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segunda-feira, 16 de outubro de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (última parte)

 

Coutinho dirige e atua em seu "Cabra...", um dos 10
maiores e um dos 5 filmes do diretor na lista
Chegamos, enfim, ao momento mais aguardado: o final do nosso especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. Ou melhor, o início, já que seguimos uma ordem numeral inversa, partindo dos últimos da lista para, agora, os primeiros. Chegou a hora de dar fim a um dos conteúdos especiais alusivos aos 15 anos do Clyblog em 2023, iniciada em abril e publicado em cinco partes ano longo dos meses. Nossa proposta foi trazer aqui, de forma criteriosa e misturando noções de crítica e história do cinema com preferências pessoais, títulos que representassem o cinema brasileiro neste corte temporal. E justamente num ano em que o cinema brasileiro completou 125 de nascimento segundo a efeméride oficial. O que não invalida a nossa intenção, a qual teve como referência, se não a gênese da produção cinematográfica nacional, em 1898, outro marco inconteste para a história da cultura audiovisual sul-americana, que é a exibição do mais antigo filme brasileiro preservado: “Os Óculos do Vovô”, de 1913.

Embora as corriqueiras e até salutares ausências (afinal, listas servem muito para que outras também sejam compostas), o que se viu aqui ao longo da extensa classificação foram títulos da maior importância e qualidade daquilo que foi produzido no cinema do Brasil neste mais de um século. De produções clássicas, passando pela fase muda, os alternativos, o cinema da atualidade aos sucessos de bilheteria. Num país de dimensão continental, houve trabalhos do Norte ao Sul, com representantes de seis estados da nação: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. Entre as décadas, leva pequena vantagem os anos 60 sobre os 80 e 2000, com 25, 24 e 23 títulos respectivamente, dando uma boa ideia dos períodos de maior incentivo à produção 

Diretores consagrados e filmes marcantes para a cinematografia brasileira e mundial também percorreram a listagem de cabo a rabo. Nomes como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Hector Babenco, Kléber Mendonça Filho, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho e Joaquim Pedro de Andrade se fizeram presentes de forma consistente e todos com mais de um título, provando sua importância basal para a concepção formativa do cinema brasileiro. Glauber, maior cineasta brasileiro, encabeça, com seis filmes, seguido de Coutinho, com cinco, e Nelson, Leon e Babenco, com quatro cada. Porém, os novatos, nem por isso deixaram de também demarcarem seus espaços, feito talvez ainda mais louvável uma vez que, com pouco tempo de realização, já figuram entre os grandes. Caio Sóh, com “Canastra Suja”, de 2018, (107º colocado), Gustavo Pizzi, de “Benzinho” (2018), e Gabriel Martins, com “Marte Um”, de 2022 (79º) estão aí para provar.

Katia, uma das 7 cineastas
mulheres: pouca representatividade
Embora em menor número, as diretoras não deixam de contribuir com seu talento ímpar. Kátia Lund (com duas co-direções, junto a Fernando Meirelles e a João Moreira Salles), Anna Muylaert, Daniela Thomas (“Terra Estrangeira”, com Walter Salles Jr.), Sandra Kogut, Laís Bodanzky, Tatiana Issa e Suzana Amaral formam o time de sete cineastas mulheres, que dão um pouco de diversidade à lista. Muito a se evoluir? Sim. Representatividades negras, LGBTQIAPN+ e indígenas aparecem de maneira periférica, até superficial, consequência natural participação de tais minorias na economia cultural brasileira ao longo da história. Quem sabe, daqui a mais uns anos não se precise demorar tanto mais para que se incluam definitivamente entre os essenciais do cinema brasileiro?

Outro recorte que vale ser frisado são os documentários, que se estendem por todas as postagens dessa série. Além de contarem com um dos dois mais representativos realizadores, Coutinho, rivalizam muito bem com as ficções, totalizando nada mais nada menos que 13 títulos neste formato, 11,8% do geral. Enfim, análises que podem se deduzir a uma coleção de filmes tão interessantes e simbólicos de uma nação, aqui representados por aqueles mais bem colocados e, de certa forma, mais significativos. Por isso, diferentemente do que vínhamos procedendo até então, ao invés de comentarmos apenas de 5 e 5, todos desta vez merecem algumas palavras. Afinal, eles podem se vangloriar de serem os 10 melhores filmes brasileiros de todos tempos. Ao menos, nesta singela e propositiva seleção. 

************

10.
“Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (1980) 

Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassistência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.




09. “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (1981)
Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.


08. ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984) 
Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.


07“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Kátia Lund (2002)
Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



06. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (1965)
Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima pouco lembrada.


05. 
"O Cangaceiro”, Lima Barreto (1953)
No nível do que Nelson Pereira faria com Jorge Amado e Ruy com Chico Buarque anos mais tarde, Lima Barreto teve a o privilégio de contar com diálogos escritos por Raquel de Queiroz. O que já seria suficiente ainda é completado por um filme de narrativa e condução perfeitas, com uma trilha magnífica, figurinos de Carybé, uma fotografia impecável e enquadramentos referenciados no Neo-Realismo de Vittorio De Sica e no western norte-americano de John Ford. O precursor do faroeste brasileiro ao recriar sua atmosfera e signos à realidade do nordeste. Se "Bacurau" foi aplaudido de pé em Cannes 66 anos depois, muitas dessas palmas devem-se a "O Cangaceiro", onde o filme de Barreto já havia emplacado o prêmio de Melhor Filme de Aventura e uma menção honrosa pela trilha sonora. Primeiro filme nacional a ganhar prestígio internacional, também levou os prêmios de Melhor filme no Festival de Edimburgo, na Escócia, Prêmio Saci de Melhor Filme (O Estado de S. Paulo) e Prêmio Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos.




04. “Limite”, Mário Peixoto (1930)
Scorsese apontou-o como um dos mais importantes filmes do séc. XX, tanto que o restaurou e para a posteridade pela sua World Cinema Foundation. David Bowie escolheu-o como o único filme brasileiro entre seus dez favoritos da América Latina. Influenciado pelas vanguardas europeias dos anos 20, Peixoto, que rodou apenas esta obra, traz-lhe, contudo, elementos muito subjetivos, que potencializam sua atmosfera experimental. Impressionantes pelo arrojo da fotografia, da montagem, da concepção cênica. Considerado por muitos o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Um cult.


