Estorvo” também tem a importância de ser mais uma obra de Chico levada ao cinema em anos depois de "Ópera do Malandro" e "Pra Viver um Grande Amor" na ousada versão do amigo Ruy Guerra, de 1998, movimento que ocorreria posteriormente com “Benjamim” (Monique Gardenberg, 2003) e “Budapeste” (Walter Carvalho, 2009) e, em certa medida, “O Irmão Alemão” (2014), cujo elemento central é antecipado no documentário “Chico – Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr. (2013).

filme "Estorvo", de Ruy Guerra (1998)


É natural que Chico tenha aperfeiçoado sua forma literária, assim como, noutro âmbito, ocorrera em sua música. Por esta ótica, “Estorvo” é quase como serviu-lhe a trilogia “Chico Buarque de Hollanda”, gravada por ele entre 1966 e 1968, fundamental para erigir, com maturidade e experiência, os grandes álbuns que legou à discografia nacional a partir de “Construção”, de 1971. Trazendo para a literatura, sem o passo inicial de “Estorvo” não teria este chegado ao prestígio que hoje goza não fosse este livro, que o pôs definitivamente na lida da escrita. Quem sabe, então, agora, um Nobel? Considerando a relativização que os prêmios e instituições literários no mundo todo vem fazendo após a Bob Dylan tornar-se Nobel de Literatura em 2016, abrindo espaço para "não-literatos" mais fortemente ligados à música, por que não pensar num segundo autor de língua portuguesa depois de Saramago? Chico, com mais merecimento do que muitos outros, capacita-se totalmente.


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

peça "Leite Derramado", de Chico Buarque – Cia. Club Noir - Sesc Ginástico – Rio de Janeiro/RJ



Crítica social ressignificada na montagem teatral.
foto: divulgação
É excitante como espectador quando se assiste a um trabalho que, baseado numa obra literária, consegue transpor ideias fundamentais contidas nesta, seja mantendo-se fiel ao escrito ou, mais que isso, transformando conceitos suscitados no texto original de forma a ressignificá-los. E se já é assim para quem assiste, imagina-se para o próprio autor. Pois essas duas percepções, de espectador e de autor, estiveram presentes na apresentação da peça "Leite Derramado", no teatro do Sesc Ginástico, no Centro do Rio de Janeiro. Nós, Leocádia, Carolina, Iara, eu e mais centenas de espectadores (entre os quais Denis Carvalho, Cissa Guimarães e outros conhecidos), maravilhados com a competente e rica montagem da companhia paulista Club Noir. E o próprio autor, o gênio Chico Buarque, que estava presente na última apresentação da peça na temporada carioca – como o mesmo fizera na estreia, ocorrida em São Paulo.
Impressionante jogo de luzes e cenário.
foto:divulgação
O encanto com a montagem, não à toa, é obtido, entretanto, com empenho. Afinal, a peça, bastante fiel ao material escrito, não é necessariamente fácil e nem palatável em vários momentos. A complexidade da literatura de Chico neste que é provavelmente seu melhor romance é um desafio a ser enfrentado ao leitor, o que se intensifica ainda mais numa transposição para o palco. A história de Eulálio Montenegro D´Assumpção, um centenário senhor carioca de família aristocrática decadente, ganha cores irônicas e, tragicamente, bastante pertinentes com a realidade política brasileira atual. Em seu leito de morte no hospital, o personagem relembra fatos de sua vida que são narrados como um caleidoscópio descontrolado pela memória já envelhecida, memória esta que serve como um registro da própria história do Rio de Janeiro, da política do Brasil e da constituição da identidade do povo brasileiro.
Não é preciso uma visão muito aguçada para perceber que, quando se fala em das famílias oligárquicas ou das diferenças sociais, está se tocando em veias ainda abertas da sociedade brasileira.
O desafio da transposição, contudo, é superado pelo diretor Roberto Alvim, que soube aproveitar o barroquismo do texto é aproveitado de todas as formas, sinalizando diferentes pontuações nos vários personagens. Porém, o principal é Juliana Galdino, atriz que encarna incrivelmente o protagonista, o desvairado Eulálio. A forte e impressionante atuação é o fio condutor de toda a encenação. Juliana, com hábeis modulações de entonação de voz e expressão corporal, dá vida ao personagem em suas diferentes fases da vida, das lembranças da adolescência e vida adulta à presente velhice senil.
A impactante atuação de Juliana
no papel masculino do protagonista.
foto: divulgação
Igualmente, a companhia consegue êxito ao manter a construção narrativa da obra, toda cheia de idas e vindas no tempo, seja este histórico ou emocional do protagonista. Os jogos de luzes, som e cenários, muito criativos e da mais alta qualidade técnica, dão conta disso, inclusive na expressão dos devaneios febris de Eulálio. Um dos pontos mais interessantes da obra escrita, as quase repetições que se dão ao longo da narrativa, que exigem reflexão do leitor quanto à veracidade das “versões”, é mantido. Também, o tom irônico e crítico ganha relevos, como no preâmbulo, em que moscas encenam uma performance funesta ao som de “Aquarela do Brasil” na versão de Francisco Alves e arranjos de Radamés Gnatalli; ou no final, quando após as últimas palavras de Eulálio, o encerramento se dá ao som de “Deus lhe Pague”, clássica música do período de repressão militar do álbum "Construção" – e ainda tão atual.
Mais do que tudo, a montagem é feliz ao criar uma nova obra, jogando luzes sobre o texto machadiano de Chico tanto para quem já conhecia como para os que não. Além da peça, ainda tivemos a oportunidade de ver o próprio Chico Buarque. Vi quando, minutos depois da sessão ter começado, ele entrou pela porta traseira do teatro. No final, o autor, simpático e sem receio, apareceu no hall – não sem ganhar dois beijos de Leocádia, que o abordou espontaneamente para agradecer-lhe por ser quem ele é. Havia informações de que, agradado com a montagem, iria. E foi. Se nós gostamos, imagina ele.




