"Robert Johnson foi o mais importante cantor de blues que já viveu."
Eric Clapton
Ele pode não ter sido o inventor do blues, mas com certeza é seu nome mais importante. Sei que existe um B.B. King, existe um Hooker, um Diddley, um Sonny Boy... Sei, sei. Mas nada se compara à técnica, à genialidade, à singularidade, à sua lenda.
Robert Johnson é daqueles músicos inovadores na sua arte. Daqueles caras que são divisores de águas, tipo: até ali a coisa era assim, a partir dali... Johnson mudou a batida do gênero, mudou o tom tradicional, saiu do trivial, e tudo isso só com um violão, que diga-se de passagem, reza a lenda, era velho e de péssima qualidade.
A propósito, não só o próprio R.J. por si só já é legendário, como muitos fatos que o cercam tem versões duvidosas e mal contadas: a começar pela sua data de nascimento, totalmente imprecisa, com registros de 1909, 1912, mas em princípio considerada oficialmente como 8 de maio de 1911; tem essa do violão, que além de ruim, diz-se, teria cordas enferrujadas quando Johnson fez as gravações (e no entanto, saiu o que saiu); outra é sobre as da versões de sua morte, prematura, aos 27 anos; uma delas atribuída a um uísque envenenado por um marido ciumento cuja esposa teria tido algo com Johnson; outra versão dá conta que teria levado um tiro por circunstâncias semelhantes; numa outra, pneumonia; em outra, sífilis; em outra ainda que teria sido encontrado urrando no corredor de um hotel e então ali morrido; o fato é que na certidão de óbito só consta "sem médico". Mas independente da causa mortis oficial, independente do modo como tenha acontecido, conta outra lenda, a mais impressionante e sobrenatural delas e a mais conhecida, que teria acontecido tão cedo, com apenas 27 anos de vida, por causa do resgate de uma dívida de Johnson com o demônio, que teria cobrado a alma prometida pelo cantor em um suposto pacto, que tivera o objetivo de obter talento e sucesso na carreira de cantor. Há uma outra ainda, vinculada à esta última, que sugere que haveria uma trigésima música (Johnson só gravou 29 canções) que teria ficado 'presa' em uma encruzilhada, onde o blueseiro teria feito seu trato maligno. Aliás, títulos como "Me & My Devil Blues" e "Crossroad Blues" que ajudam a alimentar a lenda.
A história do pacto é tão conhecida, tão rodeada de uma aura fantástica e poética que inspirou, por exemplo, músicas como "Mississipi" de Celso Blues Boy e o filme "A Encruzilhada" que conta exatamente a história de um rapaz que procura a tal da 30° música de Johnson. Demais é o duelo de guitarras do garoto contra o demônio, que no filme é nada menos que Steve Vai.
Mas voltando à obra de Robert Johnson, não há um álbum propriamente dito, já que todas as canções foram gravadas em 1936 e 1937 e na época as gravações era em compactos com uma ou duas músicas apenas. A compilação definitiva com todas as faixas (possíveis) e seus outtakes saiu em 1990 numa bela caixa em edição de luxo com dois CD's chamada "The Complete Recordings", e, amigos, esta caixa é fundamental. Ali está toda a essência do blues e o alicerce do rock. Tem ali toda a alma, a batida, o ritmo, a melancolia e a beleza. Todas as 41 faixas são bala, mas as minhas favoritas são "When You Got a Good Friend", "Sweet Home Chicago" e "They're Red Hot", só pra citar algumas.
Robert Johnson é ainda hoje um dos nomes mais influentes do blues frequentemente citado e gravado por uma porrada de músicos de rock, nos seus mais variados estilos e qualidade, como Rolling Stones, Simply Red, Eric Clapton, White Stripes, Red Hot Chilli Peppers, Led Zeppelin, entre tantos outros.
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FAIXAS: ROBERT JOHNSON- THE COMPLETE RECORDINGS (1936-1937) Disco 1 1. Kind Hearted Woman Blues 2:49 2. Kind Hearted Woman Blues (alternate take) 2:31 3. I Believe I'll Dust My Broom 2:56 4. Sweet Home Chicago 2:59 5. Rambling on My Mind 2:51 6. Rambling on My Mind (alternate take) 2:20 7. When You Got a Good Friend 2:37 8. When You Got a Good Friend (alternate take) 2:50 9. Come On in My Kitchen 2:47 10. Come On in My Kitchen (alternate take) 2:35 11. Terraplane Blues 3:00 12. Phonograph Blues 2:37 13. Phonograph Blues (alternate take) 2:35 14. 32-20 Blues 2:51 15. They're Red Hot 2:56 16. Dead Shrimp Blues 2:30 17. Cross Road Blues 2:39 18. Cross Road Blues (alternate take) 2:29 19. Walkin' Blues 2:28 20. Last Fair Deal Gone Down 2:39
Disco 2 1. Preaching Blues (Up Jumped the Devil) 2:50 2. If I Had Possession over Judgment Day 2:34 3. Stones in My Passway 2:27 4. I'm a Steady Rollin' Man 2:35 5. From Four Till Late 2:23 6. Hellhound on My Trail 2:35 7. Little Queen of Spades 2:11 8. Little Queen of Spades (alternate take) 2:15 9. Malted Milk 2:17 10. Drunken Hearted Man 2:24 11. Drunken Hearted Man (alternate take) 2:19 12. Me and the Devil Blues 2:37 13. Me and the Devil Blues (alternate take) 2:29 14. Stop Breakin' Down Blues 2:16 15. Stop Breakin' Down Blues (alternate take) 2:21 16. Traveling Riverside Blues 2:47 17. Honeymoon Blues 2:16 18. Love in Vain 2:28 19. Love in Vain (alternate take) 2:19 20. Milkcow's Calf Blues 2:14 21. Milkcow's Calf Blues (alternate take) 2:20
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Ouça: Robert Johnson The Complete Recordings
conduzida e influenciada pelo trabalho de um homem (Robert Johnson)"
"(A música de Johnson) É a melhor música que já ouvi."
