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terça-feira, 2 de maio de 2017

Talking Heads – “77” (1977)



“Sem essa de Elvis, Beatles, ou Rolling Stones/
(...) Em 1977, eu espero ir para o céu.”
Da letra de “1977”, do The Clash


O ano de 1977 pode ser considerado o do nascimento oficial do punk-rock. As duas principais bandas da cena, Sex Pistols e The Clash, lançavam seus primeiros discos naquele ano, empestando o ar do Velho Mundo com o mau cheiro de um som cheio de fúria e crítica junto com Buzzcocks, Damned, Wire, The Stranglers e outros. Do outro lado do mundo, “Rocket to Russia”, do Ramones, tornava-se um clássico imediatamente que chegava às lojas; a dupla do Suicide trocava guitarras por teclados, forjando um som tão sujo quanto o de qualquer grupo de formação tradicional; “Marquee Moon”, do Television, espantava público e crítica pela inventividade de Paul Verlaine e Cia.; e Richard Hell, com “Blank Generation”, carimbava seu documento definitivo na história do rock. Decididamente, o espírito do “faça você mesmo”, surgido no underground norte-americano desde a segunda metade dos anos 60 – através da música, da moda, da arte gráfica, entre outros –, chegava, enfim, ao grande público. Sem mais Baetles, Rolling Stones ou Elvis Presley: a vez era do punk.

Porém, a contestação ao establishment, elemento chave da cultura punk, era nutrido de múltiplas interferências. Tanto que não era preciso necessariamente andar esfarrapado como Joey Ramone, arranjar confusão como os arruaceiros dos Dead Boys ou ser um junkie declarado como Syd Vicious. Havia aqueles que comungavam das mesmas ideias transgressivas, mas à sua maneira: sem briga, sem drogas e, universitários que eram, vestindo a roupa que seus pais lhe enviavam de presente no Natal. Com cara de bons moços, os Talking Heads contribuíam sobremaneira para a cena mandando ver, isso sim, no som.

Foi no hoje mítico bar CBGB, em Nova York, que David Byrne (voz, guitarra), Chris Frantz (bateria), Tina Weymouth (baixo) e Jerry Harrison (guitarra e teclado) trouxeram a gênese do som que conquistaria o mundo pop por mais de uma década. Este rico embrião está num dos discos mais marcantes do ano de 1977, cuja história, hoje, transcorridos 40 anos, mostra não ser coincidência chamar-se justamente “77”. O debut da banda une a crueza da sonoridade punk a um estilo muito peculiar das composições, cujos elementos melódicos e harmônicos já apontavam claramente para referências além da combinação de três acordes do punk. Byrne, líder e principal compositor, já denotava preferências por harmonias fora do tempo, variações bruscas no compasso, a incursão de ritmos latinos e exóticos, a desaceleração em comparação ao ritmo frenético do tipo “hey, ho, let’s go!” e, claro, seu inigualável vocal, de timbre bonito e considerável alcance mas não raro propositalmente rasgado ou picotado. Resultado dessa química esquisita é um disco que abre portas para aquilo que viria na esteira do punk, a new wave.

Produzido por Lance Quinn e Tony Bongiovi – este último, responsável por dar corpo a outro marco do punk naquele mesmo ano, o já mencionado “Rocket to Russia” –, “77” traz uma sonoridade potente e muito bem equalizada, dando destaque a todos os instrumentos, que soam com vivacidade. "Uh-Oh, Love Comes to Town" abre mostrando que, além disso, eles não eram convencionais de fato na composição. Nada de batida acelerada e guitarras arrotando distorção. Os Heads dão seus primeiros acordes num funk estilo “I Want You Back“, dos Jackson Five, porém com as guitarras sujando o espaço sonoro e a voz de Byrne funcionando quase como um arremedo yuppie à do pequeno Michael Jackson.

Uma das joias do disco, “New Feeling”, por sua vez, já começa a apresentar a faceta atonal de Byrne e sua turma. As duas guitarras cumprem, cada uma num tempo, duas linhas melódicas diferentes. Isso fora o ritmo quebrado, que dá a sensação de desequilíbrio e descompasso que tanto explorariam em discos como “Fear of Music” (“Paper”, “Mind”), de 1979, ou “Speaking in Tongues” (“Swamp”), de 1983. A paródia militar "Tentative Decisions" – cuja ideia se verá noutras canções do grupo mais adiante, como “Thank You for Sending Me an Angel” e “Road to Nowhere” – abre caminho para uma canção mais linear, “Happy Day”, balada quase pueril que traz outras peculiaridades da banda, que são o refrão criativo – um dos motivos dos Heads se tornarem empilhadores de hits – e a guitarra “percutida”, em que as cordas são raspadas, friccionadas, extraindo do instrumento um som exótico, africanizado, diferente do tradicional.

“Who Is It?” retraz o funk, agora mais desengonçado (ou seria “com atitude punk”?) do que nunca. É muito interessante ver como Byrne desmembra os ritmos da raiz da música pop para, logo em seguida, reescrevê-lo à sua maneira. A faixa antecede uma das melhores do álbum e das principais sementes plantadas pelos Heads em termos de musicalidade: “No Compassion”. A exemplo de outros temas que a banda viria a escrever, como “Warning Sing” (1978) e “Give Me Back My Name" (1985), esta carrega uma atmosfera densa e que a faz naturalmente soar como um clássico desde que se ouvem os primeiros acordes. A batida forte e cadenciada de Frantz; o baixo de Tina impondo-se; a primeira guitarra de Harrison executando uma base dividida em dois tempos; a guitarra solo desenhando um riff sinuoso. A sonoridade é tão bem produzida que servirá de matriz para o que desenvolveriam junto a Brian Eno em “More Songs About Buildings and Food”, no ano seguinte. Além disso, é das poucas que tem momentos de punk-rock pogueado, mostrando que o Talking Heads estava, sim, muito próximo de seus companheiros de CBGB.

O segundo lado do formato vinil começa ainda melhor que o primeiro com "The Book I Read". A guitarra “percutida”, como um cavaquinho ou algo parecido, anuncia um riff um tanto dissonante. Mas o que se apresenta quando a banda e o vocal entram juntos é um belíssimo pop-rock em que Byrne dá um show de vocal – ao menos, a seu estilo, que vai do melódico ao rascante. Destaque especial para o baixo da competente Tina, que além da base muito bem executada é quem faz o “solo” num acorde de quadro notas junto com o cantarolar (“Na na na na”) de Byrne. Diz-se “solo” entre aspas pois, afinal, eles são uma banda punk, sem a habilidade dos dinossauros do rock de então, mas que sabiam resolver ideias com muita criatividade – o que, convenhamos, é até melhor em muitos casos.

