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segunda-feira, 21 de julho de 2025

Talking Heads - “Little Creatures” (1985)


 
"Com o resto do mundo pop ainda se recuperando do brilhante 'Remain in Light', o que poderia ser mais subversivo do que um disco limpo e feliz?"
Rob Tannenbaum, para a revista Rolling Stone, em 1985

"É muito divertido poder relaxar e tocar sem sentir que você tem que ser vanguardista o tempo todo".
Tina Weymouth

Pode-se contar nos dedos o número de bandas ou artistas que chegaram ao seu sexto disco de forma irrepreensível. Afinal, isso subentende já se ter começado acertando. Nem os Beatles, oscilantes no início da discografia, ou a Kraftwerk, que levou quatro trabalhos para encontrar sua verdadeira sonoridade, ou mesmo Bob Dylan, cuja musicalidade e visceralidade poética começaram a valer de fato a partir de seu segundo, o clássico “The Freewheelin’ Bob Dylan”. Não é fácil entender a si próprio já no início da carreira a ponto de “estar pronto” no primeiro disco, bem como manter a qualidade nos trabalhos subsequentes e, mais ainda, evoluir.

A Talking Heads pode orgulhar-se de ser esse exemplo de banda. O que David Byrne, Tina Weimouth, Cris Frantz e Jerry Harrison construíram em termos de discografia perfaz esse caminho: um disco de estreia, “77” (1977), já dotado dos principais elementos da sua sonoridade, algo entre o punk nova-iorquino e a new wave; um segundo álbum de consolidação da mesma ideia e encontro com o produtor Brian Eno, “More Songs About Buildings and Food” (1978); um terceiro que avança sobre si mesmos e põe o pé na vanguarda, “Fear of Music” (1979); um quarto de recriação de identidade, “Remain in Light” (1980), pisando fortemente no terreno da world music; e, no quinto, a emancipação do grupo e o encontro com o pop de “Speaking in Tongues” (1983).

Todo esse percurso irretocável de Byrne e cia. faz com que eles cheguem a “Little Creatures”, de 1985, maduros, experientes e integralmente autorais. O resultado é, se não é o melhor disco da música pop dos anos 80, o crème de la crème da própria banda, que soube evoluir e se aperfeiçoar. Totalmente produzido pelos próprios integrantes, "Little..." é a cristalização de todas as experiências sonoras, estéticas e conceituais que souberam, como músicos inteligentes e antenados, recolher desde que formaram o grupo. Assim, o disco soa ao mesmo tempo pop, rock, world music, experimental e vanguarda, tudo de maneira muito fluida e amalgamada, numa sequência de faixas daquilo que se pode chamar de “perfect pop” do início ao fim do álbum.

A clássica “And She Was”, dos melhores hits da banda e também das melhores aberturas de disco deles (e da discografia oitentista), dá os ares num pop-rock alegre, melódico, saboroso. O marcante refrão (“The world was moving and she was right there with it (and she was)/ The world was moving she was floating above it (and she was) and she was”), cantado em coro, é evidente legado de Eno para a banda. O britânico, que produziu a trilogia “More Songs....”/“Fear...”/“Remain...”, trazia na bagagem a influência dos cantos africanos e arábicos, o que foi parar na sonoridade de músicas da Talking Heads, como já se via em “Born Under Punches” (“Remain...”) a “I Get Wild / Wild Gravity” (“Speaking...”). 

Por sua vez, Byrne, um dos mais inventivos e carismáticos artistas da sua geração, está excepcional nos vocais e como front man, assim como toda a banda, que atinge em “Little...” um nível técnico de excelência. Não é mais somente Tina a grande instrumentista do grupo: todos, com o auxílio da ótima produção musical, estão perfeitos. Tudo soa no lugar certo, na altura certa, na medida certa. As guitarras, outrora experimentais (“Fear...”, “More Songs...”) ou vanguardistas (“Remain...”), não se eximem desses exemplos e os adicionam ao contexto. O mesmo com a bateria. Se em “Speaking...” ela perde potência e no álbum subsequente se potencializa, em “Little...” está no meio termo, com o peso certo.

Esse equilíbrio, realizado sem perder identidade, é o que se vê em "Give Me Back My Name", que num primeiro momento lembra a atmosfera art rock de “Remain...” (“Houses In Motion”) e a densidade séria e introspectiva de "Warning Sing" ("More Songs...") ou "No Compassion" ("77"). No entanto, ela resulta num refrão novamente cantarolável e agradável, assim como “And...”.  Tina, por sua vez, não deixa por menos e mostra porque o baixo da Talking Heads é um diferencial estético da banda.