Eric Clapton
Disco de discípulo homenageando mestre. Eric Clapton, confesso amante do blues e que já dedicara vários momentos de sua carreira a gravações no gênero, resolvia então depois de muito tempo fazer um álbum inteiro somente com canções do homem que é por muitos considerado o maior nome da história do blues, Robert Johnson. O projeto, no entanto, nasceu meio que por acaso, uma vez que Clapton tinha o compromisso com a gravadora de lançar um novo álbum mas, de repente, vira-se sem tempo hábil para apresentar novas composições. Assim, a solução foi partir para um repertório que conheciam bem e que tirariam de letra. Clapton pediu para que a banda tocasse como se estivesse num bar de beira de estrada e o resultado é um disco extremamente leve, gostoso e solto.
Fora a diferença de tocar com uma banda completa ao passo que, na maioria das veze a única companhia de Johnson era o próprio violão, as canções mantêm suas estruturas e características originais, sem maiores ousadias. "When You Got a Good Friend", "Me and the Devil Blues" e "Kindheart Woman Blues" são praticamente puras, preservando ao máximo a atmosfera original das canções, mas é lógico que um músico talentoso como Clapton dá seus toques pessoais a muitas delas e aseja em solos destruidores e altamente originais mesmo em composições tão consagradas, seja em diferenças sutis nos arranjos. "Last Fair Deal Gone Down", por exemplo, tem uma versão alucinada sendo possivelmente a que mais se distancia da original. "Traveling Riverside Blues" por sua vez sofre uma certa desaceleração e ganha uma mixagem mais trabalhada que a diferencia das demais nesse sentido; "32-20 Blues" carrega no piano; "They're Red Hot" abre mão do ritmo frenético imposto por Johnson; "Hellhound on My Trial" tem um ritmo quebrado, bateria marcante e guitarras surgindo de todos os lados; e "Milkow's Calf Blues" ganha peso lembrando os tempos de Cream e seus blues envenenados.
Um tributo tardio segundo o próprio Clapton que já manifestara o desejo de gravar a obra deste cantor, uma homenagem quase sem querer dadas as circunstâncias, mas que nós, fãs de blues e de boa musica, somos gratos por ter acontecido. Uma justa celebração do blues que carrega, curiosamente, uma estranha ironia, considerando a alcunha pela qual Clapton ficou conhecido e a lenda em torno de Robert Johnson: "Me and Mr. Johnson" seria, por assim dizer, uma homenagem de Deus para o Diabo.
Cly Reis
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FAIXAS:
1."When You Got a Good Friend" (3:20) 2."Little Queen of Spades" (4:57) 3."They're Red Hot" (3:25) 4."Me and the Devil Blues" (2:56) 5."Traveling Riverside Blues" (4:31) 6."Last Fair Deal Gone Down" (2:35) 7."Stop Breakin' Down Blues" (2:30) 8."Milkcow's Calf Blues" (3:18) 9."Kind Hearted Woman Blues" (4:06) 10."Come on in My Kitchen" (3:35) 11."If I Had Possession Over Judgement Day" (3:27) 12."Love in Vain" (4:02) 13."32-20 Blues" (2:58) 14."Hell Hound on My Trail" (3:51) ***************** Ouça: Eric Clapton - Me and Mr. Johnson
"John Lee Hooker é um daqueles caras que sabe o que é ter o blues, e como mostrá-lo. A prova de que ele pode fazer isso com estilo individual, força dramática e balanço crescente pode ser comprovado nesta coletânea, que deve ser considerada como um dos grandes álbuns de blues dos últimos anos."
nota da contracapa do LP origianl de 1959
A voz rouca, o estilo quase falado de cantar, a marcação com o pé, um blues ao mesmo tempo primário e sofisticado, todas estas são marcas registradas de John Lee Hooker, uma das maiores lendas do blues e um dos músicos mais influentes de todos os tempos. Em 1959 esse cara lançava seu primeiro álbum, "House of the Blues", na verdade, uma coletânea de gravações avulsas realizadas de 1951 a 1955, com algumas faixas impressionantemente muito bem produzido e mixadas para os recursos da época, o que, de forma alguma, pelo bom aparato técnico, fazia perder a característica bem 'raiz', da música do cantor.
