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segunda-feira, 16 de agosto de 2021

"Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar - L&PM Editores (1977)


"Queres saber da ema fugaz?
Queres? 
Então é muito pouco. 
Queres saber dos bois empalhados? Da tia de Pelotas? 
Da Carta de Punta Del Este? Da queda do cruzeiro? 
Do Banco da Província? 
Do Simca Chambord? Das Cestas de Natal Amaral? 
Do considerável número de populares bradando viva Jânio? 
Queres saber de tudo? 
Queres? 
Então paga."
parágrafo inicial de 
"Mês de Cães Danados"




"Viajante chega a Porto Alegre procedente de São Paulo. Procura na Rua da Ladeira um homem que conta histórias (falarias em mendigo, paulista? Eu não falaria). Mediante (atenção!) pagamento, viajante paulista terá visão, sucinta e não desprovida de interesse, do agosto de 1961 - mês, na expressão do narrador, de cães danados. Paralelamente narrador contará algo de sua vida - interessante infância, batalhas na cidade de Pelotas, aventuras na capital. Mediante pagamento adicional poderá descrever cenas de sexo (sublinha esta palavra, paulista, no original; se for impresso, quero-a em itálico. Ah, ris. Teu nome é Sátiro?). Narrador mencionará ema fugaz, Simca Chambord, Cestas de Natal Amaral, considerável número de populares bradando viva Jânio, muro de Berlim, machine-gun, Bois Empalhados, Letras da Legalidade, Fayacal Khautz (...)"
Este resumo que o próprio narrador do livro repassa com seu interlocutor, já alguns dias após a primeira visita, é exatamente o que precisamos para introduzir o excelente "Mês de Cães Danados", de Moacyr Scliar., livro em que os eventos que antecederam e culminaram na renúncia de Jânio Quadros e na posse de João Goulart, naquele agosto de 1961,  eu que são narrados, mediante uma substancial contribuição em sua lata de doce de Pelotas, por um mendigo tagarela, instalado na ladeira da Rua General Câmara, em Porto Alegre.
Numa confusão de informações, entre lembranças de infância, personagens reais e fantásticos, relatos dispensáveis, slogans publicitários, manchetes de jornais da época, o tresloucado morador de rua vai contando a um curioso, provavelmente paulista pelo sotaque, que chega todos os dias para ouvir dele toda a história de como saiu da condição de um promissor estudante de direito, filho de um latifundiário do Sul do Estado, à situação de miséria, abandonado e esquecido, com uma perna deformada, numa calçada no Centro da cidade, ali pertinho do Palácio do governo do Estado.
Num espaço de duas semanas, desde o início das visitas do paulista, todos os dias, em sua narração atropelada, confusa, o miserável, que se identifica como Mário Picucha, intercalando fatos de sua história pessoal com o contexto político e social daquele momento, vai revelando um pouco mais sobre aqueles dias de 1961, até chegar à data em que, com muito esforço do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, foi garantida a posse de seu genro, o então vice-presidente da República, João Goulart, mesmo diante de uma enorme resistência das elites, de empresários e latifundiários, que temiam por uma ameaça 'comunista'.
Aparentemente a história toda do indigente soa sem pé nem cabeça mas, em meio a todo aquele desvario em que menciona ema fugaz, tordilho doido, machine-gun, bois empalhados, Cavaleiro Rolando, talvez haja algo mais. A cada dia surge um elemento novo, algo mais relevante e, parece que seu assíduo visitante espera exatamente por algo mais consistente na história. Por isso continua indo, por isso vai todos os dias, por isso coloca um dinheiro na lata. O que aquele mendigo tem a contar de tão importante daquele agosto de 1961?
Moacyr Scliar, um dos maiores escritores gaúchos e um dos grandes nomes da literatura nacional, num formato muito livre e despojado, conduz a história com total domínio e precisão mesmo quando, eventualmente, achamos que aquela conversa de maluco não está levando a lugar nenhum ou que há muita informação inútil no que sai da boca de seu personagem narrador. "Mês de Cães Danados" é uma leitura agradabilíssima, contagiante, atraente. O relato do protagonista em primeira pessoa, é ágil, inquietante, e a disposição dos capítulos, em formato diário, no período das idas do misterioso visitante à Rua da Ladeira, garantem uma dinâmica estimulante e um constante interesse do leitor. Um relato de um histórico agosto em uma leitura que dá gosto.



