Teria muito para falar de Wim Wenders, de qualquer filme de sua extensa filmografia, de sua carreira, do namoro de seus filmes com a filosofia, das diversas fases e projetos diferentes, das obras-primas. Mas o que talvez dê mais prazer e uma alegria até ingênua é falar sobre a realização de um filme japonês de Wim Wenders. “Dias Perfeitos” é, acima de tudo, uma dessas delícias que cinéfilos admiram: um filme de um cineasta de um país realizado noutro e com total propriedade. Porque, sim, “Dias Perfeitos” é um filme japonês, produzido com verba japonesa, falado em japonês, com atores japoneses e cheio de referências ao cinema japonês. E um baita de um filme.
“Dias Perfeitos” acompanha com extrema delicadeza a história de Hirayama (Koji Yakusho, lindo e atorzaço), um homem de meia idade reflexivo que vive de forma modesta como zelador e limpando banheiros em Tóquio. Sua rotina é revelada ao espectador através da música que ouve, dos livros que lê e da apreciação das árvores, suas três paixões. À medida que os dias Hirayama avançam, encontros inesperados começam a surgir e passam a revelar um passado escondido, que jogam luz sobre os porquês da solidão, da fuga e da busca de sentido na vida moderna.
Wenders assumidamente faz uma homenagem e referencia seus mestres do Oriente: Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e, principalmente, Yasujiro Ozu, sua grande paixão talvez apenas equiparável a Michelangelo Antonioni. É do Ozu de “A Rotina Tem seu Encanto” e “Era uma Vez em Tóquio”, cineasta já perscrutado por Wenders no documentário poético “Tokyo-Ga”, de 1985, que ele extrai o senso contemplativo de “Dias...”. Seja na extensão sem pressa do transcorrer das cenas, seja na posição baixa da câmera em determinadas tomadas, quase ao chão, seja na apreciação natural da ação, aproveitando o som direto e sem “interferência” de trilha sonora.
Tomada quase no chão ao estilo Ozu
Por falar em música, aliás, são elas que ajudam a conduzir o filme. Ou melhor: pontuá-lo. A bela seleção de K7s do personagem, a qual ele ouve no carro pelas ruas e avenidas de Tóquio (Otis Redding, Lou Reed, Nina Simone, Patti Smith, só coisa boa) geralmente indo ou voltando do trabalho, demarcam não apenas a busca dele por “dias perfeitos” como, igualmente, o conduzem a praticamente encontrá-los ao final. Como uma trilha que acompanha momentos da vida e traduz emoções.
Como em “Paris, Texas”, “O Estado das Coisas” e “Além das Nuvens“, Wenders dá ao “decurso do tempo” (para usar outro título de filme seu) a forma e a estética, que se fundem. Mais uma vez captando com muita pertinência o espírito da terra em que se apropriou, o cineasta atribui aos silêncios (o “ma” da cultura oriental) uma função primordial para transmitir sentimentos de culpa, sofrimento, medo, frustração, angústia e, porque não, também de alegria. Em compensação, os diálogos são extremamente bem aproveitados, precisos como um golpe samurai. Vários são realmente tocantes, como o breve reencontro com a irmã abastada e de vida triste, que vai à sua humilde casa resgatar a filha, fugida de casa e de sua realidade para ter alguns dias de harmonia com o tio que tanto gosta.
Hirayama com a sobrinha: momentos de contemplação e harmonia
A dialética entre o arcaico e o moderno é, contudo, o centro da trama. Isso faz remeter, mais profundamente analisando, a uma forma de se colocar no mundo. O anacronismo do tipo de música e a mídia que Hirayama tanto apreciava é um símbolo de algo em extinção, mas capaz de gerar uma genuína conexão do ser humano com a arte, embora isso não faça mais tanto sentido num mundo cada vez mais digitalizado e fragmentado. A busca por si próprio no isolamento e na circunspecção faz lembrar filmes em que este foi o refúgio existencial de personagens na procura pelo sentido da vida, casos de “Nascido e Criado”, de Pablo Trapero, “O Turista Acidental”, de Lawrence Kasdan, e o próprio “Paris, Texas”. Porém, assim como nestes exemplo, “Dias...”, em suas propositais repetições de cenas e na progressão emocional do protagonista ao longo da história, vota numa solução humana para as dificuldades. Perfeição não existe.
