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quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Lançamento revista "Teorema" nº 32, Livraria Taverna - Porto Alegre/RS (16/12/2022)

 

"O 'terror' na já marcante obra de Peele é mais do que o sobressalto da poltrona ou o arregalar de pupilas: são séculos de um terror verdadeiro de desumanização e apagamento o qual foi (e é) submetido o povo negro. E que ganham ainda maior potência na tela diante do choque provocado ao evidenciar que este mesmo terror está presente em uma sociedade moderna incapaz de superar comportamentos e mentalidades inaceitáveis."
Trecho do meu artigo "Sim, Nós Olhamos", sobre o filme "Não! Não Olhe!", de Jordan Peele

Era visível a atmosfera de emoção de quem esteve no evento de lançamento da revista Teorema no último dia 16, na Livraria Taverna, na Casa de Cultura Mario Quintana. Leocádia e eu estávamos lá, pois sabíamos da importância daquele momento. Emoção, porque essa icônica publicação, há alguns anos engavetada por conta da pandemia, por si só tem o poder de reunir em torno de si o sumo da crítica do cinema gaúcho. Emoção porque se chegou, com este número 32, a gloriosos 20 anos de resistência cultural mantida permanentemente em algo nível durante todo este tempo. Emoção também porque, com toda está relevância editorial, cinéfila e cultural, a Teorema chega, sob protestos sentidos ao qual faço coro, a sua última edição física. 

O clima, assim, foi um misto de alegria e de despedida. Se é irreversível a decisão dos editores Enéas de Souza, Fabiano de Souza, Flávio Guirland, Ivonete Pinto, Marcus Mello e Milton do Prado, não se sabe – Enéas, um gentleman intelectual desses que não se fazem mais no século XXI, confidenciou-me em breve e saboroso diálogo a conclusão pelo visto consensual da turma de que viabilizar um projeto como este a partir de agora somente sendo através de incentivo. Mas se a atmosfera foi de emoção, tanto de alegria quanto de certa melancolia, pairava no ar também um sentimento de gratidão. Gratidão por tudo que a Teorema e seus artífices sempre deram à comunidade cinematográfica regional, gratidão pelos encontros, pelas ideias, pelos sorrisos e abraços sinceros depois do pesadelo do isolamento. 

E aí que me incluo não apenas coletiva, mas pessoalmente: pela gratidão. Já relatei que escrever para a Teorema era um sonho alentado desde a adolescência, quando, já cinéfilo, via essa impactante revista nascer e passar a ser objeto de pesquisa nos meios do cinema de Porto Alegre. Algo como estar na Cahiers Du Cinéma da minha terra natal, sabe? Pois o convite, feito generosamente a mim por Ivonete, professora de Cinema e colega de ACCIRS, foi aceito de pronto, ainda mais com o desafio de falar sobre o admirável cineasta negro norte-americano Jordan Peele e seu último longa, a ficção-cientifica “Não! Não Olhe!”. Instigante e fundamental discussão, tendo em vista que, mais uma vez, Peele, dos admiráveis “Corra!” e “Nós”, não foge à temática negra, algo que, de minha parte enquanto crítico negro no meu Estado, sinto-me responsável a assumir.

Embora não tenha necessariamente gostado do filme, discuti-lo se faz mais importante. E esse e o papel da crítica. Marcos Mello, com quem também conversamos Leocádia e eu, nos comentou que havia gostado de aspectos levantados por mim no meu artigo os quais, segundo ele, o fizeram entender melhor o filme. Ainda disse que, corroborando com a essência do fazer crítico, que ele gosta de ver filmes que não entende, pois são justamente essas obras que podem suscitar, no agora ou mais adiante, verdadeiras reflexões.

Completam essa edição já histórica da Teorema artigos de Alexandre Santos, Carla de Oliveira, Fatimarlei Lunardelli, Liliana Sulzbach, Marcelo Miranda, Maurício Vassali e Roberto Cotta, além de textos de alguns dos próprios editores, como o basal "Cinema é uma forma que pensa e faz pensar", sobre o legado de Jean-Luc Godard, escrito por Enéas, talvez o maior conhecedor do cineasta francês em toda a crítica cinematográfica brasileira. Há ainda uma superentrevista com a diretora Maria Augusta Ramos, expoente de um cinema documental rigoroso e autora de obras como “Justiça” e “Juízo”, figurantes na lista dos “Documentário Brasileiro – 100 Filmes Essenciais” da Abracine.

Embora vivamos na era digital, é de entendimento geral que, para este tipo de publicação como a Teorema, espécie de arquivo da crítica de cinema no Rio Grande do Sul das últimas duas décadas, o objeto material faz muita diferença. É compreensível a dificuldade por parte daqueles que fazem a revista, assim como para de manter de pé qualquer projeto cultural no Brasil e nos pagos gaúchos, ainda mais em se tratando de um nicho tão especializado. Tomara que com tantos apelos essa definição dos editores seja, literalmente, revista.

