Só havia visto Arnaldo Antunesno palco ao vivo há mais de 30 anos. Precisamente em 1992, quando este, ainda com os Titãs, veio a Porto Alegre para o show de “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, no Gigantinho. Aliás, ótimo show: enérgico, potente, performático, a cara dos Titãs e com direito a banda completa (Marcelo Frommer, um dos guitarristas, morto em 2001, ainda era vivo). Porém, um lance quase despercebido me chamou atenção. Quando Arnaldo, após sua vez de cantar, voltava do microfone principal, posicionado à frente do palco, ao seu microfone de backing vocal, que fica uma linha atrás, Paulo Miklos, comumente esfuziante àquela época, cumprimentou-o pela performance e propôs aquele “toca aqui” de mãos. Que Arnaldo, inerte, não retribuiu. Sem deixar a peteca cair, Miklos, ao ver que o colega não aderira ao entusiasmo, abraçou-o e o show, que já tinha outro vocalista em ação, prosseguiu sem percalços.
No entanto, a imagem ficou na minha memória: a de um Arnaldo contrariado. Profissional, entregando um bom show junto com a banda, mas contrariado. Pode se cogitar muita coisa, mas não é difícil de imaginar que já tivesse a ver com a saída dele dos Titãs, a qual ocorreria logo em seguida, visto que “Tudo...” foi seu último como integrante. O motivo do desligamento, uma bomba para a banda na época, foi que Arnaldo tinha outros projetos e interesses que não cabiam no contexto de uma banda com oito cabeças pensantes, oito pop stars. Interesses que passavam pela poesia, pelas artes visuais, pela dança e, claro, pela música. Arnaldo sentia-se preso ao formato que um conjunto de rock oferecia e que nunca iria dar vazão a seus anseios artísticos e pessoais.
Corta para maio de 2025. 33 anos depois daquele show no Gigantinho e depois de várias vindas a Porto Alegre, Arnaldo Antunes retorna à cidade com sua própria banda para a turnê do seu novo disco, “Novo Mundo”, 14º de uma hoje consolidada carreira solo iniciada logo após aquela apresentação ainda como titã. O que se vê, da coreografia vanguardista característica e do tradicional figurino longilíneo à liberdade no palco, é um artista íntegro e contente consigo mesmo. Algo que transparece, obviamente, para o público, que não superlotou, mas encheu o bar Opinião, cantando e dançando com ele. Hoje maduro e experiente artisticamente, Arnaldo mostra sentir-se à vontade com sua obra, seja ela da carreira solo, a dos livros, a das artes visuais ou a de projetos como Tribalistas, Banda Performática, Pequeno Cidadão e, claro, os Titãs.
A ótima iluminação pondo Arnaldo num cone de luzes
Muito bem iluminado e dirigido, o show começa com a excelente faixa-título, cuja letra fala desta sociedade atual impermanente e superficial (“Bem-vindo ano novo mundo/ Que vai se desintegrar no próximo segundo”). Como Arnaldo ainda continua sabendo criar boas “músicas de trabalho”! Canções que encerram seu jeito concretista de escrever letra e compor melodias, mas trazendo uma pegada pop, ao estilo de “Saia de Mim” e “Lugar Nenhum”. Grande música. Do novo disco, ouviu-se quase todas de forma entremeada com sucessos e clássicos da carreira. Também novas, “O Amor é a Droga mais Forte”, “Tanta Pressa Pra Quê?”, “Viu, Mãe?” (parceria com Erasmo Carlos), “Acordarei” e “É Primeiro de Janeiro”. Dessa leva se destaca o iê iê iê moderno “Pra Não Falar Mal”, que cita um dos cantos do “Tao-Te King”, Lao Tzu (“Pureza e quietude são o padrão de medida do mundo”). O sangue titã ainda corre nas veias de Arnaldo.
Outra excelente é a eletropunk “Tire o seu Passado da Frente”, em que o arranjo engendrado com a banda do show – e do disco – merece um destaque à parte. Afinal, tratam-se de Vitor Araújo (teclados e piano), Betão Aguiar (baixo), a cabeça da heavy-nagôMetá MetáKiko Dinucci (guitarras, violões e efeitos eletrônicos) e o cara que revolucionou o som já revolucionário da Nação Zumbi, Pupillo (baterista e também produtor de “Novo Mundo”).
