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segunda-feira, 10 de março de 2014

Erik Satie - "Entr'acte" (1924)



“Satie estava recomeçando a história
da música europeia mais uma vez.”
Reinbert de Leeuw




Este é um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que bem pode ser também um Claquete, pois filme e trilha estão totalmente conectados, uma vez que imagem e som não existiriam um sem o outro. Esse conceito integral tão típico das artes cênicas e visuais só poderia vir de artistas que souberam antever o que hoje é chamado de arte contemporânea. Sim, antever, afinal estamos falando de uma obra datada de 1924. A música? A peça “Entr’acte”, do compositor vanguardista francês Erik Satie. O filme correspondente é outra joia, dirigida pelo cineasta René Clair, o mesmo de clássicos do cinema mundial “A Nós a Liberdade” (1931), a “versão europeia” de “Tempos Modernos”, de Chaplin.

Clair chamou Satie para um desafio a que os dois, inquietos como eram, se instigaram. A proposta era a seguinte: o pintor e poeta Francis Picabia, desgostoso com os companheiros de dadaísmo, quis cutucar, igualmente, os surrealistas. Redigiu, então, um balé para o grupo Ballets Suédois, que estrearia em Paris, em pleno Théâtre des Champs-Élysées. O jocoso nome da produção dizia tudo: “Relâche”, o aviso que se colocava na porta dos cinemas quando as sessões eram suspensas. Isso ainda não era nada: no dia da avant-première, um dos cartazes do espetáculo trazia um aviso provocativo ao público: “Se você não gostar, o caixa lhe venderá apitos por dois centavos.” Pois o balé, com apitaços de vaia ou não, conteria dois atos e, no intervalo, seria apresentado um curta-metragem dirigido por Clair cuja trilha, assim como a de todo o espetáculo, coube a Satie. O resultado dessa química foi tão afrontosa que a música do filme se destaca a dos dois movimentos da dança, sendo inclusive desvinculada deles. Ou seja, um deboche homérico, uma vez que justamente a programação secundária (momento de dispersão e que exige menor concentração do público) é a mais representativa de todo o programa, pondo-se acima do principal.

Tal índole de ruptura e escárnio são típicos de Satie, um inclassificável compositor em constante mutação ao longo dos tempos. Ele já havia, àquela altura, composto obras marcantes para a história evolutiva da música europeia (“Relâche” é seu último trabalho antes de morrer, em 1925), como o tríptico “Gymnopédies” (1888) – com seus incomuns 18 compassos contínuos de apenas seis (!) notas, sem desenvolvimento nem transição, apenas um instante prolongado – e outras inovadoras peças, como o balé “circense-surrealista” “Parade”, que causou furor em 1917. Influenciado pela música de DebussyRavel e Stravinsky, bem como pelos modernistas franceses do Les Six, misturava o ragtime americano e a sonoridade fútil do teatro de variedades ao clima do cotidiano de uma Paris em efervescência cultural – deste o esoterismo ocultista até o populismo dos cabarés. Satie circulava por todas as correntes (dadaísmo, futurismo, surrealismo, cubismo, expressionismo, simultaneísmo) sem, contudo, filiar-se a nenhuma delas. Em “Entr’acte”, compõe uma peça totalmente despojada, sem cadência nem compasso definido: apenas marcação de ritmo e harmonia, relegando a segundo plano a melodia. O motivo sonoro, maldito feito uma engenhoca que se estragou naquele ponto, vai e volta, mecanicamente, doentiamente. “Entr’acte” é, assim, a gênese do minimalismo. A repetição e as cacofonias incômodas ao ouvido mostram o quanto Satie prenunciava os tempos esquizofrênicos da sociedade pós-moderna, em que a emoção vira produto e o homem vira máquina. Evidente esta analogia na sequência do funeral, em que todos os convidados, parecendo bestas, estão fora do tempo, até que o próprio caixão dá no pé e todos passam, simbolicamente, a correr atrás da morte. Aqui, Satie faz uma paródia da “Marcha Fúnebre” de Chopin, em que sua escrita para piano, rítmica e sem firulas, revela a influência da música de dance-hall e da vida urbana moderna.