Confiram aí alguns lances do lançamento da Teorema 32:

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Curtindo minha estreia na Teorema

Selfie com love Leocádia na livraria Taverna

Só os editores: Fabiano, Flávio, Ivonete, Marcos e Enéas

Bastidores da foto com o pessoal da revista

Os editores da Teorema com alguns dois dos autores convidados,
Maurício Vassali (ao fundo, à dir.) e eu, ao centro


texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Drops lançamento da revista "Teorema" nº 32, na Livraria Taverna - 16/12/2022

 

Para um cinéfilo gaúcho que sempre gostou de escrever sobre o que assiste e que cresceu visitando as salas de cinema de Porto Alegre se deparando invariavelmente com edições da revista Teorema, estar numa delas como autor assinando algum daqueles enormes, analíticos e inspirados artigos pode-se classificar como um sonho. Daqueles alentados desde a adolescência, mas já absorvido pela conformação da maturidade. Pois esse singelo sonho está se realizando, e se materializa nesta sexta-feira, dia 16/12, quando do lançamento da histórica edição nº 32 da publicação.

Histórica, não porque tive a honra de ser convidado a escrever um de seus textos (sobre o longa “Não, Não Olhe!”) ao lado de gente do calibre de Enéas de Souza, Fabiano de Souza, Ivonete Pinto, Carla de Oliveira, Marcus Mello e outros, muitos dos quais nortes na crítica cinematográfica para mim. Também, não necessariamente porque o lançamento se dá depois de um longo hiato por conta da pandemia desta resistente publicação forjada na essência da crítica de cinema. Mas, principalmente, porque esta edição torna-se especial por dois motivos: com ela, completam-se longevos 20 anos da revista e porque esta será a última edição impressa. Sim, a Teorema, este compêndio mítico para os amantes do cinema no Rio Grande do Sul, com aquela capa chamativa sempre monotemática/monocromática de Flávio Wild e rica como pouco se vê no meio editorial, passará agora apenas ao espaço virtual. Sinal dos tempos.

Sem me alongar por ora, somente estas poucas palavras do muito que poderia falar já justificam a importância deste evento de lançamento, que ocorre na arejada Livraria Taverna, em plena Casa de Cultura Mário Quintana, coração de Porto Alegre – espaço cultural o qual (permito-me dizer mais isso) é um dos responsáveis pela revitalização/ocupação da até bem pouco deteriorada CCMQ. Enfim, voltarei aqui com registros fotográficos e de afeto.

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lançamento da revista Teorema # 32

Onde: Livraria Taverna (Rua dos Andradas, 736 - Centro Histórico, Porto Alegre)

Quando: Dia 16 (sexta-feira) de dezembro de 2022,  19h

Valor do exemplar: R$ 15,00

A revista  estará à venda na bilheteria da Cinemateca Paulo Paulo Amorim e na Livraria Taverna.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 13 de abril de 2023

15 anos da Accirs - Cinemateca Paulo Amorim - Casa de Cultura Mário Quintana - Porto Alegre/RS (05/04/2023)

 


Desde a primeira reunião, numa final de tarde outonal de 2008, estava lá eu, juntamente com um punhado de outros amantes de cinema num apartamento à Av. Cristóvão Colombo, em Porto Alegre, residência de uma das fundadoras. Eu, que havia recém iniciado um projeto de um blog de cinema, O Estado das Coisas (hoje desativado), ainda nem havia me tornado colaborador do Clyblog, onde de fato expandi meu exercício de crítica, e já me fazia presente ali, meio assustado ao lado de gente que admirava e admiro. Jornalistas a quem eu lia, assistia, ouvia. Profissionais da Academia já referenciais para a cinefilia gaúcha. Críticos de cinema com experiência em veículos, festivais, júris, curadorias. Mesmo intimidado com o desafio, fui dos que deram o aval para o começo de uma entidade congregadora de críticos de cinema em nossos pagos que promovesse este fazer crítico por meio de diversas vias: a realização de seminários sobre crítica, a formação de grupos de estudo sobre a linguagem audiovisual, a programação de sessões de cinema com debates, a geração de conteúdos em diversas plataformas, a composição de júris da crítica, entre outros. Estava criada, a 29 daquele mês, a Associação de Críticos do Cinema do Rio Grande do Sul, a Accirs

Relembrar os movimentos primordiais da associação teve um gosto ainda mais agradável no encontro que promovemos no último dia 5, marcado exatamente para celebrar o aniversário da Accirs. Com a presença de convidados, familiares e amigos, nós nos reencontramos para a ocasião festiva orgulhosos da bagagem pessoal e coletiva que agregamos nestes 15 anos, mas também contentes pela novidade, seja pelos membros não tão antigos como eu (ou Ivonete Pinto, Fatimarlei Lunardelli, Marcos Santuário, Roger Lerina, Adriana Androvandi, minha “madrinha” na Accirs, e outros), seja pela recepção aos novos integrantes, os sete entrantes. A mim, enxergar ao longe aquele Daniel bem mais inseguro mas já capaz de unir-se àqueles pares, é bastante gratificante. Além do crescimento que os anos naturalmente trazem, é-me fácil perceber o quanto a Accirs, na qual hoje sou Secretário, me proporcionou (proporciona) em termos de desenvolvimento enquanto crítico e ente social pensante para tudo aquilo que o cinema propicia.