Byrne, que avançaria em sua penetração no universo folk norte-americano no disco seguinte da Talking Heads, “True Stories”, de 1986, já trazia essa ideia em "Creatures of Love", das mais bonitas do repertório. Romântico e cotidiano, esse country típico, com violão de cordas de aço, guitarra com pedal steel e levada simples, diz: “Uma mulher fez um homem/ Um homem fez uma casa/ E quando eles deitaram juntos/ Todos saem pequenas criaturas”. Além de uma bela e tocante canção, é a que traz o título do álbum em sua letra. Semelhanças com “People Like Us”, que Byrne comporia para “True...”, não são coincidência.

Maior sucesso do álbum, "The Lady Don't Mind" é, mais do que isso, um dos grandes hits de toda a música pop dos anos 80. Quem não cantarolou e se divertiu com os vocais de Byrne cantando: “Pee-pee-pee-pee/ Pee-pee-pee-pee/ Peeree-pee-pee-pee”? Mas, claro, “The Lady...” não é feita apenas melismas esquisitos: é um legítimo pop perfeito (mas com cara de Talking Heads). O riff, feito de dois acordes dissonantes de guitarra com tremolo, que se contrapõem por outros dois em notas da mesma escala, só que invertidas, é emblemático. A percussão latina de Steve Scales é outra marca da música, grande responsável pelas ótimas vendagens do disco. O excelente viodeoclipe dirigido pelo cineasta Jim Jarmusch, com cenas de Nova York em P&B e cromatismos e que rodava direto na MTV à época, é também impossível de se esquecer.

O clipe de "The Lady Don't Mind",
do cineasta Jim Jarmusch

O primeiro lado do vinil se encerra com outra linda e, com o perdão da redundância, perfeita: "Perfect World". Aliás, quiçá dotada do mais bonito refrão de todo o disco. Igualmente cantada em coro, diz os versos: “This is a perfect world/ I'm riding on an incline/ I'm staring in your face/ You'll photograph mine” (“Este é um mundo perfeito/ Estou subindo uma ladeira/ Estou olhando na sua face/ Você vai fotografar a minha”). A melodia é tão bonita (principalmente, no refrão), que chega a emocionar. E ainda conta com as percussões mágicas de Naná Vasconcellos, que abrilhanta a música.

Animada, "Stay Up Late", assim como “And...”, abre um dos lados do LP em alto-astral. Pode-se dizer que é um aperfeiçoamento, em termos melódicos e de produção, do que haviam feito em “Speaking...”, que se ressente do peso que “Stay...” tem, principalmente na bateria de Frantz, aqui bem funkeada. Mas não só: as guitarras ao estilo “percussivo” de Adrian Belew de “Remain...” estão também presentes, mas integradas e menos “étnicas”. Uma suavização, que dá ganho à faixa no contexto em que está inserida.

Já "Walk It Down", outra maravilha, traz a típica melodia estranha de uma banda que não se exime de ser assim. Nunca se eximiu, aliás, pois sempre foi o diferencial deles diante da secura da cena punk nova-iorquina da qual eles emergiram. Os teclados de Harrison são fundamentais na textura dada a essa faixa, que traz elementos do conceito de produção aprendidos com craques com quem trabalharam, como Eno e Toni Visconti. E assim como “Give...”, segunda do lado A, “Walk...” repete a fórmula: melodia mais densa, mas um refrão que dá vontade de entrar de backing vocal com eles batendo palmas em ritmo: “Walk it down/ Talk it down/ (oh, oh, oh) Sympathy. Luxury/ Somebody will take you there”.

Como toda grande banda, a Talking Heads sabe muito bem montar repertórios – a se ver, por exemplo, o excelente setlist do disco ao vivo “Stop Making Sense”, de um ano antes. Então, eles deixam para o final a parte que impacta no encerramento de uma obra. Nisso, "Television Man", não à toa a faixa mais longa do álbum, vem cumprir esse papel de (quase) fechar o trabalho com uma melodia preciosa, marcada pela bateria potente de Frantz e um riff bem sacado, cheio de inteligência musical. 

Os minutos a mais de “Television...” em relação aos outros números se justificam. Ah, e como se justificam! Pela metade da faixa, uma virada inesperada acontece. É quando entram as percussões brasileiríssimas de Scales e a canção se transforma. Byrne, como bem sabe fazer, eleva os ânimos e energiza o clima, puxando um coro feminino para repetir com ele um simples: “Na-na-na-na-na-na”. Metais, linha de teclados que se cruzam, guitarras percussivas, solo de guitarra: tudo que há em temas como “Crosseid and Painless” ou “The Great Curve”, de “Remain...”, mas agora reelaborados, mais pop. O que começa mais contido se encerra em ebulição. Se Byrne já ensaiava proximidade com a música brasileira, a qual ele consolidaria anos depois no encontro com Tom Zé, Caetano Veloso e com a música nordestina, essa semente está em “Television...”. Além disso, a música, com sua visão sobre a TV e a sociedade de consumo, também serviria de fonte para “True...”, projeto multimídia de Byrne que envolvia música, cinema e livro e de semelhante sucesso de crítica e público. 

