Por um bom tempo, parecia que os memoráveis especiais de música
infantil da Globo, os quais geralmente viravam LP’s de grande sucesso de
público e vendas, tinham terminado. Do final dos anos 80 até a entrada do
século XXI, estes ricos especiais como "A Arca de Noé" ou “Pirlimpimpim” sumiram
das telas e das lojas – à exceção de “Castelo Rá-Tim-Bum”, único resistente dos
anos 90. No mesmo período, não tão coincidentemente assim, os pequenos passaram
a ficar cada vez mais emburrecidos pela computadorização limitadora do conteúdo
educativo-cultural, desassistidos pelo desleixo das escolas e perdidos entre a
superproteção e o desinteresse da “nova família” brasileira de classe média.
Espaço para a criatividade, para o exercício do lúdico, para a valorização das
coisas bonitas da vida – amigos, família, natureza, arte – restaram
escanteados. Para que lançar produtos que elevam essas coisas “do passado”, já
que não tem consumidor para tal? Resultado: desvalorização e consequente
idiotização da criança.
A salvação veio a pouco mais de 10 anos pelas mãos dos paulistas da
geração anos 80 – alguns dos responsáveis por, na minha infância/adolescência,
fazerem-me aprender a gostar de música. São eles os criadores de um dos
melhores exemplos de uma nova visão da condição infantil: “Pequeno Cidadão”. Desde este primeiro CD do conjunto, lançado em
2009, reúnem pais músicos e “mais um monte de filhos”, como eles mesmos dizem.
Os protagonistas são alguns dos principais nomes da música brasileira daquela
década para cá: o ex-TitãArnaldo Antunes, o cabeça do Ira!Edgar Scandurra, a ex-Gang 90 Ticiana
Barros e o multi-instrumentista Antonio
Pinto (autor de várias e ótimas trilhas sonoras de filmes como “Cidade de
Deus”, “Central do Brasil” e “Colateral”).
O grupo faz um som baseado no rock mas que investe também na psicodelia
e nos ritmos brasileiros, passando pelo pop, funk e eletrônico. Conceitualmente,
“Pequeno Cidadão” encerra a ideia de uma educação infanto-juvenil comprometida
com o ser humano e com o planeta, sem perder o lado legal da brincadeira e da modernidade
– ou seja, sem deixar esse “comprometimento” virar uma coisa chata e somente pró-forma.
As músicas trazem como temas coisas normais (ou que deveriam ser normais) do
universo infantil: alegrias, dúvidas, bichos, desafios, tristezas e aquilo que
move a todos (ou deveria mover): amor. Afinal, criança não precisa de música
bobinha: ela pode muito bem curtir um rock
‘n’ roll com poesia que lhe faça pensar. Multiplataforma e ativo, “Pequeno
Cidadão” é, no entanto, mais do que apenas só música: o projeto conta com um
segundo CD (2012), um precioso DVD de animações de todas as faixas do primeiro
volume e quatro livros temáticos, além de jornal online e várias ações
culturais que promovem em São Paulo. Tudo com ilustrações de Jimmy Leroy, que
dá uma assinatura plástica muito peculiar em todos os materiais.
Uma das lindas artes de Jimmy Leroy.
Pontapé inicial do projeto, este CD começa pela faixa que lhe dá nome e
que, de certa forma, o sintetiza, pois expressa a ideia de formar uma criança
com responsabilidades mas a deixando ser aquilo que ela é: criança. E como Vinícius de Moraes ensinou: não duvidando da inteligência delas. Arnaldo, acostumado a escrever para esse público desde os Titãs, pratica isso se valendo de figuras
de linguagem como anáforas, repetições no início de cada frase, e,
principalmente, de anástrofes – e aí está já uma das sacadas pedagógicas da
turma: mostrar para a criança a riqueza da língua portuguesa. A anástrofe é um
caso especial dentro de nossa gramática, pois usa a inversão de maneira
incomum: trocando sujeito e predicado, surpreende com a lógica que forma. Na
letra, tudo que é brincadeira vira dever e vice-versa, estabelecendo uma dialética
de correlação e não de condicionamento entre ambos. Por exemplo, o verso “Agora pode fazer a lição” ganha sentido
de um consenso entre pais e filhos e não de obrigação como geralmente se
entende daquilo que não é diversão. Em contrapartida, “Agora tem que jogar videogame” passa a ter a ideia de um convite à
brincadeira, rejeitando o famigerado “tenke”
imposto pelos mais velhos. Além de tudo, a música é um rock embalado e
pegajoso, cujo gostoso refrão o resume clara e brilhantemente: “É sinal de educação/ Fazer sua obrigação/
Para ter o seu direito de pequeno cidadão”.
Antonio Pinto, coautor da primeira faixa, assina com Ticiana uma das
mais lindas canções (infantis? De amor? Da música brasileira deste século?) do
álbum: “O Sol e a Lua”. A música emociona a mim e a muitas pessoas que conheço,
sejam crianças ou adultos. É um pop-rock cantado por ele e por um dos meninos,
além do coro das crianças no refrão e das recitações na voz grave de Arnaldo. Voltada
para os mais crescidinhos, fala sobre um acontecimento que ocorre com todo
mundo na pré-adolescência: o amor não retribuído, aqui personificando nos dois
astros. Apaixonado, o Sol pediu a Lua em casamento e disse que lhe amava há
muito tempo, mas a Lua respondeu que seu coração não pertencia a ninguém, pois ela
só servia para inspirar os casais, “dos
grandes poetas aos mais normais”. O Astro-Rei, claro, ficou na fossa. Desesperado,
foi pedir ajuda até para o Vento, que, apressado, nem parou para lhe escutar.
Foi então que: “O Sol sem saber mais o
que fazer/ Tanto amor pra dar/ E começou a chorar/ E a derreter/ E começou a
chover, e a molhar/ E a escurecer”. E não é assim mesmo que nos sentimos
quando ficamos tristes por amor: derretidos e sem brilho? No final, o consolo
dito na delicadeza da voz infantil: “Se a
Lua não te quer, tudo bem/ Você é lindo, cara/ E seu brilho vai muito mais
além/ Um dia você vai encontrar alguém que com certeza vai te amar também”.
Poesia da maior singeleza.
A doce canção de ninar “Meu Anjinho”, de Ticiana (“E aqui dentro/ no escurinho/ nos braços desta canção/ vou te ninar...”),
se alinha à outra das ótimas do disco, o gostoso xote “Leitinho”, a qual traz a
mensagem de que “um leitinho é muito bom”
pro bebê e pros pais, pois, depois, vem aquele compensador “soninho” que
descansa toda a família. Impossível não lembrar-me de uma vez com minha
sobrinha Luna ainda pequena, com pouco mais de um ano, quando cantei essa
música para ela, sabendo que gostava e que seu pai, meu irmão, costumava cantar-lhe
e pô-la para ouvirem. A surpresa pura que ela ficou quando identificou que era
a mesma música que o papai cantava foi engraçado e emocionante.