Como na trilogia “Quatsi”, da dupla Godfrey Reggio-Philip Glass, “Entr’acte” é um filme-música (ou a música-filme, tanto faz). Dura pouco mais de 20 minutos, suficientes para entrar para a história da música no século XX e marcar o movimento surrealista no cinema, tendo sido produzido, inclusive, cinco anos antes de “Um Cão Andaluz”, de Luís Buñuel e Salvador Dalí (não é de se estranhar que a estreia de ambos os filmes tenha rendido enorme bafafá na sociedade parisiense da época). Ali já estavam, porém, vivas, as inovações técnicas (câmera na mão, efeitos de luz e lente, sobreposições, distorções visuais, enquadramentos incomuns) e conceituais (roteiro não-linear, narrativa poética, descompasso temporal da ação/personagem, desconstrução psicológica do palco-cenário) que marcariam o cinema avant-garde. O curta foi influência direta para o brasileiro Mário Peixoto em sua obra-prima “Limite” (1930) e para o “cinema de poesia”, que vai da Pier-Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard a Júlio Bressane.

A Paris daquele início de século XX dava todos os elementos para essa ebulição criativa. A Cidade-Luz fervia em sua beomia noturna. Estavam lá a esta época algumas das mais inteligentes cabeças das artes em todas as frentes: Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Coco Chanel, Stravinsky, Marcel Duchamp. Jean Renoir, Jean Cocteau, Man Ray, Gertrude Stein, David Milhaud e os próprios BuñuelDalí, Clair e Satie. Com tanta produção, os rótulos empregados eram os mais diversos. “Entr’acte”, um típico produto consciente do entre-Guerras, capta esse espírito de diversidade, homogeneizando todas as vertentes. O filme é uma alegoria irônica e pessimista do futuro, como a antecipação das apropriações ideológico-simbólicas da publicidade (a bailarina em slow-motion vista em total contraplongê que vai e volta com a função de “encantar os olhos”), a erotização da violência através do artefato militar (o canhão “varão” que desencadeia a desordem no início do filme) e a fragilidade e a vigília da vida moderna em época de olhos digitais e mídia a la big brother (os dois homens manipulando a cidade em um tabuleiro feito marionete). Já a música, inegavelmente dadaísta, traduz isso a seu jeito: tal como Satie inaugurara em “Parade” sete anos antes, uma nova arte de colagem sonora é criada: melodias interrompidas quando ainda mal começaram, dissonâncias em abundância, ritmos entrelaçados e sobrepostos, ataques inesperados e paradas fora do tempo, fugas quebradas que “homenageiam” um passado já desfeito. Wagner, ópera italiana, escola austríaca, romantismo, classicismo: “nunca mais!”, bradava.

Havia quem criticasse Satie por suas miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e uma total ausência de virtuosismo instrumental, reduzindo-o a um compositor de fracos recursos técnicos. Se o era, é mais louvável ainda, pois sua criatividade e capacidade transformadora são tamanhas que não é exagero dizer que ele é um dos precursores do espírito “faça você mesmo”, o grito dos punks, estes, os revolucionários roqueiros do fin de siècle. O fato é que uma obra tão significativa como “Entr’acte” exerceu influência direta na vanguarda pós-Segunda Guerra, tanto no meio erudito quanto no jazz e no rock. Para citar quatro exemplos expressivos: Terry Riley, em seu eletro-minimalista “A Rainbow in Curved Air”, de 1969; a mente “saudavelmente doentia” de Syd Barrett em “The Piper at the Gates of Down”, do Pink Floyd, do mesmo ano; as primeiras obras de Glass, tanto “Music in 14 Parts” (1971-74) quanto “Music with Changing Parts” (1971); e a maestrina jazzista Carla Bley em “Musique Mecanique” (1978). Se tamanho alcance não é digno de elogio, é, no mínimo, reflexo da recorrente contradição que caracterizaria os ilógicos e amorais tempos de hoje. Tempos, aliás, aos quais Satie já se fazia pertencer mesmo não vivendo neles. E para que precisaria?

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O CD traz ainda a íntegra de “Relâche”, com seus dois movimentos interpostos por “Entr’acte”, e a obra “Trois Morceaux en Forme de Poire” – que contém a conhecida peça “Maniere de commencement” e “Ragtime Parade”, arranjo posterior ao balé “Parade” escrito por Hans Ourdine –, todos em versão para piano. No vídeo, a trilha de “Entr’acte” é arranjada para orquestra, com regência de Henri Sauguet, de 1967.
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Ouça o Disco, Assista o Filme:
Erik Satie Entr'acte



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FAIXAS:
I. Trois Morceaux en forme de poire:

1. Maniere de commencement - 4:05
2. Prolongation de meme - 0:47
3. Lentement - 1:27
4. Enlevé - 2:43
5. Brutal - 2:12
6. En plus - 2:21
7. Redite - 1:31
8. Ragtime Parade - 2:33