A divertida contracapa do disco,
com a banda em trajes espalhafatosos

Faltava, no entanto, o desfecho. Bem que o disco poderia acabar com “Television...”, que não haveria perda alguma. Mas, como dito, eles entendem de narrativa musical. Para quem já finalizou discos anteriores de forma brilhante, como “Drugs” em “Fear...” ou “This Must Be The Place” em “Speaking...”, não haveriam de deixar por menos. Tanto que guardam para o final aquela que, possivelmente, seja a melhor música do vasto e assertivo cancioneiro da Talking Heads: "Road to Nowhere". 

Semelhante ao ritmo marchado de músicas mais antigas da banda, “Thank You For Sending Me An Angel”, de “More Songs...”, e “I Zimbra”, de “Fear...”, “Road...” adiciona algo que estas duas não tinham, que é um universo onírico e poético, como poucas vezes visto na música pop mundial. O começo é de estremecer quando as vozes em estilo gospel entram em uníssono e sem instrumentos, dizendo: “Bom, sabemos pra onde estamos indo/ Mas não sabemos onde estivemos/ E sabemos o que sabemos/ Mas não podemos dizer o que vimos/ E não somos criancinhas/ E sabemos o que queremos/ E o futuro é certo/ Nos dê tempo para entender”. É o prenúncio de uma impactante canção.

Aparece, então, a banda, como numa torrente sonora. Em um crescendo, a música fala sobre a humanidade, a qual “caminha a lugar nenhum” em busca... de amor. O clipe, dirigido pelo próprio Byrne em parceria com Stephen R. Johnson, transmite esse olhar humanista, que dominaria a temática de “True...” logo adiante. E isso sem deixar também de ser engraçado e performático, como nas cenas em que os membros da banda atuam ou na constante corrida sem sair do lugar de Byrne no canto inferior da tela. Profundamente inspirada, “Road...” traz essa mensagem otimista do mundo, intensificada pela instrumentalização, que vai se intensificando, inclusive pela adição do acordeom de Jimmy Macdonell e o washboard de Andrew "El Pantalones" Cader, literalmente uma tábua-de-lavar cujo uso musical é herdado da tradição folk norte-americana. Em êxtase, com um Byrne empolgado, coro intenso e banda contagiada, o último recado é dado, novamente somente com as vozes: “We're on a road to nowhere”. Linda, tocante, universal.

Completando 40 anos de seu lançamento, “Little...” é certamente o disco mais pop da Talking Heads. Pode não o preferido de todos os fãs, que invariavelmente mencionam outros como “True...”, “Remain...” e “Fear...”. Porém, é inegável que este trabalho sinteriza e reúne tudo que a banda fez e faria a partir de então. Além da capa brilhante, do artista outsider Howard Finster (melhor do ano pela Rolling Stone), “Little...” também foi eleito o álbum do ano pela Village Voice, semanário cultural alternativo mais tradicional de Nova York. Mais do que isso: é o disco de estúdio mais vendido da banda, com mais de dois milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos. Ao lado de outros discos memoráveis de 1985, “The Head on the Door”, da The Cure, e “Brothers in Arms”, da Dire Straits, “Little...” é o movimento de uma banda de origem rock, que adere ao pop sem danos à sua própria história. Poucos foram, entretanto, tão felizes como a Talking Heads nesse processo.

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FAIXAS:
1. "And She Was" – 3:36
2. "Give Me Back My Name" – 3:20
3. "Creatures of Love" – 4:12
4. "The Lady Don't Mind" (David Byrne/Chris Franz/Jerry Harrison/Tina Weymouth) – 4:03
5. "Perfect World" (David Byrne/Chris Franz) – 4:26
6. "Stay Up Late" – 3:51
7. "Walk It Down" – 4:42
8. "Television Man" – 6:10
9. "Road to Nowhere" – 4:19
Todas as composições de autoria de David Byrne, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 10 de junho de 2025

Arnaldo Antunes - Turnê "Novo Mundo" - Bar Opinião - Porto Alegre/RS (24/05/25)