A funkeada “O ‘X’” e a agitada “Sobe Desce” são pura diversão, duas
brincadeiras com palavras, letras e suas sonoridades. Mais pedagógica e
profunda é “Tchau, Chupeta” (de Ticiana e Arnaldo), que versa sobre uma das
maiores revoluções pessoais pela qual o passamos na infância: o momento de
largar o bico. O complexo tema, que especialistas há muito discutem – os
limites da chamada “fase oral” e a troca (nem sempre exitosa) de um substituto
simbólico do seio materno –, é colocado de uma forma absolutamente poética e
lúdica, propondo à criança nesse necessário rompimento o desapego em nome de
uma nova fase de vida. “Todo mundo tem
seu tempo de mamar”, diz um dos versos. Graciosa, a letra lança várias
suposições de forma a demonstrar à criança que a chupeta não combina mais com
alguém que não é mais neném: “Já pensou
uma mãe chupando chupeta?/ Já pensou um pai chupando chupeta?/ E uma vó de bobs
e chupeta?/ E um vovô de bengala e chupeta?”. E a proposta para deixar a
tal peta? Libertar-se dela jogando-a no mar para, enfim, poder cantar “sem uma tampa de borracha pra atrapalhar”.
O assunto é tão importante e passível de desdobramentos que virou um dos livros
do projeto, de 2011 (Ed. Leya).
A banda Pequeno Cidadão, com os grandes e os baixinhos.
O tom educativo segue de outras formas. Tem as ecológicas “O Uirapuru”,
bossa-nova que remete à “Passaredo”, de Chico Buarque, e a “Passarim”, de Tom Jobim, revelando a beleza linguística quase despercebida pelos brasileiros do
tupi-guarani; e “Sapo-Boi”, um divertido rock
‘n’ roll urbano de Scandurra cantado por seu filho Lucas: “Se eu fosse o prefeito aqui da capital/
Pegava o sapo-boi e espalhava pela marginal (...)/ A dengue não passa de um mês/
pois o mosquito é o prato da vez”. Por falar em bichos, a punk-rock “Larga a Lagartixa”, além de
ser mais uma quebra de paradigma – afinal, é saudável criança também gostar de
barulho –, é igualmente educativa, uma vez que a frase principal, dita da forma
acelerada para acompanhar o ritmo frenético, torna-se um trava-línguas, bom
exercício para a garotada treinar a dicção.
Outra das mais queridas do disco é "Bonequinha do Papai", a qual minha
sobrinha Luna gosta até hoje. Tecno
bem dançante, põe a meninada na pista! Alem do mais, seu premiado videoclipe, algo
como um retrô-futurista com desenhos estilo anos 20 (mas com uma animação
dinâmica e moderna), é uma verdadeira obra-de-arte, o qual assisti pela
primeira vez no Dia Internacional da Animação, em 2010.
Mas, claro, não podia faltar o futebol, esporte tão gostado no Brasil e
praticado por meninos e meninas. Identifico-me com as duas faixas que tratam desse
tema por trazerem-me lembranças de tempos passados. A primeira é mais uma bossa-nova:
“Futezinho na Escola”, motivadora de outro dos livros do projeto, “1 drible, 2
dribles, 3 dribles — A história do futebol e outras informações interessantes”,
de Marcelo Rubens Paiva (Companhia das Letrinhas, 2014). Nela, Scandurra aborda
o que a mim era um corriqueiro hábito no 1º Grau: bater uma bola com os colegas
na cancha da escola antes de começar os estudos. A letra descreve com muita
sensibilidade as sensações e a dinâmica de um jogo: “O último lance, vâmo logo, passa a bola/ Recebi, quase perdi pro
ladrão que eu nem vi/ Chegou primeiro pedalei e passei/ Chegou o segundo e eu
também driblei/ Veio o terceiro e eu fiz uma tabela/ Tô livre parceiro, vou
chutar de trivela/ É gol!”. Mas tem a hora do divertimento e a do dever. Acaba-se
o jogo rapidinho, pois agora é preciso correr para ir a outro compromisso: a
aula de português.
Tratando ainda do esporte bretão e fechando o disco, "Carrinho por Trás" é mais uma de Scandurra e novamente um samba. Neste caso, um partido-alto. Com
uma pegada carioca e eletrônica, faz-me recordar de outra época, esta, da
adolescência, quando jogávamos nos campos de várzea com nosso time de amigos, a
Juventus. O universo das peladas é muito bem captado pelo compositor, que pega
como mote um dos polêmicos lances que acontecem nas partidas: o carrinho
(segundo a definição de Rubens Paiva, extraída do livro: “o jogador se lança no gramado e, deslizando pelo chão, tenta tirar a
bola do adversário, arremessando os pés na direção dele.”). Como pode
acarretar em uma jogada violenta, o carrinho é mal visto, ainda mais que nem
todo jogador tem boas intenções e nem todo zagueiro tem habilidade para
executá-lo. Eu, da posição, tenho lá minhas dificuldades, confesso. Porém, a
canção fala sobre um defensor que entende do negócio: “O carrinho é perigoso/ No mínimo um tanto suspeito/ Mas se você acerta
na bola/ É aplaudido com muito respeito”. João Nogueira merecia estar vivo
para gravar essa música. Como extra, ainda tem “Pererê”, com participação do
cartunista e escritor Ziraldo declamando um texto seu.
Ao escutar uma obra como essa, fica a sensação de que nem tudo está
perdido no que se refere a conteúdo cultural para criança. Afora “Pequeno
Cidadão”, outro projeto da mesma época, Adriana Partimpim, da cantora e
compositora Adriana Calcanhoto, também teve continuidade e conquistou o
público. No meu círculo, percebo, inclusive, que não são poucas as crianças que
gostam de um ou de outro, desde Luna até outros pequenos que conheço como Bento,
Dora e Gabriel. Bom sinal. Sinal de que há uma geraçãozinha aí antenada e bem
orientada. Além disso, de que existe uma consciência do valor das coisas
importantes da vida (muitas vezes, as simples), que não se resumem a consumo e tecnologia.
Iniciativas como estas se mostram sintonizadas com tal mentalidade. E neste Dia
das Crianças, é um alento perceber gente consciente de que, para se exercer a cidadania
no mundo de hoje, começa-se desde cedo.