II. Relâche - Premier Acte:
9. Ouverture - 1:09
10. Projection - 0:42
11. Rideau - 0:24
12. Entrée de la Femme - 1:14
13. "Musique" - 0:37
14. Entrée de l'Hommes - 0:38
15. Danse de la Porte tournante - 0:54
16. Entrée des Hommes - 0:39
17. Danse des Hommes - 0:42
18. Danse de la Femme - 1:04
19. Final - 1:15

III. Entr'acte:
20. Cheminées, ballons qui explosent - 1:29
21. Gants de boxe et allumettes - 0:42
22. Prises d'air, jeux d'echecs et bateaux sur les toits - 0:57
23. La Danseuse et figures dans l'eau - 0:42
24. Chasseur; et début de l'enterrement - 1:25
25. Marche fúnebre - 0:51
26. Cortege au ralenti - 1:35
27. La Poursuite - 1:10
28. Chute du cerceuil et sortie de Borlin - 1:00
29. Final (écran crevé et fin) - 1:05

IV. Relâche - Deuxieme Acte:
30. Musique de Rentrée - 0:56
31. Rentrée des Hommes - 0:54
32. Rentrée de la Femme - 1:15
33. Les Hommes se dévetissent - 0:34
34. Danse de l'Homme et de la Femme - 1:13
35. Les Hommes reganent leur place et retrouvent leurs pardessus - 0:51
36. Danse de la Brouette - 1:21
37. Danse de la Couronne - 0:57
38. La Danseur depose la Couronne sur la tete d'une specatrice - 0:46
39. La Femme rejoint son fauteuil - 1:05
40. Petite Danse Finale (la Queue du Chien) – 0:43







quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Música da Cabeça - Programa #249


Que bola fora essa do Djoko, hein? Sem mentira e sem negacionista, no MDC não tem tem galho em testar positivo. Positivando a nossa noite, teremos Isaac Hayes, Heitor Villa-Lobos, Jorge Ben Jor, Nei Lisboa, Syd Barrett (Official) e mais. Também, uma breve homenagem aos 70 anos de Lô Borges. De bate-pronto, o programa vai ao ar às 21h na trivacinada Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues (Mas que papelão, Djoko...)

Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

terça-feira, 2 de abril de 2019

The Claypool Lennon Delirium - “South of Reality” (2019)



"Dois mundos colidiram e que mundos gloriosos e estranhos eles são."
Texto do site oficial da banda

“Sean é um mutante musical, segundo meu próprio coração. Ele definitivamente reflete sua genética - não apenas as sensibilidades de seu pai, mas também a perspectiva abstrata e a abordagem única de sua mãe. É uma loucura gloriosa."
Les Claypoll 

“Eu disse a Les que eu era sobrinho de Neil Diamond. Eu acho que isso é o que realmente o vendeu na ideia de trabalhar comigo.”
Sean Lennon

Toda hora pinta alguém que vem com aquela já manjada sentença de que “o rock morreu”. A irrelevância da maioria do que surge no mundo do rock ‘n roll quase faz com que se acredite nisso. Porém, de tempo em tempo, aparece algo que dá esperança de que não só o rock não se extinguiu como ainda é capaz de se reinventar. A última grande confirmação deste alento chama-se The Claypool Lennon Delirium, a junção de dois músicos supercriativos, Les Claypool e Sean Lennon, que a feliz improbabilidade promovida pelos deuses roqueiros uniu quase sem querer. Recentemente, eles lançaram “South of Reality”, seu segundo disco, que dispensa a comum ação confirmativa do tempo para entrar para a história. Um rock colorido, plástico, artístico, criativo, fora do convencional. Uma obra-prima imediata.

Iniciada em 2016, por conta de um convite de Claypool, à época em final de turnê com sua Primus, a Sean, igualmente “de bobeira” nalgum projeto, a parceria rendeu o já surpreendente “Monolith of Phobos”, daquele ano, e o EP "Lime and Limpid Green", de 2017. Agora, a dupla afirma a química entre ambos em nove faixas, que fazem valer do talento de cada um tanto na criatividade compositiva quanto, igualmente, de suas qualidades técnicas como instrumentistas e produtores. Eles realçam as características que os marcam tanto na Primus de Clyapool, irreverente e dissonante, quanto na carreira solo de Sean, melodista de fina estampa, homogeneizando tudo isso e construindo, assim, uma nova identidade sonora: psicodélica, incomum e nada óbvia. Embora o experimentalismo, peculiar aos dois artistas, “South...” não descamba para o “cerebralismo” excessivo ou para devaneios lisérgicos intermináveis. Tudo está sempre a serviço de uma obra sonoramente instigante.