Só havia visto Arnaldo Antunes no palco ao vivo há mais de 30 anos. Precisamente em 1992, quando este, ainda com os Titãs, veio a Porto Alegre para o show de “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, no Gigantinho. Aliás, ótimo show: enérgico, potente, performático, a cara dos Titãs e com direito a banda completa (Marcelo Frommer, um dos guitarristas, morto em 2001, ainda era vivo). Porém, um lance quase despercebido me chamou atenção. Quando Arnaldo, após sua vez de cantar, voltava do microfone principal, posicionado à frente do palco, ao seu microfone de backing vocal, que fica uma linha atrás, Paulo Miklos, comumente esfuziante àquela época, cumprimentou-o pela performance e propôs aquele “toca aqui” de mãos. Que Arnaldo, inerte, não retribuiu. Sem deixar a peteca cair, Miklos, ao ver que o colega não aderira ao entusiasmo, abraçou-o e o show, que já tinha outro vocalista em ação, prosseguiu sem percalços.

No entanto, a imagem ficou na minha memória: a de um Arnaldo contrariado. Profissional, entregando um bom show junto com a banda, mas contrariado. Pode se cogitar muita coisa, mas não é difícil de imaginar que já tivesse a ver com a saída dele dos Titãs, a qual ocorreria logo em seguida, visto que “Tudo...” foi seu último como integrante. O motivo do desligamento, uma bomba para a banda na época, foi que Arnaldo tinha outros projetos e interesses que não cabiam no contexto de uma banda com oito cabeças pensantes, oito pop stars. Interesses que passavam pela poesia, pelas artes visuais, pela dança e, claro, pela música. Arnaldo sentia-se preso ao formato que um conjunto de rock oferecia e que nunca iria dar vazão a seus anseios artísticos e pessoais.

Corta para maio de 2025. 33 anos depois daquele show no Gigantinho e depois de várias vindas a Porto Alegre, Arnaldo Antunes retorna à cidade com sua própria banda para a turnê do seu novo disco, “Novo Mundo”, 14º de uma hoje consolidada carreira solo iniciada logo após aquela apresentação ainda como titã. O que se vê, da coreografia vanguardista característica e do tradicional figurino longilíneo à liberdade no palco, é um artista íntegro e contente consigo mesmo. Algo que transparece, obviamente, para o público, que não superlotou, mas encheu o bar Opinião, cantando e dançando com ele. Hoje maduro e experiente artisticamente, Arnaldo mostra sentir-se à vontade com sua obra, seja ela da carreira solo, a dos livros, a das artes visuais ou a de projetos como Tribalistas, Banda Performática, Pequeno Cidadão e, claro, os Titãs.

A ótima iluminação pondo
Arnaldo num cone de luzes
Muito bem iluminado e dirigido, o show começa com a excelente faixa-título, cuja letra fala desta sociedade atual impermanente e superficial (“Bem-vindo ano novo mundo/ Que vai se desintegrar no próximo segundo”). Como Arnaldo ainda continua sabendo criar boas “músicas de trabalho”! Canções que encerram seu jeito concretista de escrever letra e compor melodias, mas trazendo uma pegada pop, ao estilo de “Saia de Mim” e “Lugar Nenhum”. Grande música. Do novo disco, ouviu-se quase todas de forma entremeada com sucessos e clássicos da carreira. Também novas, “O Amor é a Droga mais Forte”, “Tanta Pressa Pra Quê?”, “Viu, Mãe?” (parceria com Erasmo Carlos), “Acordarei” e “É Primeiro de Janeiro”. Dessa leva se destaca o iê iê iê moderno “Pra Não Falar Mal”, que cita um dos cantos do “Tao-Te King”, Lao Tzu (“Pureza e quietude são o padrão de medida do mundo”). O sangue titã ainda corre nas veias de Arnaldo. 

Outra excelente é a eletropunk “Tire o seu Passado da Frente”, em que o arranjo engendrado com a banda do show – e do disco – merece um destaque à parte. Afinal, tratam-se de Vitor Araújo (teclados e piano), Betão Aguiar (baixo), a cabeça da heavy-nagô Metá Metá Kiko Dinucci (guitarras, violões e efeitos eletrônicos) e o cara que revolucionou o som já revolucionário da Nação Zumbi, Pupillo (baterista e também produtor de “Novo Mundo”).