Por uma iluminada indicação, fui assistir no último dia 28 de outubro, a 7ª edição do Dia Internacional da Animação, num Teatro Dante Barone, da Assembleia Legislativa do RS, bem preenchido de gente. Esta data é comemorada todos os anos em várias cidades no mundo e do Brasil com uma mostra com o que há de mais inovador na animação nos quatro cantos do planeta. Foram duas horas, começando pela primeira de títulos estrangeiros de vários países, da África do Sul a Japão. Depois, os brasileiros.
"Diário de uma Inspetora
do Livro de Recordes" foi um dos destaques entre os internacionais.
No geral, muito legal; boas realizações, algumas melhores que outras, mas todas inclinadas a algo de vanguarda, de novo, e impressionando pela variedade de técnicas de animação. Dos internacionais, chamou-me muito a atenção dois dos três curtas portugueses: “Diário de uma Inspectora do Livro de Recordes” (de Tiago Albuquerque, 2009), uma animação em flash bastante crítica, contato apenas com offs da protagonista (que, assim como todos os outros seres, aparece somente de silhueta) a vida mecanicista e burocrática de uma mulher cujo trabalho é verificar recordes do Guinness. Tudo em grande plano, como que mostrando estar constantemente distante de qualquer emoção. O outro representante luso, e o que mais me impressionou, foi “Pássaros”, de Filipe Abranches (2009). Com claras referências ao filme de Hitchcock, mas com um teor mais áspero, mostra em traços quase rascunhados sobre papel pássaros que mantinham outros de sua espécie engaiolados, num sistema de vida triste e sem questionamento. Com um desfecho entre o surreal e o trágico, deixou-me pensativo quanto aos possíveis “pássaros” que eu ande enjaulando.,,
Mas as produções brasileiras foram as que mais agradaram ao público, e diria que a mim também. De cara, “Bonequinha do Papai” (São Paulo /2010), dirigido por Luciana Eguti e Paulo Muppet, um videoclipe retrô-futurista com desenhos estilo anos 20 (mas com uma animação dinâmica e moderna) feito sobre a música homônima de Edgar Scandurra (ex-Ira!) e Antonio Pinto, arrancou aplausos da plateia. Constante no ótimo CD e DVD “Pequeno Cidadão”, projeto do multimídia Arnaldo Antunes (que, aliás, participa da música) com os seus filhos e de parceiros com seus respectivos pequenos.
"Como Comer um Elefante" arrancou
muitas risadas do público.
“Tromba Trem” (de Zé Brandão, Rio de Janeiro /2009), sobre as aventuras de um elefante desmemoriado que cai do céu em pleno cerrado brasileiro, onde encontra uma tamanduá vegetariana e uma colônia de cupins que acreditam ser de outro planeta, e “Como Comer um Elefante” (de Jansen Raveira, Niterói /2008), fizeram a galera rir bastante, principalmente este último, uma inteligente comédia sobre a experiência traumatizante de uma burrinha aspirante a Miss que não consegue ler (e nem entender) “O Pequeno Príncipe”.
A solidão é retratada em "O Acaso
e a Borboleta".
Mas dois podem se dizer excepcionais. Primeiro, “O Acaso e a Borboleta” de Tiago Américo e Fernanda Correa (PR-2009): minimalista e usando uma técnica chamada Rotoscopia, mostra a solidão de uma mulher ao longo da vida, da infância até a velhice, destino acompanhado pelo errático voo de uma borboleta. Sensibilíssimo – e pessimista. Mas bem bonito. O outro, “Eu queria ser um monstro”,produção fluminense de 2010 (veja o trailer) talvez até tenha me impressionado por não ter dado muito por ele quando li a breve resenha. Mas a beleza lúdica do olhar de criança (o off que narra a história é justamente deste tal menino de ideias “monstruosas”) e a condução competente do diretor/animador Marão, usando stop motion e lápis sobre papel, surpreenderam não só a mim, mas o público em geral, que suspirou enternecido ao final. História simples, mas contada com poesia, vencendo até a frágil dublagem de alguns personagens (por sorte, a do menino e do seu pai ficaram ótimas). Não à toa foi escolhido Melhor Filme Brasileiro no Anima Mundi Rio 2010.
Trailer:"Eu queria ser um monstro"
Assistindo mostras como estas fica bastante reconhecível de onde sai a inspiração da publicidade nas milhares de animações que vemos todos os dias nas propagandas de TV e internet. Valeu a correria para chegar em tempo no Centro. E valeu a indicação.
************* Este festival, comemorado desde 2000 em várias partes do mundo há 7 no Brasil, homenageia a primeira sessão pública de uma animação ocorrida na história, que aconteceu num dia 28 de outubro de 1892 (3 anos antes do cinematógrafo ser apresentado pelos irmãos Lumière), quando Emile Reynaud realizou a primeira projeção do seu teatro óptico no Museu Grevin, em Paris.
*************
Pra quem quiser daruma conferida mais detalhada ou mais informações, vai aí o site da mostra no Brasil: http://www.abca.org.br/dia/index.php.
