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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

************

50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


quinta-feira, 17 de agosto de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial de 15 anos do ClyBlog - Accept - "Restless and Wild" (1982)



 
Acima, a capa da versão brasileira
e abaixo a de Europa e EUA
"Não sei se somos modelos, mas certamente ajudamos a iniciar todo esse gênero [Trash Metal] de certa forma, e isso me deixa muito, muito orgulhoso. É uma grande honra ter todas essas bandas nos nomeando como sua influência. E eu já ouvi tantas vezes 'Cara, quando ouvimos ‘Restless and Wild’ isso nos fez começar a tocar música.' E para muitas bandas, esse foi o ponto de partida, então isso é incrível. O que mais você pode querer da vida ou da sua carreira musical?"
Wolf Hoffmann


A primeira vez que tive contato com o Accept foi lá pelo início de 1984, escutando o Central Rock, na saudosa Ipanema FM, 94.9, apresentado pelo Ricardo Barão. O programa acho que era transmitido de segundas às sextas ou apenas uma vez por semana, não recordo com exatidão, mas ia ao ar das 22h às 24h. 

A música da banda alemã tocada foi "Fast as a Shark", a primeira faixa do disco "Restless and Wild", de 1982. E o seu começo era estranho, pois começava com um som chiado e uma voz feminina cantando “Heidi, Heido, Heida”, e na sequência, escutávamos uma agulha arranhando o disco e entrava o vocal gritado de Udo Dirkshneider, seguido de uma bateria insana e solos de guitarra. O efeito trazia a música tradicional alemã ("Ein Heller und ein Batzen", escrita em 1830 por Albert von Schlippenbach) e de acordo com o guitarrista e líder Wolf Hoffmmann, era para enganar os ouvintes, pois ao colocar o disco, eles iriam escutar uma música que não tinha nenhuma conexão com o álbum e teriam certeza de que haviam comprado o LP errado. Uma pegadinha que deu certo. 

A música em questão, "Fast as a Shark" ("Rápido como um Tubarão") é considerada a pedra fundamental do Thrash Metal, do Speed Metal e do Power Metal. E não sou eu que estou afirmando. A opinião foi dada por integrantes de várias bandas do gênero, como Metallica, Exodus, Anthrax. O vocalista do Exodus, Steve Zetro Souza, afirmou que ao escutar "Fast as a Shark" teve uma espécie de epifania. "É isso, é isso", soltou ele, que confessa cantar baseado nos vocais de Udo Dirkschneider e Bon Scott, do AC/DC

No dia seguinte ao escutar o Central Rock, fui atrás do LP para comprá-lo. Adquirido, é um dos meus preferidos desde sempre. E passados quase quarenta anos, sigo escutando o trabalho da banda alemã, surgida na cidade de Solingen, na então Alemanha Ocidental nos anos 1970. 

"Restless and Wild" é um daqueles álbuns perfeitos, ou seja, todas as suas músicas são excelentes, assim como "Powerslave", do Iron Maiden, e "The Wall", do Pink Floyd. Ele é o quarto da discografia do Accept, sucessor do  debut homônimo de 1979, “I’m A Rebel”, de 1980, e “Breaker”, de 1981. 

A obra foi para as lojas europeias no dia 2 de Outubro de 1982, com dez faixas. Nos Estados Unidos seria lançada no ano seguinte, e chegando ao Brasil no começo de 1984, sendo o primeiro da banda a sair por aqui. Nesta época o estilo Heavy Metal começava a criar força incomum no nosso país, chegando ao auge em 1985, com o advento do primeiro Rock In Rio.  

Já falei da música ícone "Fast As A Shark", que abre o lado A, seguida de "Restless And Wild", que dá nome ao disco e como o nome diz, é de uma selvageria musical, até hoje presente nos shows, "Ahead Of The Pack", "Shake Your Heads" e "Neon Nights". 

No lado B, estão "Get Ready", que tem uma pegada a la Judas Priest, "Demon’s Night", "Flash Rockin’ Man", "Don’t Go Stealing My Soul Away", um dos títulos de música mais legais, e a épica "Princess Of The Dawn", com um solo monstruoso de Wolf Hoffmann, e uma das minhas preferidas de todos os tempos, escutada pelo menos uma vez por semana desde aquela época. 

A capa original do "Restless And Wild" apresenta uma foto de duas guitarras, modelo Flying V, cruzadas e pegando fogo. Aqui no Brasil, no entanto, a capa do álbum mostra a banda se apresentando ao vivo, com luzes vermelhas e vários amplificadores, e em destaque Udo Dirkschneider estrangulando o baixista Peter Baltes - sendo a mesma da versão japonesa. 