Os 15 anos de atividades da Accirs contaram também com uma exibição especial: a pré-estreia do longa-metragem brasileiro “O pastor e o guerrilheiro”, novo filme do diretor José Eduardo Belmonte, exibido no 50º Festival de Cinema de Gramado. Na mesma ocasião, foram entregues por nosso presidente, Danilo Fantinel, e nossa vice-presidente, Mônica Kanitz, os certificados para os vencedores do Prêmio Accirs para os Melhores do Ano em 2022. Por “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto, foi entregue ao roteirista do filme, o cineasta e professor Vicente Moreno. Já por “Sinal de Alerta: Lory F.”, o diretor Fredericco Restori, juntamente com a irmã da biografada, a atriz Débora Finochiaro, recebeu o certificado de melhor curta gaúcho. Outro curta, “Madrugada”, dividiu o prêmio de com “Sinal...”, alcançando-se a seus realizadores Leonardo da Rosa e Gianluca Cozza a homenagem. Ainda, Ivonete e Marcus Mello receberam o Prêmio Luiz César Cozzatti, concedido a destaques da cena audiovisual do RS, pela revista Teorema, publicação impressa dedicada à crítica cinematográfica que completou 20 anos de existência.

Foi, por todos estes dois motivos, mas principalmente, pelo encontro de uma história já percorrida com o sopro da renovação, que o brinde pela Accirs foi especialmente bonito. Sorrisos, papos, reencontros, carinho, apresentações, abraços. Uma noite de sair com o peito preenchido – de afeto e de cinema.

Confira algumas fotos tiradas por diversos de nós membros.

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Coquetel rolando, papos sobre cinema e tudo mais

Momento de entregar os certificados aos melhores de 2022

Danilo e Mônica falando para a plateia na Sala Paulo Amorim

Ivonete e Marcos, agraciados com o destaque do ano pela Teorema

Os jovens diretores do curta "Madrugada"

Restori falando por seu "Sinal de Alerta Lory F."

A galera toda para a foto oficial: membros e convidados
numa noite especial para o cinema gaúcho


texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e membros Accirs

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Debate "O Espaço Encontrado pela Crítica nos Eventos de Cinema e Qual seu Papel no Fomento da Cinefilia" - 1º Encontro dos Festivais Ibero-americanos de Cinema (EFIC) - Cinemateca Capitólio - Porto Alegre/RS (26/03/23)


Faz um tempo que já que ocorreu, mas vale a pena registar o debate do qual fui mediador como crítico filiado a Accirs, no 1º Encontro dos Festivais Ibero-americanos de Cinema (EFIC), realizado na charmosa Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, em março, e promovido pela Fundação Cinema RS (Fundacine) em parceria com a Coordenação de Cinema e Audiovisual da Prefeitura de Porto Alegre. O evento teve como eixo central a criação de um espaço de intercâmbio entre alguns dos principais eventos da Ibero-América, com mesas e painéis temáticos, além de uma mostra de obras cinematográficas que tiveram relevância no cenário destes eventos. 

A salutar discussão da qual participei foi sobre a relação entre a crítica e os festivais e mostras de cinema e qual seu papel no fomento da cinefilia com a presença de três ilustres debatedores: David Manuel Obarrio, responsável pelo Bafici - Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente, na Argentina; Victor Guimarães, cabeça da programação do Ficvaldivia - Festival Internacional de Cinema de Valdivia, no Chile, entre outros festivais e mostras; e minha colega de ACCIRS Ivonete Pinto, jornalista, professora de cinema e editora da Revista Teorema.

Coube a mim fazer uma breve abertura para, em seguida, passar a palavra para os convidados, que tinham muito a falar e de quem o público presente queria ouvir. Obarrio, simpático e sagaz, dentre diversos aspectos que abordou, falou sobre o atual momento do cinema independente na Argentina e do cuidado para não ser levado a padronizações no processo de curadoria de um festival em seu país. O êxito do cinema de realizadores como Pablo Trapero e Lucrécia Martel, conforme disse, acaba por influenciar o formato de novas produções, que perigosamente investem em reproduzir uma espécie de formato já estabelecido por estes estetas. Na sua opinião, para que se mantenha a independência e a proposição de coisas novas num cinema tão exitoso como o argentino é importante que festivais como o que ele representa estejam atentos a isso de forma a não chancelar tal movimento acriticamente para que, com o tempo, não haja uma natural "commoditização".