Com essa turma, Arnaldo concebe ótimas versões de canções mais antigas de seu repertório, tal “Sem Você”, gravada por Carlinhos Brown, e o reggae “Cultura”, lá do seu primeiro álbum solo, “Nome”, que virou o dub viajandão. Também tiveram os hits, casos de “Passe em Casa” e “Já Sei Namorar”, ambas dos Tribalistas, e a maravilhosa "Pulso", dos Titãs. Ainda rolaram as emocionantes “Socorro”, um de seus maiores sucessos da carreira solo (“Socorro, não estou sentindo nada/ Nem medo, nem calor, nem fogo/ Não vai dar mais pra chorar/ Nem pra rir”), e “Debaixo D’Água”, interpretada originalmente por Maria Bethânia.

trecho da clássica "Pulso", do repertório dos Titãs

Mas Arnaldo surpreende ainda mais com a nova “Body/Corpo”, samba malucão e uma das parcerias com um dos maiores nomes da música pop de todos os tempos: o talking head David Byrne (a outra é a boa “Não Dá pra Ficar Aí Parado na Porta”). Um encontro de pares, afinal ambos têm muito a ver um com o outro. Arnaldo sempre se espelhou na performance de palco espalhafatosa e cênica de Byrne, bem como foi um dos principais responsáveis por introduzir nos Titãs elementos da sonoridade da Talking Heads – veja-se, por exemplo, a música “Medo”, de “Õ Blésq Blom” e cantada por Arnaldo, claramente inspirada em “Fear of Music”, dos nova-iorquinos (“precisa perder o medo da música”). Por outro lado, Byrne, um verdadeiro esteta da world music, de muito vem acessando e introjetando os sons brasileiros. “Body/Corpo”, no entanto, mais do que um teoria, funciona muito bem na prática, sendo possível ouvir a musicalidade de um e de outro neste quase-samba quase-rock. Vendo Arnaldo cantando e dançando-a no palco faz a gente se perguntar: “como que esse encontro dele com Byrne não havia acontecido antes?”

A excelente "Body/Corpo", Arnaldo e Byrne juntos

No bis, uma vibrante versão de “Fora de Si”, do seu segundo disco, “Ninguém”, e conhecida por integrar a trilha sonora do filme “Bicho de 7 Cabeças”, e a irresistível “Comida”, que, não precisa nem dizer: pôs o Opinião abaixo. Um belo show, que confirma, tantos anos depois da traumática saída dos Titãs, o porquê da mudança de rota de Arnaldo, um artista que sempre soube o que queria fazer – e faz. Afinal, diferentemente daquele show do Gigantinho, que talvez poucos além de mim tenham visto o discreto episódio do abraço não retribuído com Paulo Miklos, havia um Arnaldo inteiro e feliz no palco. E isso todo mundo viu.

**********

Arnaldo e sua excepcional banda

Arnaldo super à vontade no palco
 
 
Mais show rolando


Momento especial em que muda o figurino 
para cantar "Debaixo D'Água"

Alta vibração no palco do Opinião

Performático como sempre


Mais um pouco da performance de Arnaldo,
aqui em "Sem Você"



A fantástica "Comida", melhor música 
para encerrar o show


Arnaldo e banda se despedem depois de um grande show



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues Leocádia Costa

quarta-feira, 18 de maio de 2022

Música da Cabeça - Programa #267

 

quantas vezes teremos que levantar o nosso punho em combate ao racismo? quantas vezes forem necessárias, e por isso o mdc de hoje resiste. na luta com a gente, tem os mulheres negras, pink floyd, djonga, madonna, nick drake e mais. ainda, os quadros fixos e um sete-list pra celebrar os 70 anos de david byrne. dentro ou fora dos gramados, o programa hoje entra fardado de igualdade e respeito às 21h na combativa rádio elétrica. produção, apresentação e #fogonosracistas: daniel rodrigues.



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

"Histórias Reais", de David Byrne (1988)

 

O Olho de Fora

Não é de hoje que, às vezes, a visão do estrangeiro me diz mais do que a do nativo. Ofuscado pela cotidianidade, o vivente local comumente não se apercebe de elementos básicos daquilo que ele mesmo é. “Cego de tanto vê-la”, como disse o poeta. O forasteiro, como uma folha em branco, está livre para ser escrito, rabiscado, rasurado, e sem que se trace por cima de escritas já grafadas. Tal como as tatuagens de Nagiko, de “O Livro de Cabeceira”, de Peter Greenaway (1996), seu corpo serve, agora, de página para algo novo que se inscreva, em letras de novíssimos significados. Essa visão de fora, no cinema, é, igualmente, a ferramenta para que algumas obras incomuns sejam criadas. É o caso de “Histórias Reais” (True Stories, EUA-1988), a bem sucedida experiência audiovisual do músico – e estrangeiro – David Byrne.

O escritor e viajante francês François Chateaubrinad, em seu “Voyage en Italie”, disse que “cada homem traz em si um mundo composto de tudo o que viu e amou, e onde ele entra em permanência, ao mesmo tempo em que percorre e parece habitar um mundo estrangeiro”.  Tão peregrino quanto, o escocês David Byrne escreveu e conduziu “Histórias Reais”, um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas, na verdade, carregado de perspicácia. E essa visão própria está diretamente ligada à relação emocional do autor com o seu lugar, daquilo “tudo o que viu e amou.”