Embora torça para isso, dificilmente Wenders levará o Oscar de Filme Internacional. Sem o gigante “Anatomia de uma Queda” na disputa, uma vez que a produção francesa ganhadora da Palma de Ouro em Cannes concorre somente ao de Melhor Filme ao lado de favoritos como “Oppenheimer” e “Vidas Passadas”, o caminho para o elogiado longa alemão (mas um tanto superestimado) “A Zona de Interesse” vencer está facilitado. Porém, só o fato de ver no páreo um “Junger Deutscher” como Wenders, um verdadeiro esteta e revolucionário do cinema moderno, é quase que um prêmio adiantado a ele e a toda uma geração. Herzog, Schlöndorff, Fassbinder, Von Trotta, Kluge: estão todos representados com esta indicação. E não só eles, mas também, no caso, Ozu, Kurosawa, Mizogushi, Imamura, Oshima. Porém, talvez nem Wenders dê tanta importância a uma conquista como esta. Afinal, mesmo com o reconhecimento a uma obra de meio século como a dele, a Academia está longe de ser perfeita. Assim como os dias.
Fui com grande expectativa ver o
último filme do genial cineasta alemão Wim Wenders, “O
Sal da Terra” (França/Itália/Brasil, 2014), documentário
sobre Sebastião Salgado codirigido por seu filho, Juliano Ribeiro
Salgado. Além da indicação ao Oscar de Melhor Documentário
(que não levou, mas não me fez perder o interesse) e de ter como
tema o trabalho do grande fotógrafo brasileiro, a própria
assinatura de Wenders já me significa um bom indicativo.
Expectativa frustrada. Num filme
cujo conteúdo principal, a obra e a trajetória de Salgado, poderia
ser muito melhor explorado, os diretores derrapam num longa monótono
e comumente didático que não diz a que veio: nem pode ser
considerado uma biografia (até porque o protagonista ainda tem chão
pra correr), nem se configura como um documento poético-visual tal
qual Wenders já fizera em outros trabalhos nesse formato como “Pina”
(2011) e “Buena Vista Social Club” (1999). Além disso, o roteiro
desaproveita os próprios “ganchos” levantados durante a
narrativa de “improbabilidades controláveis” típica de
documentários, os quais poderiam direcioná-la a algo mais autoral e
criativo.
Suspeito que dois fatores tenham
influenciado para que “O Sal da Terra” tenha saído assim tão
“sem sal”. Primeiro, que Sebastião Salgado está vivo, e falar
sobre a vida-obra de pessoas que ainda estão pela tal Terra –
ainda mais quando altamente comprometidas com fatores sociais e
políticos e quando a pessoa é diretamente envolvida na produção
como neste caso – pode acarretar em interferências tanto positivas
quanto negativas. Aqui, na queda de braço, as negativas se
sobrepuseram. De bom, tem-se a riqueza de percepções do próprio
Sebastião Salgado analisando, relatando e comentando projetos e
fotos de sua autoria. No entanto, é impossível não cogitar a
autopreservação de quem provavelmente tema entrar de cabeça num
projeto com potencial de descortinar o que se quer e o que não se
quer mostrar. Com Wenders à frente, este desmascaramento tem grandes
chances de acontecer sem que o documentado o perceba conscientemente.
Quando ele vê, já foi pra ilha de edição. Um homem público como
Salgado, que guarda o status de maior em sua profissão no mundo e
cujos projetos dependem de instituições financeiras, empresas e
verba pública (inclusive, este filme), mesmo que ele não queira,
mesmo que seja inconsciente, não permite se expor de um jeito que o
discurso artístico o conduza.
Juliano filmando enquanto Sebastião fotografa.