Como cartão de visitas, o disco abre com "Walkin' the Boogie ", um blues elétrico, experimental, que um ouvinte menos avisado poderia tranquilamente confundir com Jimmi Hendrix, e que revela bem essa ambiguidade entreo apro técnico e crueza. Também é exemplo de boa produção, a ótima "It's My Fault" com seus efeitos na voz e na guitarra e acompanhamento de piano ao fundo.
"Union State Blues", com seu solo insistente de guitarra; a belíssima "Sugar Mama" e a ótima "Louise" fazem a linha mais tradicional do cantor, em canções mais básicas, mais cruas, no modelo voz, guitarra, e marcação.
Ainda valem destaque a boa "Rumblin' by Myself" que inicia já com aquele 'mugido' característico de Hooker; o show do violão no blues acústico "Grounfd Hog Blues"; o bles/rock embalado "High Priced Woman"; e o rock'n roll de beira de estrada, quase à Chuck Berry, "Women and Money", que fecha a conta.
Grande disco de blues/rock que sempre tive vontade de ter e que, dia desses, passando pelos usados de uma loja que frenquento, dou de cara. "Ôpa! Só se for agora". Mais um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS para a prateleira. Tá lá.
Quando assisti ao ótimo bluesmanKenny Neal em São Paulo mês passado pensei que aquele breve mas impecável show
fosse uma compensação por não poder ir ao Mississipi
Delta Blues Festival, que ocorreria dali a semanas na cidade gaúcha de
Caxias do Sul. Mas era, na verdade, um bom presságio. Tal sentimento se dava
por um misto de falta de disponibilidade e a possibilidade de se fazer outra
boa programação mais próxima – e mais fácil. É que teria também o festival Som
de Peso, que ocorreria em Porto Alegre justamente no mesmo dia e hora e onde
tocariam bandas célebres do punk nacional, como Cólera e Olho Seco, e, além
destas, a Vômitos & Náuseas, a grande banda de hardcore do meu primo Lucio Agacê. Dúvida cruel. Depois de muita
combinação, tive que suplantar a vontade de ir ao Som de Peso, pois conseguimos Leocádia e eu nos organizar para subir a Serra e conferir pela primeira vez o
MDBF, vontade alimentada há anos.
Stroger, comandando o grupo no baixo.
E o esforço não poderia ter sido mais bem recompensado. Com uma
programação cuidadosa e qualificada, tanto no que se refere a atrações
internacionais quanto nacionais, além de uma estrutura planejada e eficiente, o
MDBF, em sua 8ª edição, provou (pelo menos a nós, que ainda não o conhecíamos)
que é o melhor festival de música do Rio Grande do Sul do momento. Prova disso
é que o dia em que fomos, o terceiro e último da edição de 2015, não por isso
ficou devendo. Dividido em sete palcos, o festival apronta um rodízio de
apresentações dos artistas por vários destes durante os três dias de evento,
fazendo com que se possa assisti-los em mais de uma oportunidade. Igualmente, o
local não poderia ser mais adequado: a antiga estação férrea de Caxias, prato
cheio para Leocádia fazer várias fotos pois empresta uma atmosfera onírica àquela
sonoridade melancólica, antiga e sensual típica do blues. A chuva que caía
ajudou a aumentar o clima cinematográfico.
Bob Stroger posando para as lentes.
O blues rolava por todos os cantos, dos alto-falantes, dos palcos, das
pessoas cantando, assobiando, dançando. Chegava a emanar de algumas figuras que
ali estavam. Um desses seres iluminados era Bob Stroger, o incrível baixista californiano de (acredite-se) 85
anos. Stroger, que havia estado em Porto Alegre na semana anterior – e que, novamente
por agenda e correria, não pudera assistir –, foi um dos principais motivos de
irmos ao MDBF. Artista “residente” do festival, participou de todas as edições
deste até agora, o que certamente continuará fazendo até não poder mais, haja
vista seu prazer em estar ali. Ele dizia, faceiro: “This is my house”. Um dos primeiros a se apresentar naquele dia, ele
referia-se não somente a Caxias e ao festival como ao Front Porch Stage, um
caracterizado palco que reproduzia o ambiente de uma sacada de um rancho do Sul
norte-americano, aquelas que a gente vê em filmes sobre negros pobres e
trabalhadores de fazendas de algodão de antigamente. Para alguém como ele, do
início do século passado, certamente aquilo era bem familiar. Estava se
sentindo em casa mesmo, acarinhado e admirado pelo público.
Cokeyne, à direita, e sua banda de ilustres convidados.
Na verdade, Stroger fazia o ambiente se tornar real, visto que ele em
si é uma entidade em pleno palco. De terno risca de giz escuro, sapatos e
chapéu, é a encarnação daquilo que o mundo conheceu no início do século XX chamado
blues, o gênero musical afro-americano que coloca, em ritmo sincopado,
repetitivo e simples, os sofrimentos e tristezas dos negros escravos e
apartados de sua terra. Blues, com suas raízes religiosas, de trabalho ou de protesto.