Mais um exemplo típico da musicalidade diferenciada de Byrne é “Don't Worry About the Government”, canção cheia de sinuosidades, mas bastante melodiosa, visto que sua base é um toque semelhante ao de uma delicada caixa de música. Outra das brilhantes é "First Week/Last Week... Carefree", um rock com toques latinos e a cara do que os Heads formaram enquanto estilo ao longo dos anos haja vista várias outras músicas de semelhante ideia como: “Crosseyed and Painless” (1980), “Slippery People” (1983), "The Lady Don't Mind" (1985) e “Blind” (1988). Estão em “First Week...” elementos como os instrumentos afro-latinos (reco-reco, marimba), o canto gaguejado de Byrne, seus vocalizes malucos e o uso de metais, que lançam frases sonoras típicas de um “Ula Ula” havaiano.

Como todo grande disco, “77” tem seu hit. E neste caso é a imortal (com o perdão da expressão) "Psycho Killer". Engenharia de som perfeita: o baixo inicial e todos os outros instrumentos que entram são claramente notados, conjugando-se com a voz mais uma vez liberta de Byrne para um riff matador (sic) e uma melodia de voz daquelas que não desgrudam da mente – ou da psique. Tanto que é quase impossível os acordes tocaram e alguém não saber cantarolar o refrão: “Psycho killer/ Qu'est-ce que c'est/ Fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, fa, far better/ Run, run, run, run, run, run, run, away”. Ouvem-se sem erro em “Psycho...” Gang of Four, P.I.L., Polyrock, Replacement e outras bandas advindas com o post-punk anos mais tarde. Além de um clássico, revela o estilo próprio da banda e porque ela foi/é tão influente a toda uma geração do rock.

A talvez mais punk-rock, a agitada “Pulled Up", encerra o disco, um dos grandes de estreia da história do rock – figura em 68º da lista dos 100 melhores primeiros álbuns pela Rolling Stone, entre os 300 dos 500 maiores da história da música pop, pela mesma revista, e entre os 1001 essenciais de se ouvir antes de morrer, conforme livro de Robert Dimery. “77” aponta a rota que a banda e, mais amplamente, a própria cena punk iriam tomar. Fora os já mencionados grupos post-punk, dá para dizer com segurança que um ano depois o álbum já se fazia essencial: a Devo, produzida por Eno, não existiria sem o exemplo dos Heads e nem o Blondie rumaria com tamanha assertividade a uma “popficação” de seu som sujo original. Junto ao que os também estreantes Sex Pistols, The Clash, Television, Richard Hell e outros, o Talking Heads assinalava aquele ano como um dos mais estelares da história do rock, um ano capitulado como “77”.

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Talking Heads - “Psycho Killer”



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FAIXAS:
1. "Uh-Oh, Love Comes to Town" – 2:48
2. "New Feeling" – 3:09
3. "Tentative Decisions" – 3:04
4. "Happy Day" – 3:55
5. "Who Is It?" – 1:41
6. "No Compassion" – 4:47
7. "The Book I Read" – 4:06
8. "Don't Worry About the Government" – 3:00
9. "First Week/Last Week ... Carefree" – 3:19
10. "Psycho Killer" (Byrne, Chris Frantz, Tina Weymouth) – 4:19
11. "Pulled Up" – 4:29
Todas as faixas compostas por David Byrne, com exceção da indicada.

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

sábado, 29 de abril de 2017

"Mate-me Por Favor - Uma História Sem Censura do Punk", de Legs McNeil e Gillian McCain - ed. L&PM (2005)


"A primeira vez que eu vi Richard Hell,
ele entrou no CBGB's usando uma camiseta com um alvo
e as palavras "Mate-me Por Favor".
Aquilo era uma das coisas mais chocantes que eu já tinha visto."
Bob Gruen,
fotógrafo e cineasta

"Lendo 'Mate-me Por Favor' me senti como se estivesse lá...
Espere um pouco, eu estava lá.
Este livro conta como foi.
É o primeiro livro a fazê-lo."
William Burroughs,
escritor