Não digo com isso que haja má
índole nem “rabo-preso” da parte de Sebastião Salgado,
personalidade ciente de sua trajetória e de postura
filosófico-políticas bastante esclarecida. Tanto é fato que, em
“Revelando Sebastião Salgado”, outro documentário sobre ele (de
Betsie de Paula, de 2013), vários aspectos de sua vida não deixam
de ser conhecidos pelo espectador, como a rotina de trabalho, o papel
fundamental da esposa Lélia em sua vida e modus operandi e a
relação com o outro filho, Rodrigo, que tem Síndrome de Down. Em
“O Sal da Terra”, por exemplo, o relacionamento com o filho é
abordado de forma bastante superficial e nem se menciona que é Lélia
quem organiza seu arquivo de fotos e negativos, dois elementos que
denotam bastante da forma de ser de Sebastião. Um pouco por falta de
um direcionamento mais assertivo, um pouco pelo ritmo/conceito da
montagem, tudo é contado de forma (sono)lenta mas aproveitar essa
lentidão para um aprofundamento real. A questão parece-me, sim (e
aí entra o outro fator influenciador para a concepção vaga do
filme), que o dedo de Juliano trouxe uma amortização de aspectos
negativos tanto no sentido de preservação da imagem do pai quanto
de uma inaptidão técnica sua por trás das câmeras. Ao invés de
ter ajudado, a proximidade pai-filho parece trazer um complicador ao
projeto de Juliano, influenciando no roteiro. Ainda mais considerando
as vaidades familiares, incontroláveis em exposições tão grandes.
Não captei de cara, mas lembrei da entrevista prestada por Juliano
na entrega do Oscar, em que, numa mostra sabe-se lá de modéstia ou
autismo ele se refere ao “Sebastião Salgado” e não simplesmente
ao “pai”, já denotava esta má-resolução psicanalítica.
E onde entra Wim Wenders nisso?
Justamente neste bolo de comprometimentos e presunções. Chamado
para assumir a codireção – provavelmente pela constatação desta
inaptidão de Juliano a que me referi –, o alemão tentou, tentou,
mas não soube onde se colocar. São visivelmente dele os tais
“ganchos” que poderiam salvar o filme. Primeiro, na sua didática
germânica e poética, inicia o longa com um off no qual
disseca o termo “fotografia”. Um começo até óbvio que, para
não se tornar um jogral de ensino básico, dependeria de se
desenvolver esta didática de maneira a penetrar no âmago do objeto
foto: luz, escuro, ambiente, calor, frio, posição, emoção,
solidão. Expectativa frustrada novamente, pois a narrativa segue
para uma exposição cronológica dos projetos e viagens do fotógrafo
ao longo dos anos “curiosamente” selecionada a gosto da família
Salgado. Quem viu o outro documentário sobre Sebastião ou conhece
um pouco de sua carreira sabe que ele prefere, por exemplo, não
associar seu sucesso à famosa foto do atentado a Ronald Reagen, em
1981, quando seu trabalho ganhou definitivamente projeção
internacional.
A foto de Reagan nem é mencionada
em “O Sal da Terra”.
A outra “deixa” sugerida por
Wenders e desconsiderada é ainda mais perceptível e até simbólica
nessa relação cinema de arte X imagem institucional. Quando
o cineasta relata sobre o convite que recebeu para assumir o projeto
e começar a rodar, ele destaca na narração que, curiosamente, ao
mesmo tempo em que ele apontava a câmera para Sebastião Salgado, o
movimento inverso, por força do hábito de fotógrafo, também
acontecia. Aquilo supõe que o filme, a partir dali, versaria sobre a
profundidade simbólica da linguagem cinematográfica, em que o olhar
do cineasta, do protagonista e do espectador pudessem se confundir,
confluir e se complementar. “O que é foto?” “O que é
filme?” “Quem está documentando quem?” “O quanto importa o
movimento contínuo dos frames-fotos para uma significação real do
objeto do filme?” Questionamentos estimulantes para qualquer
obra cinematográfica.
Fotos-denúncia do fotógrafo feitas na Etiópia
Fantástico!... Não, pois
simplesmente a ideia é abandonada mais uma vez para retornar à
cômoda, isenta e simplória narração de Wenders e de Juliano (mais
de Wenders, diga-se) com incursões de depoimentos de Sebastião. Se
o filme seguisse pela lógica da discussão da linguagem de cinema,
justificaria, inclusive, a presença do/s diretor/es como
personagem/ns. Em outros documentários seus, Wenders optou ou por
uma espécie de “presença intrínseca”, como em “Quarto 666”
(1983), no qual entrevista cineastas como ele e debate o futuro de
sua profissão; “Buena Vista...”, em que a figura de Ry Cooder o
“substitui”; ou “Pina”, quando é totalmente
diretor/entrevistador, deixando a história se construir através dos
bailarinos e da presença imaterial de Pina. Todos obras-primas. Por
que será?...
