“Consegui
sair bem – Prometi não voltar atrás e cumpri a promessa. (...)
Graças ao povo soviético, ao povo chinês, tcheco-eslovaco e
polônes e ao povo do México, sobretudo ao de Coyoacán onde nasceu
minha primeira célula, concebida em Oaxaca, no ventre de minha mãe,
que havia nascido lá era casada com Guillermo Kahlo – minha mãe
Matilde Calderón, morena esbelta de Oaxaca.”
(Frida Kahlo, 1957)
“Minha
infância foi maravilhosa. Ainda que meu pai estivesse enfermo
(sofria vertigens cada mês e meio), para mim constituía um exemplo
imenso de ternura e trabalho (como fotógrafo e pintor) e, sobre
tudo, de compreensão para todos os meus problemas.”
(Herrera,
1984)
“Pés,
para que te quero, se tenho asas para voar?”
(Frida Kahlo, 1953)
Frida Kahlo nunca deixou de ser a menina da Casa Azul. Filha de pais
de origens étnicas diferentes: Guillermo, judeu-alemão, e Matilde,
uma mestiça mexicana indígena. Frida viveu 47 anos sendo a criança
modelo das fotos de seu pai. Teve uma vida de constante sofrimento
corporal que a levou a crises emocionais também constantes, mas quem
de nós não possui seus traumas e suas feridas? Em Frida estas
vivências estiveram sempre presentes. Mas a existência de algumas
pessoas passa encoberta pela grosseira vestimenta corporal humana,
que morre junto com elas. Em outras, o corpo dilacera-se para mostrar
o quanto forte e bela é a alma. Este é o caso de Frida.
Francisco
Haghenbeck, Rosa Montero, Frederico Morais, eu e a torcida “pop”
do mundo são admiradores de Frida Kahlo. Já perceberam quanto o pop
tende a endeusar pessoas que aparentemente tiveram vidas
“desajustadas”, “fora de padrão”, “incômodas” a quem se
diz normal? Esta mulher, ainda hoje, 61 anos após seu desencarne, é
comentada sob o viés humano do “coitadismo” e da maledicência,
mas poucos se atentam que ela deixou uma obra que poucos de nós
ousaríamos produzir se estivéssemos assim, em estado de
“desintegração”, como ela se definia. Frida era uma legítima
personalidade azul-índigo que não à toa, vazou os limites
corporais e fixou-se nas paredes da Casa Azul, em Coyoacán, onde até
hoje está parte da sua produção, parte das suas vivências íntimas
e histórias imaginárias, transmitidas no meio das Artes por pessoas
que nela se inspiram.
Admiro
Frida desde que vi sua primeira obra e isso me basta, me inunda e me
intriga. Sempre gostei do seu “estilo artístico”, talvez porque
o Surrealismo sempre tenha sido uma escola que falasse o meu idioma
mais interno. Sonho, distância e inconscientes, todos ali pulsando.
O feminino sempre em evidência de maneira exposta, sem meandros e
firulas. Sentindo tudo o que se passa e aquilo que perpassa o
invisível, o mais íntimo.
Diferente
da maioria das pessoas que fala sobre Frida só fui saber dos
detalhes biográficos de sua vida anos após de ver a primeira
reprodução de seus quadros. A mistura entre a biografia de artistas
referenciais, a vida e a sua produção artística me deixam
incomodada assim num primeiro momento. É claro que saber do contexto
em que um artista viveu e quais foram suas trilhas humanas pode
interessar, mas só em parte. A análise superficial e o grau de
preciosismo é muito abaixo do que se tem sobre sua Arte se comparar
com o demasiado excesso de comentários sobre sua vida, suas doenças.
Com isso eu não compactuo, porque simplesmente não faz diferença
para mim sua opção sexual, suas relações amorosas, sua escolha
política ou quantas cirurgias e abortos passaram. A Arte vai além
das humanidades: é algo oriundo d’alma de quem se coloca como um
intermediário, um leitor atento de si e do meio em que está em prol
dos outros. Interessa-me a Arte mais puramente genuína, os seus
guardados, como por exemplo: a descoberta de um “diário”, a
ideia da perda literária de um imaginário “livro de receitas”
ou a grande concha-azul: a casa de Coyoacán.
Por
isso, quando escuto algo sobre ela sempre me vem perguntas: “Quais
os temas que Frida pintou que de forma surreal não percebemos num
primeiro contato?” “Quais mensagens ela quis registrar com essas
pinturas?” “É acaso a pintora reproduzir seus retratos
incessantemente?” “Quais vestígios ela quis nos deixar com seus
quadros e códigos do inconsciente?” “Quem de fato se aventura a
mergulhar aí, neste universo particular da pintora?” Porque,
convenhamos, discorrer sobre criticas padrão no mundo das Artes é
algo que não cabe na escola surrealista.
“Quem
diria que as manchas vivem e ajudam a viver?
Tinta,
sangue, cheiro. Não sei que tinta usar, qual delas gostaria de
deixar desse modo o seu vestígio.”
(Frida Kahlo)
Ela
costumava dizer: “Pinto a mim mesma porque estou frequentemente
sozinha e porque sou o tema que melhor conheço”. Mas se formos
mergulhar em sua história, a pintura é uma continuidade do gesto de
seu pai fotografando-a. Ele, sua maior referência, era fotógrafo e
retratista. Como filha, ela se transformou, assim, para sempre, em
pintora de seus próprios retratos. A retratada reproduzindo
incessantemente sua face, sua persona criada como primeiro plano de
seu universo inconsciente.
Visitando a exposição “Frida Kahlo – As suas fotografias”,
apresentada ano passado no Brasil somente no
Museu Oscar Niemeyer/MON, em Curitiba, com curadoria do mexicano Pablo Ortiz
Monasterio pude refletir sobre a forma como se fala e se transmite a
história e a Arte de um artista após a sua ausência física.