03. “Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (1963)
Genial. Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia, atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes do cinema mundial, a do sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.




02. “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Glauber Rocha (1963)
A obra-prima do Cinema Novo, um dos maiores filmes do século XX. De tirar o fôlego. Sobre este, reserva-se o direito de  um post inteiro, escrito no blog de cinema O Estado das Coisas em 2010. Mais recentemente, este marcante filme de Glauber mereceu outra resenha, esta no Clyblog.



1º.
 
"O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (1960) 

Com absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito do início ao fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição, cenografia. Obra de Dias Gomes transposta para a tela com o cuidado do bom cinema clássico. Brasilidade na alma, das mazelas às qualidades. Cenas inesquecíveis, final arrepiante. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que venceu Antonioni, Pasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.





Daniel Rodrigues

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

"Os Inocentes", de Jack Clayton (1961) vs. "Através da Sombra", de Walter Lima Jr. (2016)

 


Eu fico me perguntando, às vezes, quando vejo um remake de um clássico absoluto, de um filme legendário, cultuado, idolatrado, uma unanimidade, se o diretor da tentativa pensou mesmo que pudesse fazer algo, de alguma forma superior ao original. Se ele pensou que poderia fazer melhor. Ou, se não pensou, em nome de que se deu o trabalho de gastar tempo, dinheiro do estúdio, da produtora, distribuição, divulgação, para falhar miseravelmente, ser massacrado pela crítica e ter uma bilheteria decepcionante. Pelo que sei, o bom e competente Walter Lima Jr. não tinha, exatamente, tais pretensões ao fazer seu "Através da Sombra", em 2016. Sua ideia era filmar uma adaptação de um romance pelo qual sempre tivera admiração e vontade de levar às telas. O caso é que quando alguém pensa em adaptar para o cinema "A volta do parafuso", de Henry James, tem que ter em mente que alguém já o fez, e que essa adaptação anterior não é nada menos que "Os Inocentes", de 1961, não só um dos maiores filmes de terror de todos os tempos, como um dos melhores filmes da história do cinema! Aí as comparações passam a ser inevitáveis e, é lógico, elas tendem a não  favorecer o ousado "desafiante".

Na história, basicamente, em ambos os casos, uma moça é contratada por um milionário para cuidar de seus sobrinhos órfãos, dos quais ele tem a guarda mas nenhum interesse nem aptidão para criá-las. As crianças estão em sua mansão no interior para onde a contratada deverá rumar, tendo lá todo o suporte estrutural, logístico, financeiro, com a condição de não incomodar o contratante na capital, tendo total autonomia em ações e decisões.

Quando a preceptora chega, encontra a menina, mas o garoto de quem também deve cuidar, por sua vez, encontra-se no colégio interno. No entanto, uma carta da escola, nos dias seguintes, acusando uma série de inapropriações e "indecências" do menino, anunciam sua expulsão  da instituição e o retorno para casa. Num ambiente envolto por mistérios acerca de um casal de ex-funcionários da casa, amantes, que teriam falecido no local, enquanto, claramente, a menina guarda segredos, o garoto confirma um comportamento inadequado, muitas vezes incompatível com uma criança. O menino é ousado, é insinuante, galanteador, e a governanta chega, mesmo, a ficar estranhamente "atraída" pela criança. Baseada em informações dos caseiros, logo ela descobre que o comportamento do garoto é muito semelhante ao do antigo cavalariço falecido, um homem rude, rústico, mas extremamente sedutor que, por sinal era amante de sua antecessora. Já atormentada por pesadelos e visões, ela começa então a associar a atitude do garoto ao do homem descrito e os mistérios da garota com a ex-governanta morta e conclui que os espíritos dos dois estão presentes no local e têm grande influência no comportamento das crianças.

trailer de "Os Inocentes"  (1961)


trailer de "Através da Sombra" (2016)


A bola mal começa a rolar e "Os Inocentes" já movimentam o placar. A canção infantil entoada antes dos créditos e logo depois as mãos unidas rezando, suplicantes, sobre um fundo totalmente escuro, o som de pássaros ao fundo, um choro mudo e a angústia de uma mulher em pranto, tudo isso. enquanto os créditos iniciais vão aparecendo na tela, é um golaço do diretor Jack Clayton.

"Os Inocentes" (1961) - abertura e créditos iniciais

"Através das Sombras" se organiza, bota a bola no chão e reage. A contratação pelo tio, ainda na cidade, e o primeiro contato da nova empregada com a menina, funcionam melhor na versão brasileira. A ambientação, o diálogo com o tio e a postura da candidata à vaga na entrevista, a atuação de Mel Maia, ainda pequeninha, como a sobrinha Elisa, arredia e desconfiada ao conhecer a substituta da professora por quem tanto se afeiçoara, garantem um empate ainda cedo para a equipe brasileira. Mas se a pequena brasileira mostra seu talento e ajuda o time de Walter Lima Jr. a voltar para o jogo, a performance do jovem Miles, da versão inglesa, fazendo um verdadeiro "hominho", encarnando o gestual e a postura do falecido empregado, não deixa nada a desejar e logo põe os ingleses em vantagem novamente.

A partir daí, no geral, a qualidade prevalece, e a fotografia em preto e branco, o que seria uma limitação mas que se torna uma arma nas mãos do diretor de fotografia, e a luz, sempre perfeita, mínima, passando uma sensação angustiante e claustrofóbica, ampliam a vantagem dos comandados do técnico Jack Clayton.

Aí "Os Inocentes" tomam conta do jogo. Deborah Kerr, como a governanta Srta. Giddens, põe o jogo no bolso e faz todas as ligações perfeitas para as jogadas, deixando os mais jovens à vontade para mostrar o seu talento, como nas partes em que é "cortejada" pelo pequeno Miles; e fazendo todos os jogadores "aparecerem" pro jogo, até mesmo os falecidos, como a governanta Mary Jessel, na cena do corredor, na biblioteca, e na aterrorizante cena lago, e o sinistro Peter Quint, o possessor do garoto, imóvel no topo da mansão, ou a encarando com seu olhar demoníaco por trás das janelas da sala.