No fim, coube a Wenders tentar dar
um ar autoral a “O Sal da Terra”, amarrando-o com offs,
depoimentos e muitas, mas muitas projeções de fotos. Até demais.
Muito sépia, muito esfumaçamento. Na condução, arriscou aplicar
uma cadência contemplativa para dar a sensação de apreensão do
tempo. Inútil, pois em todo o decorrer não se aprofundaram questões
como a necessidade da espera e/ou a preparação de um fotógrafo em
campo para extrair, às vezes, nenhum click. Supõe-se isso na
sequência do urso polar, mas se “descarta” a ideia também. O
resultado disso é um filme com bons momentos (principalmente, a
sequência sobre as tristes fotos da Etiópia) mas que cansa pela
lentidão e do qual ninguém sai empolgado da sala de cinema. Se
Wenders, que é Wenders, não teve condições de “levantar” o
filme, quem dirá Juliano. Como na vida, quando se atribuir uma
função para duas pessoas sem distinguir a que cada um será
responsável, nenhuma delas acaba por fazer algo por completo. Em “O
Sal da Terra” é assim: dois diretores, nenhum autor.
A codireção não é o problema.
Wenders já produzira assim e com sucesso, haja vista os belos “O Céu de Lisboa” (1994), em parceria com o português Manoel de
Oliveira, ou “Além das Nuvens” (1995), feito a quatro mãos com
mestre do cinema italiano moderno Michelangelo Antonioni. Quanto a
Juliano, até temia que o filme pudesse ter mais a “cara” dele e
menos a do parceiro, que poderia ter se associado de forma a dar uns
pitacos providenciais mas, respeitando o ambiente familiar, não
interferiria no resultado final – suposição minha que não se
confirmou. A questão é que não se criou um espaço real de atuação
nem para um, nem para outro.
Seja por influência ou não da
família, de Juliano ou do próprio Sebastião, “O Sal da Terra”,
com um substrato espetacular para que se compusesse um grande filme
que contivesse como temperos elementos instigantes e questionadores,
saiu um produto audiovisual “chapa branca”. Branco como sal em
pitadas esparsas e imperceptíveis ao paladar.
O que eu estou fazendo aqui? Qual o sentido disso tudo? Qual a minha importância dentro de tudo isso? Quem nunca se perguntou essas coisas em algum momento da vida? Bom, o certo é que o recomendável não é começar a pensar sobre essas coisas durante um jogo de futebol e, ainda mais quando se é goleiro. Em "O medo do goleiro diante do pênalti", o arqueiro Joseph Block, já um tanto desligado da partida que está disputando, leva um gol, vai reclamar do juiz, é expulso, pega suas coisas, dá o fora do pequeno estádio onde o jogo se realiza e, a partir de então, começa a vagar sem rumo, sem saber bem o próximo passo. Nisso, acaba se envolvendo com a bilheteira do cinema que frequenta, acaba a assassinando sem nenhum motivo, vai parar numa cidade interiorana e, de certa forma, passa a se esgueirar da polícia, mas, no fundo, talvez, querendo ser apanhado, descoberto, como que dizendo, "Olhem para mim!". Uma espécie de ânsia contida, domada, em mostrar a todo mundo que o goleiro não é importante apenas quando a bola vai nele. Ele faz parte do jogo mesmo quando a bola está em outras partes do campo. O filme, a estreia do alemão Wim Wenders em longa-metragens, pode parecer um tanto lento e parado para muitos espectadores, mas é o ritmo adequado imposto pelo diretor de modo a criar essa comparação com a função solitária do futebol, fazendo de seu protagonista, na maior parte do tempo, um observador, e com esse tipo de condução, fazer notar, de forma muito sutil, as mudanças que nele ocorrem. No fim das contas, especialmente pela cena final, o filme de Wenders nos leva à reflexão de que, no fundo, a vida não passa de um pênalti e cabe a nós, como goleiros, conhecer o batedor, fazer a leitura da linguagem corporal dele para adivinhar ou lado da batida ou, simplesmente, ter a sorte de cair pro canto certo. E aí, será que você pega o seu?
Aquele posto solitário no campo, aquela bola entrando... Qual o sentido de tudo isso? Qual o sentido de... TUDO?