Byrne: narrador e personagem quebrando a "4ª parede"

Na obra de Byrne, o cenário ideológico representa mais do que uma cidade, mas os Estados Unidos como um todo, país que lhe acolheu e com o qual é tão identificado desde os tempos da geração punk nova-iorquina dos anos 70, da qual ele foi um dos principais atores à frente da lendária banda Talking Heads.  A solução encontrada por ele para representar a amplitude de uma nação toda em um único espaço físico foi a de inventar uma cidade fictícia, a extravagante Virgil, onde a história transcorre. Nela, o diretor-viajante (Narrador, como é chamado), encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter esta localidade do Texas em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde encontra diversos personagens hilários, entre eles a Mulher Mais Preguiçosa do Mundo e o solteirão Louis Fyne (o sempre excelente John Goodman) à procura de casamento e da realização como artista.

Figurinos e cenários kitsch:
o americano médio no centro
No filme, há dois enfoques que se complementam. O primeiro deles é um simpático mundo de fantasia, o que ironiza o próprio título. Byrne lança um olhar generoso sobre atitudes e pensares do povo daquele país que, talvez, para outro mais enfezado, seriam abertamente criticáveis, como o excesso de imagens publicitárias, o deslumbramento com os avanços tecnológicos ou a intenção de serem, eles, os “americanos”, espelho para o planeta. Cenas lúdicas, como as atrações de palco, o ventríloquo e os grupos de dança reforçam essa percepção. O figurino, de maquiagens carregadas, cabelos volumosos de laquê e as roupas e os cenários kitsch, explorando formas e cores berrantes, mostram o quanto a arte cenográfica, assinada por Lucinda Cowell, foi trabalhada para realçar esses aspectos.

Por outro lado, o filme revela belezas escondidas. E o faz muito bem. Com um olho atilado e sensível, Byrne enxerga, por exemplo, as tradicionais casas ao estilo norte-americano (tão comumente filmadas em centenas de outros filmes) nos planos gerais em travelling, aqui enquadrados não só com a câmera, mas também com a alma. A cena final na estrada de terra que se perde ao infinito, igualmente, é de pura poesia, visual e conceitualmente.

A emocionante cena das casas sob o olhar do estrangeiro Byrne

A fotografia do competente Ed Lachman (que se tornaria diretor mais tarde, fazendo, entre outros títulos, o ótimo “Ken Park”, de 2002) se encaixa na medida certa para as intenções do filme, tanto nas composições propositadamente artificiais, nas cenas em que Byrne aparece dirigindo pela estrada ou no vídeo de “Love For Sale” (que funcionou perfeitamente como clipe na MTV), como nas imagens naturais, a ver os lindos enquadramentos em grande plano da paisagem horizontalizada do deserto norte-americano, lembrando, sem medo da comparação, “Paris, Texas” (Win Wenders, ALE-EUA, 1984). Lachman também acerta no tom da exacerbação cenográfica proposta por Byrne, quando capta, dentro daquele emaranhado de imagens publicitárias, diversos formatos e tipos de telas de vídeo, provocando uma interessante profusão de superenquadramentos. Ideia esta, assim como as tonalidades cromáticas fortes, visivelmente aprendida por Byrne com o cinema novo alemão (movimento do qual Wenders  originou-se) e do cineasta americano Jonatham Demme, diretor de vários clipes do Talking Heads.

Superrnquadramento de "Histórias...", à esq., e de "Paris, Texas" ao lado: Byrne se inspira em Wenders

Filme de músico, “Histórias Reais” tem ótimas músicas, é costurado por música, mas não é, a rigor, um musical. Conceitual, “Histórias Reais” é um dos produtos de um projeto multimídia – pouco comum à indústria de entretenimento naqueles anos 80 – lançado simultaneamente em outros dois formatos: livro, um book de trabalhos fotográficos com imagens captadas para o filme, e LP, um dos melhores do Talking Heads.  Aliás, na minha percepção de fã da banda, “True Stories”, o disco, de princípio, mesmo com os grandes hits “Love for Sale” e “Wild Wild Life”, não me impressionava tanto quanto outros do grupo. Porém, sua audição passou a me fazer mais sentido e, consequentemente, a gostá-lo mais, depois de assistir a sua “versão” audiovisual.