Quint, à esq., entrou na "janela" de transferências (do outro mundo para este) e
Srta. Jessel, à dir., até pediu substituição, alegando que estava "mortinha",
mas mesmo assim apareceu pro jogo.

Depois de cartear o jogo, deixar todo mundo na cara do gol, Deborah Kerr, a dona do time, não deixa por menos e faz o seu. Seu jeito, ora inseguro, ora decidido, seus olhões arregalados de medo, sua presença de cena, tudo é como um daqueles gols de driblar todo o time adversário inteiro. Gol de craque!

Virgínia Cavendish, como Laura, é boa atriz, é competente, na adaptação nacional, mas sequer amarra as chuteiras da governanta original, e o garoto, Antônio, na versão brasileira, não se destaca e, desta forma, não faz grande diferença.

"Através da Sombra" tem o mérito de transpor a ação para uma fazenda cafeeira, no interior, no início do século XX, e jogar um certo olhar sobre os resquícios da escravidão e a relação dos senhores do café com os empregados, o que lhe rende mais um golzinho. Mas a ousadia de "Os Inocentes", desafiando os padrões da época, expondo as situações do casal de amantes, quando vivos, pelos quartos da casa e, não satisfeito em insinuar uma atração entre um adulto e uma criança, mostrando, explicitamente, um beijo na boca entre eles, dá mais um gol para o filme de 1961. Pra fechar o caixão, toda a sequência final, quando a srta. Giddens confronta Miles, de modo a fazer com que o garoto admita a influência do obsessor e se livre dele, faz com que o time brasileiro busque mais uma bola no fundo da rede.

O filme original é que acaba, como iniciara, com as mãos unidas em oração, mas era a refilmagem que já estava rezando para que o jogo acabasse. Final de partida, 7x2 para Os Inocentes.

Quando a Deborah quer ela faz a diferença.
E não deu outra: ela tava muito a fim e desequilibrou para o time dos anos 60.
Já Virgínia Cavendish, por sua vez, começa a ser assombrada pelo fantasma do rebaixamento.


Fazer um remake de um filmezinho qualquer é uma coisa,
mas fazer um de algo como "Os Inocentes", é outra volta no parafuso.



Cly Reis

segunda-feira, 19 de junho de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 3)


Grande Otelo em "Rio, Zona Norte" com o seu realizador, 
Nelson Pereira dos Santos, que chega para ficar
Chegamos à terceira parte de nossa lista dos 110 melhores filmes brasileiros, em comemoração aos 110 anos do primeiro filme realizado no Brasil, “Os Óculos do Vovô”. E justo naquele em que é celebrado o Dia do Cinema Brasileiro! E podemos dizer que a coisa está ficando cada vez mais séria. Não que os primeiros-últimos da ordem já não garantissem uma qualidade excepcional. Afinal, separar APENAS 110 títulos entre tantos memoráveis foi tarefa não só difícil como incompleta. Porém, é óbvio que, à medida que vai se avançando na classificação, também se intensifica a importância das obras.

É bem o caso do nosso novo recorte, que vai do 70º ao 51º posto. E em verdade vos digo: só tem filmão! Se nos 40 títulos anteriores já figuravam grandes realizadores, como Eduardo Coutinho, Glauber Rocha, Hector Babenco e Humberto Mauro, agora entram no páreo outras referências indeléveis do cinema nacional, como Leon Hirzsman, Nelson Pereira dos Santos e Kleber Mendonça Filho com seus primeiros listados. Por que, claro, todos eles voltarão mais pra frente com mais obras. Mesmo caso de Cláudio Assis, aqui com “A Febre do Rato”, e Ruy Guerra, já mencionado com seu "Os Cafajestes" (102º) e agora representado por um dos raros musicais de toda a seleção: “Ópera do Malandro”. Como Guerra, Walter Avancini, Julio Bressane, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima Jr. e Rogério Sganzerla, já presentes, voltam à carga com todo merecimento. 

Entre as mulheres, se até então apareceram apenas filmes de Suzana Amaral, Laís Bodanzky e Tatiana Issa, Sandra Kogut amplia a representatividade feminina trazendo uma obra-prima da recente cinematografia brasileira: “Três Verões”. Por falar em época, ao contrário do recorte imediatamente anterior, onde calhou de não haver nenhuma produção dos anos 80, nesta, pelo contrário, elas são maioria entre as décadas, com 8 títulos, 4 a mais que a segunda com mais filmes, os anos 60. Este é um dos retratos de momentos importantes do audiovisual brasileiro que uma lista de teor histórico como esta pode suscitar. A constatação é uma mostra (à exceção de “Morte e Vida Severina”, teledrama da TV Globo) do quanto a Embrafilme, bem estruturada nos anos 80, rendeu ao cinema brasileiro frutos muito qualificados e duradouros. A mesma Embrafilme desmontada nos anos 90 por Collor... Mas isso é outra história.

Confiram, então, mais uma parte da lista destes filmes que, se não são necessariamente todos os melhores, infalivelmente guardam qualidades que os credenciam a estarem aqui.

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70.
“O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (1981) 

A forte e memorável atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme, que conta a história do poeta popular nordestino Deraldo. Ele quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers, é daquelas corajosas realizações  ficcionais, mas abertamente realista que quase documental, e de extrema importância para o período de abertura política no Brasil após os Anos de Chumbo da Ditadura Militar.



69. “Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (1970) 
68. “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (1982) 
67. “Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora é Outro”, José Padilha (2010)
66. “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (1986) 
65. “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins (1968)



64. “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (1966)
63. “Três Verões”, Sandra Kogut (2020)
62. “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr. (1987) 
61. “A Pedreira de São Diogo”, Leon Hirzsman (1962) 

 
60.
“Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (1980) 


Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que produz coisas às vezes intragáveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.