Do jeito que a coisa anda, até Papai Noel tá querendo virar jacaré neste Natal. Mas enquanto a vacina não vem, a gente curte o MDC natalino com sons mais legais do que de sininhos. Isso porque tem Ride, RATOS DE PORÃO, Fernanda Abreu, Lou Reed & John Cale, Pequeno Cidadão e outros vão estar com a gente. Ainda tem quadro com os 250 anos de Beethoven e os fixos "Palavra, Lê" e "Música de Fato". Programa desta quarta é 21h, na crocodiliana Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. #feliznatal2020 #vemvacina e #ForaBolsonaroGenocida
Uma viagem à Hollywood dos anos 30 por Vagner Rodrigues
Uma mentira contada várias vezes pode virar uma verdade? Bom, é o que dizem e, particularmente, acho isso perigoso. David Fincher nos dá um belo filme, com destaque para as atuações e fotografia, porém pelo fato da história narrada que não ser exatamente uma verdade, uma vez que há muito mais coisas por trás daquilo tudo que o longa conta, coisas muito além das fofocas hollywoodianas, acabei me distanciando um pouco do filme, devo confessar. Tecnicamente, o filme é muito bom, embora seu ritmo e o fato de ser preto e branco possa não agradar a alguns, mas isso é bem pessoal. Bem como minha maior bronca também é algo extremamente pessoal: o filme toma partido de um boato já desmentido faz muito tempo, de que Orson Welles não tinha participação nenhuma na construção do roteiro, uma das maiores lendas urbanas hollywoodianas. Esse boato ganhou força com o artigo escrito por Pauline Kael, mas mesmo na sua época, nos anos 40, já tinha sido desmentido e ficado provado que sim, Orson tivera grande participação no roteiro final de “Cidadão Kane”. Mas claro se você não se importa com esses “babados de Hollywood”, pode passar por cima disso, tranquilamente. O trabalho técnico do filme é impecável e muito imersivo fazendo com qiue o espectador realmente se sinta na Hollywood clássica, andando pelos grandes estúdios. A fotografia em preto branco e a montagem do filme, são meus destaques. Por mais que para alguns o longa possa parecer confuso, por ser cheio de idas e vindas no tempo, se estiver atendo vai ver que antes das cenas tem uma letreiro que funciona como roteiro (roteiro no papel) de um filme, indicando se a cena é um flashback, onde ela se passa, etc. É só um detalhe pequeno mas que engrandece muito a obra. Sobre individualidades, destaque para Gary Oldman, como sempre muito bem, Lily Collins tem bastante tempo de tela e consegue apresentar bem sua personagem, Amanda Seyfried tem algumas cenas, não muitas, mas gostei dela e não duvido que algum desses três apareça como indicado nas premiações desse ano. Sobre David Fincher, sempre aguardamos muito suas obras com grande expectativa e essa não decepciona. Desta vez e ele fez seu trabalho conta com roteiro de seu pai, Jack Fincher, e, se não tem o peso de seus grandes filmes, vale a homenagem para o pai. Se você gosta da Hollywood dos anos 30,40, vai adorar o longa. Um belíssimo trabalho técnico, um roteiro bem atrativo, personagens fortes, uma trama principal que consegue segurar o filme, mesmo com outras coisas acontecendo, como o cenário político da época, muito bem retratado por Fincher, em um de seus grandes acertos, num cenário de fake-news que dialoga muito com tempos atuais, aliás BEM atuais.
Longe de ser o melhor trabalho do diretor, é uma obra com inegáveis grandes qualidades. Visualmente lindo, o que nos atrai, nostálgico na medida certa, e se você já viu “Cidadão Kane”, não que seja necessário, mas se já viu, “Mank” é um bom complemento da obra de Welles (com exceção da parte que fala de Welles, mas não vou voltar para o mundo das fofocas...) Beba com responsabilidade e assista a “Mank”.
Que filme imersivo! Adorei a viagem o tempo.
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David Fincher está de volta!
por Cly Reis
"E o Oscar de melhor roteiro original vai para... Herman W. Mankewicz e Orson Welles, por "Cidadão Kane". Este é o ponto onde culmina o excelente "Mank", filme de David Fincher, que trata, exatamente, de todo o processo de concepção do roteiro da obra-prima de Orson Welles, todo o contexto social, político e histórico daquele momento na Hollywood pós-depressão e os envolvimentos e relações do brilhante mas complicado escritor e roteirista Herman J. Mankiewicz. Mank, como era conhecido, era dono de uma personalidade forte, ideias bem definidas, um texto criativo e uma língua afiada. Assim, por conta, exatamente, de seus posicionamentos políticos, sua irredutibilidade, sinceridade e por não ter papas na língua, por mais brilhante que fosse, Mankiewicz passou a ser, de certa forma, persona non grata dentro do universo dos grandes estúdios de Hollywood. Fincher nos traz essa história toda de maneira não menos incrível, com idas e vindas, flashbacks oportunos, construções de expectativa, suspenses, apresentando seu filme como uma leitura de roteiro em movimento, sob um visual de filmes noir e com uma fotografia em preto e branco espetacular. "Mank" é, para mim, a recuperação do velho e bom David Fincher do visual dos videoclipes da época de Madonna, como em "Vogue", por exemplo, da atitude de "Clube da Luta", da astúcia de "Vidas em Jogo", da intensidade de "Se7en". "Mank", desde já se credencia como um dos grandes candidatos, em potencial, às principais categorias na próxima edição do Oscar. A luz é maravilhosa, a fotografia é incrível, Gary Oldman está espetacular no papel do protagonista, a trilha de Trent Raznor e Atticus Ross é precisa e impecável, Fincher conduz o longa com maestria, e o roteiro, do pai do diretor, sobre um dos mais incríveis e revolucionários roteiros da história do cinema, muito possivelmente está destinado, assim como foi com o filme do qual trata, a ouvir na noite de premiação da Academia, a mesma frase que foi dirigida a Mankiewcz e Welles: "E o Oscar de melhor roteiro original vai para..."
A fotografia, a luz, os figurinos, a atuação de Oldman... tudo demais!
O MDC de hoje completa mais um ciclo e chega à sua edição de nº 240! Para este programa especial, a gente vai ter uma entrevista com a cantora e compositora paulista TACIANA BARROS, ex-Gang 90 e integrante da PEQUENO CIDADÃO. Uma conversa cheia de conhecimento, cidadania, diversão e, claro, música. Ainda tem aqueles sons que rolaram na cabeça, notícia e letra. Tudo no MDC Especial hoje, 21h, pela Rádio Elétrica. Produção e apresentação de Daniel Rodrigues.
“Pra tudo se acabar na quarta-feira”, disse o poeta lamentando o fim do Carnaval. Mas no Música da Cabeça a gente não acaba: começa! Aqui a gente cura a ressaca da Quarta-feira de Cinzas com música aos montes. Sente só o que vai ter: Pequeno Cidadão, The Smiths, Elvis Presley, Noel Rosa, The Strokes e Madonna. E tem mais ainda no programa de hoje! Mas aí, só escutando pra saber. Por isso, sintoniza na Rádio Elétrica às 21h, que o programa vai fazer tua volta de feriadão ficar bem colorida. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.
"Viva o Arrigo Barnabé!". Repetindo a celebração de Caetano Veloso ao criador de Clara Crocodilo e de outras obras, nosso programa hoje traz esse aniversariante setentão e muito mais. Tem Air, Chico Buarque, Pequeno Cidadão, Chic, Legião Urbana, Jimi Hendrix e mais, além de uma análise sobre os 20 anos do 11 de Setembro no "Música de Fato" e, claro, "Palavra, Lê" para fechar. Você, ouvinte incauto, que no aconchego de seu lar vai ouvir o MDC hoje, às 21h, na venenosa Rádio Elétrica. A produção e a apresentação são de Daniel Rodrigues (sem esquecer do #forabozo)
Tem categorias do Oscar que fica difícil saber quem é favorito, pois
não é possível ter uma noção geral da mesma em terras brasileiras. É o caso da de
Documentário, que dificilmente se terá acesso a todos os concorrentes daquela
edição do prêmio. Porém, a um dos candidatos nessa categoria tive o prazer de
assistir: “Amy”, de Asif Kapadia,
uma biografia cinematográfica da cantora e compositora britânica Amy Winehouse.