Já Ivonete, colega de Accirs a quem tenho apreço e admiração, trouxe em sua fala, dentre outros aspectos, o da importância da produção acadêmica para a crítica de cinema. Professora de cinema, ela sinalizou o quando há produções de grande qualidade que refletem com profundidade a arte cinematográfica em artigos de publicações muitas vezes restrita ao meio das universidades. Ivonete também falou sobre experiência na crítica mais corriqueira para imprensa, e com a qual buscava equilibrar o olhar acurado da crítica a uma comunicação mais ligeira e rasa que a notícia do dia a dia (e os leitores) exigem, não raro recorrendo a ironia para absorver aquilo que não considera cinema, como comédias da Globo Filmes ou enlatados hollywoodianos.

Por fim, Victor, com quem comungo de várias percepções, que trouxe uma série de observâncias suas dos festivais e mostras do qual participa no Brasil e no exterior. Com uma visão bastante subjetiva e desprendida de estereótipos, mas focada no aperfeiçoamento constante do fazer e da reflexão crítica do cinema enquanto arte, Victor entende, por exemplo, que não se deve ter pressa em se assistir todos os lançamentos, por mais que mereçam audiência, pois considera, antes de mais nada, fundamental certo distanciamento do espectador/crítico com a obra para uma absorção mais pessoal e íntegra - o que, geralmente, o dilatamento do tempo ajuda a oferecer. Libertador para um cinéfilo como eu ouvir de um profissional tão entrosado com o circuito de festivais e mostras de cinema que há muito a se descobrir de novo nas produções velhas cronologicamente, algo que desde muito me pauta para ver e entender cinema e seu decurso.

O público presente encheu os convidados de perguntas, algumas bem formuladas, outras, nem isso. Mas todas respondidas com generosidade e competência pelos debatedores. Tanto que a mim coube basicamente dar o pontapé inicial e distribuir os questionamentos da plateia antes de encerrar o encontro.

Por conta de limitações de sinal na sala em que foi realizado o debate, o mesmo não foi transmitido ao vivo pelo canal do YouTube do evento. Fizeram a gravação integral, mas não se lançou ainda na rede. Uma pena. Foi um espaço bastante rico para discutir questões inerentes a está relação tão próxima e necessária entre festivais/mostras e a crítica em seus vários níveis, seja na curadoria/programação, seja na cobertura destes eventos, seja na produção resultante disso, além do próprio dialogo entre realizador e crítico. Mesmo sem o vídeo, ficam aí alguns registros de fotos de como foi aquela tarde de domingo na charmosa Cinemateca Capitólio.

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Telão antes de iniciar o debate


Fazendo as apresentações


Ainda sobre os convidados...

Obarrio, convidado de fora, teve a primeira palavra


Victor veio logo em seguida

Ivonete encerrou o primeiro ciclo de falas


Papo sobre cinema e crítica segue interessante


Público não arredou pé


Este que vos fala ao lado do cartaz do EFIC


Daniel Rodrigues



quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Debate 17ª Mostra Unisinos de Cinema - Cinemateca Capitólio - Porto Alegre/RS (19/12/2022)

 

Nada como terminar o ano de diversas atividades de crítica cinematográficas junto àqueles que estão iniciando a caminhada no meio do cinema: os alunos. 2022 foi novamente de bastante envolvimento meu para com o cinema e a crítica, o que pude exercitar em diferentes frentes. Depois de largar com o lançamento do livro da Accirs, “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, em março; de integrar a comissão curatorial da Mostra gaúcha do CineSesc, de março a maio; de presenciar pela primeira vez o Festival de Cinema de Gramado na histórica edição de n° 50, em agosto; de mediar um bate-papo sobre Sirmar Antunes numa live para o Museu do Festival de Cinema de Gramado, em novembro; e de estrear com artigo na igualmente histórica edição de 20 anos da revista Teorema, no último mês do ano; participei como convidado pelo professor da Unisinos, o cineasta Milton do Prado, a debater criticamente a 17ª Mostra Unisinos de Cinema, que apresenta os trabalhos de alunos feitos durante o ano.

Esta aproximação, aliás, já vinha sendo alentada desde o ano passado, quando Milton havia me convidado para uma sessão comentada sobre o clássico filme gaúcho “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), primeiro longa-metragem dirigido por um cineasta negro no Rio Grande do Sul, Odilon Lopez. Na ocasião, um conflito de agendas me impossibilitou de participar, mas desta vez não titubeei. Numa Cinemateca Capitólio lotada e com mediação da professora Jessica do Vale Luz, assistimos a cinco curtas, todos produzidos por alunos de Milton e do também professor e cineasta Vicente Moreno, coordenadores do curso de Realização Audiovisual da universidade.