Cly Reis

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

cotidianas #344 - Somos Reis



Chamo-me Reis, por parte de mãe. O sobrenome, ao que tudo indica, veio de Portugal, tendo em vista haver essa procedência na família. Entretanto, as raízes africanas foram as que se sobrepuseram em mim e nos meus familiares, cujas feições negras marcantes se assemelham bastante mesmo entre homens e mulheres. E, curiosamente, minha família do lado materno sempre festejou o Dia de Reis, 6 de janeiro. Mesmo que a data tenha como motivo principal a tradição cristã, pela sugestão do nome – e talvez pela assunção de certa autoimportância – nós, Reis, a celebramos, pelo menos, entre a gente.

ilustração: Cly Reis
Pois o clima de “parabéns” entre os meus e o atrevimento de tomar umas das datas mais antigas da tradição ocidental como sendo nossa lembrou-me de um episódio. Lá por 1994, 95, não lembro ao certo, estava eu acompanhando uma amiga numa festa comunitária em Viamão, num sábado à tarde. Foi numa escola dessas tipo “brizoleta recauchutada”, tal como a que estudei meu Ensino Básico, que. Construída por Brizola nos anos 60, ganhara anexos no governo Collares (1991-95). Crianças, mães, pais, jovens, guloseimas, refri, cuscos, música (na época, o que “pegava” era “O Bonde do Tigrão”, embrião do punkadão carioca). Clima festivo e animado.

Como apenas acompanhava minha amiga, que trabalhava fazendo a filmagem da tal festa, era uma figura um tanto enigmática ali. Percebia uns olhares do tipo: “o que esse rapaz está fazendo aqui?”, “De onde ele veio?” À medida que as horas avançavam, ia, naturalmente, me enturmando com o pessoal, tudo gente boa. Gente como a gente, sabe?: classe média (mais baixa que a minha, mas classe média), universos parecidos, gestos parecidos, feições parecidas.

Até que, lá pelas tantas, minha amiga, eu e uma moradora do bairro começamos a conversar amenidades. Ela, uma mulata jovem de quem se notava simplicidade, era uma das curiosas quanto a mim mas demonstrava certa intimidação ao falar comigo. No entanto, no desenrolar da conversa, ela me olha e diz:

- Eu acho que te conheço. Tu não é filho da tia Dorinha?

(Observação: a título de prosódia, estou inventando o nome dessa senhora, viu? Não tenho condições de me lembrar disso.)

Eu, sendo filho da dona Iara, por óbvio respondi que não. A moça seguiu intrigada e prosseguiu com a indagação:

- Então quem é a tua família?, perguntou ela achando que eu fosse alguém do bairro.

Foi então que, com uma naturalidade desavisada, respondi:

- Na minha família são Reis.

Por uma fração de segundos, um turbilhão deve ter passado pela cabeça dela. A moça levou um susto tão grande que, involuntariamente, esbugalhou os olhos. Sei lá o que foi, se por minha postura convicta do que dizia ou pelo modo de falar, que talvez tenha transmitido subliminarmente a tal “assunção de certa autoimportância”. Mas o fato é que, ajudado pela minha mal formulada e dúbia frase, ela acreditou, sim, que eu descendesse de uma família real. Na hora, tive que me conter para não gargalhar na cara da moça, pois cheguei a enxergar uma cena comigo sentado num trono todo dourado, rodeado pelos meus parentes e animais da selva africana soltos em nosso castelo, e ela, humilde, a nos venerar. Juro que vi essa imagem.