por Daniel Rodrigues

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Chico Buarque - "Chico" (2011)

"Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora."
trecho de "Essa Pequena"


Fui cheio de dedos ouvir o novo CD de Chico Buarque emprestado pela minha irmã que é mais louca que eu pela música do cara. Estranho foi que esta fãzoca me advertira que o disco não era ‘lá essas coisas’, meio fraco e coisa e tal, só que para ela colocar alguma restrição a um trabalho dele, olha..., era realmente de recear pelo pior. Como agravante, de minha parte já considero há algum tempo que, atualmente, Chico Buarque de Hollanda está mais para um ótimo escritor que faz música do que propriamente para um grande músico, o que tornava minha muito provável minha concordância com o conceito da fã em questão, dona do CD.
Peguei então para escutar descompromissadamente, meio assim, durante o café da manhã; e talvez por não esperar muito, a cada faixa que se seguia se me apresentava uma positiva surpresa. O disco não era tão mal quanto ela tinha pintado. Não, não! De fato é um bom disco. Passa a falsa impressão de ser ‘fraco’ por ser mais lento, ter um andamento mais cadenciado que de costume mas definitivamente para ruim não serve. O problema é que, também, o parâmetro de comparação de Chico Buarque é a própria obra de Chico Buarque, especialmente até a metade dos anos 80, e aí é covardia com ele mesmo cobrarmos sempre um “Almanaque”, um “Chico Buarque (1984), e coisas do tipo. Não é sempre que se faz discos assim.
Mas “Chico” (2011) é sim um bom disco. Ao longo das faixas a gente vai gostando, vai percebendo detalhes, méritos, qualidades e virtudes. “Querido Diário” que abre o CD e que funcionou como uma espécie de faixa-promocional, lançada previamente na internet, não é nada mais que simpática e dá a falsa impressão de que não teremos nada muito melhor pela frente ; “Rubato”, que a segue, é uma marchinha inusitada que causa uma certa estranheza pelo sutil descompasso de melodia e voz numa estruturação ousada de Chico com o parceiro João Helder.
Claramente sob efeito dos encantos de uma jovem, que minha irmã me informou ser a nova musa do compositor ds olhos verdes, Chico deixa transparecer em algumas faixas essa inspiração, mais evidentemente em “Essa pequena”, onde de alguma forma fala das diferenças deles dentro desta relação com idades tão distantes; mas também dá ‘letrinhas’ do assunto na ótima “Tipo um Baião”, ("Não sei para que outra história de amor a essa hora...") a melhor do disco na minha opinião, e na gostosa “Se eu soubesse” uma adorável valsinha que parece algo meio como a visão dela da coisa ("Ah, se eu pudesse não caía na tua conversa mole, outra vez/ Não dava mole à tua pessoa (...)/ Mas acontece que eu sorri para ti / E aí, larari, lairiri, por aí").
Se o Chico compositor está sempre rondando o Chico escritor, o inverso também vale e em faixas como na muito legal “Barafunda” toda a verve romancista com o traço característico dos seus livros está lá, com uma grande ‘confusão’ de memória que embaralha fatos, lugares e pessoas. Em “Nina” pode notar-se traços ou ideias não aproveitadas do seu romance "Budapeste" e em “Sinhá” alguma coisa talvez descartada ou resultante da concepção de  "Leite Derramado".
Merecem também destaque o samba composto com Ivan Lins, já conhecido a voz de Diogo Nogueira, “Sou eu”, que lembra de certa forma sua antiga “Deixa a Menina”; e a retomada da parceria com João Bosco, que já havia feito com ele a ótima "Mano a Mano" , na já referida, “Sinhá”, um comovente e triste samba de senzala que encerra o disco.
Não é o "Construção" , é verdade, não é um “Paratodos”, tá bem, mas não é em nada desprezível o novo trabalho musical deste grande escultor das palavras. Até que dá para dar um crédito para este escritor aí que andou se aventurando a gravar um CD. Tem futuro, tem futuro o garoto.
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Ouça:
Chico Buarque - "Chico" (2011)