Impossível não notar algumas inconsistências nos filmes, compreensíveis a trabalhos acadêmicos, pois geralmente os primeiros exercícios no audiovisual de seus realizadores. Os filmes, no entanto, guardam todos qualidades em narrativa e nos aspectos técnicos, como edição de som, fotografia e edição. Os roteiros, alguns menos trabalhados do que outros, foram os grandes responsáveis por balizar o maior ou menos sucesso das obras. O simpático “Confluência”, que narra os encontros e desencontros de uma juventude porto-alegrense, é um exemplo disso. O frescor das histórias de amor juvenis, tão presentes no cinema da Nouvelle Vague ou mesmo no moderno cinema gaúcho dos anos 80, funciona até o momento em que, por escolha da diretora, Valentina Ritter Hickmann, recentemente premiada em Gramado com o emocionante "Somente para Registro", doc subjetivo e pessoal, não consegue repetir a mesma coesão nesta nova realização. Muito por delegar (palavras da própria autora) a fruição da história aos atores e menos ao roteiro, base de toda obra audiovisual. Enfim, erros e acertos inerentes ao caminho. 

Interessante filme, mas que também requer maior trato de roteirização, é “Sufoco”. Dirigido pelo jovem negro Maicon F. Silva, aborda aspectos sociais importantes como preconceito, bullying, ancestralidade e identidade. Porém, as amarrações narrativas parecem um tanto soltas, fazendo com que elementos interessantes – como o colar capaz de encorajar o aflito protagonista – ressinta-se de maior coerência.

“Sem Cabeça”, de Beatriz Potenza, é daqueles casos em que tudo funciona de forma bastante eficiente. Contando a história de um casal de jovens em que a moça experimenta pela primeira vez maconha na casa do namorado, a diretora extrai de uma história pequena nuances bastante profundas. Olhares, diálogos bem alocados, tempo de ações e uma eficiente fotografia revelam uma questão social nem tão abordada como deveria, que é a relação heteroafetiva abusiva.

Também feliz a realização de "Fim de Festa", inclusive por tratar de outro tema tabu, mas igualmente essencial de ser exposto assim como racismo e a violência doméstica, que é a questão LGBTQIA+. Afora alguma inconsistência cênica, o curta de Luísa Zarth Carvalho traça, num engenhoso diálogo entre duas jovens que vai se de desenrolando pouco a pouco, perfis bem estruturados das personagens, a quem se descobre ter havido num passado algo velado entre ambas.

Dessa leva, no entanto, “Enquanto Irmãos”, de Leonardo Kotz, se destaca pela inteireza da realização. Filme que funciona do início ao fim, traz a história de dois pequenos amigos que se encontram na casa de um deles no dia em que o irmão do outro está nascendo. As delicadas falas, as sutilezas da relação de irmandade entre os amigos, bem como as preocupações existenciais das crianças, são conduzidas com absoluta assertividade. Tecnicamente também. Para quem formou sua cinefilia assistindo filmes protagonizados por crianças como “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios”, “Minha Vida de Cachorro” e “Pelle, O Conquistador”, este curta foi uma grata surpresa.

Enfim, filmes que, mesmo desiguais, mostram que a difícil arte de se fazer cinema é objeto de paixão das novas gerações. Uma ótima maneira de terminar um 2022 repleto de cinema, mas desta vez, num encontro com a raiz. Como diz o policial Malone vivido por Sean Connery a Elliot Ness (Kevin Costner) em “Os Intocáveis”: “se você não quer pegar uma maçã podre, não vá ao cesto: tire-a da árvore”.

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Panorâmica do palco com os realizadores e a professora Jessica


Começando o bate-papo

Falando aos alunos e público

Jessica fazendo minha apresentação


Dando as minhas primeiras considerações na noite de debates



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa e Vicente Moreno

quarta-feira, 22 de março de 2023

Debate "O trabalho dos profissionais da crítica nos festivais e mostras de cinema" - I Encontro dos Festivais Ibero-Americanos - Cinemateca Capitólio - Porto Alegre/RS (26/3)

 

No próximo domingo, através da ACCIRS, eu participo como mediador de um debate sobre a crítica e festivais de cinema dentro do I Encontro dos Festivais Ibero-Americanos, que ocorre na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, entre os dias 23 e 27 de março. No painel "O trabalho dos profissionais da crítica nos festivais e mostras de cinema", que acontece no dia 26/03, às 15h, será debatido sobre o espaço da crítica nos eventos de cinema e qual seu papel no fomento da cinefilia. 

Participam da mesa Ivonete Pinto, colega de ACCIRS e editora da revista Teorema, o argentino David Obarrio, programador da Buenos Aires Festival (Bafici), e o mineiro Victor Guimarães, curador do Festival Internacional de Cine de Valdivia (FICValdivia).

A iniciativa é da Coordenação de Cinema e Audiovisual e Fundacine e tem como eixo central a criação de um espaço de intercâmbio entre alguns dos principais eventos da Ibero-América, com mesas e painéis temáticos, além de uma Mostra de obras cinematográficas que tiveram relevância no cenário destes eventos. 