Pelo viés da música, Byrne – já premiado anteriormente como diretor de videoclipes de sua banda – mostra domínio ao explorar todos os níveis narrativos de um filme musical. Ele se utiliza da trilha diegética, como na divertida cena de “Wild Wild Life”, expediente bastante usado nos musicais em que a música e a dança provocam um distanciamento da realidade para criar um universo próprio dentro daquele instante em que ocorre a performance. Em outro momento, usa também a não-diegese, como na apresentação na igreja em que há uma banda inteira executando a peça como se fosse ao vivo, integrando totalmente a música ao ato narrativo. Byrne também se vale da mistura dos dois extremos, como na sequência das crianças percutindo latas e cantando na rua a caribenha “Hey Now”.

O clássico clipe de "Wild Wild Life": cinema, a TV e a vídeo-arte

“Histórias Reais”, contudo, intenta ir além do musical. E vai. A constatação é um tanto preconceituosa, confesso, mas resisto um pouco a este gênero. Claro que existem grandes realizações nesse estilo ao longo da história do cinema; estão aí para provar “O Mágico de Oz” (Victor Fleming, EUA-1939) e o balé “Sapatinhos Vermelhos” (Michael Powell e Emeric Pressburger, ING-1948). Mas em geral incomoda-me aquela artificialidade da transição diálogo-performance, nem sempre justificável, nem sempre coerente. E até me irrita, em alguns casos, a forçada conversão do texto em canto quando a mesma poderia funcionar muito bem em uma simples fala coloquial. Pergunto-me: para que todo aquele contorcionismo para dizer um corriqueiro “bom dia”? “Hair” (Milos Forman, EUA-1979), por exemplo, me enjoa. Os que mais me agradam nesta linha são, justamente, aqueles que, de alguma forma, burlam o padrão do musical de Aistaire ou Kelly. De atmosfera onírica, cada um a seu modo, “Dançando no Escuro” (Lars von Trier, DIN/FRA/EUA -2000) e "Brasil Ano 2000" (Walter Lima Jr., BRA-1969) são exemplos felizes de reapropriação do elemento música dentro do contexto fílmico.

Não tão radical, “Histórias Reais” se situa entre um estilo – o clássico hollywoodiano – e outro – o do cinema moderno –, visto que é bastante palatável como o cinema comercial, porém, agregando aspectos de outras linguagens, como a publicidade e a vídeo-arte. 

Fotografia valorizando o esverdeado
luminoso, típico dos filmes de Demme
e do cinema novo alemão
Entretanto, o que se destaca mesmo é o seu caráter documental. Byrne faz as vezes de um antropólogo, de um Chateaubriand, sendo objeto e observador ao mesmo tempo. Sua narração, com sentenças didáticas e engraçadas de tão óbvias, parece pretender relatar o que todo mundo sabe: que os Estados Unidos têm uma gente feliz; que são altamente tecnológicos; que o capitalismo triunfou; que vivemos imersos na era da informação e da imagem. Parece um roteiro extraído de um livro que se chamaria “United States for Dummies”. Porém, é na aparente obviedade que está a sacada: nunca ninguém (pelo menos, não um americano) se atreveu a (ou pensou em) mostrar os Estados Unidos tão cruamente, o que faz o espectador, pelo choque provocado, refletir dada a simplicidade (até simploriedade!) de como as coisas são mostradas. Leva-nos a questionar a veracidade desses mitos difundidos mundo afora, principalmente após a II Guerra. Não fosse o lado estrangeiro de Byrne, esse distanciamento crítico não seria possível. Às vezes, só a visão de fora consegue captar o que está dentro. Tanto que, no início do filme, há uma cena em que, antes de começar a história em si, ele, Narrador, entra na tela, reforçando essa ideia.

A era pós-11 de Setembro evidenciou ao mundo a crise moral e política a qual os Estados Unidos vinham alimentando há décadas, a começar pelo período de governo Reagan, da época em que "Histórias Reais" foi rodado. Mas e os dentes brancos da propaganda do creme dental? E as admiráveis engenhocas da tecnologia moderna? Ainda nos dizem alguma coisa? O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi no alvo quando escreveu: “esta grande civilização ocidental, criadora das maravilhas de que desfrutamos, certamente não conseguiu produzi-las sem contrapartida”. A ilusão que o filme de Byrne quase carinhosamente identificava sem apontar o dedo, a geração de cineastas como Michael Moore e Charles Ferguson cresceu para poder, hoje, com propriedade e direito, arregaçar as próprias feridas. De fato, parte da sociedade descobriu, um tanto tarde, que o Super-Homem jamais existiu a não ser nos quadrinhos, e que todos são de carne e osso, eles e os outros. “People Like Us”, sintetiza uma das músicas da trilha. Como diz naquele texto de Caetano Veloso: “Americanos não são americanos. São os velhos homens humanos chegando, passando, atravessando. São tipicamente americanos.”