59. “O Mandarim”, de Julio Bressane (1995)
58. “Morte e Vida Severina”, Walter Avancini (1981)
57. “Casa Grande”, Fellipe Gamarano Barbosa (2014)
56. “A Febre do Rato”, Cláudio Assis (2011)
55. “O Romance da Empregada”, Bruno Barreto (1888)



54. “Faca de Dois Gumes”, Murilo Salles (1989)
53. “Rio, Zona Norte”, Nelson Pereira dos Santos (1957)
52. “Aquarius”, Kleber Mendonça Filho (2016)
51. “Blá Blá Blá”, Andrea Tognacci (1968)


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

"Histórias Reais", de David Byrne (1988)

 

O Olho de Fora

Não é de hoje que, às vezes, a visão do estrangeiro me diz mais do que a do nativo. Ofuscado pela cotidianidade, o vivente local comumente não se apercebe de elementos básicos daquilo que ele mesmo é. “Cego de tanto vê-la”, como disse o poeta. O forasteiro, como uma folha em branco, está livre para ser escrito, rabiscado, rasurado, e sem que se trace por cima de escritas já grafadas. Tal como as tatuagens de Nagiko, de “O Livro de Cabeceira”, de Peter Greenaway (1996), seu corpo serve, agora, de página para algo novo que se inscreva, em letras de novíssimos significados. Essa visão de fora, no cinema, é, igualmente, a ferramenta para que algumas obras incomuns sejam criadas. É o caso de “Histórias Reais” (True Stories, EUA-1988), a bem sucedida experiência audiovisual do músico – e estrangeiro – David Byrne.

O escritor e viajante francês François Chateaubrinad, em seu “Voyage en Italie”, disse que “cada homem traz em si um mundo composto de tudo o que viu e amou, e onde ele entra em permanência, ao mesmo tempo em que percorre e parece habitar um mundo estrangeiro”.  Tão peregrino quanto, o escocês David Byrne escreveu e conduziu “Histórias Reais”, um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas, na verdade, carregado de perspicácia. E essa visão própria está diretamente ligada à relação emocional do autor com o seu lugar, daquilo “tudo o que viu e amou.”

Byrne: narrador e personagem quebrando a "4ª parede"

Na obra de Byrne, o cenário ideológico representa mais do que uma cidade, mas os Estados Unidos como um todo, país que lhe acolheu e com o qual é tão identificado desde os tempos da geração punk nova-iorquina dos anos 70, da qual ele foi um dos principais atores à frente da lendária banda Talking Heads.  A solução encontrada por ele para representar a amplitude de uma nação toda em um único espaço físico foi a de inventar uma cidade fictícia, a extravagante Virgil, onde a história transcorre. Nela, o diretor-viajante (Narrador, como é chamado), encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter esta localidade do Texas em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde encontra diversos personagens hilários, entre eles a Mulher Mais Preguiçosa do Mundo e o solteirão Louis Fyne (o sempre excelente John Goodman) à procura de casamento e da realização como artista.

Figurinos e cenários kitsch:
o americano médio no centro
No filme, há dois enfoques que se complementam. O primeiro deles é um simpático mundo de fantasia, o que ironiza o próprio título. Byrne lança um olhar generoso sobre atitudes e pensares do povo daquele país que, talvez, para outro mais enfezado, seriam abertamente criticáveis, como o excesso de imagens publicitárias, o deslumbramento com os avanços tecnológicos ou a intenção de serem, eles, os “americanos”, espelho para o planeta. Cenas lúdicas, como as atrações de palco, o ventríloquo e os grupos de dança reforçam essa percepção. O figurino, de maquiagens carregadas, cabelos volumosos de laquê e as roupas e os cenários kitsch, explorando formas e cores berrantes, mostram o quanto a arte cenográfica, assinada por Lucinda Cowell, foi trabalhada para realçar esses aspectos.

Por outro lado, o filme revela belezas escondidas. E o faz muito bem. Com um olho atilado e sensível, Byrne enxerga, por exemplo, as tradicionais casas ao estilo norte-americano (tão comumente filmadas em centenas de outros filmes) nos planos gerais em travelling, aqui enquadrados não só com a câmera, mas também com a alma. A cena final na estrada de terra que se perde ao infinito, igualmente, é de pura poesia, visual e conceitualmente.

A emocionante cena das casas sob o olhar do estrangeiro Byrne

A fotografia do competente Ed Lachman (que se tornaria diretor mais tarde, fazendo, entre outros títulos, o ótimo “Ken Park”, de 2002) se encaixa na medida certa para as intenções do filme, tanto nas composições propositadamente artificiais, nas cenas em que Byrne aparece dirigindo pela estrada ou no vídeo de “Love For Sale” (que funcionou perfeitamente como clipe na MTV), como nas imagens naturais, a ver os lindos enquadramentos em grande plano da paisagem horizontalizada do deserto norte-americano, lembrando, sem medo da comparação, “Paris, Texas” (Win Wenders, ALE-EUA, 1984). Lachman também acerta no tom da exacerbação cenográfica proposta por Byrne, quando capta, dentro daquele emaranhado de imagens publicitárias, diversos formatos e tipos de telas de vídeo, provocando uma interessante profusão de superenquadramentos. Ideia esta, assim como as tonalidades cromáticas fortes, visivelmente aprendida por Byrne com o cinema novo alemão (movimento do qual Wenders  originou-se) e do cineasta americano Jonatham Demme, diretor de vários clipes do Talking Heads.

Superrnquadramento de "Histórias...", à esq., e de "Paris, Texas" ao lado: Byrne se inspira em Wenders

Filme de músico, “Histórias Reais” tem ótimas músicas, é costurado por música, mas não é, a rigor, um musical. Conceitual, “Histórias Reais” é um dos produtos de um projeto multimídia – pouco comum à indústria de entretenimento naqueles anos 80 – lançado simultaneamente em outros dois formatos: livro, um book de trabalhos fotográficos com imagens captadas para o filme, e LP, um dos melhores do Talking Heads.  Aliás, na minha percepção de fã da banda, “True Stories”, o disco, de princípio, mesmo com os grandes hits “Love for Sale” e “Wild Wild Life”, não me impressionava tanto quanto outros do grupo. Porém, sua audição passou a me fazer mais sentido e, consequentemente, a gostá-lo mais, depois de assistir a sua “versão” audiovisual.