Alta expectativa. Após o evento, claro, a gente faz registros e conta aqui como foi. Mais informações sobre o evento, que contém uma série de outras atividades, basta conferir aqui: www.fundacine.org.br  


Daniel Rodrigues

sábado, 15 de julho de 2023

“Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele (2022)


Sim, nós olhamos*

Numa das cenas do filme “Harriet”, de Kasi Lemmons (2019), que conta a história da ativista e heroína negra do século 19 nos Estados Unidos, o pai da personagem, num das expedições clandestinas empreendidos por ela com a intenção de libertar negros escravizados do jugo dos senhores de terra, a recebe de olhos vendados. Ele sabia que a filha ali estava, mas, numa atitude aparentemente inútil, bloqueava a visão para que, se cobrado pelos patrões, tivesse consigo a sinceridade de poder dizer que não a tinha visto com os olhos. Essa atitude aparentemente pueril ou até irracional traz, no fundo, uma preocupação para além do racional, visto que ética, além de, noutra esfera, ligada ao conceito de cinema. É este aspecto ético que, noutras formas e complexidades, norteia a obra do cineasta norte-americano Jordan Peele e, mais propriamente, seu longa “Não! Não Olhe!” (“Nope”), de 2022.

Peele, assim como os conterrâneos, contemporâneos e irmãos de cor Kasi, Anthony Fuqua, Ryan Coogler, Barry Jenkins, Ava DuVernay, Steve McQueen e outros, tem plena noção do seu “lugar de fala” enquanto triunfante realizador negro dentro do sistema da indústria cinematográfica. Peele, no entanto, guarda características bem peculiares. Primeiro que, diferentemente de seus pares, mais multitemáticos em abordagem, ele identifica-se fortemente com o cinema fantástico, reclamando para si um filão jamais explorado tão audazmente, nem na reivindicadora blackexplotation dos anos 70: o Black Horror. Segundo que, pelas condições produtivas, seu fazer cinematográfico identifica-se com o “cinema de autor”. Ele dirige e produz aquilo que escreve e ainda dá assinatura a suas obras, estágio que poucos cineastas alcançam – ainda mais negro e em tão pouco tempo de trajetória. 

São assim “Corra!” (“Get Out”, 2017), consagrado terror psicológico que o alçou mundialmente, e “Nós” (“Us”, 2019), outro filme de horror de rara habilidade narrativa tanto em roteiro quanto em direção. Filmes comerciais, mas capazes de aprofundamento crítico e filosófico. Imbricado à forma, pop e instigante, o conteúdo de ambos os filmes redimensiona problemáticas da questão negra como preconceito, animalização e extermínio sócio-étnico-cultural. O “terror” na já marcante obra de Peele é mais do que o sobressalto da poltrona ou o arregalar de pupilas: são séculos de um terror verdadeiro de desumanização e apagamento o qual foi (e é) submetido o povo negro. E que ganham ainda maior potência na tela diante do choque provocado ao evidenciar que este mesmo terror está presente em uma sociedade moderna incapaz de superar comportamentos e mentalidades inaceitáveis. Peele não brinca e nem pasteuriza o racismo: ele, ao revesti-lo de estereótipos fílmicos e elementos narrativos consagrados, escancara o quanto esta doença humana é assustadoramente vulgar.

“Não! Não Olhe!”, bem menos arrepiante que seus anteriores, é um suspense sci-fi cujos apontamentos críticos à questão social e racial se dispõem de uma forma renovada. A história se passa numa cidade do interior da Califórnia, que começa a ter eventos bizarros e extraterrestres. Os irmãos Emerald e OJ (interpretados por Keke Palmer e Daniel Kaluuya), donos de um rancho de cavalos vizinho a um parque de diversões, não apenas presenciam estes fatos estranhos como passam a se envolver diretamente com eles depois que perdem seu pai em virtude de tais fenômenos. Outra figura central na trama é nipo-americano Jupe (Steven Yeun), astro-mirim de uma série de televisão no passado e apresentador de um show de velho oeste naquele parque.

Keke Palmer e Daniel Kaluuya protagonizam
a ficção de Peele, cuja mensagem vai além do gênero

A coesão da narrativa que se percebe em “Nós” e, principalmente, em “Corra!” talvez falte um pouco ao roteiro um tanto desigual de “Não! Não Olhe!”, tecnicamente impecável como seus antecessores, mas bem mais dado à espetacularização imagética das ficções-científicas do que à suscetibilidade neural provocada pelo terror psicológico. Porém, o longa, mesmo sem total assertividade – como recai a obras que se propõem a transpor barreiras – avança em aspectos antes obscurecidos na sociedade norte-americana e no cinema enquanto reflexo do contexto histórico e sociopolítico. Questões fadadas a não serem enxergadas, como identidade, crença, cultura e ancestralidade. Como se tivessem que obedecer a uma regra social intolerante, que impõe não serem olhadas de modo que permaneçam invisíveis simbolicamente. Sem estes preceitos, a natureza humana perde sentido, e sem identidade e moral, resta a animalização. Refazendo o ditado popular: quem não é visto, é apagado.