Cult movie por excelência, o filme “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti”, primeiro longa do genial cineasta alemão Wim Wenders (1972) tem como protagonista uma figura dificilmente destacada e, por isso, raramente observada: o arqueiro de futebol. Aquela máxima futebolística de que “goleiro só é lembrado quando acontece coisa ruim” serve de mote simbólico para a vaga trama escrita pelo jovem Wenders à época do nascente cinema novo de seu país. A invisibilidade do goleiro ante os outros 10 jogadores de seu próprio time, tão atletas quanto ele, pelo simples fato de jogar diferente e estar “lá atrás”, onde o olhar de ninguém está direcionado, funciona como uma metáfora para a saga do personagem Joseph Bloch (Arthur Brauss), um jovem alemão cético, narcisista e sem propósitos na vida. Era um reflexo de toda uma geração de artistas da terra de Goethe fruto do pós-II Guerra, que arrasou a Alemanha física e moralmente, e que vazou para todas as artes, inclusive cinema.
Claro que essa situação de angústia existencial e esvaziamento de nexos gera aquilo que o título do filme de Wenders evidencia: medo. Uma nação enganada pelo fascínio do nazismo como a alemã e que viu, após anos de destruição, suas bases morais e materiais ruírem, só poderia mesmo carregar consigo muita culpa e ilogicidade. Isso, na Alemanha, repleta de história, industrializada, rica e um dos berços da cultura ocidental. Agora imagine uma nação jovem, colonizada, pobre, fortemente rural e forjada sobre bases escravocratas como o Brasil da primeira metade do século 20! Dá para imaginar como um goleiro no futebol brasileiro era tratado. Só existem duas possibilidades: ou ele defende tudo e é um herói ou, se deixa escapar uma bola que seja, vira vilão. Caso de “Barbosa”, personagem do filme semidocumental de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado (1988).
Assim foi a vida de Moacyr Barbosa Nascimento, goleiro mítico do Vasco da Gama desde 16 de julho de 1950: a de um vilão. O fatídico dia do Maracanaço, quando o Brasil perdeu a final da Copa do Mundo daquele ano para o Uruguai dentro de casa, em pleno Maracanã superlotado de todas as almas nacionais, é também o dia que se decretou a morte simbólica de um jovem de 29 anos até a sua partida material em 7 de abril de 2000. O medo do goleiro, abstrato na obra de Wenders, foi, no entanto, totalmente real para Barbosa. O medo da culpa. A responsabilidade da frustração de uma nação inteira recaiu sobre os ombros daquele jovem, não coincidentemente negro e de origem pobre.
O injustiçado Barbosa em cena do filme de Furtado
Refém de um povo imaturo e preconceituoso, Barbosa levou toda a responsabilidade pela tragédia. Haveriam de achar um “bode expiatório”, e melhor que esse fosse uma figura vulnerável: um jogador entre os 11, negro e “sem defesa” (como as palavras podem ser cruéis e certeiras em certas situações...). A opinião pública, frustrada pois pouco madura para administrar a própria expectativa, não teve nenhum preparo para absorver uma derrota que aconteceu dentro das quatro linhas. A “intelligentsia” brasileira, tão infantil quanto, não só se eximiu de ajudar como inflamou mais os ânimos. Nelson Rodrigues, em cima do lance, cunhou o termo do “complexo de vira-lata”: “entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.”
No curta-metragem (Melhor edição no Festival de Gramado e Melhor filme de ficção no Festival de Havana), o próprio Barbosa, uma figura tristemente triste, queixa-se em entrevista do estigma que o imputaram e do qual nunca mais conseguiu se livrar. Motivado pelo trauma da infância, o personagem fictício vivido por Antônio Fagundes volta ao passado numa máquina do tempo para tentar promover uma correção histórica. Mas a história é mais implacável e dura do que a consciência do herói do futuro. De certa forma, denota-se que o Brasil de 1988, quando o filme foi filmado, ainda não havia compreendido maduramente o episódio da Copa de 50 e, consequentemente, elaborado a injustiça para com Barbosa. Por autocondenação, por “síndrome de vira-lata”, por egoísmo, por imaturidade. Por racismo. Se a ressaca que acometia Arthur do filme de Wenders era por algo que sua nação havia feito, a de Barbosa, muito menos subjetiva, era por algo que a nação não havia tido condições de fazer.