Pelo viés da música, Byrne – já premiado anteriormente como diretor de videoclipes de sua banda – mostra domínio ao explorar todos os níveis narrativos de um filme musical. Ele se utiliza da trilha diegética, como na divertida cena de “Wild Wild Life”, expediente bastante usado nos musicais em que a música e a dança provocam um distanciamento da realidade para criar um universo próprio dentro daquele instante em que ocorre a performance. Em outro momento, usa também a não-diegese, como na apresentação na igreja em que há uma banda inteira executando a peça como se fosse ao vivo, integrando totalmente a música ao ato narrativo. Byrne também se vale da mistura dos dois extremos, como na sequência das crianças percutindo latas e cantando na rua a caribenha “Hey Now”.

O clássico clipe de "Wild Wild Life": cinema, a TV e a vídeo-arte

“Histórias Reais”, contudo, intenta ir além do musical. E vai. A constatação é um tanto preconceituosa, confesso, mas resisto um pouco a este gênero. Claro que existem grandes realizações nesse estilo ao longo da história do cinema; estão aí para provar “O Mágico de Oz” (Victor Fleming, EUA-1939) e o balé “Sapatinhos Vermelhos” (Michael Powell e Emeric Pressburger, ING-1948). Mas em geral incomoda-me aquela artificialidade da transição diálogo-performance, nem sempre justificável, nem sempre coerente. E até me irrita, em alguns casos, a forçada conversão do texto em canto quando a mesma poderia funcionar muito bem em uma simples fala coloquial. Pergunto-me: para que todo aquele contorcionismo para dizer um corriqueiro “bom dia”? “Hair” (Milos Forman, EUA-1979), por exemplo, me enjoa. Os que mais me agradam nesta linha são, justamente, aqueles que, de alguma forma, burlam o padrão do musical de Aistaire ou Kelly. De atmosfera onírica, cada um a seu modo, “Dançando no Escuro” (Lars von Trier, DIN/FRA/EUA -2000) e "Brasil Ano 2000" (Walter Lima Jr., BRA-1969) são exemplos felizes de reapropriação do elemento música dentro do contexto fílmico.

Não tão radical, “Histórias Reais” se situa entre um estilo – o clássico hollywoodiano – e outro – o do cinema moderno –, visto que é bastante palatável como o cinema comercial, porém, agregando aspectos de outras linguagens, como a publicidade e a vídeo-arte. 

Fotografia valorizando o esverdeado
luminoso, típico dos filmes de Demme
e do cinema novo alemão
Entretanto, o que se destaca mesmo é o seu caráter documental. Byrne faz as vezes de um antropólogo, de um Chateaubriand, sendo objeto e observador ao mesmo tempo. Sua narração, com sentenças didáticas e engraçadas de tão óbvias, parece pretender relatar o que todo mundo sabe: que os Estados Unidos têm uma gente feliz; que são altamente tecnológicos; que o capitalismo triunfou; que vivemos imersos na era da informação e da imagem. Parece um roteiro extraído de um livro que se chamaria “United States for Dummies”. Porém, é na aparente obviedade que está a sacada: nunca ninguém (pelo menos, não um americano) se atreveu a (ou pensou em) mostrar os Estados Unidos tão cruamente, o que faz o espectador, pelo choque provocado, refletir dada a simplicidade (até simploriedade!) de como as coisas são mostradas. Leva-nos a questionar a veracidade desses mitos difundidos mundo afora, principalmente após a II Guerra. Não fosse o lado estrangeiro de Byrne, esse distanciamento crítico não seria possível. Às vezes, só a visão de fora consegue captar o que está dentro. Tanto que, no início do filme, há uma cena em que, antes de começar a história em si, ele, Narrador, entra na tela, reforçando essa ideia.

A era pós-11 de Setembro evidenciou ao mundo a crise moral e política a qual os Estados Unidos vinham alimentando há décadas, a começar pelo período de governo Reagan, da época em que "Histórias Reais" foi rodado. Mas e os dentes brancos da propaganda do creme dental? E as admiráveis engenhocas da tecnologia moderna? Ainda nos dizem alguma coisa? O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi no alvo quando escreveu: “esta grande civilização ocidental, criadora das maravilhas de que desfrutamos, certamente não conseguiu produzi-las sem contrapartida”. A ilusão que o filme de Byrne quase carinhosamente identificava sem apontar o dedo, a geração de cineastas como Michael Moore e Charles Ferguson cresceu para poder, hoje, com propriedade e direito, arregaçar as próprias feridas. De fato, parte da sociedade descobriu, um tanto tarde, que o Super-Homem jamais existiu a não ser nos quadrinhos, e que todos são de carne e osso, eles e os outros. “People Like Us”, sintetiza uma das músicas da trilha. Como diz naquele texto de Caetano Veloso: “Americanos não são americanos. São os velhos homens humanos chegando, passando, atravessando. São tipicamente americanos.”

"People Like Us", da Talking Heads: uma tradução do filme


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 1 de março de 2021

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 2000

 

Enfim, a bonança. Depois de gramar por décadas entre crises e bons momentos, com as políticas pró-cultura do Governo FHC bem continuadas pelo de Lula, o cinema brasileiro finalmente vive, nos anos 2000, sua década de maior valorização e intensidade produtiva. E com isso, principalmente, a liberdade criativa limitada ora politicamente, como no período da ditadura, ou pela míngua, quando pagou os pecados na Era Collor, explode em riqueza. Não necessariamente de dinheiro – afinal, está se falando de um país recém-saído da pecha de Terceiro Mundo e recém combatendo um mal chamado “fome”. Mas, com certeza, riqueza de criatividade e diversidade. 