“Restless And Wild” abriu caminho ainda para uma sequência clássica de grandes lançamentos. O disco seria sucedido pelos mega-clássicos “Balls To The Wall”, de 1983,  “Metal Heart”, de 1985, e "Russian Roulette", de 1986. Então, o Accept entraria em crise, com a saída de seu fundador Udo Dirkschneider, que seguiria carreira solo. A banda alemã entraria em colapso nos anos 1990, entrando em um hiato de quase 15 anos. A volta aconteceria em 2010, com novo vocalista, Mark Tornillo, estando na ativa até hoje. 

Quatro fatos sobre o Accept em minha vida:  

Na época do II Grau (hoje Ensino Médio), cursado no Colégio Estadual Paula Soares, eu emprestei o disco "Restless and Wild", sim, naquela época a gurizada emprestava ou trocava discos sem medo de não tê-los de volta, para um colega punk. O cara levou o disco para casa, curioso em escutar aquele som novo e diferente. No dia seguinte, ele me devolveu o disco, e contou: "quando cheguei em casa, fui para o quarto e coloquei o disco para tocar. E na primeira faixa, achei que ele estava arranhado. E na sequência, entrou aquele cara gritando...na hora a minha mãe abriu a porta do meu quarto e soltou: 'quem foi o débil mental que te emprestou este disco?'"

Caímos na gargalhada. Afinal, o cara era afeito a escutar bandas punk como Exploited, Sex Pistols, Dead Kennedys e Misfits. Mas a mãe dele achou absurdamente doente o som do Accept. 

Em 2013, assisti finalmente o Accept ao vivo em show no Bar Opinião, em Porto Alegre. E durante a execução de "Balls to the Wall", o guitarrista Wolf Hoffmann se curvou em direção a plateia, olhou pra mim, e disse: "For you, man", colocando uma palheta na minha mão. 

Anos depois, sem conseguir achar uma camiseta do "Restless and Wild" (eu coleciono camisas de bandas), visitei a loja Zeppelin, do Alexandre Nascimento, especialista em ítens sobre Heavy Metal, e comentei com ele. Na hora, o Tiziu pegou o telefone e ligou pra um camarada catarinense, que fez sob medida a camiseta com a capa do disco. E paguei apenas o custo de fabricação, e nada mais: R$ 50,00. 

Por fim, em 2023, pude presenciar o show do vocalista mais ícônico do Accept, quando Udo Dirkschneider se apresentou no Bar Opinião. No setlist, apenas músicas clássicas da banda que ele fundou lá na década de 1970. 

Agora, chega... bora escutar pela milionésima vez "Restless and Wild" e acordar a vizinhança.


por C H I C O   I  Z I D R O


★★★★★★

FAIXAS:
1. "Fast as a Shark" - 3:49
2. "Restless and Wild" - 4:12
3. "Ahead of the Pack" - 3:24
4. "Shake Your Heads" - 4:17
5. "Neon Nights" - 6:01
6. "Get Ready" - 3:41
7. "Demon's Night" - 4:27
8. "Flash Rockin' Man" - 4:28
9. "Don't Go Stealing My Soul Away" - 3:15
10. "Princess of the Dawn" - 6:15
Todas as composições de autoria de Wolf Hoffmann, Stefan Kaufmann, Udo Dirkschneider, Peter Baltes


★★★★★★

OUÇA:



★★★★★★



Chico Izidro é jornalista, crítico de cinema e escritor e youtuber. Nascido em Porto Alegre, estudou no Colégio Paula Soares/Pio XII e é formado em jornalismo pela Unisinos. Teve passagens pela Assessoria de Imprensa do Juizado de Menores, Band AM, Ipanema FM, Placar, Folha de S. Paulo, Rádio Guaíba, A Notícia-SC e Correio do Povo. No YouTube mantém os canais Cinema de Peso, ao lado dos críticos de cinema Criba Aquino e Lauro Arregui, e Guaibadas, onde conta causos de sua vida. É autor de dois romances, “Era Vidro e Se Quebrou” e “Olhos Verdes”.



quarta-feira, 7 de junho de 2023

Debate "O Espaço Encontrado pela Crítica nos Eventos de Cinema e Qual seu Papel no Fomento da Cinefilia" - 1º Encontro dos Festivais Ibero-americanos de Cinema (EFIC) - Cinemateca Capitólio - Porto Alegre/RS (26/03/23)


Faz um tempo que já que ocorreu, mas vale a pena registar o debate do qual fui mediador como crítico filiado a Accirs, no 1º Encontro dos Festivais Ibero-americanos de Cinema (EFIC), realizado na charmosa Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, em março, e promovido pela Fundação Cinema RS (Fundacine) em parceria com a Coordenação de Cinema e Audiovisual da Prefeitura de Porto Alegre. O evento teve como eixo central a criação de um espaço de intercâmbio entre alguns dos principais eventos da Ibero-América, com mesas e painéis temáticos, além de uma mostra de obras cinematográficas que tiveram relevância no cenário destes eventos. 