Com essa turma, Arnaldo concebe ótimas versões de canções mais antigas de seu repertório, tal “Sem Você”, gravada por Carlinhos Brown, e o reggae “Cultura”, lá do seu primeiro álbum solo, “Nome”, que virou o dub viajandão. Também tiveram os hits, casos de “Passe em Casa” e “Já Sei Namorar”, ambas dos Tribalistas, e a maravilhosa "Pulso", dos Titãs. Ainda rolaram as emocionantes “Socorro”, um de seus maiores sucessos da carreira solo (“Socorro, não estou sentindo nada/ Nem medo, nem calor, nem fogo/ Não vai dar mais pra chorar/ Nem pra rir”), e “Debaixo D’Água”, interpretada originalmente por Maria Bethânia.
trecho da clássica "Pulso", do repertório dos Titãs
Mas Arnaldo surpreende ainda mais com a nova “Body/Corpo”, samba malucão e uma das parcerias com um dos maiores nomes da música pop de todos os tempos: o talking headDavid Byrne (a outra é a boa “Não Dá pra Ficar Aí Parado na Porta”). Um encontro de pares, afinal ambos têm muito a ver um com o outro. Arnaldo sempre se espelhou na performance de palco espalhafatosa e cênica de Byrne, bem como foi um dos principais responsáveis por introduzir nos Titãs elementos da sonoridade da Talking Heads – veja-se, por exemplo, a música “Medo”, de “Õ Blésq Blom” e cantada por Arnaldo, claramente inspirada em “Fear of Music”, dos nova-iorquinos (“precisa perder o medo da música”). Por outro lado, Byrne, um verdadeiro esteta da world music, de muito vem acessando e introjetando os sons brasileiros. “Body/Corpo”, no entanto, mais do que um teoria, funciona muito bem na prática, sendo possível ouvir a musicalidade de um e de outro neste quase-samba quase-rock. Vendo Arnaldo cantando e dançando-a no palco faz a gente se perguntar: “como que esse encontro dele com Byrne não havia acontecido antes?”
A excelente "Body/Corpo", Arnaldo e Byrne juntos
No bis, uma vibrante versão de “Fora de Si”, do seu segundo disco, “Ninguém”, e conhecida por integrar a trilha sonora do filme “Bicho de 7 Cabeças”, e a irresistível “Comida”, que, não precisa nem dizer: pôs o Opinião abaixo. Um belo show, que confirma, tantos anos depois da traumática saída dos Titãs, o porquê da mudança de rota de Arnaldo, um artista que sempre soube o que queria fazer – e faz. Afinal, diferentemente daquele show do Gigantinho, que talvez poucos além de mim tenham visto o discreto episódio do abraço não retribuído com Paulo Miklos, havia um Arnaldo inteiro e feliz no palco. E isso todo mundo viu.
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Arnaldo e sua excepcional banda
Arnaldo super à vontade no palco
Mais show rolando
Momento especial em que muda o figurino
para cantar "Debaixo D'Água"
Alta vibração no palco do Opinião
Performático como sempre
Mais um pouco da performance de Arnaldo, aqui em "Sem Você"
A fantástica "Comida", melhor música
para encerrar o show
Arnaldo e banda se despedem depois de um grande show
Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.
Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007.
O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.
“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.
O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).
Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato.
Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.
Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio.
Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita.
Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.
********** FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
"Ela tem umas coisas que nasceram com ela: carisma, uma beleza calma e uma enorme cultura musical." Nelson Motta
Ela já havia interpretado uma música deles em seu álbum de estreia e, não muito tempo depois, um encontro num especial da Rede Globo que a colocava no mesmo palco com os Titãs, além de servir de alavanca para o namoro com o baixista Nando Reis, encaminharia a parceria que se materializaria objetivamente, logo ali adiante no excelente álbum "Mais", de 1991 e ainda abriria o caminho para, mais futuramente, o projeto Tribalistas, já mencionado aqui nos A.F., de Marisa, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que faz a percussão em grande parte das músicas. "Mais" pode até parecer, num primeiro momento, uma espécie de projeto alternativo dos Titãs com outro tipo de concepção vocal, dada a quantidade de músicas em que eles têm, no mínimo, participação nas composições. Causa ou consequência da então recente relação de Marisa com Nando, a parceria com os Titãs refletiria na linguagem do trabalho como um todo, até mesmo, de certa forma nas versões de outros artistas. Com exceção de "Rosa", de Pixinguinha, de estrutura mais complexa e letra rebuscada, a maioria das outras covers poderia caber, sem problemas num disco do octeto paulista, como no caso de "De Noite na Cama", de Caetano Veloso, por exemplo, a adaptação do folclores nordestino, "Borboleta", e até mesmo, por incrível que pareça, "Ensaboa", de Cartola, que dentro do espectro da obra do mestre da Mangueira, pode ser considerada uma de suas letras mais minimalistas e de estrutura diferenciada. Mas seria uma injusta simplificação reduzir o trabalho a uma experimentação titânica. "Mais" é muito mais! Marisa Monte canta, encanta, brinca, emociona, impressiona. Com produção do norte-americano Arto Lindsay, o disco é eclético sem ser pretensioso e tem um equilíbrio perfeito entre as faixas o que faz com que seja prazeroso e mantenha um frescor mesmo para quem já o conhece de muitas audições.