Um dos meus livros preferidos mas que curiosamente nunca falei aqui no blog e que sempre achei que merecia deferência por ser um dos meus livros de cabeceira, é o excelente "Mate-me por favor - Uma História Sem Censura do Punk", de Legs McNeil e Gillian McCain, um retrato do punk desde seus primórdios até seus últimos suspiros contado de forma magnífica pelos personagens que fizeram essa história. Montado a partir de inúmeras entrevistas com músicos, produtores, jornalistas, empresários, fãs, groupies, roadies ou seja lá quem tivesse participado ou presenciado todo aquele alvoroço, "Mate-me por favor" consegue graças a uma organização impecável, que deve ter dado um trabalho enorme, conferir um ritmo quase de romance à série de relatos, resultando num livro empolgante de tirar o fôlego.
O livro "narra" o processo de formação do punk rock partindo ainda lá do final dos anos 60 com o The Doors e seu comportamento transgressor, Velvet Underground e sua música revolucionária; passando pela sujeira dos Stooges, a crueza do MC5, a provocação dos New York Dolls e pela sofisticação do Television; encontrando a cena norte-americana do CBGB's da qual os Ramones podem ser possivelmente considerados os principais representantes; chegando à cena londrina com Sex Pistols, Clash; e ainda dando uma passada pelo que resultou dessa trajetória toda.
A frase inconsequente e niilista que deu título ao livro escrita na camiseta  Richard Hell, como tantas outras naquele momento, é apenas um exemplo da inconformidade dos jovens naquele final de anos 70, muitas vezes não compreendida com exatidão nem por eles mesmos, mas que acabaria resultando numa identidade visual e comportamental até hoje inevitavelmente associada ao punk e que curiosamente hoje vemos com frequência em todo lugar na forma de calças rasgadas, acessórios de couro, cabelos moicanos, etc. Malcolm McLaren que o diga! Um dos que tiveram visão e deram um jeito de faturar o seu com aquela rebeldia toda. E isso também é contado lá.
As páginas de "Mate-me Por Favor" trazem e alternam momentos emocionantes, empolgantes, tensos e hilários. Gravações, shows, brigas, noitadas, excessos, putarias estão presentes na brilhante compilação de entrevistas que compõe o livro. O episódio da briga dos Dead Boys em que o baterista Johnny Blitz fora esfaqueado é tenso e dramático. "...Então vejo a camiseta e percebo que é Johnny quem está n chão (...) Estava cortado desde a porra da virilha té o pescoço e com o peito aberto de um lado a outro. Estava aberto. Ele estava... aberto", conta Michael Sticca, ex-roadie da banda. O que Iggy Pop é solto da cadeia vestido de mulher é hilário. Ray Manzareck, dos Doors, foi lá pagar a fiança: "Jim, isto é um vestido de mulher!", "Não, Ray. Devo tomar a liberdade de discosrdar. Isto é um vestido de homem.". Bem como é hilário o episódio do show em que o vocalista dos Dead Boys ganha um boquete no palco, contado por Babe Buell, a mãe da atriz Liv Tyler: "Alguém me disse para ir no CBGB's ver a melhor banda do mundo, os Dead Boys. Então fui lá uma noite quando eles estavam tocando, entro e a primeira coisa que vejo é Stiv sendo chupado no palco.". Um dos mais emocionantes, no entanto, é o que Jerry Nolan, ex-baterista dos Dolls, nos últimos dias de vida relata o show em que viu a sola furada do sapato de Elvis Presley. "Este show, embora aos 10 anos de idade, realmente mudou minha vida. Fui dominado por Elvis. Pude sentir o que é tocar música. Mas acima de tudo lembro de duas coisas daquele show: minha irmã perdendo completamente o controle e o buraco no sapato de Elvis.". Uma espécie de síntese poética do que é ser rock'n roll.
Livro que é obrigatório para amantes de música e sobretudo para os que tem especial admiração, respeito, curiosidade por aquele período, por aquele "movimento" que com toda suas limitações, sua anarquia, suas loucuras foi definidor de atitudes, comportamento e tendências, deixando um inegável e valioso legado para as gerações posteriores. Foi relançado posteriormente em versão pocket em dois volumes, sendo ainda hoje facilmente encontrado até em bancas de jornal por conta do formato prático. Ou seja, não tem desculpa pra não ter e não ler.
Um dos meus livros preferidos e frequente fonte de pesquisa, "Mate-me Por Favor" é a história do punk contada por quem esteve lá, por quem quem a viveu, inclusive os próprios autores, o que confere autenticidade e credibilidade ainda maior ao livro. Ali estão os fatos apresentados sem frescura, sem panos quentes ou papas na língua. A verdade nua, crua, suja, chapada, barulhenta e furiosa.


Cly Reis

terça-feira, 3 de maio de 2016

The Modern Lovers – “The Modern Lovers” (1976)


A capa original de 1976,
só com o logo da banda e a da
reedição em CD, de 1989.
“The Modern Lovers
é a minha banda de rock favorita
 de todos os tempos”.
David Berson,
executivo da Warner

“Bem, algumas pessoas
tentam pegar as meninas/ 
E são chamados de cuzões/ 
Isso nunca aconteceria
com Pablo Picasso”
Jonathan Richman,
da letra de “Pablo Picasso”



Muito tem se falado sobre disco de estreia dos Ramones, o grande marco inicial daquilo que o mundo pop passou a conhecer como punk-rock e que está completando dignos 40 anos. Mas quem se embrenha um pouco mais na cena underground norte-americana sabe que este movimento e sua sonoridade rebelde e anti-establishment – que remetia à simplicidade do rock ‘n’ roll básico dos anos 50 e a culturas pop apreciadas por uma rapaziada contrária ao modo de vida padrão da sociedade – vinha sendo alimentado desde meados dos anos 60. Detroit, Boston, San Francisco e principalmente Nova York concentravam essa galera criativa e crítica que não admitia que o planeta Terra se configurasse daquele jeito que se anunciava: Guerra do Vietnã matando inocentes por nada, crises econômicas mundo afora, ascensão de ditaduras, repressão militar e os ecos de um inacabado 1968.

Uma das bandas fruto dessa efervescência é a The Modern Lovers. Liderados pelo inventivo Jonathan Richman, o grupo de Boston estava, assim como o Ramones, tão de saco cheio com o sistema político e social que seu discurso era, por pura ironia, totalmente apolítico. Nada de afrontamentos políticos ou denúncia das mazelas sociais. A maneira de protestarem era falar sobre aquilo que a sociedade não falava ou considerava coisa de moleque de classe baixa: comer as menininhas do bairro, a falta de grana, se chapar com a droga mais fuleira que tiver, andar de carro em alta velocidade (sem ter carro para isso) e paixões raramente retribuídas. Temas que não eram novidade no mundo jovem mas estavam esquecidos pelos grandes astros que a mídia havia criado. Com o espírito punk do “faça você mesmo”, o Modern Lovers e os tresloucados da cena punk revitalizaram tais questões com muita ironia, deboche e realismo. Nada de carrões, de levar lindas modelos para a cama e superequipamentos para superespetáculos em superestádios. O negócio era curtir um pouco daquela merda de vida que tinham, sonhar em comer a garota gostosa do bairro num motel barato e tocar em garajões fétidos de Nova York – como um em plena East Village, chamado CBGB. Eram aquilo que viviam e pensavam, e tudo isso está encapsulado no essencial “The Modern Lovers”, o qual, assim como o primeiro dos Ramones, também faz quatro décadas de seu lançamento.

A Modern Lovers mandava ver um som curto e grosso, mas com inventividade. Sem grandes habilidades técnicas, compunham um rock básico, vigoroso e pautado na realidade que vivenciavam nas ruas. Riffs magníficos saíam da cabeça do guitarrista e vocalista Richman e seus parceiros de ensaio e de punheta: Ernie Brooks (baixo), Jerry Harrison (teclados) e David Robinson (bateria). A produção do mestre underground John Cale avalizava aquele primeiro trabalho de estúdio da Modern Lovers, cujo título é tão irônico quanto autocrítico, haja vista que boa parte dos temas que abordavam era, justamente, a fragilidade e inadequação sexual e afetiva daqueles jovens dentro da sociedade moderna. Sem grana no bolso e longe de aparentarem os abastados roqueiros do rock progressivo, astros da época, era difícil ser mais do que um arremedo de “amante moderno”.