A salutar discussão da qual participei foi sobre a relação entre a crítica e os festivais e mostras de cinema e qual seu papel no fomento da cinefilia com a presença de três ilustres debatedores: David Manuel Obarrio, responsável pelo Bafici - Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente, na Argentina; Victor Guimarães, cabeça da programação do Ficvaldivia - Festival Internacional de Cinema de Valdivia, no Chile, entre outros festivais e mostras; e minha colega de ACCIRS Ivonete Pinto, jornalista, professora de cinema e editora da Revista Teorema.

Coube a mim fazer uma breve abertura para, em seguida, passar a palavra para os convidados, que tinham muito a falar e de quem o público presente queria ouvir. Obarrio, simpático e sagaz, dentre diversos aspectos que abordou, falou sobre o atual momento do cinema independente na Argentina e do cuidado para não ser levado a padronizações no processo de curadoria de um festival em seu país. O êxito do cinema de realizadores como Pablo Trapero e Lucrécia Martel, conforme disse, acaba por influenciar o formato de novas produções, que perigosamente investem em reproduzir uma espécie de formato já estabelecido por estes estetas. Na sua opinião, para que se mantenha a independência e a proposição de coisas novas num cinema tão exitoso como o argentino é importante que festivais como o que ele representa estejam atentos a isso de forma a não chancelar tal movimento acriticamente para que, com o tempo, não haja uma natural "commoditização".

Já Ivonete, colega de Accirs a quem tenho apreço e admiração, trouxe em sua fala, dentre outros aspectos, o da importância da produção acadêmica para a crítica de cinema. Professora de cinema, ela sinalizou o quando há produções de grande qualidade que refletem com profundidade a arte cinematográfica em artigos de publicações muitas vezes restrita ao meio das universidades. Ivonete também falou sobre experiência na crítica mais corriqueira para imprensa, e com a qual buscava equilibrar o olhar acurado da crítica a uma comunicação mais ligeira e rasa que a notícia do dia a dia (e os leitores) exigem, não raro recorrendo a ironia para absorver aquilo que não considera cinema, como comédias da Globo Filmes ou enlatados hollywoodianos.

Por fim, Victor, com quem comungo de várias percepções, que trouxe uma série de observâncias suas dos festivais e mostras do qual participa no Brasil e no exterior. Com uma visão bastante subjetiva e desprendida de estereótipos, mas focada no aperfeiçoamento constante do fazer e da reflexão crítica do cinema enquanto arte, Victor entende, por exemplo, que não se deve ter pressa em se assistir todos os lançamentos, por mais que mereçam audiência, pois considera, antes de mais nada, fundamental certo distanciamento do espectador/crítico com a obra para uma absorção mais pessoal e íntegra - o que, geralmente, o dilatamento do tempo ajuda a oferecer. Libertador para um cinéfilo como eu ouvir de um profissional tão entrosado com o circuito de festivais e mostras de cinema que há muito a se descobrir de novo nas produções velhas cronologicamente, algo que desde muito me pauta para ver e entender cinema e seu decurso.

O público presente encheu os convidados de perguntas, algumas bem formuladas, outras, nem isso. Mas todas respondidas com generosidade e competência pelos debatedores. Tanto que a mim coube basicamente dar o pontapé inicial e distribuir os questionamentos da plateia antes de encerrar o encontro.

Por conta de limitações de sinal na sala em que foi realizado o debate, o mesmo não foi transmitido ao vivo pelo canal do YouTube do evento. Fizeram a gravação integral, mas não se lançou ainda na rede. Uma pena. Foi um espaço bastante rico para discutir questões inerentes a está relação tão próxima e necessária entre festivais/mostras e a crítica em seus vários níveis, seja na curadoria/programação, seja na cobertura destes eventos, seja na produção resultante disso, além do próprio dialogo entre realizador e crítico. Mesmo sem o vídeo, ficam aí alguns registros de fotos de como foi aquela tarde de domingo na charmosa Cinemateca Capitólio.

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Telão antes de iniciar o debate


Fazendo as apresentações


Ainda sobre os convidados...