"Beija Eu", com letra de Arnaldo Antunes, comprova que o mesmo cara que fazia coisas como "Saia de Mim", era capaz de compor algo tão belo e delicado como aquela faixa de abertura, que, por sinal, não merecia outra interpretação que não à de Marisa Monte, doce e graciosa. "Volte para o seu lar", rebelde e impositiva, é a mais titânica das músicas do disco, contando com uma leitura musical perfeita de Marisa que dosou com sabedoria a melodiosidade com a pungência da letra ("Aqui nessa casa/ Ninguém quer a sua boa educação/ Nos dias que tem comida/ Comemos comida com a mão...", "Aqui nessa tribo/ Ninguém quer a sua catequização/ Falamos a sua língua/ Mas não entendemos o seu sermão"...). "Ainda Lembro", canção de amor elegante e de muito bom gosto, conta com a luxuosa participação de Ed Motta compõe com Marisa um dueto que pode se incluído entre os grandes da música brasileira. Em "De noite na cama", Marisa dá um ar leve à canção de Caetano Veloso, inúmeras vezes regravada na discografia nacional, desta vez com uma interpretação bem solta e alegre; e a "Rosa", de Pixinguinha e Otávio Cruz, a confere senão a versão definitiva, no mínimo uma das mais memoráveis. E em "Borboleta", cantiga tradicional do nordeste, Marisa Monte começa fazendo a voz pairar suavemente sobre nosso jardim sonoro para em seguida, sobre uma base acústica, desfilar seu canto doce e gracioso.
Marisa começa esticando a voz em "Ensaboa", sugerindo um cântico de lavadeiras, a música ganha um coro no refrão que também remete a um canto do trabalho conjunto na beira do tanque e de ribeirões, e culmina num pout-pourri, simplesmente extático, com "Lamento da Lavadeira", "Colonial Mentality", "Marinheiro Só", "A Felicidade" e "Eu Sou Negão". Espetacular!
"Eu não sou da sua rua", outra muito titânica, é uma espécie de "Lugar Nenhum"l mais leve e melancólica. "Diariamente", de Nando Reis, uma das melhores do disco, usa um formato em lista, como era característico dos Titãs em músicas como "Nome aos bois", do próprio Nando, só que aqui com atividades e situações rotineiras, numa anáfora conduzida de maneira brilhante pela cantora sobre uma base de violão constante e repetida.
Marisa se aventura pela primeira vez em uma composição solo e se sai bem na gostosa "Eu Sei";
"Tudo pela metade", parceria de Marisa com Nando, talvez seja a mostra mais perfeita no álbum do êxito da combinação de seu estilo com o dos Titãs, ficando bem evidenciado o ponto onde acaba um, começa o outro e onde se fundem. Um pop delicioso de refrão cativante e que fica mais bacana ainda na última vez em que se repete com um coro de crianças bem espontâneo e "bagunçado"; e "Mustaphá", uma balada zen, tranquila, com um belíssimo trabalho de violão, fecha o disco com competência.
"Mais" era a confirmação de Marisa Monte. Se passara uma boa impressão com o primeiro disco "MM", um ao vivo só de versões de outros artistas, mas deixara uma certa dúvida sobre ser ou não um daqueles fenômenos efêmeros que parecem de vez em quando, este disco mostrava que ela não era só mais uma cantora de um ou dois hits. Ela chegara para ficar. Era mais uma das grandes mulheres da música brasileira. Uma mulher com M maiúsculo! M de música, M de Marisa, M de Mais.
“Já nasceu o Deus Menino/ E as vaquinhas vão mugindo/ Blim blom, blim blom/ Blim blom nylon”.
Da canção “Mary Cristo”
Quando, em 2002, “Já sei Namorar” se tornou o último hit de verão brasileiro com qualidades musicais e “Velha Infância” era ouvida tanto na boca de jovens quanto de senhoras donas de casa, estava claro que “Tribalistas”, o disco, já nascia popular e clássico. Também pudera: um supergrupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte tinha tudo para dar certo, como de fato deu. Era como se os três principais polos culturais do Brasil se juntassem na figura destes três artistas: São Paulo, por meio do concretismo multimídia arejado de Arnaldo; o mítico Rio de Janeiro, com sua tradição da MPB e do pop nacional pela via de Marisa; e a Bahia, cuja ancestralidade afro-indígena em cores rítmicas e melódicas se materializava através de Carlinhos. Juntos eles traziam a capacidade de potencializar o que há de melhor na história da música popular brasileira como nunca antes acontecera. Mas se como banda era então algo inédito, a construção desta simbiose entre os três vinha de muito tempo.