Claypool, um dos maiores baixistas da história do rock, aproveita sua destreza não apenas para improvisar mas para criar riffs, bases e texturas. Já Sean, verdadeiro herdeiro dos gênios de seu pai, John Lennon, e da mãe, Yoko Ono, além de tocar com habilidade invejável guitarra e bateria, adiciona seus inventivos arranjos vocais, riffs e contra-riffs, que completam o parceiro. Essa contribuição fica clara na faixa de abertura, “Little Fishes”. Circense e bufa, lembrando Syd Barrett e a Beatles da fase “Sgt. Peppers”, é visível que a ideia inicial da melodia partiu de Claypool, que divide os vocais com Sean. Porém, como bom parceiro, além das variações rítmicas extraídas da bateria, Sean adiciona à canção sua guitarra, fundamental para as segunda, funkeada, e terceira partes, um jazz progressivo que remete a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin.

A dupla Sean e Claypool: encontro de dois
mundos que deu certo
O mesmo processo se vê na gostosa “Easily Charmed by Fools”, a mais pop do disco – embora a psicoldelia se faça presente inevitavelmente. Riff de Claypool no baixo, resposta de Sean na guitarra, que também coloca a sua voz doce para contracantar, dando um ar de rock sessentista a esse funk estilizado. Mais Claypool ainda é “Toady Man's Hour”, de andamento quebrado e marcada pelo vocal esganiçado do baixista. Até nisso, aliás, eles se completam: a docilidade do timbre vocal de Sean, muito parecido com o de seu pai, contrabalanceia a esquisita e chistosa voz de Claypool.

Para compensar, entretanto, “Boriska”, de raiz beatle, haja vista a semelhança com a grandiosidade melódica de Lennon/McCartney, é toda Sean, mas com as adições de Claypool tanto no timbre inconfundível de seu baixo quanto no arranjo invariavelmente inconstante que permeia, aliás, a maioria das faixas. Destaque para os dois solando na segunda metade do número: Sean na guitarra e Claypool com um arco no baixo elétrico, expediente que ele já usara na Primus, como em “Mr. Krinkle”, de “Pork Soda” (1993).

Já “Amethyst Realm” é um verdadeiro exemplo da fusão das duas musicalidades. Rock denso e de arranjo intrincado, tem a cara das melodias cantaroláveis de Sean – inclusive com a subida  de tom na segunda parte, algo muito Beatles também –, parecida com outras belas canção escritas pelo próprio no passado como “Spaceship” (“Into the Sun”, 1997) ou a faixa-título de “Friendly Fire” (2006). Porém, traz uma base de baixo de Claypool com a qual a música não existiria. E se Claypool segura todas por detrás, desta vez é Sean que apavora com improvisos de guitarra ao melhor estilo Robert Fripp. A faixa-título é outra prova da comunhão dessas duas mentes. Baixo e guitarra cumprem juntas a ideia central da melodia, e as vozes, em uníssono, se misturam. Lembra Primus e os trabalhos de Sean no mesmo grau.

Porém, mais do que qualquer outra faixa do disco, duas delas representam a simbiótica união entre os dois músicos. Ainda mais complexas, “Blood and Rockets - Movement I, Saga of Jack Parsons - Movement II, Too the Moon” e “Cricket Chrionicles Revisited - Part I, Ask Your Doctor, Part II, Psyde Effects”, como os próprios títulos indicam, são minissinfonias, haja vista suas estruturas em “movimentos” e “partes” e a engenhosidade da composição. “Blood...” é um épico de pouco mais de 6 min, expondo a versatilidade de cada um tanto em composição quanto arranjo e harmonia, além, igualmente, na técnica instrumental e produtiva que têm. Melancólica, conta a trágica história real de Jack Parsons, um engenheiro norte-americano dos anos 30, que ajudou a desenvolver a tecnologia para propulsão de foguetes espaciais e pertenceu ao chamado “Esquadrão Suicida” da universidade Caltech que, ao que indica a história, se suicidou explodindo a si próprio após envolver-se com a seita Thelema, comandada pelo ocultista Alester Crowley (“Faça o que tua vontade/ O amor é a lei/ Me faça voar até a lua”, diz a letra, parafraseando a lei thelemista cantada por Raul Seixas nos anos 70 como "Sociedade Alternativa").