Obarrio, convidado de fora, teve a primeira palavra


Victor veio logo em seguida

Ivonete encerrou o primeiro ciclo de falas


Papo sobre cinema e crítica segue interessante


Público não arredou pé


Este que vos fala ao lado do cartaz do EFIC


Daniel Rodrigues



quinta-feira, 23 de março de 2023

Sandra Sá - "Vale Tudo" (1983)


"Alô, Sandra Sá! Aqui é o Tim Maia. Eu fiz essa música pra você. Já tenho a ideia do arranjo, que eu vou falar com o Lincoln (Olivetti). E tem mais: eu vou gravar ela contigo no teu LP!" 
Tim Maia, em ligação telefônica para Sandra Sá, sobre a música “Vale Tudo”

O chamado Black Rio foi o grande movimento cultural próprio do Rio de Janeiro depois da bossa nova. Se não teve a mesma influência ou projeção internacional que as notas dissonantes ou que a Garota de Ipanema, a cena, movida à música soul importada dos states mas com tempero bem tupiniquim, cumpria uma função social corajosa ao exaltar algo inédito naquele Brasil ditatorial dos anos 60 e 70: a cultura negra. Influenciado pelo Black is Beautiful dos Estados Unidos, o movimento Black Rio conseguia levar a pistas brasileiras aquilo que o perseguido samba, o mais brasileiro dos ritmos, nunca havia alcançado, que era a valorização uma raça preponderante em população, mas marginalizada, violentada e desumanizada pelo histórico e estrutural racismo.

As danças, as roupas, os pisantes, os cabelos, a pele, os gestos. Tudo compunha o cenário de deslumbramento e descoberta dos bailes black, que tomavam a Zona Norte carioca. Equipes de som como Furacão 2000, Soul Grand Prix, Modelo, Sua Mente numa Boa, Rick e Revolução na Mente garantiam a festa, frequentada por milhares de pretos e pretas. E claro: a música exercia um papel fundamental nesta inédita onda de autovalorização e resistência. E se a Banda Black Rio tinha a autoridade sonora e onomática de grande grupo da cena, Gerson King Combo o de astro central e Carlos Café o de principal cantor, havia a necessidade de responder também ao público feminino. Sandra Sá, então, naturalmente veio tomar este espaço.

Nascida em Pilares, na Zona Norte carioca, a neta de africanos Sandra Cristina Frederico de Sá levou sua voz rouca e cheia de groove das festas black direto para as rádios, um salto inédito na indústria musical brasileira até então para uma artista negra de música pop. Depois de um celebrado álbum de estreia, em 1980, com direito a música inédita de Gilberto Gil ("É"), Sandra é adotada de vez pela turma da soul brasileira. O sucesso comercial de "Lábios Coloridos", do segundo disco, de 1982, já contava com Lincoln Olivetti nos teclados e arranjos, Robson Jorge nas guitarras, o Azimuth Ivan Conti "Mamão" na bateria e a cozinha da própria Banda Black Rio, a se ver pelas participações ativas de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes e Cláudio Stevenson. Em "Vale Tudo", terceiro e último trabalho pela gravadora RGE, Sandra repetia as parcerias e já estava pronta para sua grande obra, a qual completa 40 anos de lançamento em 2023.

O precioso repertório de "Vale Tudo" une músicas de autores consagrados e da nova geração, que passava a se firmar. A começar pela faixa-título: o sucesso instantâneo de Tim Maia dado de presente por ele a Sandra. Não é difícil entender o porquê: em duo com o próprio Síndico, Sandra solta a voz numa animada disco engendrada pelo próprio autor em parceria com Lincoln e executada pela banda Vitória Régia. Ouvir os dois maiores cantores da soul brasileira juntos foi tão estrondoso, que a faixa ganhou videoclipe do Fantástico e virou hit em todo o Brasil, figurando na 28ª de posição entre as 100 músicas mais tocadas do ano de 1983.

videoclipe de "Vale Tudo", com Sandra Sá e Tim Maia

Mas se tinha Tim, tinha Cassiano também. É dele a autoria do funk suingado "Candura", em preciosa parceria com Denny King, das melhores do disco. E se havia Tim e Cassiano, também aparecia Guilherme Arantes, na romântica "Só as Estrelas", que encerra o álbum. Com o samba-funk brasilianista "Terra Azul", a dupla veterana Júnior Mendes e Gastão Lamounier eram outros que não resistiram ao talento da cantora, sendo fisgados por seu carisma e seu timbre, que não deixava nada a desejar a grandes cantoras internacionais da época. Se os norte-americanos tinham Donna Summer, Roberta Flack e Chaka Khan, o Brasil tinha Sandra Sá.

De fato, ninguém queria ficar de fora do bonde de Sandra. Tanto é que músicos de primeira linha como Serginho Trombone e Reinaldo Árias também tocam e assinam arranjos. Igualmente presente, seja na caprichada produção quanto em arranjos, é o tarimbado violonista Durval Ferreira, cujo currículo inclui trabalhos com Leny Andrade, Sérgio Mendes e o lendário saxofonista de jazz norte-americano Cannonball Adderley. Ferreira também assina duas composições: o tema de abertura, a excelente "Trem da Central", ao lado de Sandra e Macau (este, o autor de “Lábios Coloridos”), e o funk dançante “Pela Cidade”. Ambas as músicas trazem um olhar diferente da Rio de Janeiro idílica da Zona Sul, evidenciando uma cidade preta e periférica que começava a pedir passagem.