Peele, por este motivo, traçou paralelos entre homem e natureza em diferentes níveis em “Não! Não Olhe!”. Primeiro, entre o selvagem e o civilizado. O filósofo inglês Thomas Hobbes diz que “a natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades de corpo e do espírito”. Nada mais é do que a utilização do impulso irracional do cavalo domesticado por OJ durante os bastidores para a gravação de uma cena audiovisual. A insegurança do rapaz, um homem negro de origem simples diante da elite majoritária branca, simbolizada pela equipe presente no set, o reduz como indivíduo. Acuado, ele se desumaniza e se animaliza. Nem a aparição da irmã, bastante mais desenvolta do que ele, consegue salvar o cavalo de reagir espontânea e naturalmente com agressividade ao estímulo visual quando se vê num espelho. Pelo contrário: OJ ao mesmo tempo identifica-se e sente vergonha de Emerald com sua verborragia e gestos amplos, pois, inconscientemente, também a vê animalizada tal uma macaca. Semelhante ao humano, mas necessariamente inferior. Como o cavalo, ver-se no espelho é uma tarefa repelente quando não se tem consciência da própria natureza.

O chimpanzé Gordy: metáfora
central da história
A alegoria do primata na relação entre instinto e razão, homem versus animal, é ainda mais profundamente explorada no filme por Peele quando da aparição do chimpanzé Gordy, espécie de metáfora central da história. É ele que, no passado, em virtude do mesmo desrespeito e exploração ditados pela engrenagem capitalista, faz valer seus instintos mais sinceros – e violentos – durante as tensas gravações de uma fictícia sitcom. Inspirando num caso real ocorrido nos Estados Unidos, Gordy ataca a equipe e, assim, equipara de fato tanto homens quanto bichos com aquilo que lhes é comum: a morte e a finitude. Uma (forçada) volta às origens. Traumatizado com este episódio da infância, Jupe, é o único a quem o macaco poupou por lhe tratar com dignidade e carinho – ou seja, que o olhava sem a lente do preconceito. O coração vê sim e mais do que se possa supor.

Reina nesta apropriação do estado natural do homem a dicotomia ética a qual o filme se concentra. Hobbes sustenta que, diante da necessidade de preservação da individualidade e do direito natural à sobrevivência, o ser humano busca lançar mão dos meios necessários para preservá-la e evitar todas as ações que sejam contrárias a ela. A criação do estado político, diante da quase irrefreável ação de eliminação do outro, nada mais é do que o obstáculo necessário para a contenção destes instintos. Acreditam ter encontrado a justiça, mas alcançaram algumas migalhas de harmonia. O “lobo do lobo do homem” está lá, preservado; apenas há convenções que lhe limitam a barbárie.

Limitam até certo ponto. Na prática, a falácia liberalista atribui o direito à riqueza a todos, mas a destina àqueles que formal e historicamente sempre tiveram mais condições de deter o poder: os brancos. Se o valor que as pessoas ou coisas possuem é resultado de convenção social, o que acontece com aqueles que foram convencionados por séculos como uma raça inferior? Difícil desfazer mentalidades vigentes, principalmente quando estas asseguram influência e domínio. A relação de fornecedor e comprador exposta na cena em que OJ tenta domesticar o cavalo para a gravação audiovisual expõe bem esta contradição: não há lei de mercado mediando, pois a liberdade não é dada a quem, de antemão, é subjugado por sua atribuída condição inumana. Basta ver que ninguém no set enxerga OJ de fato, a ponto de não considerarem seu importante alerta para a preservação do bem estar do cavalo e a própria finalidade para a qual estavam todos ali. 

O cinema norte-americano de muito mira suas câmeras, consciente ou inconscientemente, à questão da animalização dos pretos. Esta subclassificação, que situa o afrodescendente numa posição de espécie exótica e quase humana numa sociedade em que, na escravidão, furavam-se os olhos de escravos como castigo, denota a mentalidade racista imperante e transposta para Hollywood por décadas. Quebrariam este ciclo mais consistentemente duas produções apenas nos anos 60, quase meio século após a instauração da indústria cinematográfica: “A Noite dos Mortos-Vivos” (George Romero, 1968), terror que atribui naturalmente um raríssimo heroísmo a um protagonista negro, e “Ao Mestre com Carinho” (James Clavell, 1966), drama no qual se via numa das primeiras vezes um negro na tela em um papel preponderante. Não por coincidência, ambos as produções surgem à época das lutas pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. 