Morta em 2011, Amy, conhecida por seu poderoso e profundo contralto vocal e sua
mistura eclética de gêneros musicais como soul, jazz e R&B, foi o grande
talento da música pop dos últimos tempos, uma cantora comparável a nomes como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan. Porém, como o filme retrata em detalhe, os
problemas de relacionamento, as drogas, o álcool e a dificuldade de lidar com a
mídia, a impediram de alçar uma carreira muito mais promissora daquela que teve.
Por retratar uma estrela pop do século XXI, o filme possui, além de
vários depoimentos de amigos, familiares e profissionais do meio artístico, bastante
material audiovisual, desde filmes caseiros a vídeos de webcam – afora, claro,
de reportagens de televisão e rádio. Isso torna o documentário – que não é um
musical, embora retrate a vida de uma musicista – bastante rico em conteúdo.
Assim, o diretor consegue ter subsídio suficiente para traçar a história da
artista em detalhes, o que, por consequência, dá ao espectador bastantes
elementos para entendê-la mais profundamente. Ficam evidentes, por detrás do enorme
talento dessa judia descendente da Rússia, os problemas psicológicos – como a
bulimia –, as dificuldades das relações familiares e os casos amorosos
tumultuados, como o com o ex-marido Blake Fielder-Civil. Mostra-se uma Amy apaixonada
por sua arte, cercada por milhões de pessoas mas extremamente solitária e
frágil.
Tony Bennet e Amy, duas gerações em plena sintonia.
Tem o lado mais agradável também. É possível acompanhar o crescimento
artístico de Amy, desde as apresentações em pubs de Londres e região, os
primeiros parceiros musicais e os que a acompanharam desde sempre, como o
produtor e amigo Salaam Remi. Bonita também é a passagem da gravação que ela
fizera com Tony Bennett, em que a admiração recíproca é evidente. Vê-se ainda a
relação com o mundo do mainstream e,
mais delicioso ainda, a criação de algumas de suas canções. Após um bem
recebido CD “Frank” (2003), o filme mostra Amy em período sabático nos Estados
Unidos, onde passa o dia compondo e gravando algumas das músicas que se
tornariam sucessos mundiais no aclamado "Back to Black", de 2006, como “Rahib”
e "You Know I'm No Good", a faixa-título e outros singles.
Entretanto, a meteórica ascensão ao estrelato, a mesma que motivara
astros igualmente jovens no passado Janis Joplin, Jim Morrison e Kurt Cobain, sufocara
também a menina mal saída da adolescência. Por total falta de controle
emocional, haja vista que as conturbadas e irresolutas relações familiares –
principalmente com o pai –, inviabilizava qualquer amadurecimento, Amy sucumbe
às drogas e, cada vez mais doente, interrompe cedo a carreira numa trágica
morte. Entretanto, é visível sua dedicação àquilo que fazia, bem como
consciência nada vaidosa de sua própria figura pública, fator que ao mesmo
tempo a diferenciou dessa leva quase unânime de celebridades narcisistas e a
fragilizou perante o opressor universo do entretenimento.
Um bonito filme com a trilha sonora assinada pelo brasileiro e "pequeno cidadão"Antonio Pinto, já responsável por outras trilhas de respeito no cinema
do Brasil (“Central do Brasil”, “Cidade de Deus”) e estrangeiro (“Colateral”,
“Trash – A Esperança vem do Lixo”). Enfim, um filme que vale ser visto tanto
por retratar a vida de uma das maiores cantoras que a música popular já viu,
quanto, por evidenciar problemas típicos da sociedade moderna como a “fogueira
das vaidades”, o poder destrutivo mídia e a solidão da era digital. Não vi os
que concorrem com “Amy” ao Oscar, mas não será nada absurdo se vencer a
estatueta.
"Recebeu a bola, seguiu pelo meio, passou por um ponta que atravessou a meia cancha.
Deu um drible certeiro perseguido pelo zagueiro que meu Deus!
Violentamente deu um carrinho por trás"
arte do videoclipe da música "Carrinho por Trás"
Não foi nada demais, foi um carrinho por trás Não foi nada demais, foi um carrinho por trás
O jogo tava animado Cada um dando o melhor de si O time adversário quase profissional O cara tava sozinho Sozinho de frente pro gol Mas não foi nada demais, só foi um carrinho por trás
Eu falei pro juíz: Não foi nada demais, foi um carrinho por trás Não foi nada demais, foi um carrinho por trás
Por isso ouça meu conselho Meu caro amigo boleiro Quem apela pro carrinho Vai mais cedo pro chuveiro
O carrinho é perigoso No mínimo um tanto suspeito Mas se você acerta na bola É aplaudido com muito respeito
Eu falei pro juíz: Não foi nada demais, foi um carrinho por trás Não foi nada demais, foi um carrinho por trás Não foi nada demais, foi um carrinho por trás
*****************************************
letra da música"Carrinho Por Trás"
do projeto Pequeno Cidadão
composto por Arnaldo Antunes, Edgar Scandurra, Taciana Barros e Antônio Pinto
“Já nasceu o Deus Menino/ E as vaquinhas vão mugindo/ Blim blom, blim blom/ Blim blom nylon”.
Da canção “Mary Cristo”
Quando, em 2002, “Já sei Namorar” se tornou o último hit de verão brasileiro com qualidades musicais e “Velha Infância” era ouvida tanto na boca de jovens quanto de senhoras donas de casa, estava claro que “Tribalistas”, o disco, já nascia popular e clássico. Também pudera: um supergrupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte tinha tudo para dar certo, como de fato deu. Era como se os três principais polos culturais do Brasil se juntassem na figura destes três artistas: São Paulo, por meio do concretismo multimídia arejado de Arnaldo; o mítico Rio de Janeiro, com sua tradição da MPB e do pop nacional pela via de Marisa; e a Bahia, cuja ancestralidade afro-indígena em cores rítmicas e melódicas se materializava através de Carlinhos. Juntos eles traziam a capacidade de potencializar o que há de melhor na história da música popular brasileira como nunca antes acontecera. Mas se como banda era então algo inédito, a construção desta simbiose entre os três vinha de muito tempo.