Fotos das gravações no encarte
original de "Vale Tudo"
Outras duas delícias emitidas pelo aveludado vocal de Sandra: “Gamação”, soul de muito suingue e romantismo, e a brilhante "Guarde Minha Voz", do craque Ton Saga, tranquilamente uma das mais belas canções pop-soul já gravadas no Brasil. Uma joia equiparável a outros “clássicos B” do AOR brasileiro, como “Débora”, de Altay Veloso, “Joia Rara”, da Banda Brylho, ou “Lábios de Mel”, de Tim. Como diz a letra: para se guardar no coração.

Embora a maioria das músicas seja de compositores masculinos, o disco de Sandra traz uma outra pequena revolução, que é o papel de mulheres como autoras. Além dela própria, que assina a balada “Musa” e coassina “Trem...”, a carioca abre espaço para compositoras no seu repertório já tão disputado. Rose Marinho divide a autoria da já citada “Pela Cidade” com Durval e outro veterano, Paulo César Pinheiro, enquanto Irineia Maria revela outro destaque do disco: a apaixonada “Onda Negra”. Balada soul deliciosa, com a arranjo de Oberdan, contém em sua letra vários elementos representativos da figura de Sandra para o movimento Black Rio, que é um filtro de olhar feminino para aquela “onda negra de amor” que se presenciava: “Nessa forma de beleza/ Vou seguindo a te levitar/ E o som me envolve me fascina/ Não consigo mais parar/ Mas é sempre uma dose certa/ De alegria, paz de luz e cor/ E a certeza de poder criar/ Uma onda negra de amor”. Mais visto na MPB de então por conta da geração de compositoras como Joice Moreno, Leila Pinheiro e Sueli Costa, no meio pop Sandra prenunciava aquilo que se tornaria comum anos depois para Cássia Eller, Adriana Calcanhoto, Vange Leonel e outras, bem como, especialmente, para as cantoras pretas brasileiras da atualidade, tal Xênia França, Larissa Luz, Luedji Luna, Iza e outras.

Depois de “Vale Tudo”, Sandra - que adicionaria definitivamente dali a alguns anos a preposição “de” original de batismo ao nome artístico - ainda alcançou sucessos esporadicamente, principalmente com “Bye Bye, Tristeza”, de 1988. Numa viragem mais pop e comercial para a carreira, hits como este, embora a tenham ajudado a se consolidar no cenário musical brasileiro, denotavam, por outro lado, que a fase áurea havia terminado. Porém, ninguém tira de Sandra o nome gravado na história da música brasileira, haja vista que sua credibilidade como artista e seu legado permanecem inalterados. Mais do que isso: renovados. Um disco como este, mesmo ouvido quatro décadas depois de seu lançamento, soa como um agradável compêndio do que de melhor havia na soul music brasileira àquela época e, porque não dizer, na história da música preta no Brasil. Está tudo lá: intacto. Assim como a voz de Sandra, que o público a atendeu e guardou no coração.

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FAIXAS:
1. “Trem Da Central” (Durval Ferreira, Macau, Sandra Sá) - 4:03
2. “Candura” (Cassiano, Denny King) - 3:03
3. “Pela Cidade” (Durval Ferreira, Paulo César Pinheiro, Rose Marinho) - 3:21
4. “Onda Negra” (Irinéia Maria) - 3:40
5. “Gamação” (Pi, Ronaldo) - 3:14
6. “Vale Tudo” (Tim Maia) - 4:07
7. “Guarde Minha Voz” (Ton Saga) - 3:11
8. “Terra Azul” (Gastão Lamounier, Junior Mendes) - 3:33
9. “Musa” (Sandra Sá) - 2:46
10. “Só As Estrelas” (Guilherme Arantes) - 3:26

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Daniel Rodrigues

sábado, 11 de março de 2023

"Argentina, 1985”, de Santiago Mitre (2022)

 

“Marte Um” é um dos melhores filmes brasileiros do século XXI e um dos melhores do cinema nacional. Mas por que abrir falando deste filme e não de “Argentina, 1985”? Pelo fato de que, mais uma vez, o Brasil não é representado no Oscar. O filme de Gabriel Martins era o candidato brasileiro a concorrer à estatueta, o que não se confirmou mais uma vez como vem ocorrendo há 25 anos, desde “Central do Brasil”, em 1998. E por que a comparação entre os países? Porque, embora “Marte Um” tenha sido preterido a títulos de outros quatro países que não só a Argentina, é inevitável a comparação entre o cinema feito no Brasil e na terra de Gardel, vizinhos e afins em uma série de aspectos. O fato é que este último vem, há aproximadamente duas décadas, se sobrepondo de tal maneira ao primeiro – inclusive no próprio Oscar, com a indiscutível vitória de “O Segredo dos Seus Olhos”, em 2004, e a indicação de “Relatos Selvagens”, em 2015 – que chega a eclipsar um grande filme como “Marte Um”.