O prosseguimento da conversa foi eu terminando de explicar quem eram meus parentes, usando inclusive os Rodrigues como reforço argumentativo. Alívio por parte dela.

O fato é que me lembro deste episódio hilário todos os Dias de Reis. Não tem como esquecê-lo, pois é neste dia que, segundo a tradição cristã novamente, desfazemos os enfeites de Natal.

O que sei é que, terminada a quermesse, fomos embora e, ao nos despedirmos, notei algo estranho. Pode ser loucura minha, mas parecia que a tal moça, que quase se ajoelhou a meus pés, ficou nos observando desconfiada guardar os equipamentos para ver onde eu tinha posto o cetro e a coroa...

Mas vai saber se meus antepassados não tiveram mesmo alguma coisa a ver com a recepção do menino Jesus naquele famigerado dia 6 de janeiro, né? Quem sabe Baltazar, um dos três reis magos, que saiu da minha originária África para levar mirra a Jesus a léguas de distância, foi ordenado por algum de nós, Reis, que àquela época já gostavam mandar. Vai saber. A única coisa é que, como dizem os Reis, os da minha amada família: “só sei que é um sarro”.



quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

“Brado Retumbante” – Sessão de autógrafos com Paulo Markun – Sala Álvaro Moreyra – Porto Alegre/RS



Markun autografa o meu
"Na Lei Ou Na Marra"
“Na democracia, você pode reclamar pedindo pela ditadura, que nada vai te acontecer. Mas vai fazer o contrário pra ver o que te acontece...” Estas sábias palavras podem parecer óbvias, mas não são. Em épocas de desconfiança do valor da democracia, acho saudavelmente significativo que um jornalista referencial como o paulista Paulo Markun esteja lançando não um, mas DOIS volumes sobre o tema. Pois estive, a convite dos amigos Márcio Pinheiro e Marcello Campos, na sala Álvaro Moreyra, no Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre, na sessão de autógrafos do projeto de Markun intitulado “Brado Retumbante”, livro composto de dois volumes: “Na Lei ou na Marra (1964-1968)” e “Farol Alto Sobre as Diretas (1969-1984)”. Ele comentou um pouco sobre a demorada e trabalhosa feitura do livro, abrindo para perguntas do público depois.
Os livros têm base em mais de 70 entrevistas com políticos, artistas, sindicalistas, intelectuais, jornalistas, artistas que protagonizaram ou testemunharam a redemocratização brasileira, como Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso, José Sarney, Lula, Mário Covas, Fernando Gabeira, José Dirceu, Otto Lara Rezende, Roger Moreira (Ultraje a Rigor), Maitê Proença, Fafá de Belém, Dom Evaristo Arns, entre outros. O resultado é um painel abrangente da história do País nas últimas décadas, 50 anos após o Golpe Militar e 30 desde o movimento “Diretas Já”. 
Mesmo que focando os acontecimentos políticos e sociais que levaram à vitória da democracia, demarcada pelo ano de 1989, é um jorro de luz sobre nossa consciência democrática combalida. Com tantas leituras por cumprir, comprei por enquanto o primeiro volume, este que o autor autografa para mim na foto. Já é mais do que um bom começo.


                                                                                                                                                  