Já “Cricket...”, igualmente sinfônica, remonta a influência indiana de George Harrison à música pop. Sean, com igual habilidade da guitarra, toca cítara, enquanto teclados viajantes percorrem o espaço sonoro e o baixo namora com o jazz. Ainda, acompanham percussões típicas da música que Ravi Shankar legou aos Beatles e ao rock dos anos 60. Delirante como o próprio nome da banda aponta. “South..” se despede com a Beatles-Primus “Like Fleas”: neo-psicoldelismo na medida certa, que poderia tranquilamente ser uma bonus track do “Magical Mystery Tour”, de mais de meio século atrás e sem dever nada a tal.

Se diante de tanta coisa dispensável que o rock do século XXI tem apresentado der aquela vontade de reclamar que “o rock morreu”, acalme-se. Pegue “South...” da The Claypool Lennon Delirium e deixe rolar. O efeito será tranquilizador pela constatação de que essa máxima não se aplica e, ao mesmo tempo, animador por causa daquilo que se ouve: um som empolgante como é o bom e velho rock ‘n’ roll.

FAIXAS:
1. “Little Fishes”
2. “Blood and Rockets - Movement I, Saga of Jack Parsons - Movement II, Too the Moon”
3. “South of Reality”
4. “Boriska”
5. “Easily Charmed by Fools”
6. “Amethyst Realm”
7. “Toady Man's Hour”
8. “Cricket Chrionicles Revisited - Part I, Ask Your Doctor, Part II, Psyde Effects”
9. “Like Fleas”
Todas as composições de autoria de Les Claypoll e Sean Lennon

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sábado, 30 de janeiro de 2016

Júpiter Maçã - “A Sétima Efervescência” (1997)





"Em algum lugar entre Roberto Carlos,
Rita Lee e Syd Barret,
 Júpiter sente seu corpo derreter,
visita planetas e conversa com seres imaginários.
'Loki' é elogio.”
Alexandre Matias,
revista Rolling Stone Brasil




Flávio Basso é visto por muitos, por setores da crítica especializada, principalmente, como um músico de extremo talento, arrojado e inventivo, um multi-instrumentista de mão cheia. Um de seus álbuns, “Plastic Soda” (Trama, 1999), totalmente escrito, produzido, arranjado e executado por ele, chegou a ser premiado, em 2000, como o melhor disco do ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), recebendo também o Prêmio Açorianos, concedido pela Secretaria de Estado da Cultura/RS. Em votação feita por cerca de 50 músicos, críticos, jornalistas e produtores musicais, para a revista Aplauso, publicada em 2007, “A Sétima Efervescência”, seu primeiro álbum solo, foi eleito o melhor álbum da história do rock gaúcho. O mesmo disco foi eleito também pela revista Rolling Stone Brasil (n. 13, outubro de 2007, p. 127) como um dos 100 melhores álbuns brasileiros de todos os tempos, figurando na 96º posição. Na ocasião, assim se pronunciou a revista:
“Um raio lisérgico atingiu a cabeça do ex-Cascavelletes Flávio Basso nos anos 1990 e ele reuniu diferentes pontas soltas pelo rock – Jovem Guarda, mod, garagem e psicodelia – em um disco forte, coeso e chapado. Começa com “Um Lugar do Caralho”, um  Cavalo-de-Tróia que não prepara o ouvinte para a chuva Technicolor de referências que flutuam ao redor do compositor como alucinações sorridentes. Em algum lugar entre Roberto CarlosRita Lee e Syd Barret, Júpiter sente seu corpo derreter, visita planetas e conversa com seres imaginários. “Loki” é elogio”.
Aqui, duas abordagens sobre Flávio Basso, o Júpiter Maçã, que trazem à luz sua representatividade e complexidade dentro da cena musical rock gaúcha e brasileira.