A antenada Marisa foi a catalisadora do “anti-movimento” tribalista. Foi ela a principal intérprete a revelar as potencialidades dos parceiros compositores antes mesmo de suas carreiras-solo: Arnaldo, ainda com os Titãs, em 1991, no disco “Mais”, no qual lhe gravou três músicas inéditas, e Carlinhos a partir de “Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão”, de 1994, antes deste se tornar um popstar internacional. Naturalmente, os três perceberam várias sintonias e complementaridades entre si. A química do grave da voz de Arnaldo e com a leveza mezzo de Marisa, por exemplo, já está lá no primeiro disco dele, “Nome”, de 1992, em “Alta Noite” e “Carnaval”. Com Carlinhos, o estreitamento da relação veio em seguida com as gravações de “Maria de Verdade” e “Segue o Seco”, marcos na carreira dela. Juntos os três aparecem pela primeira vez em “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” na canção “Amor, I Love You”, composição de Carlinhos e Marisa de 2000, cantada por ela e que tem a declamação poética de Eça de Queiroz na voz característica de Arnaldo. Mas antes mesmo outros sinais “tribalistas” já se anunciavam, como no duo dela com Carlinhos em “Hawaii e You” e “Busy Man”, de “Omelete Man”, de 1998 (que tem, aliás, produção dela), e em “O Silêncio” (1996), em que o titã e o líder da Timbalada cantam juntos.
A partir daí, só cresceu a irmandade e eles nunca mais se separaram. “Paradeiro”, “Água Também é Mar”, “Não Vá Embora”, “Universo ao meu Redor”, “Doce do Mar”, “Não é Fácil”, “Talismã” e uma dezena de músicas são fruto de suas colaborações nos anos seguintes. Quando decidiram, então, se unir como banda, a identidade e a sinergia entre eles já era tamanha que bastava apenas dar um nome ao projeto: “Tribalistas”. Enfim, “chegou o tribalismo no pilar da construção”. Na execução, os percentuais de participação de cada um são quase iguais. Quando não realizam as mesmas funções, proporcionalmente compensam em outras. Multi-instrumentista, Carlinhos tem a voz menos destacada, mas é quem naturalmente comanda os arranjos. Marisa, além de ser a produtora, é a figura central com seu violão, seu canto e sua liderança. Arnaldo, por sua vez, influencia menos nos arranjos, mas é a cabeça criativa de várias letras e ideias sonoras, além de também dar forma às melodias vocais. Isso tudo ajudado pela qualidade musical de Dadi e Cezar Menezes.
Perfeito do início ao fim em sonoridades, timbres, arranjos, produção e até duração (13 faixas que não se estendem mais do que 42 minutos), o disco tem, além da memorável capa desenhada em chocolate pelo artista visual Vik Muniz, a fineza das interpretações e, principalmente, das composições do trio, melodistas de mão cheia. Neste quesito, tanto Marisa quanto Arnaldo e Carlinhos colaboram diretamente. “Carnavália”, que abre o disco com um ar nobre, é um híbrido de estilos dos três. Uma levada de violão de influência ibérica ao estilo de Milton Nascimento, com som amplo e cheio, se une a vozes em uníssono e elementos de samba e eletrônicos, coisas que os três valorizam e se valem amplamente em suas obras. "Um a Um", logo em seguida, entra rasgando numa balada ardente e apaixonada (“Muito além do tempo regulamentar/ Esse jogo não vai acabar/ É bom de se jogar/ Nós dois/ Um a um”), também resultado da integração compositiva do trio.
Arnaldo, "Zé" Marisa e Carlinhos: soma de talentos sem igual na história da música brasileira moderna
A já citada “Velha Infância” é, com certeza, uma das mais belas canções de amor do cancioneiro nacional de todos os tempos, num nível de “Você é Linda”, “Quase um Segundo” ou “Como É Grande o Meu Amor por Você”. E isso gente do cacife de Nelson Motta e Jô Soares disseram! Sensível e cantarolável. A letra (“Eu gosto de você/ E gosto de ficar com você/ Meu riso é tão feliz contigo/ O meu melhor amigo é o meu amor”) é de uma simplicidade tão tocante, que atinge uma pureza de sentimento que nem Roberto e Erasmo dos bons tempos conseguiram se assemelhar. Depois, a gostosa e suingada "Passe em Casa", parceria deles com Margareth Menezes – e que também empresta sua voz –, é outro sucesso que pega facilmente quem a escuta: “Passam pássaros e aviões/ E no chão os caminhões/ Passa o tempo, as estações/ Passam andorinhas e verões/ Passe em casa/ Tô te esperando, tô te esperando”.
Uma sequência mais cadenciada emenda a “arnaldística” “O Amor é Feio”, em que aparece a tal tabelinha vocal entre ele e Marisa já experimentada por ambos ao longo dos anos; outra balada romântica, "É Você", tão característica de Marisa quanto de Carlinhos - mas não sem os toques de Arnaldo, como os versos “Deita no meu leito e se demora” ou “Um ritmo, um pacto e o resto rio afora”; e “Carnalismo”, melodiosa como uma delicada caixinha de música (“No rastro do seu caminhar/ No ar onde você passar...”) e onde funciona novamente o vocal Arnaldo/Marisa.
A natalina “Mary Cristo”, mesmo coassinada por Arnaldo e Marisa, é claramente produto da criatividade do baiano da turma. Hábil em compor melodias lúdicas, é Carlinhos, inclusive, quem praticamente põe a primeira voz. A letra, que mescla termos em inglês com português com total fluidez (“Mary, Mary, Mary Cristo/ Cristo, Cristo, Mary, Mary”), como já fizera em “Amor, I Love You”, “Everybody, Gente” ou “Uma Brasileira”, é uma característica dele. Também, o uso de onomatopeias com finalidade tanto melódica quanto poético-sintática (“Carneirinho me dá lã, mé” e “Blim blom”) é igual ao que ele já apresentara em “Meia Lua Inteira” ou “Amantes Cinzas”.
"Anjo da Guarda" mantém o clima quase infantil da anterior, porém amplificando a ideia muito afeita a Arnaldo (“Direitinho”, “As Árvores”, “Pequeno Cidadão”) e também a Marisa (“Borboleta”, “O Céu”). "Lá de Longe", uma das mais brilhantes do disco, traz uma atmosfera etérea e circular, como um mantra. Tanto Marisa quanto Carlinhos e Arnaldo vão intercalando os vocais, formando um encadeamento perfeitamente homogêneo dado pelo arranjo e pela técnica de estúdio. E que melodias e letra bonitas! (“Longe, lá de longe/ De onde toda beleza do mundo se esconde/ Mande para ontem/ Uma voz que se expanda e suspenda esse instante/ Lá de longe...”).