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

cotidianas #327 - O Mate (Chimarrão), de Cortázar a Senhor dos Anéis


Os Quechuas chamavam de "mati" a infusão feita de folhas para beber proveniente de uma planta. Os Guaranis atribuíam esta erva à lenda da jovem "la Caá Yarí", mas nos primeiros séculos às autoridades religiosas espanholas catequizadoras diziam que o mate era coisa do diabo que "fomentava o ócio e contaminava a todos, não sendo bom para saúde da alma e do corpo". Mesmo assim, Julio Cortázar ao escrever não dispensava um bom mate, e pra onde quer que fosse levava sua cuia de "louça" e uma "yerbita buena", até o dia que ficou "puto" quando viu a mesma faltar em Paris. Este é um dos contos preferidos do amigo escritor José Francisco Botelho, amante do mate.
Julio Cortázar
Sabato e Perón, entre rodadas de mate e uma "amizade" abalada, se entreolhavam pra ver quem daria primeiro os pêsames pela morte de seus entes queridos. Perón tinha perdido Evita e Sabato três familiares. Artigas gostava de matear com a gauchada e seus "perros" Cimarrones na beira do fogo. Brizola mateou com Che Guevarra, que mateou com o Presidente Haedo. Entre as alfinetadas políticas de Haedo, uma cuia de mate pra acalmar os ânimos. Na selva boliviana, entre os pertences capturados com "El Che", uma pequena cuia com mate "virado" várias vezes.
Na fronteira do Rio Grande do Sul, o ator Richard Gere provou o mate, mas não gostou. Preferiu um tal pão "cacetinho". No set de "O Senhor dos Anéis", o ator americano Viggo Mortersen (Aragorn) levava sempre sua cuia e uma térmica (termo), e fez grande parte do elenco provar a bebida, recebeu um "thanks" da maioria, mas no fim conseguiu um parceiro, Sir "Gandalf" Ian McKellen, que sorveu e aprovou. Viggo morou na Argentina e pegou lá o costume e, por último, mateou até com o Papa Francisco no Vaticano.
O Uruguai é hoje maior consumidor de erva mate do mundo, seguido da Argentina. No Rio Grande do Sul, é chamado de "chimarrão" no norte e centro do Estado, e "mate" na fronteira com Uruguai e Argentina pela influência do espanhol. Entre conflitos seculares o mate também está presente nos costumes do Líbano e da Síria. Levado por imigrantes libaneses da Argentina, lá a infusão recebe o nome de "yer-bah mah-tay" e tem seu consumo ligado às tradições das famílias. Não lembro a primeira vez que tomei o mate, mas lembro de muitos amigos e pessoas que conheci por causa dele. Nenhuma outra bebida no mundo é capaz de agregar, unificar e “hermanar” tanto como "El Matecito", que é universal. A propósito, vou tomar o meu agora.

por Francisco Bino




Francisco Bino é Especialista em Vinhos e Viticultura, mas possui uma Confraria de Cerveja Artesanal. Cinéfilo, fã de cinema anos 70 e folclore sul-americano, ama cultura pop, é colecionador de discos dos Beatles e filmes clássicos. É apresentador do evento Underrock and Beer, na Serra Gaúcha, a única harmonização de cervejas artesanais com cenas clássicas do cinema. Também escreve e possui grupos de cinema no facebook.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Humberto Gessinger - "Insular" (2013)





Resolvi assumir o nome solo

pois não usei uma banda fixa na gravação do "Insular",
convidei vários músicos que admiro,
usei várias formações.
Mas não houve ruptura na maneira como escrevo e toco,
só amadurecimento"
Humberto Gessinger