Estrangeirismos, fantasias e complexidade de Júpiter Maçã

O texto do jornalista Alex Antunes, publicado no portal Yahoo! Notícias, em 23/12/2015, abordando a morte de Flávio Basso, músico gaúcho conhecido como Júpiter Maçã, se caracteriza, sobretudo, por sua pronunciada pessoalidade. Dizendo-se fã do álbum “Hisscivilization”, lançado em 2002, declarando admiração por certas composições do artista recém-falecido, Antunes também menciona o amigo pessoal Cisco Vasques – produtor audiovisual com quem Júpiter havia trabalhado –, refere-se à própria timeline como plataforma de acesso ao mundo e, de quebra, utiliza Rogério Skylab como recurso para fazer um autoelogio sutil, o trampolim de um pequeno panfleto classista.
O escrito, no entanto, para além do tom auto-centrado, possui outras características interessantes: é cheio de sinuosidades, insinuações e implicâncias. Por trás delas – ou junto delas – encontram-se distintos julgamentos de valor, nunca explicitados ou assumidos com franqueza. A começar pelo próprio título: “O crepúsculo do Zé Louquinho”, infantil, brincalhão e jocoso, numa primeira leitura, depreciativo e desrespeitoso, numa segunda passada de olhos.
Antunes reclama cautela quanto ao uso abusivo da expressão “gênio” para definir Basso, vida e obra. É um alerta, sem dúvida, apropriado. Muito embora se esqueça de considerar aí, nesse flagrante exagero retórico, o impacto da notícia da morte e o próprio carinho que, assim, mal elaborado, se manifesta publicamente, no calor do momento. De todo modo, reconhece, trata-se de um músico “talentoso” e inspiradíssimo. Ou seja: Antunes considerou mais eloquente a imprecisão do que a espontaneidade dos admiradores de Júpiter Maçã. Para ele, o músico falecido seria, em realidade, mais “chapado e folclórico” do que propriamente “genial”.
Aponta então uma razão adicional pela qual “estranhou” as narrativas e os depoimentos que atravessavam, em profusão, naquele momento, sua timeline: o “fator Gainsbourg”, isto é, a capacidade de certos artistas provocarem maior comoção, serem melhor acolhidos, por sua base de fãs, depois que morrem.
São considerações tão problemáticas quanto provocativas. Por um lado, servem ao necessário debate público sobre a figura e o legado musical de Júpiter Maçã. Por outro, contudo, são afirmações frágeis, que escondem vieses e limitações pessoais, limitações de perspectiva.
Obviamente, não se pode estipular com clareza a linha divisória entre a “genialidade” e a “chapação”, o caráter “folclórico” atribuído ao gaúcho Basso. Não é uma distinção fácil de ser feita, afinal de contas. Ao entendê-lo e ao enunciá-lo como “genial”, os fãs poderiam ter em mente, justamente – talvez tivessem em mente, de fato – os momentos em que, para eles, um criador “chapado” ganhou corpo, alçando-se muito acima de qualquer expectativa média ou qualquer previsibilidade que se pudesse ter. O terreno da música pop, mais do que qualquer outro campo de produção artística, é ideal para que proliferem embaralhamentos (bem como epifanias) deste tipo. A rigor, em se tratando de Júpiter Maçã, é extremamente difícil separar com clareza tais personificações (o “gênio”, o “folclórico” e o “chapado”). A não ser que se queira, deliberadamente, mais do que enfrentar a complexidade viçosa que ele carrega, produzir insinuações e desacreditações sutis a respeito dela. É o que faz Antunes. Desse modo, Júpiter resulta, no mínimo, como um tipo suspeito.
E há mais. Trata-se de focar, num tom crítico e severo, o “comportamento abusivo do gênio incompreendido, como um todo”. Aqui, através de outra definição vaga e inespecífica, sugere-se algo sobre a conivência necrófila dos fãs e o apego dos gaúchos aos “mitos datadões do rock” clássico. Em outros termos, está se falando sobre perversidade e culpabilização dos fãs (assim equiparáveis, num extremo radicalíssimo, à criminalização do próprio músico, exigida conforme episódio relatado [ou melhor: insinuado, apenas, sem o devido trato jornalístico]). Está se falando ainda sobre a desatualização dos gaúchos, presos em clichês trágicos e românticos, incapazes de ceder diante do curso natural e incorrigível da história (leia-se: as mãos do mercado). Júpiter Maçã deveria ter se tornado Cidadão Instigado, assevera Antunes.
Ou seja: são avaliações muito parciais, muito auto-centradas, que advogam para si uma centralidade e uma razão centralizadora incapazes, em última instância, de dar conta das mutações descentralizadoras, da criação policêntrica, do exercício de dissolução de núcleos de poder e força estética que marcaram, permanentemente, a trajetória de Flávio Basso. Numa pérola, Alex Antunes chega a dizer que Basso “não estava se embatendo com nada real”, parecendo não reconhecer que este suposto ente imaginário, esta fantasia doente, tirou-lhe, por fim, a vida real de que gozava. É o caso raro de uma irrealidade mortal.
O artigo termina abruptamente. Deixa-nos a sensação de que faltou complementar o argumento, assinar a pintura, assumindo-lhe, a ferro e fogo, a autoria. Esta falta parece o produto de um recuo político e estratégico – jogadas ao ar, como já estão, as insinuações. E Júpiter Maçã, claro, “pode ser considerado vítima de uma doença, a da adição a substâncias”. Ponto. Assim como Alex Antunes pode não saber exatamente o que fala. Ou pode também não querer dizê-lo integralmente, talvez por razões pessoais, razões que desconhecemos, que não podem ser ditas ou ouvidas; talvez por simples (e inconfessável) respeito ao morto, aos estrangeirismos, às fantasias e à complexidade da vida que ele deixou.