Como todo momento histórico, porém, existe um marco. Símbolo da nova fase do cinema brasileiro, os anos 2000 viram um fenômeno chamado “Cidade de Deus” promover uma guinada na produção nacional a ponto de estabelecer um novo padrão estético e ser capaz de reintegrá-la ao circuito internacional, seja na ficção ou no documentário. O Brasil chegava ao Oscar - e não de Filme Estrangeiro, mas na categoria principal. Junto a isso, novos realizadores, polos e produtoras pediam passagem junto a velhos cineastas, que se adaptavam à nova fase. Enfim, depois de agonizar, o cinema brasileiro, como a fênix, revive e prova que é um dos mais criativos e belos do mundo.

Dada a quantidade amazônica de boas realizações, provenientes desde o Sul até o Norte, certamente esta é a década mais difícil de se selecionar apenas 20 títulos. Ou seja: fica muita coisa boa de fora. Talvez não tão importantes quanto os revolucionários filmes dos anos 60, como “Terra em Transe” e “O Bandido da Luz Vermelha”, ou das produções maduras dos 70 e 80, tais como “Bye Bye, Brasil” ou “Nunca Fomos tão Felizes” – ou até das resistentes e brilhantes noventintasCentral do Brasil” ou “Dois Córregos” –, as duas dúzias de obras geradas na abundante primeira década do século XXI são a representação de um país em que as políticas públicas e o incentivo à cultura deram certo, definindo um novo modus operandi na produção audiovisual brasileira. Pode-se, enfim, passar a dizer expressão com segurança: “cinema da retomada”.




01 - “O Invasor”, de Beto Brant (2001) - Para começar de vez a década, nada melhor que um filme marcante. O terceiro longa de Brant avança na sua estética orgânica e tramas que dialogam com a literatura (roteiro do próprio autor Marçal Aquino) para contar a história de três amigos sócios em uma empresa, que entram em crise entre si. Para resolver uma “questão”, contratam o matador Anísio (Paulo Miklos, impecável), mas acabam por comprar uma maior ainda. Não deu outra: abocanhou vários prêmios, entre estes Melhor Filme Latinoamericano em Sundance, Melhor Filme no Festival de Recife e vários em Brasília, entre eles direção, trilha sonora, prêmio da crítica e ator revelação para Miklos. 



02 - “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (01) - Sabe o caminho para as coproduções reaberto por Carla Camuratti e os Barreto na década anterior? Resultou, entre outras obras, no divertido e brilhante “O Xangô...”, baseado no best-seller de Jô Soares. A invencionice de contextualizar um thriller de Sherlock Holmes em plena Rio de Janeiro do final do século XIX dá muito certo na adaptação de Faria Jr., que equilibra muito bem atores estrangeiros (Joaquim de Almeida, Anthony O'Donnell, Maria de Medeiros) com craques brasileiros (Marco Nanini, Cláudio Marzo, Cláudia Abreu e o próprio Jô, que faz uma ponta). Produção de um nível como raras vezes se viu no cinema brasileiro até então. Vencedor de alguns prêmios no Brasil e no exterior, com destaque para a direção de arte de Marcos Flaksman e figurino da dupla Marilia Carneiro e Karla Monteiro. 



03 - “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (01) - LF Carvalho, principal responsável por levar o cinema de arte para a TV brasileira ainda nos anos 90, quando produziu séries e especiais para a Globo em que rompia com os preguiçosos padrões do audiovisual tupiniquim, pôs pela primeira vez sua estética arrojada e fortemente sensorial nas telonas com “Lavoura”. E o fez já desafiando-se ao adaptar o barroco e difícil texto de Raduan Nassar, feito que realizou com brilhantismo. Exemplo em aulas de cinema, principalmente pela fotografia (Walter Carvalho) e montagem (do próprio diretor). Interpretações igualmente marcantes, como a do protagonista Selton Mello, de Simone Spoladore e do craque Raúl Cortez. Mais de 50 prêmios internacionais e nacionais e elogios rasgados da Cahiers du Cinéma. Usar-lhe o termo “obra-prima” não é exagero.



04 - “Bufo & Spallanzani”, de Flávio Tambellini (01) - Filme policial com há muito não se via no cinema brasileiro. Aqui, ainda com a ajudinha do próprio autor da história, Rubem Fonseca, com a mão hábil de Patricia Melo. Várias qualidades a destacar, como as atuações de José Mayer, Tony Ramos e Maitê Proença. Mas o toque noir moderno muito bem conduzido por Tambellini – estreante na direção de longa, mas já um importante produtor, responsável por filmes-chave do cinema nacional como “Ele, O Boto” e “Terra Estrangeira” – e captado na fotografia de Bruno Silveira também se sobressai. Ainda, revelou o ex-Legião Urbana Dado Villa-Lobos como um exímio compositor de trilha sonora, dando a medida certa para a atmosfera de submundo urbano da trama. Prêmios em Gramado e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.




05 - “Madame Satã”, de Karim Ainouz (02) - Como década importante que foi, alguns filmes dos anos 00 concentraram mais de um aspecto emblemático para essa caminhada do cinema brasileiro. O primeiro longa de Ainouz é um caso. Além de trazer à cena o talentoso cineasta cearense, revelou um jovem ator baiano que conquistaria o Brasil todo no cinema, TV e teatro: Lázaro Ramos. Mas não só isso: resgata a eterna Macabea Marcélia Cartaxo, revela também Flávio Bauraqui e ainda abre caminho para as cinebiografias de personagens negros importantes, mas por muito tempo esquecidos pelo Brasil racista, como o precursor do transformismo e da exuberância do Carnaval carioca João Francisco dos Santos. Festivais de Chicago, Havana, Buenos Aires e claro, Brasil, renderam-lhe diversos prêmios  entre Filme, Diretor, Ator, Atriz, Arte, Maquiagem e outros.