A nasalada e tristonha voz de Richman anuncia o que vem numa contagem até 6. É “Roadrunner" abrindo o disco, clássico do rock alternativo que a grande banda do punk britânico, o Sex Pistols, gravaria dois anos depois. Riff marcante e de acorde simples, apenas três notas. “Roadrunner, roadrunner/ Going faster miles an hour/ Gonna drive past the Stop 'n' Shop/ With the radio on”, canta Richaman com seu timbre bonito, algo entre o vocal de Joey Ramone e o de outro contemporâneo deles, Richard Hell. Bateria suja, guitarra e baixo e bem audíveis. A sonoridade proposta por Cale junta a secura das garage bands dos anos 60, a irreverência do New York Dolls e a atmosfera proto-punk do Velvet Underground com uma pitada daquilo que se chamaria anos depois de new wave. Isso muito ajudado pelos teclados moog de Harrison, numa influência direta do glam rock, mistura de punk e pop que este ajudaria a levar para outra banda referencial da cena de Nova York a qual formaria um ano depois: o Talking Heads.

Como Joey e Hell, Richman, guitarrista e líder da banda, era mais que um vocalista: era um dos porta-vozes daquela turma. Seus versos muitas vezes reproduziam as angústias e vontades daqueles jovens deslocados que não queriam ser certinhos nem hippies: queriam ser apenas eles mesmos. Com este substrato, Richman é capaz de criar versos verdadeiramente geniais, formando rimas cantaroláveis e cheias de expressividade. “Astral Plane” é um exemplo. Rockzão embalado, fala de um rapaz sozinho em seu quarto, prestes a enlouquecer, pois sente que nunca mais terá a garota que gosta. Seu desespero é tanto que já está aceitando até encontrá-la num outro plano imaterial e, digamos, “não-carnal” (“O plano astral para o escuro da noite/ O plano astral ou eu vou enlouquecer”).

Outro caso é o da clássica “Pablo Picasso”, em que, com criatividade e atrevimento, engendra uma rima de “asshole” (“cuzão”, em inglês) com "Picasso". Dentro da sua classificação estilística, este tipo de rima pode ser considerado como “rima rica”, quando a combinação é formada por vocábulos de classes gramaticais distintas entre si. Além desta, a rima de Richman também se enquadra no que se pode chamar de “rima preciosa”, ou seja, quando se combina em versos palavras de dois idiomas diferentes. Ele altera a pronúncia da palavra estrangeira para rimar com outra na língua vernácula da obra (inglês). Nos versos em questão, o sobrenome do artista plástico espanhol, o substantivo próprio de origem malaguenha "Picasso", é dito com uma leve distorção no seu último fonema, o que faz com que se equipare fonética e sintaticamente a “asshole”, um adjetivo originário da linguagem chula. Além disso, a letra em si é superespirituosa, pois endeusa a figura do autor da Guernica pelo simples fato de ser um nome público, como se por causa disso jamais ele passasse pelo vexame de não conseguir pegar as meninas como eles. Pura inventividade.

Fora a letra, “Pablo Picasso” é um blues ruidoso no melhor estilo Velvet, roupagem que Cale fez questão de dar ao intensificar a distorção das guitarras sobre uma base quase de improviso, a exemplo de "The Gift" e “European Son”. O produtor, inclusive, foi, um ano antes, o primeiro a gravá-la no clássico álbum “Helen of Troy”, apresentando ao mundo do rock aquele jovem criativo chamado Jonathan Richman. Com menos distorção mas de levada empolgante, “Old World”, “Dignified And Old” e “She Cracked” são daquelas gostosas até de poguear. Todas com um cuidado na linha dos teclados, inteligentemente utilizado com diferentes texturas por Cale, o que cria atmosferas próprias para as canções. “She Cracked”, em especial, que fala sobre o ciúme sentido por um rapaz em relação a uma mulher madura e independente, é outra de refrão pegajoso, das de cantar em coro com uma galera: “She cracked, I'm sad, but I won't/ She cracked, I'm hurt, you're right”. O riff é de um minimalismo quase burro: como uma “Waiting for the Man”, apenas uma nota sustenta toda a base.

Já na meio-balada “Hospital”, de Harrison, a figura feminina inatingível a um adolescente pobre do subúrbio está presente de novo: “Às vezes eu não suporto você/ E isso me faz pensar em mim/ Que eu estou envolvido com você/ Mas eu estou apaixonado por este poder que você mostra através de seus olhos”. Novo petardo: “Someone I Care About”, com sua combinação de 4 notas, lembra direto Ramones, mas com um toque mais apurado por conta da produção de estúdio. Reduzindo o ritmo novamente, a balada ”Girl Friend” volta a falar sobre as meninas desejadas mas… sem sucesso. A letra brinca com a sintaxe da palavra em inglês (olha aí Richman mais uma vez se esmerando na poesia) juntando os dois vocábulos (“girlfriend”, namorada) ou separando-os (“girl friend”, garota amiga, justamente com o que ele não se contenta, mas não tem coragem de confessar). Nesta, o teclado soa como piano, dando-lhe um ar ainda mais melancólico.

Mais uma acelerada, “Modern World”, mesmo não sendo das conhecidas, é um exemplo de rock bem feito: pulsação, melodia de voz eficiente, vocal honesto, guitarras rasgando sem precisar de excesso de distorção. E a letra é hilária: o rapaz, querendo convencer a garota a ir para a cama com ele, larga um papo de que aderiu ao “mundo moderno” e à liberdade sexual. “If you'd share the modern world with me/ With me in love with the U.S.A. now/ With me in love with the modern world now/ Put down the cigarette/ And share the modern world with me” (Se você quiser compartilhar o mundo moderno comigo/ Comigo no amor com os EUA agora/ Comigo no amor com o mundo moderno agora/ Largue o cigarro/ E compartilhe comigo o mundo moderno.”)

O álbum deu luzes à geração punk tanto nos Estados Unidos, como para Talking Heads, Blondie e Television, quanto na Inglaterra, como Sex Pistols, The Clash, Jam, Buzzcocks e The Stranglers, bandas nas quais se vê claramente toques da Modern Lovers. Várias outras, inclusive, da leva pós-punk, como The CureGang of FourPolyrock e P.I.L. beberiam também na fonte de Richman & Cia. Se os Ramones elevaram a ideologia do “faça você mesmo” ao showbizz, revolucionando para sempre a música pop, a The Modern Lovers, na mesma época, já dava a mensagem de que, o importante era fazer por si próprio, sim, mas que havia espaço para refinar um pouco aquela tosqueira toda.