Um estado de espírito. E Bob Stroger é a representação viva disso. Ele mesmo,
orgulhoso, diz várias vezes: “I’m the
blues”. Quem há de contrariá-lo? Entre as maravilhas que escutamos de sua
voz sôfrega, mas com o aveludado que somente os negros de lá conseguem ter,
“Just a Sad Boy”, “Talk to me Mamma”, “Don't You Lie to Me” e uma canção que,
além de fantástica, se tornaria especial naquela noite: “Blind Man Blues”,
autoria do próprio Stroger. Um bluesão embalado num riff de baixo contínuo e cheio de groove, que lhe põe naquele limiar entre o blues e o rock. Esta, comporia
outro episódio importante horas depois...
"Don't You Lie To Me" - Bob Stroger - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Sherman Lee Dillon, pura energia.
Tinham mais coisas a se aproveitar ainda. Noutro palco, o Bus Stage,
iriamos conferir o nosso amigo Cokeyne Bluesman (Beto Petinelli,
ex-Cascavelletes), que havia reunido uma galera especial para uma das
apresentações. E olha: que apresentação! Disparado a mais empolgante da noite e
que, mesmo não estando num dos palcos principais, ensandeceu o público que
assistia. Que energia que saída dali, a ponto de as pessoas serem tomadas por
ondas de euforia, respondidas pelos músicos e vice-versa. A química foi precisa:
Cokeyne, referencial na guitarra solo e slide
guitar; Lucas Chini, no baixo, um cabeludo psicodélico e tomado pela música
que parecia ter se congelado no tempo, pois era tal um integrante de banda de
rock-blues dos anos 60, uma Canned Heat ou The Band; e o norte-americano
Sherman Lee Dillon, de quem se pode dizer apenas uma coisa: nossa! Aquele
velhinho branco de camisa, calça social e quepe poderia ser, como bem Leocádia
observou, o vendedor da banca da esquina ou o dono da tabacaria. Só que quando
empunha a guitarra, sai de perto! É um furação em forma de blues.
Na bateria, Gutto Goffi.
Melhor amigo do saudoso B.B. King, Dillon, natural do Mississipi, mostrou
ser um genuíno seguidor de Muddy Waters e Bo Diddley. Com sua harmônica e sua
guitarra de metal, parecido com um banjo elétrico, ele incendiou o pequeno
palco, pondo todo mundo pra se mexer. Uma das mais quentes foi a versão de
“Maybelline”, clássico de Chuck Berry, que tocaram numa versão tão eletrizante
quanto. Além disso, quem completava a banda na bateria era Guto Goffi, o
baterista do Barão Vermelho, que estava ali animadíssimo tocando o que gosta e
sem todo o aparato e multidões de que é acostumado. Cokeyne, o anfitrião,
também não deixou por menos. Com solos arrebatadores, levantou a galera várias
vezes, mesmo sem cantar como Dillon. Ainda teve a palhinha do músico gaúcho Andy
Serrano, na gaita, o mesmo da banda de rockabilly que vimos anos atrás no Clube de Jazz Take Five, em Porto Alegre. Um empolgante e surpreendente show.
'Super Chikan' no palco principal do MDBF.
Entre uma programação e uma paradinha para comer, deu tempo de ver, no
Moon Stage, palco principal, um bom pedaço da apresentação de outra das também principais
atrações do MDBF desse ano: o norte-americano James "Super Chikan"
Johnson, mais um filho do Mississipi. Outro arraso. O cara, que ganhou esse
apelido na infância, quando ainda era jovem demais para trabalhar no campo e
passava o seu tempo conversando com as galinhas, começou tocando o diddley bow, instrumento muito
rudimentar que o ajudou a desenvolver sua capacidade de extrair sons de uma só
corda. Essa forma de tocar é evidente em seu estilo, que aproveita ao limite
uma sequência de notas, sempre com muito groove.
Isso sem falar do característico grito que lança entre uma execução e outra
imitando o cocoricó das galinhas com quem tanto conversava quando criança.
Eu com Rip Lee Pryor.
Voltando ao Front Porch Stage, pena que não deu tempo de assistir um
pouquinho de outra lenda: o harmonicista Rip Lee Pryor (filho de Snooky Pryor),
que ainda estava passando som e o pito na equipe técnica, que não acertava o
que ele pedia. Na mesma hora – essas coincidências são inevitáveis, ainda mais
para que foi em apenas um dos dias como nós – subiria no Magnolia Stage outra
das que nos motivaram bastante a escolher por essa e não outra programação: a
cantora Zora Young. Igualmente produto do Delta do Mississipi, é daqueles
vários artistas de blues cujas famílias, depois da 2ª Guerra, migraram para
Chicago em busca de novas oportunidades. Criada dentro das igrejas gospel, foi
tomando com o passar do tempo gosto pelo Rhythym
n' Blues a ponto de não o largar mais. A explicação talvez esteja no
sangue: Zora tem em sua árvore genealógica uma das lendas do blues, Howlin' Wolf. No festival, ela mandou ver num show pulsante e dançante, com sua
poderosa voz rouca muito trabalhada nos corais religiosos e nos pubs de blues. Interagindo com a
plateia, Zora e sua banda fizeram um espetáculo daqueles que não dá vontade de
sair mais (tanto que, quando vimos, já tinha acabado o de Pryor), com
repertório de primeiríssima qualidade, solos afiadíssimos e, claro, a
excelência da voz de Zora.