Cly Reis

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

"Essa Gente", de Chico Buarque, ed. Companhia das Letras (2019)



"Essa Gente", último trabalho literário de Chico Buarque, não chega a ser uma decepção, mas passa longe das melhores expectativas que eu pudesse ter. Se a irregularidade de "O Irmão Alemão" podia ser relevada pelo caráter autobiográfico do romance e alguma possível dificuldade de conciliar as características ficcionais com as realísticas, aliadas a um compromisso com os fatos ocorridos e sua cronologia, somados ainda a uma eventual carga emocional que o relato pudesse carregar, no novo romance não há tantos atenuantes para uma obra tão simplória. Chico escreve bem, é claro, o livro não é um lixo, mas em "Essa Gente" parece excessivamente relaxado e quase descompromissado com o produto final. O livro concentra suas atenções na vida do personagem Duarte, um escritor que alcançara sucesso com um de seus romances mas que no momento vive uma crise criativa, sendo constantemente cobrado pelo editor para concluir seu prometido novo trabalho. Em meio a isso convive com questões mal-resolvidas com as ex-esposas, tenta uma aproximação com o filho adolescente, vai sobrevivendo do jeito que pode às dificuldades financeiras, conhece pessoas em suas caminhadas pelo Leblon e idas à praia e vivencia situções cotidianas, que vão lhe servindo de material para a construção do livro que vai se escrevendo e se confundindo com sua prórpia vida ao mesmo tempo que vamos acompanhando o passar de seus dias, num relato em forma de diário. Embora Duarte seja o protagonista, "Essa Gente" é mais sobre todo o entorno do personagem, todo o contexto, do que exatamente sobre ele mesmo. A crise econômica, política, social e moral do país; a natureza das pessoas que o cercam; as distorções sociais com a dura realidade do brasileiro comum e os privilégios das classes altas... e ele, Duarte, como que vivendo entre dois mundos, em meio a isso tudo, por uma lado ainda desfrutando do prestígio de seu romance de sucesso, de um sobrenome de respeito, da sombra de uma antiga condição social, e por outro, se equilibrando na corda bamba com para pagar as contas, para viver, longe de viver seus melhores momentos como escritor e sentindo-se mais à vontade com o pessoal da favela do que com os da alta-roda carioca.
No fim das contas, embora não seja ruim e tenha lá seus méritos, a gente lê "Essa Gente" e sai com aquela sensação de "Tá bom, né...", mas, no íntimo, lá no fundo querendo mais. E a gente quer mais porque sabe que dali sai mais. É que Chico meio que nos deixou mal acostumados. Depois da boa estreia com "Estorvo", aquela crescente empolgante com "Benjamim", "Budapeste" e "Leite Derramado", nos fez esperar sempre por coisas maravilhosas e às vezes vem coisas... normais. Coisas que parecem ter saído de um escritor comum. O problema é que nós sabemos que não é.


Cly Reis