Frida
transitou sempre entre dois mundos: o real e o imaginário. Muito do
que ela pintou está neste intervalo entre o que vemos registrado
historicamente e o que é sentido como um bem individual da artista.
As pistas de Frida são inúmeras e simbólicas. Canceriana literal,
porque vivenciou uma relação direta com a imagem seja ela em
movimento ou fixa, de natureza totalmente passional, Frida guardou as
imagens de sua vida, acumulando cerca de 6.500 fotografias. Dessas,
somente 241 foram selecionadas para o MON.
“Por
isso a morte é tão magnifica. Porque não existe, porque só morre
aquele que não viveu”.
(Frida Kahlo)
A
exposição tinha uma particularidade: não podia ser fotografada.
Então o que guardo após a visita são as bagagens e as correlações
que posso buscar dentro da minha alma feminina, como admiradora de
Frida.
Chamou-me atenção para onde os olhares de Frida convergiam. A
família, os amigos, os amores, a morte, a política e os animais.
Vejam: somente temas comuns a todos nós, seres humanos daquele e
desse século.
Muitas
imagens eram do acervo familiar de seu pai, Guillermo. Frida e ele
têm entre si essa sutil e intensa ligação. Um fotografou com a
câmera e o outro com o pincel. Outras imagens, estas claramente
guardadas e clicadas por Frida, são os seus olhares sobre temas de
sua vida. Num jogo de esconde-esconde, por entre os meandros do pátio
da Casa Azul e o que há lá fora. Vemos fotografias recortadas sem
uma forma definida ou repetida. Recortadas sem uma edição
consciente propositada, mas com foco, seja ocultando rostos, parte da
cena e, muitas vezes, inviabilizando a percepção do que estava
acontecendo ou quem eram as pessoas naquele momento do registro.
Voltando
aos seus quadros, alguns nos deixam no limiar do intraduzível, do
não dito, do não visualizado. Na vida e na Arte Frida mostrava-se
em primeiro plano e escondia o que não interessava ou estava mais
oculto, em plano de fundo. Cenas, bichos, cores faziam esse plano
quase sempre muito detalhado um ocasional cenário para a sua posição
central, de retratada. Aí ela assumia a figura do pai e o seu
próprio ofício de forma sintetizada e interligada. Não esqueçamos
que para os cancerianos, a família é sempre muito referencial, às
vezes quase assume um papel simbiótico e interminável em suas
vidas. Como se a criança estivesse sempre naquele momento onde tudo
era melhor, era confortável e prazeroso. Como se o tempo tivesse
congelado as emoções e nada após esse tempo pudesse dar certo, ser
mais importante ou significativo.
Volto
a dizer, porque ela destinou parte de sua produção aos retratos?
Talvez para resgatar um pouco daquela vida normal até os cinco anos
de idade quando a fotografia e o retrato a deixavam bela e em
destaque na vida familiar. Quem sabe?
Frida
foi dona de uma “mexicanidade” como exalta Frederico Morais (em
seu texto “Frida Kahlo: Tudo é autorretrato”) uma mulher fruto
desse misto entre culturas (a europeia e a pré-colombiana). Sempre
exuberante em sua apresentação através dos vestidos, penteados,
pratarias e referenciais estéticos tehuanas, claro, mas a
história dessa obra diz muito mais e é comentada pela própria
artista.
''Origem
das duas Fridas. Lembranças. Devia ter 6 anos quando vivi
intensamente a amizade imaginária com uma menina de minha idade.
(...) Não me lembro de sua imagem, nem de sua cor. Porém sei que
era alegre e ria muito. Sem sons. Era ágil e dançava como se não
tivesse nenhum peso. Eu a seguia em todos os seus movimentos e
contava para ela, enquanto ela dançava, meus problemas secretos.
Quais? Não me lembro. Porém ela sabia, por minha voz, de todas as
minhas coisas (...) Sozinha com a minha grande felicidade e a nítida
lembrança da menina. Passaram-se 34 anos desde que vivi aquela
amizade mágica e cada vez que a recordo mais ela se aviva e mais
cresce dentro do meu mundo.”
(Pinzón,
1950, As Duas Fridas)
Frida
foi uma mulher concha. Carregou consigo suas vivências e transpôs
cada uma delas a seu jeito para as suas telas. Não foram muitas,
dizem alguns - cerca de 200 pinturas, mas todas guardam uma força e
uma vida incrível. Frida ao contrário do que muitos pensam nunca
negou a morte, mas conviveu com a sua presença constantemente. Nos
mostra em sua Arte que ela é muito real, mas que a sua alma é
livre. Quem de nós em situação tão adversa produzira tanto? Quem
de nós?
Deixemos de lado um pouco a vida dos artistas, isso não interessa
tanto. Deixemos que a Arte venha com a força transformadora que o
feminino possui. Vamos buscar o que de fato interessa na Arte. Este é
o caminho, senão ficaríamos todos vivos e a Arte morreria. E
sabemos que aquilo que acontece é bem o contrário: as pessoas
passam, mas suas Artes boas ou más ficam através dos tempos. Cabe a
nós selecionar as mensagens, desvendar os códigos, ir mais fundo e
voltar nutridos dessa vivência. Uma forma de sermos muitos através
do aprendizado dos outros que vivenciaram fatos que talvez nunca
saibamos como são. Pistas certeiras do quanto se pode voar alto,
quando estamos libertos, de asas abertas para sentir a vida do jeito
que ela é.
(Frida
Kahlo: 06 de julho de 1907/ 13 de julho de 1954 - Coyoacán/México)