Esta comparação denota o quanto o cinema argentino soube encontrar o seu lugar na indústria internacional. “Argentina, 1985” traz as qualidades e o hibridismo que caracterizam a produção audiovisual recente dos hermanos. Baseado em fatos reais, o filme conta a história dos promotores públicos Julio Strassera (o lendário Ricardo Darín) e Luís Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani, ótimo no papel) e sua jovem equipe, que tomam a inédita missão de processar os militares da ditadura argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas.  O processo todo ouviu 850 testemunhas e durou cerca de 530 horas de audiência, vindo a resolver-se no fatídico ano que denomina o título.

Impressiona a capacidade do cinema argentino de saber contar histórias de forma equilibrada e sem pesar demasiadamente para o superficial ou para o denso. Isso coloca a obra no difícil limiar entre o cinema de arte e o filme popular, química facilmente identificada em outros títulos argentinos como “Família Rodante”, “Um Conto Chinês” e “Medianeiras”. No longa de Santiago Mitre, há sempre porções bem conjugadas de drama, humor, romance e registro histórico-documental. Neste ponto, a reconstituição de cenas, principalmente as de tribunal, são capazes de fazer reviver o passado. Além disso, o roteiro vale-se do recurso da construção de narrativas “paralelas” (o pretensamente perigoso namoro da filha Strassera) e a complementaridade de perfis entre os personagens, o que transmite uma percepção de coesão ao espectador.

Recuperando a história: acima, foto do julgamento
original; abaixo, a reconstituição do filme

Há de se ressaltar também aquele que é a cara e o coração do novo cinema argentino: Ricardo Darín. Em mais um exímio papel, ele interpreta Strassera com a habilidade cênica a que o público já se acostumou. Resultado este, porém, nada fácil de se encontrar, visto que perscruta a alma do personagem. O público sabe o que isso quer dizer, basta lembrar de seu protagonismo em filmes como “Neve Negra”, “A Odisseia dos Tontos”, “Koblic”, “Truman” e nos já citados “O Segredo dos Seus Olhos” e “Relatos Selvagens”. A entrega de Darín é tocante, pois capaz de transmitir as inseguranças, as mudanças e os conflitos deste funcionário público tão essencial para a história recente da Argentina, humanizando-o para o espectador. Mais do que humanizá-lo, é um trabalho de recriação e materialização de um personagem que supera o simples cargo de um promotor. É. sim, um símbolo da democracia, da justiça e de resistência.

Darín em mais uma atuação de pura entrega
Afora estes aspectos técnicos comumente impecáveis no cinema da Argentina, este também cumpre outra função fundamental, visto que espelha questões culturais e sociológicas que muito servem de exemplo para a América Latina (incluso Brasil). A porta aberta pelo corajoso e também oscarizado “A História Oficial”, de 1985, denota a consciência de um povo latino-americano que não foge ao compromisso cívico de mexer nas próprias feridas. A sangrenta ditadura que acometeu o país é talvez a principal delas. No momento em que vizinhos como o Brasil saem de um período de trevas pelo conflito permanente entre o comando de um ditador e um regime democrático, bem como a ebulição política recente de países como o Chile, Peru, Nicarágua e Bolívia por motivos semelhantes, que é a sombra fétida do totalitarismo, filmes como “Argentina, 1985” têm muito a ensinar.

Tudo indica que a Argentina levará mais uma vez a estatueta para casa. A se medir pelo grande adversário, o alemão “Nada de Novo no Front” (o qual também concorre a Melhor Filme, pelo qual pode ganhar), a obra de Mitre tem tudo para deixar este e os outros para trás. Assim como deixou o belo “Marte Um”, que por melhor que seja, evidencia o quanto não o Brasil, mas a Argentina achou o caminho para um cinema representativo da América Latina.

trailer de "Argentina, 1985"



Daniel Rodrigues

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Sete Documentários sobre Carnaval



Cena do filme "Nossa Escola de Samba"
É farta a filmografia sobre o samba e seus autores. O gênero musical, assim como o Carnaval brasileiro, ao qual está associado, é tema e/ou perpassa histórias ficcionais das mais diversas no cinema desde que o samba é samba. Porém, é interessante perceber (e até talvez sintomático) que haja poucos documentários sobre a tradicional festa do Momo. É fato que os filmes, inclusive os de ficção, enquanto resultado da produção artística de suas épocas, assim como quaisquer outras artes, são reflexo da sociedade e da cultura da qual se originam. Neste contexto, entretanto, o documentário pode ser visto como ainda mais incisivo e fiel à sociedade que representa, visto que a concepção documental tem exatamente este propósito de registro histórico. Independentemente se o objeto retratado é do passado ou algo que esteja acontecendo no “presente”, o documentário será sempre um anal de seu tempo.