Humberto Gessinger finalmente lança um disco com seu nome. O que na realidade não muda muita coisa pois ele sempre foi O Engenheiro do Hawaii. O que na realidade muda muita coisa, pois quem acompanhou a trajetória dele como compositor e letrista sabe que desde o primeiro disco e ao longo dos outros existia uma vertente gauchesca bem consistente. Não se deram conta ? Escutem então a milonga "Longe Demais das Capitais" do primeiro disco e que se repete com mais acento gauchesco no disco "Alívio Imediato". Outra canção com esta temática é a regravação de "O Herdeiro da Pampa Pobre" no "Várias Variáveis". No disco "GLM", temos a "Pampa no Walkman", no "Simples de Coração" tem uma música com a temática da erva-mate, a "Ilex Paraguariensis", no "Minuano" temos a "Deserto Freezer", um xote moderno agauderiado, enfim, ao logo da trajetória, virava e mexia aparecia esta referência fosse para marcar posição, dizer de onde vinha. E penso que o Humberto queria dar o recado semelhante ao do Brizola quando falava: “Eu venho de longe...”. "Insular" vêm a consolidar apresentar um Humberto maduro seja na composição, na letras e nas temáticas do disco, possui consistência, peso quando necessário e delicadeza de quem sabe que muitas vezes mais é menos. Possui parcerias com o Bebeto Alves (esse sim, veio de longe, lá de Uruguaiana) na música "A Ponte para o Dia", que termina com a velha milonga. Lá pelas tantas Humberto “joga o osso” e dá suerte. Parceria muito boa com Luiz Carlos Borges, gaiteiro de longa data de serviços prestados ao nativismo na música muito boa chamada "Recarga". Não por acaso, emenda na "Milonga do Xeque-Mate" com pontuação precisa e característica da guitarra do Frank Solari. E segue com a referência à cultura gaúcha citando a "Prenda Minha" na música delicadíssima "Essas Vidas da Gente" que têm um baixo muito envolvente emoldurando a canção. Podia ter terminado por aí o disco mas ainda tem uma música sobre o passar do tempo com a participação primorosa e certeira do Nico Nicolaievsky que diz “Que susto quando olhei no espelho, caralho, como estou ficando velho...”. Será este um disco sobre o passar do tempo, sobre o envelhecimento, sobre a experiência ? Será por isto que eu gostei e achei fundamental ? Pode ser hein !
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FAIXAS:
01. Terei Vivido
02. Sua Graça
03. Bora
04. A Ponte Para o Dia (participação de Bebeto Alves nos vocais)
05. Tchau Radar, A Canção (participação de Rodrigo Tavares nos vocais)
06. Tudo Está Parado
07. Recarga (participação de Luis Carlos Borges no acordeon e vocais)
08. Milonga do Xeque-Mate (participação de Frank Solari na guitarra)
09. Insular
10. Essas Vidas da Gente
11. Segura a Onda, DG (participação de Nico Nicolaiewsky)
12. Plano B


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Ouça:


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Navegante Errante





foto: Doris de Oliveira - fototeca Cioma Breitman
Museu Joaquim José Felizardo - Pref. mun. de Porto Alegre
O Naval foi e sempre será o bar da minha infância. Encravado em pleno Mercado Público de Porto Alegre, centro histórico da cidade, o típico boteco, aberto nos longínquos anos de 1907, é parte essencial da história de porto-alegrenses como eu, tendo em vista sua tradição e notoriedade. Aquele pé-direito altíssimo; as portas de madeira estilo português; o piso de lajotas intercalando preto e branco; o cheiro de trago no ar; as mesas de madeira com plástico grosso por cima; os porta-retratos com fotos antigas; os afrescos do teto; o enorme cartaz acima das cabeças com a imagem de um navio; as fotografias pitorescas nas paredes; o ar que parecia tomado por uma neblina de satisfação. Tudo ali me encantava desde quando, guri, levado por meu pai e, muitas vezes, juntamente com meu irmão, comecei a frequentar o bar Naval. Ia a vários outros com meu pai, mas ao Naval era especial. Não era sempre. Às vezes, no dia de pagamento de meu pai, funcionário da prefeitura, saíamos da repartição dele na Borges de Medeiros e rumávamos direto para lá, felizes. E mesmo com essa frequência menos assídua era incrível como sempre me senti em casa, tal como se o bar fosse uma extensão da minha.

Aquela aura do local me dava impressão de que, ao adentrar pela porta, fosse pela de dentro do Mercado, fosse pela da calçada, que dá para a rua, saíamos do resto do mundo para entrar, exclusivamente, no Naval, como navegantes num barco solto no meio do mar. A percepção de criança fazia com que, inclusive, eu nunca atinasse exatamente de qual dos quatro lados do Mercado Público se entrava para acessá-lo. Parecia que era pelo lado do Guaíba... mas, não, era pelo Largo... ou pelo lado da Prefeitura...? Afora a justificativa do senso de direção ainda em desenvolvimento em uma criança como eu, não posso deixar de pensar hoje que a entrada para aquele museu boêmio era, na verdade, imaginária.