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A versão em CD lançada pelo selo Rhino em 1989 pode ser considerada a definitiva deste álbum tão influente. Primeiro, por trazer o remaster das faixas originais do LP, evidenciando o trabalho inteligente de Cale na mesa de som e o vigor sonoro da banda. Segundo, porque traz faixas extras que, ao que se percebe, só não entraram na edição de 1976 por pura falta de espaço no vinil. Estas, aliás, são fruto da parceria do grupo com outro mestre da subversão, Kim Fowley. Ele produz duas das melhores músicas do disco: “I’m Straight”, rock de veia blues em que, hilariamente, um adolescente, fascinado pelo poder que rapaz tem para com as mulheres, tenta reafirmar sua masculinidade dizendo: “Eu sou hétero” (mais uma vez, uma maravilha de rima rica de Richman: “But I'm straight/ and I want to take his place”). Fowley vale-se do expediente de aumentar o microfone do vocal, fazendo com que se captem os mínimos suspiros. Junto, enche o timbre da caixa da bateria, que estronda alta. Guitarra e baixo, em escala média, soam, entretanto, bem audíveis, formando um som orgânico. Alguma semelhança com o estilo de sonoridade dada por Steve Albini ao Pixies ou Nirvana não é mera coincidência.

A outra assinada por Fowley é a também muito boa: “Government Center”, que desfecha-o CD num rock de ares de twist mas que, pela característica da produção (as palmas acompanhando o ritmo, o moog, a marcação no baixo), remete a The Seeds, The SonicsThe Monks e a outras garage bands norte-americanas.
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FAIXAS:
1. Roadrunner - 4:05
2. Astral Plane - 3:00
3. Old World - 4:03
4. Pablo Picasso - 4:21
5. I'm Straight - 4:18
6. Dignified And Old - 2:29
7. She Cracked - 2:56
8. Hospital (Jerry Harrison) - 5:35
9. Someone I Care About - 3:39
10. Girl Friend - 3:54
11. Modern World - 3:43
12. Government Center - 2:03
todas as composições de autoria de Jonathan Richman, exceto indicada.

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OUÇA O DISCO:




sexta-feira, 26 de junho de 2015

Sleaford Mods - Manchester Academy – Manchester / Inglaterra (14/05/2015)


Antiperformance
por Fabrício Silveira
direto de Manchester (UK)




Andrew Fearn e Jason Williamson da
retroporjeção punk da Sleaford Mods
Não há quase nada em cima do palco. Não há equipamento algum, além de um pedestal de microfone e uma mesa de bar, lado a lado. É até um pouco estranho encontrar ali aquele móvel rústico, com pernas dobráveis, trabalhado em madeira nobre. Sobre ele, há um laptop fechado, discreto, quase invisível, que se confunde aos desenhos e aos padrões cromáticos da toalha de mesa. Ao fundo, espessas cortinas de veludo escuro. Em contraste, há uma forte luz branca, opressiva e desconfortável. Este é o cenário. Não há mais nada em cima do palco.

Dois sujeitos, ambos na faixa dos quarenta anos de idade, surgem repentinamente. Com orgulho, cumprimentam os presentes, gesticulando. Sorriem. Entre abanos, exibem os copos de cerveja que trazem às mãos. São centenas de pessoas na plateia – cinco, talvez seis centenas. É um público muito diverso e animado. Num primeiro momento, é difícil especificar alguma faixa etária, reconhecer algum padrão sócio-demográfico. Trocam, enfim, efusivas saudações. O espetáculo está para começar.

Sleaford Mods é o nome da dupla – hoje, um dos mais representativos e interessantes grupos musicais de toda a Inglaterra. As luzes atenuam-se. Num passo para trás, curvando-se, levemente, Andrew Fearn abre o computador pessoal, que se mostra então coberto de stickers e adesivos. Faz um sinal afirmativo para Jason Williamson, alertando-o, à frente do microfone. Aperta o play.

Imediatamente, ouvimos as bases pré-gravadas. São lo-fi beats. São batidas cíclicas, duras e repetitivas. Há uma sonoridade orgânica nas linhas de baixo. Há uma pulsação grave, que sentimos na espinha, severa, que nos pressiona o peito. Máximo minimalismo.

Ao entrar em ação, Williamson apresenta um inacreditável repertório de tiques e trejeitos engraçados. Agitado, coça a nuca, fazendo as gotas de suor jorrarem da cabeça, soltas no ar, desprendidas e visíveis, voando contra a luz. Ao cantar, lembra Johnny Rotten, pela impostação punk, o tom irritado, os olhos arregalados, como se falasse contra a iminente ameaça de uma interdição, como o produto de uma urgência absoluta. Gotas de saliva saltam-lhe da boca. As palavras vão juntas, cuspidas, expulsas da garganta, quase à força. Parece tratar-se de uma discussão, um agressivo bate-bocas.

Porém, as aparências contrastam. São duas posturas, duas atitudes opostas à nossa frente. Ocorre um "choque performático", um embate, uma anulação entre performances. De um lado, um cantor nervoso, gesticulando sem parar, cuja fúria se manifesta no modo como fala, na pronúncia que dá a cada frase, cada palavra, muitas vezes produzindo sons extravagantes, risos forçados, interjeições, failed human beat boxes. De outro lado, a encarnação da tranquilidade: o colega que aperta o play, entre uma música e outra, enquanto bebe uma cerveja e balança o corpo junto às marcações rítmicas, despreocupado como um adolescente em férias.

Andrew Fearn é um anti-DJ, um "DJ-três acordes": aquele que carrega o computador até o palco, ligando-o e nada mais. Apenas isto. Depois, basta certificar-se de que tudo está em ordem, que os arquivos de áudio estão abrindo no momento certo, na sequência imaginada. É a melhor profissão do mundo, poderíamos pensar. E ele, de fato, está absolutamente relaxado. Descansa as mãos nos bolsos da calça. Volta a beber. Tira fotos do público enquanto o show se desenrola. Fala ao celular. Fuma. Checa mensagens e posts no Facebook. Poderia ser qualquer um, um cidadão ordinário, apanhado ali por acaso ou distração. Ao seu lado, o amigo irado, cantando, fazendo rimas e explodindo de raiva.