Por esta ótica é estranho não se encontrar tantos documentários sobre Carnaval no Brasil, o país ao qual o mundo atribui a verdadeira realização de tal festa. Mesmo com o crescimento exponencial da produção documental no País nos últimos 30 anos, o volume de filmes deste gênero não parece ter seguindo a tendência, restando não muitos que versam especificamente sobre o tema. O que explicaria isso? Há motivos socioculturais que interfiram nesta desatenção? Teria a ver com a dificuldade brasileira de assumir sua identidade? Seria a confirmação da pecha do “país sem memória”? Que não se enxerga? Que tem vergonha de sua face? Que não se questiona? 

Perguntas que ficam no ar, mas que os docs aqui listados talvez respondam em parte. Há desde realizações dos anos 60, num Brasil ainda subdesenvolvido, a filmes dos anos 90 e século XXI de abordagens distintas, da grandeza do Carnaval carioca, à religiosidade e o paganismo da festividade e à analogia com outras realidades. Para este Carnaval, então, entre uma pulada no bloco de sua cidade e uma parada em casa pra tomar um refresco, quem sabe ver-se retratado na tela?

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“As Pastoras - Vozes Femininas do Samba”, de Juliana Chagas (2018)

Um tocante e revelador retrato do envolvimento das mulheres com o samba, a comunidade e o carnaval. No caso, da Escola Portela, em que as figuras femininas que dão título ao filme são personagens centrais. As vozes das pastoras, como as mulheres cantoras são chamadas na escola, dão leveza ao samba. Nos primórdios, eram elas que, ao cantar em coro as composições que mais gostavam, determinavam qual seria o samba vencedor na quadra. Hoje, as pastoras fazem parte da Velha Guarda e continuam a emprestar suas vozes aos sambas mais tradicionais de suas escolas. Além de colher depoimentos vivos e destacar a condição feminina, fato raro dentro do samba e da cultura popular, o documentário traz momentos sublimes, como o acompanhamento dos momentos de tensão da apuração dos resultados dos desfiles na casa de Dona Nenê, viúva do bamba Manacéa, ao lado de sua filha Áurea Maria, uma das pastoras pertencentes à Velha Guarda.



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“Ensaio Geral”, de Arthur Fontes (2000)

Indicado ao Emmy Internacional de melhor documentário, este doc produzido para a TV mostra com riqueza de detalhes os bastidores e a linha de frente de todo o processo de construção do carnaval da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano 2000, desde o sorteio da ordem dos desfiles até o seu ápice, o desfile propriamente dito. Num enfoque distanciado, sublinha a influência dos bicheiros na escola, expõe a disputa pela escolha do samba-enredo (na qual são feitas, inclusive, ameaças de morte) e esmiuça a tensão entre conceitos estéticos do carnavalesco Roberto Lage e a vontade de presidentes de ala de colocar mulheres semidespidas na passarela. "Ensaio Geral" é um painel de matizes contraditórios, expondo um Carnaval que surge como produto bonito, mas de um trabalho estafante, fragmentado e mal pago. Um trabalho cujo fundamento é a alegria da identidade comunitária, mas na qual a alienação está sempre presente.



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“Escola de Samba", Alegria de Viver", de Cacá Diegues (1962) - Episódio do filme "5 Vezes Favela"

Embora “ficcional”, este episódio do longa “5 Vezes Favela”, um dos marcos do Cinema Novo brasileiro dos anos 60, tem todas as características de documentário, colocando-se na fronteira entre um gênero e outro tal como este movimento cinematográfico propôs. A história retrata o jovem sambista vivido por Oduvaldo Viana Filho, que assume a direção da escola de samba de sua comunidade poucos meses antes do Carnaval, enfrentando problemas de dívidas, rixa com uma escola rival e discussões com a esposa, a cobiçada mulata Dalva. Primeiro filme do mestre Cacá Diegues, que se tornaria expoente do cinema brasileiro, embora encenado, tem como conceito a aproximação do Brasil de suas realidades até então obscurecidas como a pobreza e a vida das periferias. A história, muito crível dentro do contexto social daquelas pessoas, se passa na agremiação Unidos do Cabuçu, de Engenho Novo, o “Rio, Zona Norte” que Nelson Pereira dos Santos começava a desvendar para o cinema brasileiro anos antes. Realizado dois anos antes do golpe militar, “5 Vezes Favela” já denotava as forças “subversivas” que a Ditadura combateria com unhas e dentes. No caso de “Escola de Samba”, além de montagem de Ruy Guerra e produção executiva de Eduardo Coutinho, dois cineasta diretamente ligados ao comunismo, foi viabilizado pelo CPC - Centro Popular de Cultura, da tão perseguida UNE.