A divina cantora de raízes gospel e rythm'n blues,
Zora Young e o privilégio de ter na banda Stroger, ao fundo.
Mas por falar na banda de Zora Young, aqui vai aquela parte que havia
ficado faltando sobre “Blind Man Blues”, de Bob Stroger. Aconteceu que, com
receio de que sobrasse para nós algum daqueles esporros de Rip Lee Pryor com a
equipe, saímos logo do Front Porch Stage e chegamos minutos antes para assistir
Zora. Porém, para nossa surpresa quem sobre no palco são três músicos mais...
Bob Stroger! ”Ué, será que mudaram o lugar
do show dela?”, pensamos. Fomos perguntar a um rapaz do staff e ele nos confirmou que era ali,
sim, o show da cantora. Pois não é que Stroger, nos seus já mencionados (mas
que não custa relembrar) 85 anos foi, horas depois de ter aberto o festival, formar
a banda de Zora Young? Na maior simplicidade e humildade. Coisa de músico de
verdade. Já no final da noite, ele abriu com a mesma música que já tinha tocado
no outro palco para depois tocar, como apenas mais um integrante, mais uma hora
e meia – sem se sentar nem pedir água. Pelo contrário: no centro do palco,
estava lá ele postado, elegante em seu terno risca de giz e chapéu,
abrilhantando ainda mais o show da companheira de blues.
"The Thrill Is Gone"/ "I'm Freee" - Zora Young - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Foi o próprio Bob Stroger que disse se sentir em casa. Sentimento
compartilhado com muita gente ali, entre músicos e espectadores, que fazem o
MDBF crescer a cada ano, sempre com a expectativa pela edição seguinte. Eu
mesmo já estou me vendo, lá em novembro de 2016, cantando para convencer
Leocádia: “Oh, baby, don't you want to
go? Back to the land of Caxias do Sul/ To my sweet
home, festival?”
Capa original de 1965 e
e a da reedição de 1967, abaixo
"Eu não quero viajar no tempo,
eu quero estar aqui.
Nesta varanda eu estou caminhando
de um lado para o outro como Lightnin 'Hopkins. "
trecho da letra de "Window Seat"
de Eryka Badu
Mais um mestre do blues pintando aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. A bola da vez é Lightnin' Hopkins, um dos nomes mais importantes do gênero e um dos mais influentes também. Nascido no Texas, Samuel John Hopkins, acabou por conta dessa procedência incorporando elementos da música country à sua obra, o que acabaria por tornar-se um traço muito particular entre os cantores de blues e um diferencial de sua música. Embora tecnicamente não tivesse sido um grande guitarrista, seu estilo solto, leve, espontâneo, tornam seu estilo singular conferindo a ele outras qualidades que não meramente a do virtuosismo no instrumento. E se instrumentalmente já é um deleite ouvir a música de Hopkins, seu jeito despojado e brejeiro de cantar torna seu blues ainda mais irresistível.
O disco em destaque aqui é o ótimo "Blue Lightnin'" de 1965, gravado numa época da carreira do artista que pode-se dizer que o mesmo encontrava-se na plena maturidade e controle de suas virtudes musicais, fazendo do álbum algo extremamente prazeroso de se ouvir. Disco todo impecável mas vale a pena destacar o country-blues sofisticado "Found My Baby Crying"; "Fishing Clothes" com seu ritmo bem embalado; o blues choroso "Morning Blues" com destaque para o piano bem dramático; a crueza sonora de "Lonesome Dog Blues"; a excelente "Gambler's Blues" sobre um cara com má sorte nas mesas de jogo; e o show de Hopkins no violão na clássica "Back Door Friend" . Enfim, aquele mundo característico do blues, de mulheres, desilusões, jogatina, grana curta e tudo mais, aqui com uma pitada a mais de country e a marca pessoal de Lightnin' Hopkins.
Estive no último final de semana, de feriadaço aqui no Rio, na simpática Teresópolis, na serra fluminense, e aproveitei para dar uma conferida do III Teresópolis Blues Festival que estaria rolando na cidade por aqueles dias. Evento muito bacana de fundo beneficente, cuja entrada era doação de alimentos, com boa infraestrutura de um modo geral, considerando o porte do evento. Ótimas opções gastronômicas com food-trucks variados, muita cerveja artesanal com diversos expositores de qualidade apresentando seus produtos e, é claro, muita música. Na quinta-feira, quando cheguei à cidade, só consegui ir assistir aos shows no final da tarde, pegando assim, ainda, o finalzinho da banda Belonave que fez um pop-rock competente apesar de um tanto óbvio e batido mas que serviu pra esquentar bem a galera. Na sequência, veio a boa RJ Café Band que fez tributo a dois grandes nomes do rock nacional, ambos com grande influência do blues em sua música: Cazuza e Celso Blues Boy. Números muito bem executados, chamando atenção, especialmente os de Cazuza pela semelhança do timbre do vocalista da RJ Café Band. No que diz respeito a Celso Blues Boys, se "Aumenta que isso aí é rock'n roll" levantou todo mundo, de outra feira, senti falta de "Mississipi", homenagem a Robert Johnson, ainda mais em um festival dedicado ao blues. Ouvi depois, de entreouvidos, que a produção teria impedido o bis da banda, por conta do atraso na programação, que provavelmente contemplaria a canção. Independente do quer tenha ocorrido, se o veto ou a ausência no set-list da banda, gostaria de tê-la ouvido lá, até pela relevância que tem dentro do contexto do blues produzido no Brasil e porque tenho certeza que seria muito bem executada, dada a competência e domínio que a banda demonstrou quanto ao repertório do bluesman brasileiro.