Bem Marisa novamente, “Pecado É lhe Deixar De Molho” é uma bossa nova muito parecida com os que eles produziria em “Infinito Particular”, de 2006. Quase acabando o disco, contrariando, aliás, as regras da indústria fonográfica de destacar a música de trabalho entre as primeiras para facilitar o consumo, vem “Já sei Namorar”. Colocação, entretanto, que não a impediu de se tornar um enorme sucesso de público e crítica, tendo recebido Grammy Latino de "Gravação do Ano", Prêmio Multishow de Música do Ano, e MTV Video Music Brasil 2003 pela escolha da audiência. Bastante Arnaldo em concepção, é quase uma continuação de “Não Vou me Adaptar”, do repertório dos Titãs, porém trazendo como tema a fase da adolescência agora não como o medo de tornar-se adulto e o desconforto do corpo em transformação, mas já experimentando a sexualidade e o desejo de individuação de uma maneira espontânea e bonita. A letra diz: “Já sei namorar/ Já sei beijar de língua/ Agora só me resta sonhar/ Já sei onde ir/ Já sei onde ficar/ Agora só me falta sair”. Dançante e melodiosa ao mesmo tempo, a música foi parar na playlist de qualquer festa ou lugar que se frequentasse à época do seu lançamento. Não à toa, pois é uma doçura de canção.
Arnaldo entoa palavras-chave que determinam não apenas a faixa que dá título ao trabalho e ao grupo como também marca o encerramento do disco. Um ritmo pop tribal típico dele, mas que conta com as mãos de Marisa e Carlinhos, obviamente, fecha o álbum num clima animado e despojado. “Os Tribalistas já não querem ter razão/ Não querem ter certeza, não querem ter juízo nem religião/ Os Tribalistas já não entram em questão/ Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão”. E o refrão, adorável, é daqueles de cantar acompanhando-os: “Pé em Deus/ e fé na Taba”.
O disco foi lançado com um DVD – um sucesso de audiência na TV Globo –, que traz a mesma sequência de faixas sendo executadas pela banda e que quase não se percebe diferença para com as gravações em estúdio tamanha é a qualidade técnica desses músicos. No vídeo, dá para perceber algumas nuances do processo criativo dos Tribalistas e a irmandade entre eles, espírito este que transparece para os sons que produzem. Tanto é verdade que essa afinação entre os três se repetiu 15 anos mais tarde com igual êxito em “Tribalistas 2”. Por isso, mais do que apenas a faixa “Mary Cristo”, este álbum tem muito a ver com Natal, haja vista este amor entre os três, amor de irmãos que se respeitam, se admiram e se complementam entre si com suas semelhanças e diferenças. Dois homens e uma mulher: Arnaldo, Carlinhos e Zé.
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Clipe de"Já sei Namorar", do DVD "Tribalistas"
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FAIXAS: 1. "Carnavália" - 4:16 2. "Um a Um" - 2:41 3. "Velha Infância" (Antunes, Brown, Monte, Davi Moraes, Pedro Baby) - 4:10 4. "Passe em Casa" (Antunes, Brown, Monte, Margareth Menezes) - 3:54 5. "O Amor É Feio" - 3:11 6. "É Você" - 2:51 7. "Carnalismo" (Antunes, Brown, Monte, Cezar Mendes) - 2:36 8. "Mary Cristo" - 3:00 9. "Anjo da Guarda" - 2:47 10. "Lá de Longe" - 2:17 11. "Pecado É lhe Deixar de Molho" - 2:58 12. "Já Sei Namorar" - 3:16 13. "Tribalistas" - 3:23
Todas as composições de autoria de Arnaldo Antunes,
Carlinhos Brown, Marisa Monte, exceto indicadas
Seguimos
com a listagem de filmes essenciais para entender o cinema brasileiro
das décadas de 60, 70 e 80. Começamos com os gloriosos e
revolucionários anos 60, do qual extraímos, de um universo numeroso
e profícuo, 20 joias. Agora, no entanto, como diz a gíria popular,
“o buraco é mais embaixo”. Nos anos de chumbo, com o
afunilamento dos direitos sociais e políticos advindos com o AI-5,
de 1968, o cerco fechou para qualquer cidadão que quisesse se
expressar ou simplesmente dar-se ao direto de pensar diferente do
sistema vigente. Torturas, desaparecimentos e perseguições
aumentaram. E claro que a classe artística, incluindo quem fazia
cinema, foi uma das maiores prejudicadas nos anos 70. Toda a geração
de cineastas e autores advindos com a explosão criativa dos 50/60,
acuados ou exilados, mal conseguiam levantar recursos para produzir
aquilo que pensavam – claro, se aquilo que pensavam não concordava
com o que os militares queriam.
Resultado?
Perda de espaço para o cinema norte-americano e europeu e, no
próprio mercado interno, para as famigeradas “pornochanchadas”,
as malditas produções baratas e mal-acabadas financiadas pelo
governo não eram nem pornôs nem chanchadas e que serviam
basicamente para entreter o povo com o que ele mais gosta e odeia em
si: a malandragem e a sacanagem.
O
minguamento do cinema de autor foi perceptível: nos anos 70, a
grande cabaça do moderno cinema brasileiro, Glauber Rocha, produziu
na Espanha, Itália, Cuba, Portugal e Congo, menos no Brasil. Nelson
Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni e vários
outros não conseguiam estabilizar um nível de produção digno,
oscilando entre filmes ótimos a fracos. E pior: às vezes, faziam
filmes até bons, mas cuja qualidade técnica comprometia tanto que
restaram inviáveis de se assistir.
No
entanto, era muito talento e coragem para que nada desse certo. De
tudo que se produziu na década, 15 longas podem ser considerados,
cada um por um motivo, obras essenciais para o, àquela época, ainda
mais combalido e combativo cinema brasileiro no século XX. Tanto é
verdade de que foram cineastas vitoriosos que todos os títulos
elencados são obras de nomes da geração anterior. Nota-se um
aperfeiçoamento da linguagem metafórica do Cinema Novo e um
amadurecimento do cinema popular, bem escrito e com olhos para todos
os públicos. Em contrapartida, há um adensamento da linguagem
transgressora do cinema marginal e que o coloca ainda mais à margem
do mercado. Então, entre mortos e feridos (literalmente), os 15
filmes essenciais para entender o que é cinema brasileiro nos anos
70:
1 -
“Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (70) – O cinema
underground do Sganzerla avança brutalmente neste filme
altamente transgressor e simbólico, onde ele mistura metáforas do
terceiro mundo, chanchada, rádio Nacional e cinema de poesia.
Anárquico, louco e ainda assim engraçado por conta do maravilhoso
Jorge Loredo como Zé Bonitinho, que “ancora” toda a
(não)história. Memorável sequência com Luis Gonzaga tocando
enquanto Helena Ignez e Loredo encenam.