06 - “Carandiru”, de Hector Babenco (02) - Há o emblemático “Pixote”, o premiado “O Beijo da Mulher-Aranha” e o apaixonante “Ironweed”, mas não é nenhum absurdo afirmar que a obra-prima de Babenco é este longa, magnificamente adaptado do Best-seller do médico Dráuzio Varella. Trama coral, como raramente se vê no cinema brasileiro, amarra diversas histórias com talento e sensibilidade de alguém realmente imbuído de um discurso humanista e antissistema como o do cineasta. Revelou Wagner Moura, Ailton Graça e Caio Blat, reafirmou Lázaro e Rodrigo Santoro, reverenciou Milton Gonçalves. Fotografia de Walter Carvalho mais uma vez esplêndida e trilha de André Abujamra, idem. Mas o que impressiona – e impacta – é o tratamento dado ao texto e a edição cirúrgica de Mauro Alice. Indicado em Cannes e Mar del Plata, venceu Havana, Grande Prêmio Cinema Brasil, Cartagena e outros.




07 - “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (02) - Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



08 - “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (02) - Quando Lírio Ferreira e Paulo Caldas rodaram “Baile Perfumado”, em 1996, já era o prenúncio de uma geração pernambucana que elevaria o nível de todo o cinema brasileiro poucos anos depois. O principal nome desta turma é Cláudio Assis. Dono de uma estética altamente própria e apurada, ele expõe como somente um recifense poético e realista poderia as belezas e as feiuras da sua cidade – nem que para isso tenha que extrair beleza da feiura. Texto e atuações impactantes, que dialogam com o teatro moderno e a escola realista. Injusto destacar alguma atuação, mas podem-se falar pelo menos de Jonas Bloch, Matheus Nachtergaele e Leona Cavalli. Presente nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abraccine, ainda levou Brasília, CineCeará, Toulouse e o Fórum de Cinema Novo do Festival de Berlim. Mas os pernambucanos estavam apenas começando...



09 - “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (02) - A retomada do cinema brasileiro trouxe consigo velhos militantes, como Babenco e Cacá Diegues, mas fez um bem especial ao maior documentarista do mundo: Eduardo Coutinho. O autor do melhor documentário brasileiro de todos os tempos, “Cabra Marcado para Morrer”, engrena uma série de realizações essenciais para o gênero, que se redescobre pujante e capaz num Brasil plural após uma década de redemocratização. Coutinho inicia sua trajetória no então novo século com esta obra-prima, pautada como sempre por seu olhar investigativo e sensível, que dá espaço para o “filmado” sem impor-lhe uma pré-concepção. Afinal, para que, já que o próprio ato de filmar exprime esse posicionamento? Melhor doc em Gramado, Havana, Margarida de Prata, APCA e Mostra de SP.


10 - “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (03) - Já era de se esperar que o exímio roteirista e diretor gaúcho, que ajudou a dar novos padrões ao cinema de curtas e à televisão brasileira nos anos 90, chegasse inteiro quando rodasse seu primeiro longa. Não deu outra. Sucesso de bilheteria e crítica, com uma trama cativante, “O Homem...” resumo muito do que Furtado já evidenciava no cinema do Rio Grande do Sul (roteiro ágil e fora do óbvio, referências à cinema e literatura, universo pop, trato na direção de atores, cuidado na trilha) e adiciona a isso uma “brasilidade” que espantou – claro! – os próprios gaúchos, com o baiano e negro Lázaro Ramos protagonizando uma história na embranquecida Porto Alegre. Grande Prêmio Cinema Brasil, Havana, Montevidéu, APCA e outros. 



11 - “Estamira”, de Marcos Prado (04) - Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.


12 - “Tropa de Elite”, de José Padilha (07) - Já considerado um clássico, “Tropa” divide opiniões: é idolatrado e também taxado de fascista. O fato é que este é daqueles filmes que, se estiver passando na tela da TV, é melhor resistir aos 10 segundos de atenção, por que se não inevitavelmente se irá assisti-lo até o fim esteja no ponto em que estiver. O filme de Padilha une o cinema com assinatura e um apelo pop, o que rendeu ao longa mais de 14 milhões de espectadores e um dos personagens mais emblemáticos do nosso cinema, capitão Nascimento - encarnado por um brilhante Wagner -, comparável a Zé Pequeno de “Cidade”, Zé do Burro de “O Pagador de Promessas” e Getúlio de “Sargento Getúlio”. Consolidando o melhor momento do cinema nacional, a exemplo de “Central do Brasil” 10 anos antes, “Tropa” fatura Berlim.



13 - "Santiago",
de João Moreira Salles (07) - O atuante empresário e banqueiro João Moreira Salles, desde muito envolvido com cinema como o irmão Waltinho, já havia realizado aquele que poderia ser considerada a sua obra essencial, "Notícias de uma Guerra Particular", de 1999. Porém, foi quando ele voltou sua câmera para si próprio que acertou em cheio. Diz-se um olhar interior, porém, quebrando-se a "quarta parede" de forma incomum e subjetiva, uma vez que o personagem principal não é ele mesmo, mas o homem que dá título ao filme: o culto e enigmático mordomo espanhol da abastada família Salles, que cuidara dele e de seus irmãs na idílica infância. Misto de memória, confissão, resgate sentimental, registro antropológico e, claro, cinema em essência. A locução sóbria mas presente do irmão Fernando, a estética p&b, as referências ao cinema íntimo de Mizoguchi e as lembranças de um passado irrecuperável dão noção da força metalinguística que o filme carrega. 
Vários prêmios e presença nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abracine.



14 - “Estômago”, de Marcos Jorge (07) - Aquela expressão "conquistar pelo estômago" talvez não se adapte muito bem a este peculiar filme que junta suspense, drama, comédia e certa dose de escatologia. A abordagem dada por Marcos Jorge ao criativo roteiro justifica o título ao pautar as relações e as atitudes pelo instintivo, pelo animalesco. Assim, comida, sexo, sangue e poder se confundem, reelaborando a ideia de quem conquista quem. Por falar em conquista, aliás, o cineasta estreou emplacando o filme brasileiro mais premiado no Brasil e no exterior em 2008-2009, vencedor de 39 prêmios, sendo 16 internacionais.