A antenada Marisa foi a catalisadora do “anti-movimento” tribalista. Foi ela a principal intérprete a revelar as potencialidades dos parceiros compositores antes mesmo de suas carreiras-solo: Arnaldo, ainda com os Titãs, em 1991, no disco “Mais”, no qual lhe gravou três músicas inéditas, e Carlinhos a partir de “Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão”, de 1994, antes deste se tornar um popstar internacional. Naturalmente, os três perceberam várias sintonias e complementaridades entre si. A química do grave da voz de Arnaldo e com a leveza mezzo de Marisa, por exemplo, já está lá no primeiro disco dele, “Nome”, de 1992, em “Alta Noite” e “Carnaval”. Com Carlinhos, o estreitamento da relação veio em seguida com as gravações de “Maria de Verdade” e “Segue o Seco”, marcos na carreira dela. Juntos os três aparecem pela primeira vez em “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” na canção “Amor, I Love You”, composição de Carlinhos e Marisa de 2000, cantada por ela e que tem a declamação poética de Eça de Queiroz na voz característica de Arnaldo. Mas antes mesmo outros sinais “tribalistas” já se anunciavam, como no duo dela com Carlinhos em “Hawaii e You” e “Busy Man”, de “Omelete Man”, de 1998 (que tem, aliás, produção dela), e em “O Silêncio” (1996), em que o titã e o líder da Timbalada cantam juntos.
A partir daí, só cresceu a irmandade e eles nunca mais se separaram. “Paradeiro”, “Água Também é Mar”, “Não Vá Embora”, “Universo ao meu Redor”, “Doce do Mar”, “Não é Fácil”, “Talismã” e uma dezena de músicas são fruto de suas colaborações nos anos seguintes. Quando decidiram, então, se unir como banda, a identidade e a sinergia entre eles já era tamanha que bastava apenas dar um nome ao projeto: “Tribalistas”. Enfim, “chegou o tribalismo no pilar da construção”. Na execução, os percentuais de participação de cada um são quase iguais. Quando não realizam as mesmas funções, proporcionalmente compensam em outras. Multi-instrumentista, Carlinhos tem a voz menos destacada, mas é quem naturalmente comanda os arranjos. Marisa, além de ser a produtora, é a figura central com seu violão, seu canto e sua liderança. Arnaldo, por sua vez, influencia menos nos arranjos, mas é a cabeça criativa de várias letras e ideias sonoras, além de também dar forma às melodias vocais. Isso tudo ajudado pela qualidade musical de Dadi e Cezar Menezes.
Perfeito do início ao fim em sonoridades, timbres, arranjos, produção e até duração (13 faixas que não se estendem mais do que 42 minutos), o disco tem, além da memorável capa desenhada em chocolate pelo artista visual Vik Muniz, a fineza das interpretações e, principalmente, das composições do trio, melodistas de mão cheia. Neste quesito, tanto Marisa quanto Arnaldo e Carlinhos colaboram diretamente. “Carnavália”, que abre o disco com um ar nobre, é um híbrido de estilos dos três. Uma levada de violão de influência ibérica ao estilo de Milton Nascimento, com som amplo e cheio, se une a vozes em uníssono e elementos de samba e eletrônicos, coisas que os três valorizam e se valem amplamente em suas obras. "Um a Um", logo em seguida, entra rasgando numa balada ardente e apaixonada (“Muito além do tempo regulamentar/ Esse jogo não vai acabar/ É bom de se jogar/ Nós dois/ Um a um”), também resultado da integração compositiva do trio.
Arnaldo, "Zé" Marisa e Carlinhos: soma de talentos sem igual na história da música brasileira moderna
A já citada “Velha Infância” é, com certeza, uma das mais belas canções de amor do cancioneiro nacional de todos os tempos, num nível de “Você é Linda”, “Quase um Segundo” ou “Como É Grande o Meu Amor por Você”. E isso gente do cacife de Nelson Motta e Jô Soares disseram! Sensível e cantarolável. A letra (“Eu gosto de você/ E gosto de ficar com você/ Meu riso é tão feliz contigo/ O meu melhor amigo é o meu amor”) é de uma simplicidade tão tocante, que atinge uma pureza de sentimento que nem Roberto e Erasmo dos bons tempos conseguiram se assemelhar. Depois, a gostosa e suingada "Passe em Casa", parceria deles com Margareth Menezes – e que também empresta sua voz –, é outro sucesso que pega facilmente quem a escuta: “Passam pássaros e aviões/ E no chão os caminhões/ Passa o tempo, as estações/ Passam andorinhas e verões/ Passe em casa/ Tô te esperando, tô te esperando”.