Júpiter Maçã em Porto Alegre*

Flávio Basso foi uma das figuras mais controversas da música jovem feita no Rio Grande do Sul nos últimos trinta anos. É também um dos maiores talentos já vistos na cena local, sem sombra de dúvida. De fato, notoriedade e controvérsia não lhe faltaram em momento algum. Gostaríamos de examinar aqui, em função de sua representatividade, o modo como este artista singularíssimo se traduziu e se deixou traduzir no imaginário da cidade.
O bar Garagem Hermérica, por exemplo, situado na rua Barros Cassal, entre 1992 e 2013, foi o ambiente (de contatos, bebedeiras, vínculos afetivos e circulação de informações) no qual "A Sétima Efervescência" (1997), seu primeiro álbum solo, foi concebido. Por hipótese, pode-se dizer (pode-se suspeitar, pelo menos) que o Garagem Hermética – em sua primeira fase (cf. Leo Felipe, 2014) – é justamente o “lugar do caralho”, que ele canta numa de suas canções mais conhecidas, a música de abertura, o primeiro grande hit do álbum.
“Eu preciso encontrar/ Um lugar legal pra mim dançar/ E me escabelar/ Tem que ter um som legal/ Tem que ter gente legal/ E ter cerveja barata/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam mesmo afudê/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam loucas / E super chapadas/ Um lugar do caralho/ Sozinho pelas ruas de São Paulo/ Eu quero achar alguém pra mim/ Um alguém tipo assim/ Que goste de beber e falar/ LSD queira tomar/ E curta Syd Barrett e os Beatles/ Um lugar e um alguém/ Que tornarão-me mais feliz/ Um lugar onde as pessoas/ Sejam loucas e super chapadas/ Um lugar do caralho/ Lugar do caralho.”
No entanto, para encontrarmos Porto Alegre inscrita na obra de Júpiter Maçã, não devemos procurá-la explicitada, límpida e fácil, prontamente exposta nas letras das composições. Do ponto de vista referencial, acreditando-se então em sua carga denotativa, “Um Lugar do Caralho” narra buscas noturnas e aventuras lisérgicas paulistanas. É a cidade de São Paulo que funciona como um campo de ações, no qual anunciam-se algumas vontades e emerge uma pequena série de referências simbólicas (que são também referências anímicas). Porto-alegrense, no caso, é a coloquialidade, o repertório de gírias e o sotaque empregados.
Convém lembrar que o rótulo “rock gaúcho”, como disseram Humberto Keske e Lidiani Lehnen (2012), antes de indicar uma procedência geográfica, indica um certo acento, um certo dialeto – um dialeto gaúcho, dizem os autores –, alguma insularidade, “moldada entre o conservadorismo e a vanguarda cultural” (Keske e Lehnen, 2012, p. 521). “A Sétima Efervescência” é assim: conservador (pois revivalista) e vanguardista, quase displicente em relação ao horizonte real em que está imerso. Quase nada é dito sobre Porto Alegre, sobre a vida em Porto Alegre. A rigor, não há ali nenhum localismo, nenhum tradicionalismo, nenhuma cultura gaúcha (num sentido folclórico ou etnográfico, ao menos).
A cidade deixa-se avistar apenas de passagem, numa ou noutra menção, numa ou noutra estrofe, um tanto lateral e circunstancialmente. É o caso das canções “Querida Superhist x Mr. Frog” (que diz: “Hey querida, domingo vamos passear lá no Parque da Redenção/ Vamos viajar”) e “Eu e Minha Ex” (“Eu e minha ex/ Na tempestade/ Sob o mesmo guarda-chuva/ Pelas alamedas de Porto Alegre/ Do Mercadão até o Bom Fim). E isto é tudo. Com exceção de “Canção para Dormir”, que fala, muito de relance, sobre uma lenda típica da região sul do Brasil (“Eu acredito em fantasmas/ Em mula sem cabeça/ Negrinho do Pastoreio”), não há mais nada. Absolutamente nada. E não faz a menor falta!
Todavia, esta desaparição da cidade do universo temático do artista se mantém nos quatro discos posteriores? Em linhas gerais, sim. Como predominância, sim. Os olhos de Júpiter não estão vidrados na cidade. Muito embora, algumas ocorrências sinalizem certas nuances e/ou variações importantes. É o caso da canção “Bridges of Redemption Park”, de “Plastic Soda”, uma bossa nova escrita como uma crônica afetiva sobre o Parque da Redenção, cuja letra diz: “Brigdes of Redemption Park/ So little/ So chinese/ So guiding/ So inviting/ There is few Buddhist and Christians/ Some ‘gloomy’/ And people who drop out to see…”.
Mas sua singularidade não reside apenas nisto, no fato de ser um aparte, uma ilha temática – um retrato de Porto Alegre fazendo-se então visível –, num conjunto de obsessões e preocupações outras, muito mais habituais, quase sempre na linha “sexo, drogas e rock and roll”, apresentadas em tônicas mais ou menos ácidas, conforme o estilo musical invocado. Trata-se de uma bossa nova cantada em inglês, versando sobre um conhecido parque situado próximo ao centro da cidade. No entanto, de algum modo, o cenário descrito, em seu significado e em sua aderência local, é contradito e duplamente neutralizado, seja pelo idioma (o inglês, língua universal), seja pelo imaginário construído em torno do gênero (o caráter nacional, não necessariamente regionalista, da bossa nova).
Mas há outros casos equiparáveis. Um deles é “Casa de Mamãe”, do álbum “Uma Tarde na Fruteira”. Num trecho, a letra diz o seguinte:
“Olhando os mísseis na tevê/ Tomando chá/ Tô hospedado na capital/ Com Thalita F. Jones/ Na casa de mamãe/ Outra vez/ Na casa de mamãe/ Além disso eu nem progredi/ No meu blues tropicalista/ No meu blues neo-modernista/ Na minha canção mais estereofônica/ Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre/ Eu gosto de Porto Alegre.”
É um relato enfático, de tons intimistas e metalinguísticos, mas que pouco diz verdadeiramente sobre a cidade. Recorrer, portanto, ao conteúdo manifestado nas letras não é, decididamente, uma boa estratégia. Não só porque canções como “Casa de Mamãe” e “Bridges of Redemption Park” perfazem um grupo minoritário, junto com mais duas ou três, mas porque a relação de Júpiter Maçã com Porto Alegre é mesmo muito mais complexa, podendo ser decomposta e examinada a partir de várias outras angulações complementares. Em primeiro lugar, pode-se cotejá-la à trajetória, às fases da carreira do artista, que vai amadurecendo e se transformando, artisticamente, que vai sendo reconhecido na medida em que se constitui um mercado midiático (um conjunto de rádios e espaços de mídia impressa, por exemplo) e a própria cultura do rock local.