15 - “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (07) - Um dos diversos ganhos do cinema brasileiro dos 00 foi a possibilidade de lançar um olhar renovado e compromissado sobre a história recente do País. Enquanto na esfera política se avançava com a criação da Comissão da Verdade, o cinema acompanhava este movimento politizador e brindava o público com obras dotadas de urgência, dentre estes muitos documentários, mas algumas ficções. O melhor resultado desta confluência é “Batismo”, fundamental filme sobre os frades dominicanos que se engajaram na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 60 no Brasil, entre eles, Frei Betto, autor do livro que inspira o longa. Dialogando com os corajosos mas necessariamente limitados "Brasil: Um Relato da Tortura" e "Pra Frente, Brasil", exibe tal e qual as sessões de tortura promovidas nos anos de chumbo. Mas isso seria limitar a obra: com excelentes atuações, é tenso, tocante e dramático sem perder o ritmo nunca. Melhor Diretor e Foto pro craque Lauro Escorel em Brasília.



16 - “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (07) - Assistir um filme como “A Casa” num país cuja produção cinematográfica por muitos anos se valeu de um olhar machista sobre a condição da mulher como foram as pornochanchadas é perceber que, enfim, evoluiu-se. A abordagem sensível aos detalhes e as atuações realistas (mais uma vez, Fátima Toledo e seu método) dão ao filme de Chico ares de cult, mais um dos exemplos estudados nas cadeiras de faculdades de cinema. Filhos, marido, lar, trabalho, mãe... tudo se reconfigura quando os “móveis” da casa começam a se desacomodar: o desejo sexual, a maturidade, a autorrealização. Por que não? A historicamente inferiorizada mulher de classe média, no Brasil anos 00 emancipa-se. Carla Ribas excepcional no papel principal, premiada no FestRio, Mostra de SP, Miami e Guadalajara.



17 - “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro (2007) - O cinema gaúcho da primeira década do novo século não se resumiu à entrada da turma da Casa de Cinema ao círculo de longas nacional. Surgiam novos talentos imbuídos de ideias ainda menos tradicionais e renovadoras, como Gustavo Spolidoro. Em seu primeiro e marcante longa ele capta a intensidade e a veracidade de uma Porto Alegre ainda "longe demais das capitais", mas que, como toda metrópole, não para - literalmente. O filme, um exercício ousado de plano-sequência, tem até em seus “erros” técnicos qualidades que o alçam a cult, influenciando outros realizadores como Beto Brant e cenas independentes de cinema noutros estados brasileiros. Melhor Filme em Milão e em Lima, que deu Melhor Ator (Roberto Oliveira), e Prêmio Destaque do Júri em Tiradentes. Sabe os oscarizados "Birdman" e "1917". feitos em plano-sequência? Pois é: devem a "Ainda Orangotangos" mesmo que não saibam.




18 - “Meu Nome não É Johnny”, de Mauro Lima (08) - Outra joia do cinema nacional, filme que melhor aproveita o versátil Selton, total condutor da narrativa ao interpretar o junkie “curtidor”, mas profundamente depressivo João Estrella. A história real de sexo, drogas e rock n roll (e tráfico também) remonta um período de curtição lisérgica da juventude classe média carioca dos anos 80, ora aventura, ora comédia, como a própria história mostra, envereda para o drama. Tudo na medida certa. Filme de sequências impagáveis, como a briga na cadeia com os africanos e a entrega de cocaína na repartição pública. Além de Miami, ABC, ACIE e outros, levou pra casa uma mala cheia no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.



19 - “O Mistério do Samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque (08) - O gênero documentário algumas vezes veste-se de pompas antropológicas. Como a âncora Marisa Monte diz no disco que produziu da Velha Guarda da Portela 9 anos antes deste filme, registrar a obra desses nobres artistas do subúrbio é perpetuar uma parte da cultura popular quase em extinção. Parecia premeditar que, nos anos seguintes ao filme, morreriam sete integrantes do grupo, todos de adiantada idade e vida dura, semelhantemente com o que ocorrera com os membros da banda de outro doc parecido em natureza e grandeza: "Buena Vista Social Club" (Win Wenders, 99). Na hora certa, a dupla de diretores conseguiu por suas câmeras a serviço de uma história cheia de poesia e que conta-se por si. Memoráveis cenas dos pagodes na quadra da escola, algumas das mais emocionantes do cinema brasileiro. Seleção oficial de Cannes e Grande Prêmio Vivo em 2009.



20 - “Linha de Passe”,
de Walter Salles Jr. (08) - 
Waltinho é, definitivamente, dos principais nomes do cinema brasileiro moderno. Responsável por manter o então raro alto nível da produção cinematográfica do Brasil nos anos 90, emplacando o cult “Terra Estrangeira” e o primeiro Urso de Ouro em Berlim do País com “Central do Brasil”, nos anos 2000 ele já havia chegado ao máximo que um cineasta pode alcançar: sucesso em Hollywood. Porém, a vontade de contar histórias de nobres pessoas comuns o faz voltar à terra natal para realizar essa linda trama coral, tocante e reveladora, abordando algo por incrível que pareça não tão recorrente nos enredos justo do cinema brasileiro: o futebol. Não levou Palma de Ouro, mas foi aplaudido por nove minutos durante o Festival de Cannes, além de ganhar o de melhor atriz pela atuação de Sandra Corveloni. Parte dos méritos vai pra Fátima Toledo, que aplica seu método ao elenco com alta assertividade.




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Como são muitos os marcantes filmes dos anos 2000, vão aí então, outros 20 títulos que merecem igual importância: 

"Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho (01); “Durval Discos”, de Anna Muylaert (02); “Querido Estranho”, de Ricardo Pinto e Silva (02); "Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (03); “De Passagem”, de Ricardo Elias (03); “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (03); “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (04); “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado (05); “2 Filhos de Francisco”, de Breno Teixeira (05); “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes (05);  “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado (05); “O Fim e o Princípio”, de Coutinho  (05); “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (06); “Depois Daquele Baile”, de Roberto Bontempo (06); “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis (06); “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (06); “Jogo de Cena”, de Coutinho (07); “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg (07);  “Proibido Proibir”, de Jorge Durán (07);  “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luiza Azevedo (09).

Daniel Rodrigues