2 -
“Copacabana Moun Amour”, Rogério Sganzerla (70) – O cara
tava tão inspirado que fez dois filmes essenciais em apenas 365
dias. Devaneio intelectual na Rio de Janeiro em época de ditadura,
numa referência metafórica ao fim da civilização, à nouvelle
vague (principalmente Resnais de “Hiroshima Moun Amour”) e,
claro, ao cenário político brasileiro. E a trilha é algo de
genial, composta especialmente por Gilberto Gil, que a mandou do
exílio em Londres, e que virou um disco clássico da carreira do
baiano.
3 -
“São Bernardo”, Leon Hirszman (71) – Adaptação do livro
do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história,
mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande
fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos
latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles
filmes impecáveis em narrativa e concepção. E o Leon, comunista
como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado
quanto à reforma agrária.
4 -
“O Doce Esporte do Sexo”, Zelito Viana (71) – Filme de
episódios com ninguém menos que Chico Anysio, na época, no auge de
sua criatividade como ator e escritor. Dirigido por seu irmão,
Zelito, é um bom exemplo de que já se faziam comédias mesmo numa
época de produções pobres como foi os anos 70, considerando que
hoje se faz esse gênero às pencas no Brasil com ótimas produções
mas nem de perto com a qualidade de texto de “O Doce Esporte...”.
5 -
“Como Era Gostoso o Meu Francês”, Nelson Pereira dos Santos
(71) – Nelson Pereira teve dificuldades nos 70 de produzir com a
qualidade técnica que ele sabe, mas esse aqui saiu perfeito. Comédia
bizarra sobre antropofagia cultural e canibal. Uma fantasia que põe
Hans Staden em cores modernistas e que evidencia uma série de
lacunas de nossas cultura e civilização. Ganhou Brasília e foi
indicado ao Urso de Ouro em Berlim. Engraçado e profundo.
6 -
“Vai Trabalhar, Vagabundo”, Hugo Carvana (73) – Outra ótima
comédia, primeiro filme do Carvana atrás das câmeras – que se
pôs na frente também, pois ele mesmo faz o hilário Secundino
Meireles, personagem principal que retrata o brasileiro consciente
com a situação do País mas de saco cheio com a miséria moral e
política. Trama inteligente, crônica da sociedade da época. Venceu
Gramado. Trilha original linda do Chico Buarque. Um barato.
7 -
“O Marginal”, Carlos Manga (74). O Manga produziu pouca coisa
pra cinema depois dos 60. Esse é o único de ficção dele dos anos
70, mas toda sua experiência de cenas de aventuras nas várias
chanchadas que dirigiu desde os anos 40 estão aqui, adicionado a um
teor psicológico superconvincente e bem conduzido. Música original
de autoria de Roberto e Erasmo, um luxo. E o Tarcisão tá ótimo.
8 -
“Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (76) –
Provavelmente a melhor adaptação de Jorge Amado para a tela grande
e o melhor brasileiro da década. Por 34 anos foi recordista de
público no cinema brasileiro, levando mais 10 milhões de
espectadores às salas de exibição. Fotografia, roteiro, trilha e
atuações memoráveis. Cheio de cenas inesquecíveis, como a da
morte do Vadinho e os diálogos entre Wilker e Sônia Braga. Um
clássico vencedor de Gramado e indicado ao Globo de Ouro de Filme
Estrangeiro.
9 -
“Xica da Silva”, Cacá Diegues (76) – Também sucesso de
bilheteria. Cacá emendou uma sequência de ótimas produções nos
anos 70, talvez o cineasta que melhor tenha produzido de todos os
remanescentes do Cinema Novo. Este é um “épico à brasileira”.
Zezé Mota encarnou super bem Xica, o grande papel dela no cinema.
Mais uma vez, a trilha do filme do Cacá se destaca: a música
original é do Jorge Ben.
10
- “A Queda”, Ruy Guerra e Nelson Xavier (76) – Ruy Guerra,
outro comunista irrefreável como o Leon, co-dirige com o também
ator Xavier um pequeno episódio de um operário que morre na queda
de um andaime, história que usa pra gerar toda uma crítica
político-social. Trilha do cineasta (que também era compositor) em
parceria com ninguém menos que Milton Nascimento. Urso de Prata em
Berlim e Margarida de Prata pela CNBB.
11
- “Iracema, Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando
Senna (76) – Quer filme mais “marginal” do que um com cara de
documentário anárquico, rodado com câmera na mão, usando vários
atores amadores nativos, Pereio cheirado e fumado até as guampa,
proibido pela censura e que só foi exibido pós-Abertura, 6 anos
depois de finalizado? Filme que inspirou muito Fernando Meirelles.
Palavras dele.
12
- “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco
(76) – Lembro que assisti esse filme pequeno e me deixou com medo,
de tão tenso que é. Policial bem realista, com Reginaldo Faria
estupendo no papel do assaltante de bancos em crise de identidade,
mas que não tem como sair daquele círculo vicioso. Forte pra
caralho. Melhor Filme na Mostra Internacional de Cinema São Paulo,
além de levar vários Kikitos em Gramado (Ator, Ator Coadjuvante,
Fotografia e Edição).
13
- “Chuvas de Verão”, Cacá Diegues (78) – Filme pequeno
com cara de conto. Delicado e atípico em tema, pois aborda o amor na
terceira idade. Interessantes as ligações com a vida social
brasileira e do choque de culturas do velho e do novo. Uma joia que
levou prêmios em Brasília, Rio e São Paulo.
14
- “Tudo Bem”, Arnaldo Jabor (78) – Embora não goste do
Jabor, pretensioso e “intelectualóide” reacionário, esse aqui é
muito legal. Durante a obra de uma antiga casa no subúrbio carioca,
a sociedade brasileira (a qual se transformaria na classe média
atual) aparece como uma “fauna”: caricata, preconceituosa,
mal-resolvida. Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo geniais.
15
- “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (79) – Demarca o fim da
segunda fase de Cacá, com referências do Cinema Novo mas mais
amadurecido. Ao mesmo tempo que reflete com crueza a vida de pessoas
pobres e sem perspectivas, também ressalta a beleza e a magia
intuitiva de artistas mambembes. Daqueles filmes feitos na hora certa
e pela pessoa certa. Um registro sociocultural e político de um
Brasil florescendo e que veio a dar naquilo que somos hoje. Destaque
de novo pra trilha, não só as músicas originais do Chico Buarque
mas também os “bregas”, que tocam aqui e ali e funcionam tri
ambientais.