Uma sequência mais cadenciada emenda a “arnaldística” “O Amor é Feio”, em que aparece a tal tabelinha vocal entre ele e Marisa já experimentada por ambos ao longo dos anos; outra balada romântica, "É Você", tão característica de Marisa quanto de Carlinhos - mas não sem os toques de Arnaldo, como os versos “Deita no meu leito e se demora” ou “Um ritmo, um pacto e o resto rio afora”; e “Carnalismo”, melodiosa como uma delicada caixinha de música (“No rastro do seu caminhar/ No ar onde você passar...”) e onde funciona novamente o vocal Arnaldo/Marisa.
A natalina “Mary Cristo”, mesmo coassinada por Arnaldo e Marisa, é claramente produto da criatividade do baiano da turma. Hábil em compor melodias lúdicas, é Carlinhos, inclusive, quem praticamente põe a primeira voz. A letra, que mescla termos em inglês com português com total fluidez (“Mary, Mary, Mary Cristo/ Cristo, Cristo, Mary, Mary”), como já fizera em “Amor, I Love You”, “Everybody, Gente” ou “Uma Brasileira”, é uma característica dele. Também, o uso de onomatopeias com finalidade tanto melódica quanto poético-sintática (“Carneirinho me dá lã, mé” e “Blim blom”) é igual ao que ele já apresentara em “Meia Lua Inteira” ou “Amantes Cinzas”.
"Anjo da Guarda" mantém o clima quase infantil da anterior, porém amplificando a ideia muito afeita a Arnaldo (“Direitinho”, “As Árvores”, “Pequeno Cidadão”) e também a Marisa (“Borboleta”, “O Céu”). "Lá de Longe", uma das mais brilhantes do disco, traz uma atmosfera etérea e circular, como um mantra. Tanto Marisa quanto Carlinhos e Arnaldo vão intercalando os vocais, formando um encadeamento perfeitamente homogêneo dado pelo arranjo e pela técnica de estúdio. E que melodias e letra bonitas! (“Longe, lá de longe/ De onde toda beleza do mundo se esconde/ Mande para ontem/ Uma voz que se expanda e suspenda esse instante/ Lá de longe...”).
Bem Marisa novamente, “Pecado É lhe Deixar De Molho” é uma bossa nova muito parecida com os que eles produziria em “Infinito Particular”, de 2006. Quase acabando o disco, contrariando, aliás, as regras da indústria fonográfica de destacar a música de trabalho entre as primeiras para facilitar o consumo, vem “Já sei Namorar”. Colocação, entretanto, que não a impediu de se tornar um enorme sucesso de público e crítica, tendo recebido Grammy Latino de "Gravação do Ano", Prêmio Multishow de Música do Ano, e MTV Video Music Brasil 2003 pela escolha da audiência. Bastante Arnaldo em concepção, é quase uma continuação de “Não Vou me Adaptar”, do repertório dos Titãs, porém trazendo como tema a fase da adolescência agora não como o medo de tornar-se adulto e o desconforto do corpo em transformação, mas já experimentando a sexualidade e o desejo de individuação de uma maneira espontânea e bonita. A letra diz: “Já sei namorar/ Já sei beijar de língua/ Agora só me resta sonhar/ Já sei onde ir/ Já sei onde ficar/ Agora só me falta sair”. Dançante e melodiosa ao mesmo tempo, a música foi parar na playlist de qualquer festa ou lugar que se frequentasse à época do seu lançamento. Não à toa, pois é uma doçura de canção.
Arnaldo entoa palavras-chave que determinam não apenas a faixa que dá título ao trabalho e ao grupo como também marca o encerramento do disco. Um ritmo pop tribal típico dele, mas que conta com as mãos de Marisa e Carlinhos, obviamente, fecha o álbum num clima animado e despojado. “Os Tribalistas já não querem ter razão/ Não querem ter certeza, não querem ter juízo nem religião/ Os Tribalistas já não entram em questão/ Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão”. E o refrão, adorável, é daqueles de cantar acompanhando-os: “Pé em Deus/ e fé na Taba”.
O disco foi lançado com um DVD – um sucesso de audiência na TV Globo –, que traz a mesma sequência de faixas sendo executadas pela banda e que quase não se percebe diferença para com as gravações em estúdio tamanha é a qualidade técnica desses músicos. No vídeo, dá para perceber algumas nuances do processo criativo dos Tribalistas e a irmandade entre eles, espírito este que transparece para os sons que produzem. Tanto é verdade que essa afinação entre os três se repetiu 15 anos mais tarde com igual êxito em “Tribalistas 2”. Por isso, mais do que apenas a faixa “Mary Cristo”, este álbum tem muito a ver com Natal, haja vista este amor entre os três, amor de irmãos que se respeitam, se admiram e se complementam entre si com suas semelhanças e diferenças. Dois homens e uma mulher: Arnaldo, Carlinhos e Zé.