Porém, os séculos de massacre social e cultural pesam. A mítica figura de “King Kong”, por exemplo, originalmente lançado em 1933 mas persistentemente retornada nas décadas subsequentes, carrega consigo a simbologia desta relação incongruente entre selvageria e civilização. Imagem preconceituosa, aliás, que nenhuma das refilmagens teve capacidade (ou intenção) de desfazer. A atração sexual implícita entre o gorila gigante, bastante empretecido em feições, e a mocinha, tão branca e loira quanto os códigos arianos permitem, joga luz sobre a dualidade instinto/razão. Afinal, a sexualização do negro é, definitivamente, uma das patologias as quais o brancocentrismo não consegue resolver. Hobbes diz que a riqueza sem a liberalidade deixa de ser poder e expõe o homem à inveja.4 Mesmo tendo despertando o amor no coração da mulher, aquela existência aberrante é incompatível com a ordem social. A solução? O apagamento. Ninguém mais o vê, simples. 

O emblemático King Kong em versões ao longo da história

A força descomunal de “King Kong” serve também como uma bela metáfora. Tudo que a autoproclamada justa sociedade norte-americana desconhece ou não controla, classifica como fantástico e inimiga de seus valores morais. O cinema sci-fi, como o que Peele recursou em “Não! Não Olhe!”, é causa e consequência deste pensar ufanista e egoico, visto que se vale largamente do artifício do estranhamento a depender das ameaças vigentes à ideologia de sua época. E se esta ameaça vier do céu ou de outro planeta, fica ainda mais fácil justificar a segregação. Já serviram de símbolo para estes fenômenos alienígenas o comunismo (“Vampiros de Almas”, Don Siegel, 1956), a crise nuclear (“O Enigma de Andrômeda”, Robert Wise, 1871), as doenças venéreas (“Enraivecida”, David Cronenberg, 1977), a tecnologia (“O Exterminador do Futuro”, James Cameron, 1984), os vírus letais (“Eu Sou a Lenda”, Francis Lawrence, 2007) e até a emancipação feminina (“Invasores”, Oliver Hirschbiegel, 2015). Tudo o que não se detêm controle. Em “Não! Não Olhe!”, cujo discurso é fruto das motivações pós-George Floyd, o monstro, reelaborado e em certa medida mais palpável, é o próprio sistema: incontrolável, insaciável, intolerante e, por natureza, forjado sobre bases segregadoras. 

Organismo que rejeita o feto, este estranhamento é gerado pelo próprio sistema. E vai além: esconde e determina que este não deva existir, que não deve ser visto. A dicotomia, portanto, instaura-se. Como um filho bastardo e imperfeito, o monstrengo descomunal e incontrolável existe, e por isso deve ser desconsiderado, pois só assim pode ser domado. Caso contrário, ele solapa, consome, elimina. Mastiga tudo que vê pela frente e ainda, faminto, exige mais. Por isso, o alerta: “não, não o olhe”. Se o fizer, as energias serão magicamente todas roubadas, pois o que não falta a este estranho sem forma é força e até razão. Irônica e metalinguística a cena em que o “cinema de arte” é sugado pelo alien na figura estereotipada do cineasta-autor: branco, excêntrico e idealista, mas frouxo. 

Afora isso, o filme suscita a linguagem cinematográfica ao aludir à função psicológica do olhar. Novamente, todavia, de maneira original. No cinema de Peele, este paralelo também está diretamente ligado à abordagem do gênero de terror/fantasia, pois dela se depreendem proposições críticas potentes e coerentes com o discurso do cineasta. Ele usa a gramática do cinema para ressignificar a permanente indagação ética: “de onde vem o racismo?” Em “Corra!”, o mistério do aliciamento de jovens negros pela abastada família branca se desvenda quando vídeos gravados são vistos através do olhar das lentes. Em “Nós”, o enigma se esconde naquele apavorante reconhecimento visual à duplicidade dos corpos sem identidade ou moral. Já em “Não! Não Olhe!”, cujo mesmo recurso linguístico não apenas se repete como se torna o cerne, há uma sobreposição de olhares: o dos personagens, o do espectador, o da natureza, o social, o histórico e o identitário. 

É claro que o título provocativo do filme de Peele tem como finalidade não a repelir mas, justamente, atrair o olhar a uma necessária tomada de consciência humanitária. Juntamente com os cineastas negros de sua geração, também autores de obras de vital relevância para a recente cinematografia dos Estados Unidos e para a discussão do problema urgente do racismo, o jovem realizador forja o que pode ser chamado de “cinema de conscientização”. Mais do que reagir como a blackexplotation, denunciar como a L.A. Rebellion ou levantar contradições como Spike Lee, esta geração avisa que veio para mudar. O que pode ser entendido como sinal dos tempos, também é prova de que há muito espaço jamais ocupado historicamente por estes em virtude da hegemonia branca. Porém, na era do Vidas Negras Importam, outro lema advindo da luta racial dos Estados Unidos pode ser parafraseado de forma a amalgamar estas dignas intenções: “sim, nós olhamos”.

* Texto originalmente publicado na edição de nº 32 da revista Teorema

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trailer oficial de "Não, Não Olhe!"


Daniel Rodrigues