A RJ Café Band levou ao placo sucessos de Cazuza e Celso Blues Boy
Assim, um pouco atrasada, entrou no palco para fechar a noite a banda do músico norte-americano radicado no Brasil, Al Pratt, que do alto da experiência de seus longos cabelos brancos, só controlava tudo sentado à frente de órgão enquanto a meninada fazia o trabalho "pesado", mandando muito bem e a cantora convidada Camila Gobbi arrasava em interpretações contagiantes de soul, rock e rhythm'n blues.
Al Pratt, ao teclado, comandou sua banda, abrilahntada pelos vocais de Camila Gobbi
A sexta-feira foi, infelizmente, impraticável. A chuva impiedosa, constante e intensa, fez com que eu optasse por não ir ao evento que parecia, pela descrição dos artistas e de suas especialidades, muito interessante e promissor. Aliás, eu e mais um monte de gente, pois soube de um dos expositores que a presença de público acabara sendo bastante fraca. Mesmo com uma boa infra-estrutura, como destaquei, os poucos pontos cobertos no parque onde se realizava o festival, não teriam dado conta da chuva que batia lateralmente com o vento.
A Alphen, banda de Teresópolis, levantou o púlbico com seu metal de ótima qualidade.
Já no sábado, embora o tempo ainda não estivesse totalmente firme e confiável, pude voltar à praça da música de Teresópolis e de cara tive uma agradabilíssima surpresa. Cheguei por volta das 17 horas, e o que encontrei foi a banda Alphen, a única banda da cidade no line-up, que vigorosa e competente, despejou todo seu peso sobre a galera que respondeu com o mais alto entusiasmo e vibração a clássicos de todos os tempos do metal.
Os instrumentos à Bo Diddley da O Velho Bllues
Depois do êxtase causado pela Alphen, quem entrou foi a banda Corcel Mágico pra baixar a rotação e deixar tudo mais suave. Com ênfase no folk, o grupo, ainda que irretocável tecnicamente, na minha opinião poderia, para um festival, onde o público, queira ou não, é um tanto heterogêneo, ter escolhido um repertório um pouco mais popular, mais conhecido, de modo a arrebatar o público, ainda que, justiça seja feita, tenham tocado Simon and Garfunkel, Creedence, Raul, mas por outro lado, tenham executado muitas composições próprias que davam uma certa esfriada na platéia. Um Neil Young, um Dylan, um The Band, apesar de óbvios, teriam caído bem.
A noite de sábado fechou com a banda O Velho Blues, time azeitado da cidade de Petrópolis, também na serra do Rio de Janeiro, que com seus instrumentos atípicos quase rudimentares, usando caixas de charuto e uma tábua de lavar roupa fabricados pelo vocalista Bruno Fraga, ao contrário do que anunciava o nome, não tocava só os antigos nomes do blues, tendo executado "novos" clássicos de bluesman contemporâneos como Albert King, Stevie Ray Vaughan e Freddie King, mas sem deixar de lado, é claro, o bom e velho blues de mestres como Elmore James, Robert Johnson, Muddy Waters e outros. O show, que contou também com composições próprias da banda, esquentou a galera na noite fria de Teresópolis e manteve animação lá em cima.
Banda O Velho Blues
Saí de Teresópolis no início da tarde de domingo e, portanto, não pude ver os shows daquele dia, o último do festival, mas tenho certeza que, epal amostragem dos dias anteriores, mantiveram o ótimo nível do evento que me deixou com a melhor das impressões e com o sincero desejo de retornar nas próximas edições.
Apesar da chuva, quase todos os dias, o evento foi um sucesso e agradou ouvidos e paladares.
É interessante... Devo admitir que comprei esse disco por causa da capa. Estava numa dessas feiras de vinil fuçando na seção de jazz e blues e dei de cara com esse com um negão empunhando uma guitarra na capa. Pinta de blueseiro invocado, dos bons. Vou levar. Alguma coisa de bom devia sair daquela guitarra. Ouvi o disco e percebi o tamanho da sorte da minha escolha ao acaso. Um baita disco de blues. Já contemporâneo, mais elétrico, mais pesado mas totalmente dentro da melhor linha dos grandes músicos do gênero. Depois, buscando informações sobre o produto que comprara é que fui saber das qualificações do guitarrista. Freddie, um dos três "Kings" do blues junto com B.B. King e Albert King, fez parte da grande cena do blues de Chicago dos anos 50, tendo tocado com Willie Dixon, Robert Lockwood Jr., e o gaitista Little Walter, entre outros e, apesar da rejeição da Chess Records, que o considerava muito parecido com B.B. King, aos foi poucos conquistando seu próprio espaço ganhando reconhecimento de grandes nomes do universo musical. King foi considerado pela revista Rolling Stone o 15º melhor guitarrista de todos os tempos e sua marca registrada era o jeito de pendurar a alça da guitarra, sem cruzá-la, apoiada no ombro do mesmo braço com que tocava.
