Já é tradicional sempre que viemos ao Rio de Janeiro Leocádia e eu –
desta vez acompanhados por nossa hermana Carolina – assistirmos nos dois
primeiros dias de estada algum show musical com minha mãe, Iara. Ela, antenada
nas atividades culturais da cidade, invariavelmente nos leva a algum espetáculo
especial. Já foi assim com Jorge Ben Jor, em 2015, com Monarco e Nei Lopes, em
março deste ano, por exemplo. Desta feita, no dia em que pisamos os três na
Cidade Maravilhosa, minha mãe nos participa que Mart’nália se apresentaria de graça naquela tarde no Auditório do
BNDES, no Centro. Mesmo com chuva, fomos lá os quatro em busca de ingresso.
Oportunidade dessas em Porto Alegre é algo inimaginável, tanto pela qualidade
artística quanto pela gratuidade, uma vez que seria de 100 Reais para mais para
vermos a mesma coisa em nossa cidade.
Ingressos retirados, ajudamos a ocupar um lotado auditório, o qual
presenciou um show da mais alta qualidade técnica e artística. Som e iluminação
perfeitas e, o mais importante, uma apresentação digna dos maiores artistas
brasileiros da atualidade. Mart’nália é um espetáculo por si própria. Dona do
palco e totalmente entrosada com sua banda (Humberto Mirabelli, violão e
guitarra; Rodrigo Villa, baixo; Menino Brito, percussão e cavaquinho; Raoni
Ventepane, percussão; Macaco Branco, percussão; e Analimar Ventepane, percussão
e vocal), faz lembrar o pai Martinho da Vila, com quem se parece bastante fisicamente
e no gestual. Mas Mart’nália, musicista consagrada e original, não é apenas uma
cópia dele. Vê-se nela a música pop, a modernidade do rap, o swing da soul, a
urbanidade do funk carioca, a tradição dos sambistas anteriores a Martinho, as
mulheres bambas, como D. Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra. Uma artista
completa que respira música e que, com alegria e malandragem, transmite isso no
palco.
A carismática e talentosa Mart'nália interagindo com o público |
O repertório, dedicado aos 100 anos do samba, começa com a prece
sambística “Peço a Deus”. Entretanto, o show não trouxe apenas o ritmo mais
brasileiro de todos. Tinha, em perfeita mistura, os ritmos da música pop, como
o funk, o reggae e outros ritmos que Mart’nália introduz com uma naturalidade
tocante. Assim foi com “Tava por aí” e “Pretinhosidade”, duas dela e de Mombaça,
“Cabide”, seu grande sucesso, de autoria de Ana Carolina, “Namora comigo”, de Paulinho
Moska, e a linda “Ela é minha cara”, feita especialmente por Ronaldo Bastos e
Celso Fonseca a ela. Nessa mesma linha, a belíssima “Pé do meu samba”, escrita
por Caetano Veloso, de quem Mart’nália tocou também a graciosa “Gatas
extraordinárias”, conhecida na voz de Cássia Eller e que Mart’nália não se
atreve a meramente copiar, haja visto que sua versão lembra a original mas
traz-lhe toques de samba-reggae.
A segunda metade do show foi dedicada às raízes de Mart’nália, ou seja,
os sambas que cresceu ouvindo nas quadras da Vila Isabel e nos pagodes da vida.
A começar pela diva do samba, D. Ivone, de quem emendou três clássicos,
começando pela linda “Mas quem disse que eu te esqueço”, que muito me
emocionou, “Acreditar” e o sucesso “Sorriso Negro”. Veio uma de Benito di
Paula, “Que beleza”, e outra altamente emocionante do show: “Pra que chorar”,
de Vinicius de Moraes e Baden Powell, numa versão delicada e cheia de
musicalidade. A sensibilidade musical de Mart’nália, que canta e toca vários
instrumentos de percussão com impressionante naturalidade, prossegue com um
arranjo precioso de dois clássicos do mais célebre compositor de Vila Isabel,
Noel Rosa: “Feitiço da Vila” e “Com que roupa”.
Se o assunto era samba e Vila Isabel, então, era hora de puxar aquilo
que trouxe “de casa”, como ela mesma referiu. Ela emenda pout-pourri com seis clássicos de seu pai, começando por “Casa de
bamba” (“Lá na minha casa todo mundo é
bamba/ Todo mundo bebe, todo mundo samba”), passando por “Mulheres”, “Canta
Canta, Minha Gente” e uma engraçada performance de “Nhem nhem nhem”, na qual
Mart’nália gesticula como se estivesse sendo perseguida pela esposa dentro de
casa (“Toda vez que eu chego/ Em casa
você vem/ Com nhem, nhem, nhem/ Se eu vou pro quarto/ Você vai/ Volto pra sala/
Você vem/ Nos meus ouvidos, perturbando/ Nhem, nhem, nhem/ Nhem, nhem, nhem”).
Fechando a roda de samba, outro hit de Martinho: “Madalena”. O desfecho foi com
“Chega”, mais uma dela com Mombaça, canção muito querida do público.
Não tinha exatamente ideia do que ia encontrar num show de Mart’nália.
Embora as notícias davam conta de que sua presença de palco e seu carisma
cativavam o público, tive uma surpresa muito positiva. É muito bonito ver um
artista genuíno no palco, com entrega e amor pelo que faz. No caso dela, como
já mencionei, isso se junta à total musicalidade e bom gosto. Valeu, enfim,
mais uma empreitada idealizada por minha mãe. Que venham os próximos shows de recepção
no Rio, pois este foi mais um dos especiais.
Visão geral do bonito palco do BNDES |
Texto Daniel Rodrigues
Fotos Leocádia Costa
Fotos Leocádia Costa