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“Fevereiros”
, de Marcio Debellian (2017)

Não é o primeiro documentário que tem Maria Bethânia como protagonista, a se ver por “Maria Bethânia - Pedrinha de Aruanda”, “Bethânia Bem de Perto”, "Maria - Ninguém Sabe Quem Sou Eu", “Os Doces Bárbaros” e outros. Mas o seu universo é tão rico e mágico que um filme como “Fevereiros” traz qualidades muito próprias não antes exploradas. O diretor faz um feliz paralelo entre o registro da vitória da escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira, em 2016, que teve um enredo homenageando a cantora baiana, com os seus momentos na cidade-natal, Santo Amaro, no Recôncavo, durante as festas da Nossa Senhora da Purificação, ambas ocorridas no mês de fevereiro. As correlações dos aspectos religiosos, ancestrais e sociais entre uma festividade e outra, entre um ritual e outro, são de grande riqueza. Fora, claro, a linda trilha sonora que vai naturalmente pontuando o filme, seja na voz da Abelha-Rainha, seja na de artistas correlatos a ela, como o irmão Caetano Veloso, Chico Buarque, D. Edith do Prato, os sambistas da Mangueira, entre outros. Mais um doc de Bethânia, mas Bethânia nunca é demais. 



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“Nossa Escola de Samba”
, de Manuel Horacio Giménez (1968) - episódio do filme "Brasil Verdade"

Mais antigo registro formalmente documental sobre o Carnaval, esta preciosidade tem como a figura central de Antônio Fernandes da Silveira, conhecido por Seu China, morador do bairro carioca que abriga a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, a qual ele mesmo foi um dos fundadores, em 1945. Com influências do cinéma vérité francês de Edgar Morin e Jean Rouch, em voga nos meios intelectuais à época, este documentário social traz um olhar sociológico-antropológico a um tema até então pouco explorado, com off narrado na própria voz de Seu China, evidenciando as dificuldades sociais da população pobre e o quanto o Carnaval representa um sopro de alegria para o povo. Além disso, intercala episódios cotidianos “encenados”, que se misturam a captações de lances espontâneos da “câmera-olho” de Giménez. Tudo sob um P&B rigoroso, magistralmente bem fotografado por Thomas Farkas e Alberto Salvá. Este curta, integrante do longa "Brasil Verdade", foi filmado no ano do golpe militar e um antes da chegada de um personagem essencial para o desenvolvimento da Escola vindo, ironicamente, de dentro do quartel: um jovem de 27 anos chamado Martinho da Vila, ainda um sargento burocrata do Exército.



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“Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar”
, de Marcelo Gomes (2019)

Parafraseando o samba moroso de Chico Buarque, o filme de Gomes traz uma abordagem bem diferente do comum quando se pensa em Carnaval, até por não ser um filme sobre a festa, mas sobre a fuga dela. Nada de Marquês de Sapucaí, circuito Barra-Ondina ou blocos de rua pelas capitais brasileiras. Na cidade de Toritama, interior de Pernambuco, considerada capital nacional do jeans, mais de 20 milhões do tecido são produzidos anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o Carnaval: quando chega a semana de folga eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas. Exibido na mostra competitiva do 24º festival É Tudo Verdade, o filme recebeu menção honrosa do júri oficial e da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, além de ser escolhido como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.



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“Imperatriz do Carnaval”
, de Medeiros Schultz (2001)

Assim como “Ensaio Geral”, trata-se de outro longa-metragem sobre a preparação de uma escola de samba para o Carnaval do marcante ano de 2000. Porém, esta, ao invés de abordar a Mocidade, traz os preparativos da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para os desfiles na Sapucaí. O diretor acompanhou todo o processo de preparação da escola: a composição e a escolha da música, a criação dos figurinos e alegorias, o trabalho no barracão, a produção das fantasias, os ensaios, a vida dos carnavalescos em casa e na escola e, por fim, o vitorioso desfile de bicampeã. No total, foram gravadas 50 horas de material, incluindo uma gravação inédita da bateria da escola em sistema surround. Segundo o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, narrador do documentário e autor do livro “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, Imperatriz do Carnaval é “a melhor, mais profunda e mais completa radiografia audiovisual de uma escola de samba já realizada no Brasil”.




Daniel Rodrigues