"Getting Ready..." é um belo exemplar do blues de Chicago evoluído com o passar do tempo, adaptado a seu tempo, no caso, o início dos anos 70. Mais rock'n roll, mais pesado e com uma dose de psicodelia. A melancólica "Same Old Blues" que abre o disco tem uma pegada gospel; a versão de "Dust My Broom" de Elmore James é espetacular; "Five Long Years", outro clássico, também tem execução impecável; e "Walking by Myself" é outro grande momento.
Mas a grande música do disco é mesmo "Going Down", um blues forte, intenso, tão encorpado e vigoroso que chega às raias do rock muito próximo ao som que Jimi Hendrix vinha fazendo e que o próprio mestre Muddy Waters havia experimentado em "Electric Mud".
"Palace of the King" que fecha o disco é outra com pegada mais rock, ao melhor estilo Eric Clapton, com quem por sinal, Freddie excursionaria ainda antes de sua morte prematura aos 42 anos.
********************* FAIXAS: 1. Same Old Blues (Don Nix) 2. Dust My Broom (Elmore James ) 3. Worried Life Blues (Big Maco) 4. Five Long Years (Eddie Boyd) 5. Key To The Highway (Bill Broonzy, Charles Segar ) 6. Going Down (Don Nix) 7. Living On The Highway (Don Nix, Leon Russell)
8. Walking By Myself (Lane) 9. Tore Down (Freddie King) 10. Palace Of The King (Don Nix, Donald "Duck" Dunn, Leon Russel)
"Seus olhos se iluminavam e você podia ver as veias se incharem no seu pescoço e, irmão, sua alma inteira se concentrava naquela canção. Ele cantava com a danada da alma." Sam Phillips, da gravadora Sun Records, descrevendo Howlin' Wolf
Um uivo de lobo.
Uma voz potente.
Um homem transfigurado em animal no estúdio.
Assim era Chester Arthur Burnett, mais conhecido como Howlin' Wolf, um dos maiores nomes do blues de todos os tempos. Artista de admiráveis qualidades vocais, exímio manejo da guitarra e performances arrasadoras em shows, Wolf que começara na Sun, gravadora que revelou Elvis Presley, teve, no entanto, seu período de maior sucesso pelo famoso selo Chess, de Chicago, curiosamente levado pelas mãos do, sabidamente um arquirrival, Muddy Waters.
Rivalidades à parte, cada um com seus talentos, muitos diga-se de passagem, havia espaço para os dois na Chess. A maioria dos músicos do staff da gravadora gravavam as canções do baixista da casa e compositor Willie Dixon, mas poucos como Wolf tiraram tanto proveito desta parceria. Saíram das maos de Dixon alguns dos maiores sucessos de Howlin' Wolf e diga-se de passagem, em contrapartida, são dele algumas das melhores interpretações das músicas de Dixon.
Wolf já havia gravado um disco desde sua chegada à Chess mas que ainda trazia heranças da Sun Records, sua antiga gravadora, e contava apenas com as composições do próprio cantor, mas foi com o disco conhecido popularmente como "The Rockin' Chair Blues" que Wolf alçou voo definitivamente no universo do blues muito em função das composições de Dixon e de seu dedo na produção.
O disco abre com a excitante "Shake For Me", uma incitação à libido e já traz na sequência o clássico "The Red Rooster" cantado de maneira arrastada por Wolf com o acompanhamento de por uma slide guitar matadora do próprio cantor. A música ganharia inúmeras versões posteriores, nas quais ganharia o diminutivo pela qual é mais conhecida ("Little"), dentre elas a suingada de Sam Cooke, a suja do Jesus and Mary Chain e a maliciosa dos Rolling Stones.
"Who's Been Talkin'", um blues lento, quebrado com um toque latino é uma das duas, apenas, de autoria do próprio cantor no disco, e ""Wang Dang Doodle", que a segue é pegada, cheia de embalo, com uma guitarra vibrante e um refrão contagiante.
Outra que já foi regravada incontáveis vezes, por Etta James, Who, pelo Cream de Eric Clapton, mas que tem na versão deste blueseiro do Mississipi, a primeira, diga-se de passagem, uma de suas melhores interpretações, é a magnetizante "Spoonful", mais uma das obras-primas de Dixon imortalizada pelo vocal singular do Lobo.
Na chorosa "Going Down Slow" onde o vocalista praticamente apenas declama a letra, o que destaca-se mesmo, desde a introdução martelada, é o piano; já em "Back Door Man", Howlin' Wolf retoma o protagonismo e encarna o personagem soltando ganidos arrepiantes numa canção que é uma espécie de assombração sensual e sedutora e que cuja versão, talvez, mais conhecida seja a da banda The Doors gravada logo em seu álbum de estreia.