A melhor parte para nós eram as comidas. Comida de boteco típica, daquelas suculentas, sempre com o mesmo gosto anos a fio. Tínhamos nossos pratos prediletos: as almôndegas gigantes, espetacularmente bem fritas, e a chuleta de porco, um respeitável bife cujo sabor especial era um verdadeiro segredo. Tinha também uma pimenta maravilhosa, a melhor que já comi na vida, feira na casa, que só passei a apreciar mais velho, pois era muito forte para meu paladar naquela época.

Não bastasse todo esse espírito, ainda o aspecto humano era de total acolhimento por parte dos garçons, que, na minha mente infantil, estavam ali desde sempre (e, quem sabe, não estavam?). Paulo Naval, um português de olhar entre o arguto e o carinhoso cujo nome resume a simbiose de sua existência com o local, visto que ele e o bar eram parte da mesma coisa; e Mauro, tipo turco dono de olhos verdes intimidadores até o momento em que abria seu sorriso largo e receptivo. Ambos eram amigos de meu pai, a quem tratavam como verdadeira deferência. No entanto e até por isso, Paulo chamava-o, com uma permissividade cúmplice de quem sabia de muita safadeza de meu pai, de “negro sem-vergonha”. O local sempre recebeu desde cidadãos comuns até personalidades, como Lupicínio Rodrigues, Carlos Gardel, Túlio Piva, Elis Regina, Glênio Peres, Leonel Brizola, Jânio Quadros, Olívio Dutra. Mas não havia distinção: podia ser político, conhecido, operário, personalidade, artista, zé-niguém, jovem, ancião, bicha, vesgo. Independia: anônimos ou famosos, todos os clientes eram tratados com o maior dos respeitos e atenção, e, alguns, como meu pai, pessoa comumente querida aonde ia (ainda mais nas rodas de birita e botecos da vida), ganhavam, sim, uma atenção especial.

Episódio clássico que mostra essa afetuosidade foi a ocasião em que meu pai, num dos tais dias de pagamento, pegou todo seu ordenado e se atirou para o Naval, sozinho. Lá, tomou todas a ponto de não ter condições de voltar para casa tamanho o porre. Tentou dar uns passos, mas caiu em plena rua. Pois então que o Paulo, sabendo que o pai tinha recém recebido o salário e que estava com este todo sacado dentro da bolsa, tomou a liberdade de abri-la e guardar o dinheiro consigo. Depois, chamou um taxi, pagou do seu bolso o taxista e mandou meu pai pra casa. No dia seguinte, já refeito do pileque, meu pai voltou ao bar para resgatar seu pertence, agradecer e pagar o taxi. Paulo não aceitou o dinheiro. Meu pai sempre se emocionava ao se lembrar desse ato de pura amizade, tanto pela consideração que tiveram com ele, rara para com um cliente, quanto pela ética de como agiram.

Por essas e outras, não à toa o Naval me parecia algo realmente poético. E Paulo Naval era um poeta de mão cheia, autor do livro "O Garçom e o Cliente - No Balcão do Naval" cujo lançamento ocorreu em pleno bar num concorrido coquetel. Recordo de uma vez que, sentados numa das mesas, ele, orgulhoso, de avental enxovalhado e paninho branco úmido na mão, recitou uma de suas obras. Momento inesquecível para mim.

Na esteira de meu pai, eu e meus irmãos também éramos muito queridos lá. Lembro da primeira vez que fomos com minha irmã, ainda uma criança de uns 4 ou 5 anos, sob os olhos arregalados de minha mãe, que permitiu o passeio com a pequena mas não sem certo receio. Mas deu tudo certo. Engraçado que, por conta daqueles dias de calor louco de Porto Alegre, misturado ao cansaço de sair cedo de casa conosco, ela acabou dormindo profundamente em nosso colo, chegando a ficar com o corpo todo mole. Parecia uma boneca de pano, pois, além de não acordar, precisava ser segurada permanentemente para não desmoronar. Naquele dia, Paulo e Mauro, felizes com a ilustre visita como se fosse a de uma familiar sua, bateram uma foto dela ainda acordada, tomando uma Mirinda de garrafa. Essa foto foi parar na parede do bar, ficando ali desde então.