Fagundão voltando no Brasil dos anos 50 pra tentar impedir o pior
Afora isso, para quem acompanha futebol e tenta compreender sua evolução tanto tática quanto física e até aerocinética dos corpos, é ainda mais exagerada a culpabilidade de Barbosa. Ele não pegou aquele chute do uruguaio Giggia por motivos plausíveis até hoje, mesmo transcorridas mais de sete décadas. A começar, a bola foi entre a trave e o seu corpo, o que dificulta um movimento curto lateral e para baixo. O atacante Bebeto, tetracampeão pela Seleção, valia-se deste "macete" contra os goleiros, de meter na menor distância, geralmente com sucesso. Segundo, porque a bola veio rente ao gramado, rápida e na diagonal, ou seja, menos de milésimos de segundo de visualização por parte do arqueiro. E terceiro: passou rente à trave. Para pegá-la, um goleiro provavelmente precisaria se estatelar na própria goleira e talvez nem assim resolvesse. Um lance como aquele renderia uma defesa difícil até hoje, mesmo com toda a evolução técnica e física dos goleiros. Para uma época ainda primária do esporte bretão, em que muitos gols saíam de jogadas absurdas, muitas vezes dos próprios goleiros, não dá para considerar aquela jogada do segundo gol do Uruguai como uma falta grave de Barbosa e muito menos um "frango". Impossível de pegar? Hoje, não. Talvez naquela época também não, mas com certeza é aceitável tanto antes quanto agora não receptá-la. Na verdade, ocorreu o que o brasileiro dificilmente admite: mérito do adversário, e não demérito seu.
É mais forte do que qualquer raciocínio ponderado, no entanto, a depreciação de uma nação pueril que acreditou, por falta histórica de ferramentas para um auto entendimento, na falácia darwinista do evolucionismo. Povo mestiço: então, necessariamente "inferior", "incapaz", "indolente", "imprestável". Era o que seouvia das bocas (in)cultas de Gobineau, Monteiro Lobato, Oliveira Viana, Roquette-Pinto. Interessante perceber que o filme de Furtado e Ana Luiza se dá na época da “seca” do Brasil em Copas do Mundo (o que só seria “superado” dali quase a 10 anos, em 1994, com a conquista da Copa nos Estados Unidos) e que termos como os ditos antigamente voltavam à baila. Basta ver a música “Inútil”, da Ultraje a Rigor, de 1985, que, criticando o ser brasileiro, repete o adjetivo inclusive para associá-lo ao futebol: “A gente joga bola e não consegue ganhar”.
Acontece que as razões para a autodepreciação do brasileiro para consigo mesmo é muito mais profunda do que apenas derrotas ou vitórias dentro de campo. No máximo, esses resultados do esporte são reflexos, mas nunca derrocada ou muito menos solução. Nelson Rodrigues, ingenuamente, afirmava que a “síndrome de vira-lata” se dissipara quando, oito anos depois daquele fatídico jogo no Rio de Janeiro, a Seleção Brasileira vencera a Copa do Mundo na Suécia. Mera ilusão. A valorização como povo e, principalmente, o reconhecimento de suas capacidades como nação única e indivisível ainda está longe de ser alcançado no Brasil do séc. 21. A extrema polarização política que se deflagrou no País há menos de uma década dá motivos para se pensar assim. Em 1958, Pelé e Garrincha nos deram arte, mas não resolviam quase nada. Tanto que o Brasil seria lindamente tricampeão em 1970 sob a sombra do pior momento político-social da sua história, quando as liberdades e os direitos humanos eram barbaramente infligidos pela Ditadura Militar. Isso sim é degradação moral.
A reparação história a que Barbosa fora merecedor pelo massacre público a que foi objeto nada mais é, noutra escala, do que o sistema de cotas e as políticas para corrigir as discrepâncias e erros cometidos com negros excluídos da sociedade. Barbosa morreu sem presenciar o Mineiraço, os 7 x 1 da Seleção da Alemanha sobre a do Brasil na segunda Copa do Mundo no Brasil. Talvez ele pudesse perceber que hoje em dia, um pouco mais madura 64 anos depois, a responsabilidade não é atribuída a apenas uma pessoa. Talvez tivesse ficado um pouco confortado. Mas com certeza seu olhar sofrido e perspicaz teria notado também que o goleiro, tão pouco culpado quanto ele, era branco. E aí, é bem mais fácil de lidar.