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Clipe de"Já sei Namorar", do DVD "Tribalistas"
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FAIXAS: 1. "Carnavália" - 4:16 2. "Um a Um" - 2:41 3. "Velha Infância" (Antunes, Brown, Monte, Davi Moraes, Pedro Baby) - 4:10 4. "Passe em Casa" (Antunes, Brown, Monte, Margareth Menezes) - 3:54 5. "O Amor É Feio" - 3:11 6. "É Você" - 2:51 7. "Carnalismo" (Antunes, Brown, Monte, Cezar Mendes) - 2:36 8. "Mary Cristo" - 3:00 9. "Anjo da Guarda" - 2:47 10. "Lá de Longe" - 2:17 11. "Pecado É lhe Deixar de Molho" - 2:58 12. "Já Sei Namorar" - 3:16 13. "Tribalistas" - 3:23
Todas as composições de autoria de Arnaldo Antunes,
Carlinhos Brown, Marisa Monte, exceto indicadas
Por um bom tempo, parecia que os memoráveis especiais de música
infantil da Globo, os quais geralmente viravam LP’s de grande sucesso de
público e vendas, tinham terminado. Do final dos anos 80 até a entrada do
século XXI, estes ricos especiais como "A Arca de Noé" ou “Pirlimpimpim” sumiram
das telas e das lojas – à exceção de “Castelo Rá-Tim-Bum”, único resistente dos
anos 90. No mesmo período, não tão coincidentemente assim, os pequenos passaram
a ficar cada vez mais emburrecidos pela computadorização limitadora do conteúdo
educativo-cultural, desassistidos pelo desleixo das escolas e perdidos entre a
superproteção e o desinteresse da “nova família” brasileira de classe média.
Espaço para a criatividade, para o exercício do lúdico, para a valorização das
coisas bonitas da vida – amigos, família, natureza, arte – restaram
escanteados. Para que lançar produtos que elevam essas coisas “do passado”, já
que não tem consumidor para tal? Resultado: desvalorização e consequente
idiotização da criança.
A salvação veio a pouco mais de 10 anos pelas mãos dos paulistas da
geração anos 80 – alguns dos responsáveis por, na minha infância/adolescência,
fazerem-me aprender a gostar de música. São eles os criadores de um dos
melhores exemplos de uma nova visão da condição infantil: “Pequeno Cidadão”. Desde este primeiro CD do conjunto, lançado em
2009, reúnem pais músicos e “mais um monte de filhos”, como eles mesmos dizem.
Os protagonistas são alguns dos principais nomes da música brasileira daquela
década para cá: o ex-TitãArnaldo Antunes, o cabeça do Ira!Edgar Scandurra, a ex-Gang 90 Ticiana
Barros e o multi-instrumentista Antonio
Pinto (autor de várias e ótimas trilhas sonoras de filmes como “Cidade de
Deus”, “Central do Brasil” e “Colateral”).
O grupo faz um som baseado no rock mas que investe também na psicodelia
e nos ritmos brasileiros, passando pelo pop, funk e eletrônico. Conceitualmente,
“Pequeno Cidadão” encerra a ideia de uma educação infanto-juvenil comprometida
com o ser humano e com o planeta, sem perder o lado legal da brincadeira e da modernidade
– ou seja, sem deixar esse “comprometimento” virar uma coisa chata e somente pró-forma.
As músicas trazem como temas coisas normais (ou que deveriam ser normais) do
universo infantil: alegrias, dúvidas, bichos, desafios, tristezas e aquilo que
move a todos (ou deveria mover): amor. Afinal, criança não precisa de música
bobinha: ela pode muito bem curtir um rock
‘n’ roll com poesia que lhe faça pensar. Multiplataforma e ativo, “Pequeno
Cidadão” é, no entanto, mais do que apenas só música: o projeto conta com um
segundo CD (2012), um precioso DVD de animações de todas as faixas do primeiro
volume e quatro livros temáticos, além de jornal online e várias ações
culturais que promovem em São Paulo. Tudo com ilustrações de Jimmy Leroy, que
dá uma assinatura plástica muito peculiar em todos os materiais.
Uma das lindas artes de Jimmy Leroy.