Os anos se passaram. Cresci, a dinâmica de minha vida se alterou e, nesse meio tempo, entre outras mudanças, meu pai, motivo de meu contato primeiro com o Naval, foi para o outro plano. Mesmo assim, sempre procurei com uma frequência até parecida com a que tinha na infância dar uma passada por lá, fosse para sentar e comer, levar algo pronto para casa ou apenas dar um alô para o Paulo e o Mauro. Sentia-me, no fundo, com certa responsabilidade de manter a herança emocional de meu pai para com eles. Via-os nessas ocasiões, e era muito bom. Mas os anos de casa e a rotina religiosamente diária já os havia desgastado. Normal. Envelhecidos, mantinham a mesma simpatia e sorriso aberto, fazendo as mesmas perguntas a cada vez que eu ia (em que eu e meu irmão trabalhávamos, se eu ou meu irmão que é arquiteto, como estavam minha mãe e minha irmã, essas coisas de gente afeita a ti). No entanto, era perceptível que estavam cansados e que aquele cenário se alteraria, mas eu, talvez por apego ao sentimento de magia alimentado desde a infância, nem pensei em cogitar.

Mas as mudanças, de fato, ocorreram. Outro dia, dando voltas no Mercado Público, resolvi, como de costume, visitar os amigos Paulo e Mauro. Fui tomado de surpresa quando cheguei à porta do Naval. O local, todo reformado, agora tinha límpidas paredes brancas, arquitetura requintada e ar totalmente asséptico. Descaracterização própria de uma protomodernidade ignorantemente desmemoriada. A foto de minha irmã não estava mais lá, assim como os porta-retratos velhos, o cartaz do navio e tampouco a névoa de prazer. Até a porta que dava pra rua havia virado uma simplória janela. Dava pra ver que uma conceituada consultoria empresarial havia agido ali implacavelmente e passado o rodo em tudo que fosse nostálgico e não-moderno, deixando o local com cara não de botequim do Mercado Público de Porto Alegre, mas com cara de boteco bacaninha da Vila Madalena paulista. E, eu, com cara de bobo.

Perguntei a um garçom, um loiro baixinho, onde estavam o Sr. Paulo e o. Sr. Mauro. “Se aposentaram”, respondeu, olhando-me com uma expressão de estranhamento desdenhoso como se eu fosse um navegante errante em águas alheias. Mas meu desapontamento era a maior prova de que, na verdade, era ele o deslocado. Aquela indiferença modernosa e acéfala, que valoriza apenas o novo e cuja falta de alcance nem se presta a procurar no passado sentidos para o hoje, era o maior sinal da ação desrespeitosa desses tempos atuais. De fato, tudo que não fosse jovem tinha ficado para trás ali: aquelas conversas revolucionárias ou jogadas fora, aquelas bebedeiras homéricas ou o simples trago no fim do expediente, aqueles amores arrebatadores ou meros galanteios, aquelas figuras pitorescas ou cidadãos comuns, aquelas geniais ideias artísticas ou importantes acordos políticos. Tudo isso pertenceu a um tempo espacial diferente disso que se vive no dia a dia. Um tempo não-racional impossível de ser percebido por um simples garçom como os de hoje, que bate ponto como um escriturário. Tive o impulso de perguntar onde tinham posto a foto de minha irmã... mas recolhi a fala. Agradeci e fui embora, com um fio de melancolia e resignado com um mundo que insiste em ser muito real.