filme"Barbosa", deAna Luíza Azevedo e Jorge Furtado(1988)
Vi que geral tá fazendo essas listinhas de filmes preferidos na rede social aí de vocês e, como é semana de Oscar, resolvi fazer a minha também. Afinal de contas, Eu também sou filho de..., digo, Eu sou o Pai do..., Eu sou o... Ah, vocês entenderam. Pessoal diz que é só pra postar uma imagem, sem comentar, mas Eu vou comentar, sim, porque Eu que mando nessa bagaça e Eu faço o que Eu bem quiser! Sendo assim, então, sem maiores enrolações, aí vai a lista dos filmes favoritos dEle (Eu, no caso):
Eu negão é uma honra!
1. "O Todo Poderoso", de Tom Shadyac (2003)
Ah, podem falar o que quiserem mas Eu não podia deixar de falar desse! Eu negão tô demais!!! Ainda mais interpretado pelo Morgan Freeman. Isso sem falar no Jim Carrey que Eu curto pra caramba também. Eu vejo esse filme é fico imaginando o estrago que vocês fariam se estivessem no Meu lugar. Eu Me livre!
"It's alive! It's alive!"
2. "Frankenstein", de James Whale (1931)
E por falar em vocês querendo se meter nas Minha, no meio de tantos filmes desses do homem querendo brincar de Eu, o "Frankenstein", o antigo, o clássico, não podia ficar fora da Minha lista. É a parada de neguinho querendo ser criador e não somente criatura, saca? Essa sensação de criar uma vida Eu conheço bem. Lembro de quando criei o Adão, a minha reação foi exatamente a mesma do cientista no filme: "Está vivo! Está vivo!".
Ó Eu, aquele foguinho ali,
gravando as leis nas tábuas sagradas.
3. "Os Dez Mandamentos", de Cecil B. de Mille (1956)
Falando em Adão, adoro esses filmes antigos adaptados do Meu livro sagrado tipo "Ben-Hur", "O Manto Sagrado", "Sansão e Dalila" e tal. Mas o Meu preferido mesmo é "Os Dez Mandamentos", que tem o Charlton Heston de Moisés e Eu contracenando com ele como um foguinho escrevendo as dez leis, aquelas que vocês nunca seguem, nas tábuas sagradas.
"Sai, tentação."
4. "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese (1988)
Esse é com o Filhão. Outro "bíblico" mas esse já de outra turma. É dos provocativos, dos contestadores. Gosto disso! Não fiz vocês pra serem tudo uns cordeirinhos. Gostei da hipótese do JC ter tido uma vida sem ter que carregar a cruz de ser Meu filho. Scorsese matando a pau!
Estás linda, Maria!
5. "Je Vous Salue, Marie", de Jean-Luc Godard
Outro dos controversos que Eu gosto de montão. E esse é mais sobre a Patroa. Adorei a leitura que o Godard deu pra história do nascimento do JC. Gosto desses caras que tem colhão de mexer com o que é... sagrado. Ah, e adorei aquele anjo Gabriel, todo grosseirão, e que dá umas biabas no tal de José que quer bulir com a Minha mulher.
Bruno agora, sim, virou um anjo.
6. "Asas do Desejo", de Wim Wenders (1997)
Por falar em anjo, um filme que Eu sou apaixonado e que mostra um pouco como é essa coisa de vida de guardião de vocês, é o "Asas do Desejo" do Wenders. Comentei isso, inclusive, com o Bruno, o Bruno Ganz, que acabou de chegar por aqui. E o pior é que a coisa é bem assim, mesmo: Eu mando os Meus funcionários de asas aí pra tomar conta de vocês, ficar na retaguarda e tal e, de vez em quando, um que outro pede pra ser um de vocês e ficar por aí mesmo. Não sei qual a vantagem que eles vêem nisso, mas...
É pra isso que Eu pago
Meus funcionários?