Os Sleaford Mods lembram muita coisa, apesar de toda originalidade: Sex PistolsProdigy, gangsta rap, música eletrônica e garage rock desconstruídos, uma longa tradição inglesa de canções de protesto e apego à rua. Em síntese, é uma nova variação retroprojetiva do punk. Há um pronunciado acento político nas composições. Slang em demasia. Para um estrangeiro, é quase impossível compreendê-los. Mesmo assim, é agradável ver o auditório cantar junto, como se entoassem hinos locais, cânticos de celebração. Conforme me disseram, as letras falam de regiões e bairros específicos, no norte da Inglaterra, especialmente em Nottingham, de onde eles vêm. Falam de políticos e autoridades locais. Citam o dia-a-dia banal, o preço abusivo dos produtos no supermercado, as piadas internas, as gírias de esquina. Debocham da Família Real e dos hábitos londrinos. É uma apropriação do rap, feita por trabalhadores pobres e politizados do norte inglês.

Ao final, o tom não é festivo nem amistoso. Ao escutá-los, produz-se um sentimento estranho: de que uma canção pop deve instruir à revolta, despertar a consciência revolucionária, suscitar a vontade cívica de gritar ("– Fuck off!") e ir atrás do primeiro político que aparecer, para cobrar-lhe satisfações, com o dedo em riste, apontando-lhe o rosto.

Para eles – por hipótese –, não há distância entre performance e vida cotidiana. Se houver, trata-se de encurtá-la. A música deve ser o veículo de uma frustração, de repercussão e alcance coletivos. Sleaford Mods é uma caricatura performativa da classe trabalhadora, a manifestação de um descontentamento incontrolável, profundamente enraizado. Antiperformance.


vídeo de "Tied Up the Nottz" - Sleaford Mods




Fabrício Silveira é jornalista (UFSM), mestre em Comunicação (UFRGS), Doutor em Comunicação (Unisinos). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, em São Leopoldo/RS. É autor dos livros “Grafite Expandido” (Porto Alegre: Modelo de Nuvem, 2012) e “Rupturas Instáveis. Entrar e sair da música pop” (Porto Alegre: Libretos, 2013). É bolsista CAPES de Pós-Doutorado Sênior no Exterior (processo n. 5939-14-3), realizado junto à University of Salford, em Manchester, na Inglaterra (UK), entre fevereiro e julho de 2015.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

ClyBlog 5+ Músicas


Cinco amigos e as 5 músicas que, por algum motivo, qualidade, emoção, memória, referência, ou qualquer outro que seja, fazem suas cabeças:




1 Cláudia de Melo Xavier
funcionária Pública
(São Paulo)
"Da minha vida de morcega no início do Madame Satã e nos anos 80.
Bem clássicas. Na época pirei quando ouvi.
Amo"

1. "Bela Lugosi is Dead" - Bauhaus
2. Should I Stay or Shoud I Go - The Clash
3. Anarchy in the U.K. - Sex Pistols
4. The Boy With the Thorn in His Side - The Smiths

5. Boys Don't Cry- The Cure


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2 Roberto Freitas
empresário e vocalista da banda
The Smiths Cover Brasil
(Rio de Janeiro)
"As minhas não estão na ordem, pois acho que seria injusto."

1. "Well I Wonder" - The Smiths
2. "Human" - Human League
3. "The More You Ignore Me The Closer I Get" - Morrissey
4. "Butterfly on a Wheel" - The Mission
5. "Back on a Chain Gang" - Pretenders

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3 Eduardo Wolff
jornalista
(Porto Alegre)
"Saiu essa lista... com muito pesar de várias outras, hehe!"


1. "She is Leaving Home" - The Beatles
2. "My Generation" - The Who
3. "Tumbling Dice" - The Rolling Stones
4. "Layla" - Derek and the Dominos
5. "Blitzkrieg Bop" - Ramones


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4 Patrícia Rocha
vendedora
(Rio de Janeiro)
" 'Sete Cidades' passou a ter um significado importante pra mim
e as do Cure e dos Smiths me lembram a juventude
e a época de boas músicas."

1. "Sete Cidades - Legião Urbana
2.  "In Between Days" - The Cure

3. "Thre's a Light That Never Goes Out" - The Smiths
4.  "Infinite Dreams" - Iron Maiden
5. "Once" - Pearl Jam

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5 Guilherme Liedke
arquiteto, cartunista, músico
(Las Vegas, USA)

"Bom bixo, definir 5 musicas sob vários conceitos é complicadíssimo,

mas digamos assim, que eu tenha definido as

5 musicas melhores escritas e gravadas no meu conceito geral."

1. "Blowing in the Wind" - Bob Dylan

2. "Bridge Over Trouble Water - "Elvis Presley
3. "Free Bird" - Lynyrd Skynyrd
4. "God Only Knows" - The Beach Boys
5. "(Just Like) Starting Over" - John Lennon





quinta-feira, 8 de agosto de 2013

cotidianas #238 - "RPM 33 1/3"