* O texto é parte de um artigo maior e mais desenvolvido, publicado no México, como um capítulo independente, num volume sobre música e cidade na América Latina. A publicação saiu no primeiro semestre de 2015. Aqui, alguns pequenos ajustes foram feitos. A referência correta é: SILVEIRA, Fabrício. Porto Alegre en el espejo partido de Júpiter Maçã. In: VARGAS, Herom y KARAM, Tanius (eds). De Norte a Sur: música popular y ciudades en América Latina. Apropiaciones, subjetividades y reconfiguraciones. Mérida (Yucatán, México): Secretaría de la Cultura y las Artes de Yucatán, D. R. Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, Editorial Libro Abierto, 2015, p. 347-376. Agradeço a Herom Vargas e Tanius Karam, os organizadores do livro.

Referências
FELIPE, Leo. A Fantástica Fábrica. Porto Alegre – RS: Publicatto Editora, 2014.
KESKE, Humberto Ivan; LEHNEN, Lidiani. Na trilha sonora dos pampas: a batida pesada do rock ‘n’ roll a la gaúcho. Rio de Janeiro – RJ, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), revista Polêmica, v. 11, n. 3, julho/setembro de 2012, pp. 503-523.

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FAIXAS:

  1. "Um Lugar do Caralho" – 4:58
  2. "As Tortas e as Cucas" – 4:39
  3. "Querida Superhist x Mr. Frog" – 5:40
  4. "Pictures and Paintings" – 3:09
  5. "Eu e Minha Ex" – 5:52
  6. "Walter Victor" – 3:43
  7. "As Outras Que Me Querem" – 2:43
  8. "Sociedades Humanóides Fantásticas" – 6:42
  9. "O Novo Namorado" – 3:12
  10. "Miss Lexotan 6mg Garota" – 4:57
  11. "The Freaking Alice (Hippie Under Groove)" – 5:09
  12. "Essência Interior" – 7:00
  13. "Canção Para Dormir" – 3:13
  14. "A Sétima Efervescência Intergaláctica" – 2:38

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