Pontapé inicial do projeto, este CD começa pela faixa que lhe dá nome e
que, de certa forma, o sintetiza, pois expressa a ideia de formar uma criança
com responsabilidades mas a deixando ser aquilo que ela é: criança. E como Vinícius de Moraes ensinou: não duvidando da inteligência delas. Arnaldo, acostumado a escrever para esse público desde os Titãs, pratica isso se valendo de figuras
de linguagem como anáforas, repetições no início de cada frase, e,
principalmente, de anástrofes – e aí está já uma das sacadas pedagógicas da
turma: mostrar para a criança a riqueza da língua portuguesa. A anástrofe é um
caso especial dentro de nossa gramática, pois usa a inversão de maneira
incomum: trocando sujeito e predicado, surpreende com a lógica que forma. Na
letra, tudo que é brincadeira vira dever e vice-versa, estabelecendo uma dialética
de correlação e não de condicionamento entre ambos. Por exemplo, o verso “Agora pode fazer a lição” ganha sentido
de um consenso entre pais e filhos e não de obrigação como geralmente se
entende daquilo que não é diversão. Em contrapartida, “Agora tem que jogar videogame” passa a ter a ideia de um convite à
brincadeira, rejeitando o famigerado “tenke”
imposto pelos mais velhos. Além de tudo, a música é um rock embalado e
pegajoso, cujo gostoso refrão o resume clara e brilhantemente: “É sinal de educação/ Fazer sua obrigação/
Para ter o seu direito de pequeno cidadão”.
Antonio Pinto, coautor da primeira faixa, assina com Ticiana uma das
mais lindas canções (infantis? De amor? Da música brasileira deste século?) do
álbum: “O Sol e a Lua”. A música emociona a mim e a muitas pessoas que conheço,
sejam crianças ou adultos. É um pop-rock cantado por ele e por um dos meninos,
além do coro das crianças no refrão e das recitações na voz grave de Arnaldo. Voltada
para os mais crescidinhos, fala sobre um acontecimento que ocorre com todo
mundo na pré-adolescência: o amor não retribuído, aqui personificando nos dois
astros. Apaixonado, o Sol pediu a Lua em casamento e disse que lhe amava há
muito tempo, mas a Lua respondeu que seu coração não pertencia a ninguém, pois ela
só servia para inspirar os casais, “dos
grandes poetas aos mais normais”. O Astro-Rei, claro, ficou na fossa. Desesperado,
foi pedir ajuda até para o Vento, que, apressado, nem parou para lhe escutar.
Foi então que: “O Sol sem saber mais o
que fazer/ Tanto amor pra dar/ E começou a chorar/ E a derreter/ E começou a
chover, e a molhar/ E a escurecer”. E não é assim mesmo que nos sentimos
quando ficamos tristes por amor: derretidos e sem brilho? No final, o consolo
dito na delicadeza da voz infantil: “Se a
Lua não te quer, tudo bem/ Você é lindo, cara/ E seu brilho vai muito mais
além/ Um dia você vai encontrar alguém que com certeza vai te amar também”.
Poesia da maior singeleza.
A doce canção de ninar “Meu Anjinho”, de Ticiana (“E aqui dentro/ no escurinho/ nos braços desta canção/ vou te ninar...”),
se alinha à outra das ótimas do disco, o gostoso xote “Leitinho”, a qual traz a
mensagem de que “um leitinho é muito bom”
pro bebê e pros pais, pois, depois, vem aquele compensador “soninho” que
descansa toda a família. Impossível não lembrar-me de uma vez com minha
sobrinha Luna ainda pequena, com pouco mais de um ano, quando cantei essa
música para ela, sabendo que gostava e que seu pai, meu irmão, costumava cantar-lhe
e pô-la para ouvirem. A surpresa pura que ela ficou quando identificou que era
a mesma música que o papai cantava foi engraçado e emocionante.
A funkeada “O ‘X’” e a agitada “Sobe Desce” são pura diversão, duas
brincadeiras com palavras, letras e suas sonoridades. Mais pedagógica e
profunda é “Tchau, Chupeta” (de Ticiana e Arnaldo), que versa sobre uma das
maiores revoluções pessoais pela qual o passamos na infância: o momento de
largar o bico. O complexo tema, que especialistas há muito discutem – os
limites da chamada “fase oral” e a troca (nem sempre exitosa) de um substituto
simbólico do seio materno –, é colocado de uma forma absolutamente poética e
lúdica, propondo à criança nesse necessário rompimento o desapego em nome de
uma nova fase de vida. “Todo mundo tem
seu tempo de mamar”, diz um dos versos. Graciosa, a letra lança várias
suposições de forma a demonstrar à criança que a chupeta não combina mais com
alguém que não é mais neném: “Já pensou
uma mãe chupando chupeta?/ Já pensou um pai chupando chupeta?/ E uma vó de bobs
e chupeta?/ E um vovô de bengala e chupeta?”. E a proposta para deixar a
tal peta? Libertar-se dela jogando-a no mar para, enfim, poder cantar “sem uma tampa de borracha pra atrapalhar”.
O assunto é tão importante e passível de desdobramentos que virou um dos livros
do projeto, de 2011 (Ed. Leya).
A banda Pequeno Cidadão, com os grandes e os baixinhos.