- Como foi que tudo isso começou?
imagem adaptada do filme "Fahrenheit 451"
de François Truffaut
- É meio incerto, mas acreditamos que tenha sido com o advento de um tipo de arquivo físico chamado fita cassete. O conceito de álbum, obras musicais produzidas pelo artista, muitas vezes conceituais, pensadas da capa à última música, começou a desmoronar. As pessoas tinham 60, 90 minutos para gravar o que quisessem e muitos faziam coletâneas descriteriosas. Mas não foi tão grave, muitos ainda gravavam LP's nas fitas e tinham discotecas portáteis. Contudo, o compact disc, um disco digital com maior capacidade e possibilidades de armazenamento, só veio a piorar as coisas: eram 80 minutos no mínimo ou horas intermináveis com os tais arquivos MP3, este por certo você já ouviu falar?
O homem de uniforme laranja concordou com a cabeça e então o outro prosseguiu:
- Este sim foi o começo do fim: o MP3. Cada vez mais compactaram-se aparelhos, as possibilidades de agrupamentos de arquivos musicais eram infinitas. Aparelhos portáteis cada vez menores no tamanho mas com cada vez maior capacidade interna. Todos só faziam compilações pessoais. Os álbuns foram deixando de existir. Para eles, lá em cima, era perfeito. Enquanto as pessoas ouvissem música em seus aparelhos apenas para ir ao supermercado, correr, fazer musculação, cada vez mais iam perdendo os critérios, o senso crítico, iam pensando cada vez menos...
Baixou a cabeça como a lamentar pelo que estava relatando mas tomou novo fôlego e continuou:
- Mas não era suficiente, você entende? Tinham que se certificar que não estivéssemos ouvindo uma obra inteira nos nossos aparelhos, que não tivéssemos a contestação sarcástica de um Dylan, a fúria de um Kurt Cobain, o ódio de um Johnny Rotten, a politização de um Bob Marley. Nada que nos fizesse pensar. Aí começaram as proibições. Primeiro passou a ser proibido ter aparelhos antigos em casa. Toca-discos, 3 em 1, gramofones, tudo o que tocasse os antigos discos de vinil.
- O que eram esses... discos de vinil? - perguntou o ouvinte.
- Eram os LP's dos quais falei. Discos, disco mesmo. De mais ou menso 30 cm de diâmetro, havia menores, os compactos, mas a maioria eram os grandes, conhecidos como bolachões. Tinham faixas gravadas em ambos os lados e eram reproduzidos em aparelhos giratórios, mais comumente a 33 e 1/3 rotações por minuto, pelo contato de uma agulha que lia sua superfície. A agulha ia deslizando da borda externa para dentro e assim que chegava no limite interno era necessário que se levantasse a agulha, virasse o disco para se ouvir o outro lado.
- Pouco prático, não? - observou o outro que até então apenas ouvia atento.
- Até pode parecer, mas você não imagina o prazer que dava em sentir o primeiro contato da agulah com o vinil. O chiado que fazia ao roçar nele, a expectativa para o final de cada lado e para o início do outro...
Montag não entendeu muito bem mas acreditou que provavelmente tratasse de algo especial.
- Mas então? Como chegamos a este ponto? Como as coisas são hoje.
Retomou então o homem:
- Bem... não é difícil imaginar. Em seguida aos discos proibiu-se os CD's, os dispositivos portáteis, a compra de arquivos em bloco ou de um mesmo artista, os downloads passaram a ser monitorados pelo governo, foram proibidas então as músicas com letra, instrumentos e por fim, percebendo que até um Beethoven, um Sivuca ou um Glass podem estimular pensamentos mesmo sem palavras, resolveram criar a Rádio Estatal e esse o som que sai das paredes. O único som que é permitido. É lobotômico, você sabia? Deve-se evitar ouvi-lo prolongadamente. Mas a população ouve. Gostaram da música do governo. Aliás o povo sempre foi assim, gosta do que der pronto para ele.
Suspirou fundo, olhou na direção das árvores:
- O K7 até voltou a ganhar alguma força no submundo mas tão logo os homens souberam iniciaram uma nova onda de perseguições e buscas. E é aí onde você entra.
- Mas eu não sou mais um coletor – defendeu-se rapidamente Montag – Eu, eu... durante uma busca para coleta eu peguei um aparelho. Eu não o coloquei na prensa. Guardei no bolso. Eu o levei para casa e consegui ouví-lo. Ainda usei os fones de ouvido da Central, mesmo. Os que usamos para sermos avisados das buscas. Eu ouvi.
- O que você ouviu, Montag. É este o seu nome, não? Montag?
- Sim, é. No aparelho, um reprodutor de MP3 havia um arquivo chamado “Help”. Eu ouvi aquilo... havia uma música chamada “Yesterday”. Ela simplesmente... me fez chorar. Não sabia que músicas podiam fazer isso com a gente.
- Oh, sim... Eles eram conhecidos como The Beatles. Dizem que foram os maiores. “Help!” foi um grande álbum – confirmou o outro com ar de satisfação – A música é muito poderosa. Por isso não querem que as ouçamos.
- Quer ficar conosco?
- Adoraria. Ainda mais agora que sou uma espécie de “ameaça ao governo” - riu.
- Pois bem, aqui somos apenas uns 80, mas há muitos outros em muitas outras colônias clandestinas como esta pelo mundo afora. Pessoas dispostas a manter vivo o encanto, a magia e o ideal dos artistas e das suas obras fonográficas. Não foi pensado! Na verdade tudo começou meio que por acaso. Um homem aqui, outro ali, amante incondicional de música tratou de guardar no lugar mais seguro e intransponível, seu cérebro, no mínimo, uma música que amasse muito. Todos os detalhes possíveis, a melodia, a entonação, a batida, um ruído secreto. São homens-música. Deu-se que calhou de juntarmo-nos aqui e nestes outros lugares que falei, onde o governo ignora ou prefere que fiquemos desde que não “importunemos” sua ordem. O que eles não sabem é que assim que temos notícia de que uma outra “música” que faça parte de uma obra esteja pronta, tratamos de trazê-la para cá ou levá-la para onde possa compor um álbum. A propósito, não me apresentei, sou “Águas de Março” de Tom Jobim.
E apontou adiante mostrando:
- Aquele ali é “Non, Je Ne Regrete Rien”, de Édith Piaf; aquele outro sentado é “Little Red Rooster”, de Willie Dixon, na versão de Howlin' Wolf; aquele outro é “Anarchy in the U.K. Dos Sex Pistols; aquela moça bonita de vermelho é “Venus In Furs” do Velvet Underground. E vê aqueles todos juntos? Aquelas nove peassoas? Conseguimos reunir todas as músicas do “Let It Bleed” dos Rolling Stones – sorriu com satisfação.
- Não é fácil – continuou- Nem sempre conseguimos reunir álbuns inteiros, às vezes temos 4, 5 homens-música mas os outros estão espalhados por aí, por outras colônias, ou simplesmente vagando solitários com sua música favorita guardada em sua cabeça até que um dia as músicas sejam permitidas novamente e que aqueles clássicos possam voltar a serem gravados. Você ainda tem o aparelho? O arquivo?
- Sim, sim. Eu trouxe na fuga – apressou-se em mostrar, tirando do bolso.
- Acha que pode decorar sua letra, melodia, os detalhes de sua percussão? Acha que consegue identificar os instrumentos?
- Creio que sim.
- Pois então, ouça bem, ouça quantas vezes precisar e trate de gravar na sua mente. Assim que tiver terminado faremos o que você sempre fez, destruiremos o arquivo para que o governo não tenha motivo para prender qualquer um de nós. Temos alguns fones velhos se precisar.
- Eu gostaria muito.
- Vamos lá. Vamos à cabana buscar – conduzindo Montag com a mão em seu ombro.
No caminho para a choupana que lhes servia de alojamento, passaram por uma menina de uns dezessete anos que cantarolava alto o suficiente apenas para que quem estivesse perto dela conseguisse ouvir, “in dreams i walk with you...”. Era “In Dreams” de Roy Orbison.