Mesmo assim, não deixei de frequentar o Naval. Volto lá de vez em quando. A comida é outra, gostosa também. Mas incomparável. Trata-se de outro Naval, pois “aquele” Naval, dos mocotós violentos, dos saraus de poesia, dos bate-papos inflamados, do chope perfeitamente tirado e dos tipos elegantemente extravagantes e encantadores, como foi meu pai, não existe mais. Perdeu-se no horizonte do oceano de lembrança, rumando para outra dimensão de tempo e espaço. Contudo, talvez minha paixão pelo Naval permaneça porque explique, justamente, esta minha atemporalidade ou o sentimento de, às vezes, estar deslocado no tempo. Assim como me acontecia quando subia à proa do Naval e me sentava à nau, com as pernas curtinhas que não encostavam o convés do tombadilho, para navegar longe sem sair do lugar. 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Engenheiros do Hawaii - "Várias Variáveis" (1991)




"Ando só, pois só eu sei, pra onde ir,
por onde andei...
Pergunte ao pó por onde andei...
Ando só, como um pássaro voando.
Ando só, como se voasse em bando...
Ando só, pois só eu sei andar,
sem saber até quando."
da letra de "Ando Só"


Este é o quinto LP, K-7 e posteriormente CD dos Engenheiros do Hawaii e particularmente considero o melhor disco dos Engenheiros.  Depois de um disco muito e provavelmente propositalmente artificial que foi “O Papa é Pop”, este é a volta da fase roqueira do Engenheiros. Musicalmente, é o auge desta primeira leva de registros deles. Guitarras muito bem gravadas, baixo marcante e o uso excessivo de pratos que foi marca registrada do primeiro disco agora é muito mais econômico e a bateria muito precisa.
Os Engenheiros sempre tiveram o cuidado de apresentar seus discos com começo, meio e fim, o que é muito difícil se vocês prestarem atenção. Poucos artistas fazem ou fizeram isso em seus discos.  Alguns pontos me chamam a atenção nesse disco. Penso que os 2 primeiros discos ("Longe Demais..." e "A Revolta...") serviram para marcar sua presença no território gaúcho e mostrar seu trabalho. Os 2 seguintes "Ouça o Que eu Digo..." e "O Papa é Pop") os colocaram no mercado nacional, em especial no Rio de Janeiro e a partir deste o merca do nacional foi plenamente atingido a partir de SP. Uma impressão que somente o Humberto Gessinger poderia confirmar.
Ah sim e temos as músicas. Depois de um início com uma quase vinheta o cartão de visitas se apresenta com “O Herdeiro da Pampa Pobre” que faz contraste com outra música contida neste disco, a “Sampa no Walkman” meio que dizendo –Viemos de lá (ou “Eu venho delooonge” como falava o Brizola”) e estamos aqui.
As minhas duas músicas preferidas são “Quarto de Hotel” soa como um prelúdio de “Sampa no Walkman” que descreve o estranhamento e as particularidades desta Capital já não tão longe demais dos Engenheiros.
É um disco que de modo geral é pouco conhecido e que merece ser escutado com o cuidado necessário e se tu não gostar, ok, pelo menos tu conheceste. Fui ver agora quando foi lançado e nesse ano em 2012 ele completa 21 anos. E eu tive em vinil.

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FAIXAS:
1."O Sonho É Popular" - 1:27
2."Herdeiro Da Pampa Pobre" (Gaúcho Da Fronteira; Vainê Darde) - 4:06
3."Sala Vip" - 4:51
4."Piano Bar" - 4:15
5."Ando Só" - 3:58
6."Quartos De Hotel" - 4:38
7."Várias Variáveis" (Humberto Gessinger; Augusto Licks; Carlos Maltz) - 0:47
8."Sampa No Walkman" - 4:24
9."Muros E Grades" (Humberto Gessinger; Augusto Licks) - 3:42
10."Museu De Cera" (Humberto Gessinger; Augusto Licks) - 4:01
11."Curtametragem" (Humberto Gessinger; Augusto Licks) - 2:02
12."Descendo A Serra" - 2:55
13."Não É Sempre" - 3:29
14."Nunca É Sempre" - 0:51

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Ouça:
Engenehiros do Hawaii Várias Variáveis