O tom educativo segue de outras formas. Tem as ecológicas “O Uirapuru”,
bossa-nova que remete à “Passaredo”, de Chico Buarque, e a “Passarim”, de Tom Jobim, revelando a beleza linguística quase despercebida pelos brasileiros do
tupi-guarani; e “Sapo-Boi”, um divertido rock
‘n’ roll urbano de Scandurra cantado por seu filho Lucas: “Se eu fosse o prefeito aqui da capital/
Pegava o sapo-boi e espalhava pela marginal (...)/ A dengue não passa de um mês/
pois o mosquito é o prato da vez”. Por falar em bichos, a punk-rock “Larga a Lagartixa”, além de
ser mais uma quebra de paradigma – afinal, é saudável criança também gostar de
barulho –, é igualmente educativa, uma vez que a frase principal, dita da forma
acelerada para acompanhar o ritmo frenético, torna-se um trava-línguas, bom
exercício para a garotada treinar a dicção.
Outra das mais queridas do disco é "Bonequinha do Papai", a qual minha
sobrinha Luna gosta até hoje. Tecno
bem dançante, põe a meninada na pista! Alem do mais, seu premiado videoclipe, algo
como um retrô-futurista com desenhos estilo anos 20 (mas com uma animação
dinâmica e moderna), é uma verdadeira obra-de-arte, o qual assisti pela
primeira vez no Dia Internacional da Animação, em 2010.
Mas, claro, não podia faltar o futebol, esporte tão gostado no Brasil e
praticado por meninos e meninas. Identifico-me com as duas faixas que tratam desse
tema por trazerem-me lembranças de tempos passados. A primeira é mais uma bossa-nova:
“Futezinho na Escola”, motivadora de outro dos livros do projeto, “1 drible, 2
dribles, 3 dribles — A história do futebol e outras informações interessantes”,
de Marcelo Rubens Paiva (Companhia das Letrinhas, 2014). Nela, Scandurra aborda
o que a mim era um corriqueiro hábito no 1º Grau: bater uma bola com os colegas
na cancha da escola antes de começar os estudos. A letra descreve com muita
sensibilidade as sensações e a dinâmica de um jogo: “O último lance, vâmo logo, passa a bola/ Recebi, quase perdi pro
ladrão que eu nem vi/ Chegou primeiro pedalei e passei/ Chegou o segundo e eu
também driblei/ Veio o terceiro e eu fiz uma tabela/ Tô livre parceiro, vou
chutar de trivela/ É gol!”. Mas tem a hora do divertimento e a do dever. Acaba-se
o jogo rapidinho, pois agora é preciso correr para ir a outro compromisso: a
aula de português.
Tratando ainda do esporte bretão e fechando o disco, "Carrinho por Trás" é mais uma de Scandurra e novamente um samba. Neste caso, um partido-alto. Com
uma pegada carioca e eletrônica, faz-me recordar de outra época, esta, da
adolescência, quando jogávamos nos campos de várzea com nosso time de amigos, a
Juventus. O universo das peladas é muito bem captado pelo compositor, que pega
como mote um dos polêmicos lances que acontecem nas partidas: o carrinho
(segundo a definição de Rubens Paiva, extraída do livro: “o jogador se lança no gramado e, deslizando pelo chão, tenta tirar a
bola do adversário, arremessando os pés na direção dele.”). Como pode
acarretar em uma jogada violenta, o carrinho é mal visto, ainda mais que nem
todo jogador tem boas intenções e nem todo zagueiro tem habilidade para
executá-lo. Eu, da posição, tenho lá minhas dificuldades, confesso. Porém, a
canção fala sobre um defensor que entende do negócio: “O carrinho é perigoso/ No mínimo um tanto suspeito/ Mas se você acerta
na bola/ É aplaudido com muito respeito”. João Nogueira merecia estar vivo
para gravar essa música. Como extra, ainda tem “Pererê”, com participação do
cartunista e escritor Ziraldo declamando um texto seu.
Ao escutar uma obra como essa, fica a sensação de que nem tudo está
perdido no que se refere a conteúdo cultural para criança. Afora “Pequeno
Cidadão”, outro projeto da mesma época, Adriana Partimpim, da cantora e
compositora Adriana Calcanhoto, também teve continuidade e conquistou o
público. No meu círculo, percebo, inclusive, que não são poucas as crianças que
gostam de um ou de outro, desde Luna até outros pequenos que conheço como Bento,
Dora e Gabriel. Bom sinal. Sinal de que há uma geraçãozinha aí antenada e bem
orientada. Além disso, de que existe uma consciência do valor das coisas
importantes da vida (muitas vezes, as simples), que não se resumem a consumo e tecnologia.
Iniciativas como estas se mostram sintonizadas com tal mentalidade. E neste Dia
das Crianças, é um alento perceber gente consciente de que, para se exercer a cidadania
no mundo de hoje, começa-se desde cedo.