"People Like Us", da Talking Heads: uma tradução do filme


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Música da Cabeça - Programa #52



Bastou uma andadinha de bike por Porto Alegre para o olhar aguçado de David Byrne, que esteve na cidade fazendo show, perceber aquilo que os nativos veem todos os dias: que é uma “cidade inacabada”. Sobre isso e outras coisas vamos falar no Música da Cabeça desta quarta. Teremos, como sempre, muita música, como Pearl JamMilton "Bituca" Nascinemto e Neil Young. Além disso, “Palavra, Lê” em homenagem a Cazuza, que estaria completando 60 anos se vivo, e um “Sete-List” revivendo as músicas que contaram contra a Ditadura Militar no Brasil. Tá combinado, então? Hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Não perde!



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Talking Heads - "77" (1977)

Um disco simples, mas com a marca Talking Heads
por Michel Pozzebon*




"Há algo essencial sobre
perder o controle sobre o que você faz"
Tina Weymouth




Há 40 anos, o Talking Heads uma das bandas mais emblemáticas de todos os tempos, apresentava seu disco de estreia, "Talking Heads: 77". O álbum trouxe as músicas idiossincráticas da banda nova-iorquina para um público mais amplo.  
"Há algo essencial sobre perder o controle sobre o que você faz", comentou a baixista Tina Weymouth sobre o disco de estreia para a revista norte-americana Rolling Stone em 1977. E, enquanto o Talking Heads certamente levaria essas palavras ao coração de sua carreira eclética e visionária, seu debut álbum é, em retrospecto, um tanto manso e direto em comparação com os "experimentos" que viriam na sequência da sua valorosa discografia.
Do ponto de vista musical, "Talking Heads: 77" é o esforço mais conciso e linear da banda, estabelecendo a interação das guitarras de Jerry Harrison e David Byrne, os blocky rhythms de Tina Weymouth com a bateria de Chris Frantz, e a presença marcante de Byrne como frontman, aparecendo com sua "soluçante voz de robô" e as palavras de um "impressionista paranoico" e de "olhos arregalados".
"Talking Heads: 77" é um álbum básico, simples. Um dos exemplos é "Tentative Decisions", faixa número 3 do lado A. A canção representa um dos momentos mais simplórios da banda. Nesta fase inicial, o quarteto nova-iorquino ainda não havia descoberto o funk, as tape loops e os colaboradores "aventureiros" como Brian Eno, que traria posteriormente toda a sua energia para o grupo.
Apesar de simples, o debut álbum do Talking Heads traz uma intensidade bruta e manchada. O trabalho é um registro distinto no catálogo dos nova-iorquinos e nele estão pérolas negligenciadas como "Who Is It?" e "New Feeling".
O poderoso grito de David Byrne ainda era um ponto difícil para os puristas do pop. Porém, é um ingrediente essencial para a magia de seu único "surto de surpresa" no disco de estreia, a clássica "Psycho Killer". Um hit "ameaçador", ainda que despreocupado.
O primeiro álbum, de certa forma, começava a "apimentar" o som do Talking Heads. Seja o piano gospel em "Happy Day" ou a guitarra vertiginosa e florescente em "Pullep Up".
Mesmo que o Talking Heads se movesse para coisas maiores e melhores após esse álbum, "77" segue sendo um ponto de entrada essencial e absolutamente fascinante para uma das bandas mais destemidas do rock em todos os tempos.

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FAIXAS:
1. "Uh-Oh, Love Comes to Town" – 2:48
2. "New Feeling" – 3:09
3. "Tentative Decisions" – 3:04
4. "Happy Day" – 3:55
5. "Who Is It?" – 1:41
6. "No Compassion" – 4:47
7. "The Book I Read" – 4:06
8. "Don't Worry About the Government" – 3:00
9. "First Week/Last Week ... Carefree" – 3:19
10. "Psycho Killer" (Byrne, Chris Frantz, Tina Weymouth) – 4:19
11. "Pulled Up" – 4:29
todas as faixas, David Byrne, exceto a indicada.

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OUÇA O DISCO





Michel Pozzebon jornalista gaúcho, é atualmente editor-executivo do blog Zine Musical (www.zinemusical.wordpress.com) e repórter do Jornal Exclusivo, publicação do Grupo Editorial Sinos especializada no setor calçadista. Foi blogueiro da Rádio Globo FM e atuou como editor e repórter do site da Rádio União FM e portal especializado em música eletrônica Fly By Night. Tem passagens por assessorias de imprensa do poder público (Prefeitura de Novo Hamburgo/RS) e de instituições de ensino (Universidade Feevale e Instituto de Educação Ivoti).