Cly Reis

sexta-feira, 28 de junho de 2013

100 Melhores Discos de Estreia de Todos os Tempos

Ôpa, fazia tempo que não aparecíamos com listas por aqui! Em parte por desatualização deste blogueiro mesmo, mas por outro lado também por não aparecem muitas listagens dignas de destaque.
Esta, em questão, por sua vez, é bem curiosa e sempre me fez pensar no assunto: quais aquelas bandas/artistas que já 'chegaram-chegando', destruindo, metendo o pé na porta, ditando as tendências, mudando a história? Ah, tem muitos e alguns admiráveis, e a maior parte dos que eu consideraria estão contemplados nessa lista promovida pela revista Rolling Stone, embora o meu favorito no quesito "1º Álbum", o primeiro do The Smiths ('The Smiths", 1984), esteja muito mal colocado e alguns bem fraquinhos estejam lá nas cabeças. Mas....
Segue abaixo a lista da Rolling Stone, veja se os seus favoritos estão aí:

Os 5 primeiros da
lista da RS
01 Beastie Boys - Licensed to Ill (1986)
02 The Ramones - The Ramones (1976)
03 The Jimi Hendrix Experience - Are You Experienced (1967)
04 Guns N’ Roses - Appetite for Destruction (1987)
05 The Velvet Underground - The Velvet Underground and Nico (1967)
06 N.W.A. - Straight Outta Compton (1988)
07 Sex Pistols - Never Mind the Bollocks (1977)
08 The Strokes - Is This It (2001)
09 The Band - Music From Big Pink (1968)
10 Patti Smith - Horses (1975)

11 Nas - Illmatic (1994)
12 The Clash - The Clash (1979)
13 The Pretenders - Pretenders (1980)
14 Jay-Z - Roc-A-Fella (1996)
15 Arcade Fire - Funeral (2004)
16 The Cars - The Cars (1978)
17 The Beatles - Please Please Me (1963)
18 R.E.M. - Murmur (1983)
19 Kanye West - The College Dropout (2004)
20 Joy Division - Unknown Pleasures (1979)
21 Elvis Costello - My Aim is True (1977)
22 Violent Femmes - Violent Femmes (1983)
23 The Notorious B.I.G. - Ready to Die (1994)
24 Vampire Weekend - Vampire Weekend (2008)
25 Pavement - Slanted and Enchanted (1992)
26 Run-D.M.C. - Run-D.M.C. (1984)
27 Van Halen - Van Halen (1978)
28 The B-52’s - The B-52’s (1979)
29 Wu-Tang Clan - Enter the Wu-Tang (36 Chambers) (1993)
30 Arctic Monkeys - Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not (2006)
31 Portishead - Dummy (1994)
32 De La Soul - Three Feet High and Rising (1989)
33 The Killers - Hot Fuss (2004)
34 The Doors - The Doors (1967)
35 Weezer - Weezer (1994)
36 The Postal Service - Give Up (2003)
37 Bruce Springsteen - Greetings From Asbury, Park N.J. (1973)
38 The Police - Outlandos d’Amour (1978)
39 Lynyrd Skynyrd - (Pronounced ‘Leh-‘nérd ‘Skin-‘nérd) (1973)
40 Television - Marquee Moon (1977)
41 Boston - Boston (1976)
42 Oasis - Definitely Maybe (1994)
43 Jeff Buckley - Grace (1994)
44 Black Sabbath - Black Sabbath (1970)
45 The Jesus & Mary Chain - Psychocandy (1985)
46 Pearl Jam - Ten (1991)
47 Pink Floyd - Piper At the Gates of Dawn (1967)
48 Modern Lovers - Modern Lovers (1976)
49 Franz Ferdinand - Franz Ferdinand (2004)
50 X - Los Angeles (1980)
51 The Smiths - The Smiths (1984)
52 U2 - Boy (1980)
53 New York Dolls - New York Dolls (1973)
54 Metallica - Kill ‘Em All (1983)
55 Missy Elliott - Supa Dupa Fly (1997)
56 Bon Iver - For Emma, Forever Ago (2008)
57 MGMT - Oracular Spectacular (2008)
58 Nine Inch Nails - Pretty Hate Machine (1989)
59 Yeah Yeah Yeahs - Fever to Tell (2003)
60 Fiona Apple - Tidal (1996)
61 The Libertines - Up the Bracket (2002)
62 Roxy Music - Roxy Music (1972)
63 Cyndi Lauper - She’s So Unusual (1983)
64 The English Beat - I Just Can’t Stop It (1980)
65 Liz Phair - Exile in Guyville (1993)
66 The Stooges - The Stooges (1969)
67 50 Cent - Get Rich or Die Tryin’ (2003)
68 Talking Heads - Talking Heads: 77’ (1977)
69 Wire - Pink Flag (1977)
70 PJ Harvey - Dry (1992)
71 Mary J. Blige - What’s the 411 (1992)
72 Led Zeppelin - Led Zeppelin (1969)
73 Norah Jones - Come Away with Me (2002)
74 The xx - xx (2009)
75 The Go-Go’s - Beauty and the Beat (1981)
76 Devo - Are We Not Men? We Are Devo! (1978)
77 Drake - Thank Me Later (2010)
78 The Stone Roses - The Stone Roses (1989)
79 Elvis Presley - Elvis Presley (1956)
80 The Byrds - Mr Tambourine Man (1965)
81 Gang of Four - Entertainment! (1979)
82 The Congos - Heart of the Congos (1977)
83 Erik B. and Rakim - Paid in Full (1987)
84 Whitney Houston - Whitney Houston (1985)
85 Rage Against the Machine - Rage Against the Machine (1992)
86 Kendrick Lamar - good kid, m.A.A.d city (2012)
87 The New Pornographers - Mass Romantic (2000)
88 Daft Punk - Homework (1997)
89 Yaz - Upstairs at Eric’s (1982)
90 Big Star - #1 Record (1972)
91 M.I.A. - Arular (2005)
92 Moby Grape - Moby Grape (1967)
93 The Hold Steady - Almost Killed Me (2004)
94 The Who - The Who Sings My Generation (1965)
95 Little Richard - Here’s Little Richard (1957)
96 Madonna - Madonna (1983)
97 DJ Shadow - Endtroducing ... (1996)
98 Joe Jackson - Look Sharp! (1979)
99 The Flying Burrito Brothers - The Gilded Palace of Sin (1969)
100 Lady Gaga - The Ame (2009)