7. "O Sétimo Selo", de Ingmar Bergman (1957)
Sabe que aqui em cima Eu tenho um monte de tipo de gente trabalhando pra Mim e, outro tipo de empregado, que não deixa de ser um anjo, é a tal da Morte. Nesse filme, que pra Mim é obra-prima, esse Meu funcionário tem que ir lá buscar um cavaleiro das Cruzadas que já tá com o nome escrito no Meu livro final, mas o carinha fica enrolando, enrolando esse Meu servidor jogando uma partida de xadrez. Ora, vejam! Foi bom ver pra saber como é que Meu pessoal fica embaçando na hora do trabalho pra chegar o fim do expediente.
"Estamos a serviço do Senhor."
8. "Os Irmãos Cara-de-Pau", de John Landis (1980)
Esses não são Meus empregados mas, como eles dizem no filme, "Estamos a serviço do Senhor". Missão divina, muita perseguição de carro, muita risada e muito som... Baita filme! Já vi zilhões de vezes e não canso. Sem falar naquele pessoal todo que aparece lá: Aretha, Hooker, Ray, o Mr. Dynamite... Já tá todo mundo aqui em cima e de vez em quando rola umas jams por aqui. Comandadas pelo Belushi, é claro. O Jake Blues.
9. "Monthy Python em Busca do Cálice Sagrado", de Terry Gillan e Terry Jones (1975)
Ó Eu, de novo,
agora em animação.
Adoro esses caras! Me mijo de rir com eles! Podia falar aqui do "A Vida de Brian" em que eles zoam direto com o Meu Filhão, mas vou destacar mesmo o "Em Busca do Cálice Sagrado" que, pra Mim, é o melhor deles. O galope de cocos, Os Cavaleiros que dizem Ni, a gruta dos coelhos assassinos, as freiras sedentas por sexo, as andorinhas europeias ou africanas... Meu Eu! Aquilo é impagável! E pra melhorar, nesse Eu faço uma pontinha. Apareço designando a missão pro Rei Arthur e seus Cavaleiros.
O que diabos significa esse monolito?
10. "2001 - Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick (1968)
Esses dias, conversando com o Stanley, por aqui pelos corredores, ele Me disse, "O conceito de Deus está no centro de 2001". Eu não sei se, na verdade, com o filme dele, ele mais me explica ou me complica. Seria Eu o monolito? Estaria confirmando Minha onipresença? Estaria negando minha existência? Só um primata endeusaria um sólido cravado no chão? Seria uma ridicularização da religião? Seria uma exaltação à ciência? Uma contestação da evolução? Uma minimização da Minha importância? Perguntei pra ele o que ele queria dizer com tudo aquilo e ele me disse que a ideia era provocar a interpretação de cada espectador. Ai, Kubrick, assim tu confunde minha cabeça! É demais pra minha capacidade. Mas que é um baita filme, é! Stanley, tu é gênio.
E aí, o que acharam da minha lista? Qualquer coisa, tipo, críticas, correções, pitacos na lista, indicações de filmes, ingressos cortesia, súplicas, pedidos, orações pro seu filme favorito levar o Oscar... enviar e-mail para:god@voxdei.gov
Fui, filharada!
Fiquem Comigo e que Eu os acompanhe!
Jean-Claude Carrière disse certa vez que “quem faz cinema é herdeiro dos grandes contadores de histórias do passado”. Pois é isso: cineastas são contadores de histórias. Afinal, quase invariavelmente, quanto mais original a obra cinematográfica, mais se sente a “mão” do seu realizador. Um filme, na essência, vem da cabeça de seu diretor. Fato. Tendo em vista a importância inequívoca do cineasta, convidamos 5 apaixonados por cinema que, cada um à sua maneira – seja atrás ou na frente das câmeras –, admiram aqueles que dominam a arte de nos contar histórias em audiovisual e em tela grande.
Então, dando sequência às listas dos 5 preferidos nos 5 anos do clyblog, 5+ cineastas:
1.Gustavo Spolidoro cineasta e professor (Porto Alegre/RS)
"Se Deus existe, ele se chama Woody Allen"
O pequeno gênio,
Woody Allen
1 - Woody Allen 2 - Stanley Kubrick 3 - Rogário Sganzerla 4 - François Truffaut 5 - Agnes Varda ***************************************
2.Patrícia Dantas designer de moda (Caxias do Sul/RS)
"Gosto destes"
1 - Quentin Tarantino 2 - Stanley Kubrick 3 - Sofia Coppola 4 - Woody Allen 5 - Steven Spielberg *************************************** 3.Camilo Cassoli