Bem ritmada, embalada, impetuosa, "Howlin' for My Baby" (que também é conhecida com a variação de "... My Darling"), talvez a melhor tradução da fusão de estilos do blues do Delta para o de Chicago, encaminha com grandiosidade o final do disco para que "Tell Me", a outra composição de autoria de Wolf no disco, um gostosíssimo blues com uma levada apaixonante de harmônica se encarregue de fechar de forma magistral.
Um daqueles caras para o qual a alcunha lenda do blues cabe perfeitamente, ainda mais reforçada pelo nome sugestivo que carregava, pelas performances insanas no palco, pelo feitiço que impunha às mulheres e pelos uivos quase animalescos que emitia em suas interpretações. Seria aquela figura na verdade uma criatura entre o home e o lobo? Teria ele, como o outro legendário Robert Johnson, feito algum pacto sinistro cujo preço seria que dividisse sua forma entre o humano e o bestial, metamorfoseando-se depois de determinada hora, em determinados dias, em dada fase lunar? Ficaria ele assim, mesmo em sua forma humana com traços do animal o que explicaria seus grunhidos, uivos e rosnados característicos e sua forma gigantesca e quase gutural? Bobagem, bobagem. Mas, ei... Alguém aí ouviu um uivo?
********************** FAIXAS:
"Shake for Me" – 2:12
"The Red Rooster" – 2:22
"You'll Be Mine" – 2:25
"Who's Been Talkin'" (Howlin' Wolf) – 2:18
"Wang Dang Doodle" – 2:18
"Little Baby" – 2:45
"Spoonful" – 2:42
"Going Down Slow" (St. Louis Jimmy Oden) – 3:18
"Down in the Bottom" – 2:05
"Back Door Man" – 2:45
"Howlin' for My Baby" – 2:28
"Tell Me" (Howlin' Wolf) – 2:52
* todas as faixas compostas por Wilie Dixon, exceto as indicadas
"Uma vez que você sentiu o poder da música, e viu pela primeira vez suas mãos serem capazes de tocar os corações e almas de pessoas em todo o mundo, esta magia é algo que você jamais esquece."
Eric Burdon,
da biografia"Don't let me be Misunderstood"
Um
dos meus discos favoritos deve ser uma surpresa para muitos dos que
me conhecem. Fui apresentado a ele em 1980 pelo meu amigo e colega
Luiz Paulo Santos. Chama-se “Before We Were So Rudely Interrupted”,
da banda inglesa The Animals e foi gravado em 1977. O grupo surgiu na
década de 60 quando o Alan Price Combo ganhou a adesão do vocalista
Eric Burdon. Mais um daqueles brancos de almanegra,
Burdon deu à banda a voz que faltava naquela mélange de blues, jazz
e soul no meio da beatlemania.
Os
Animals fizeram muito sucesso com “The House of the Rising Sun”,
“We've Got to Get Out of This Place”, “Don't Let Me Be
Misunterstood”, entre muitas outras. A primeira ruptura aconteceu
quando o baixista Chas Chandler resolveu deixar seu instrumento e ser
manager de um artista emergente na Swinging London e que daria muito
o que falar: Jimmi Hendrix. Logo depois, os Animals encerraram a
primeira parte de sua carreira com Alan Price fazendo trilhas para os
filmes de Lindsey Anderson (em especial o maravilhoso “O Lucky
Man”) e Burdon indo para a América, onde foi ser vocalista do
grupo War. Em 76, os integrantes do grupo resolveram dar uma segunda
chance ao azar. Reuniram-se e gravaram este disco com o estúdio
móvel dos Stones numa fazenda. O nome já é um achado: “Antes de
seremos tão rudemente interrompidos”. O velho humor inglês.
A
festa começa com o piano de Alan Price num clima boogie-woogie num
clássico de Leiber & Stoller mais Otis chamado “Brother Bill”
(The Last Clean Shirt). Um R & B das antigas, a canção permite
a Burdon dar seu primeiro de muitos shows durante o disco. O
guitarrista Hilton Valentine também faz seu primeiro solo, carregado
pelo piano de Price. Uma das melhores versões de “It's All Over
Now, Baby Blue” vem em seguida. O clima é soturno com a bateria de
John Steel fazendo uma batida seca e as harmonias de Alan Price se
juntando às da guitarra de Valentine, enquanto um sintetizador faz a
cama. Eric Burdon modula sua voz para encarar os altos e baixos da
canção. Nem Dylan teria pensado num arranjo ecumênico como este.
Depois
de duas canções dessas, chega a hora de descontrair com “Fire on
the Sun”, um rock libidinoso no estilo Little Richard, mas gravado
na década de 70 (“Your
love is like fire, baby / Fire on the Sun”). Mais
uma vez o cérebro musical da banda, Alan Price, comanda as ações.
“As The Crow Flies”, composta por Jimmy Reed, volta ao blues com
o piano elétrico. O resto da banda faz aquela velha batida blues de
Chicago. Pra fechar o lado 1 do LP, uma das melhores músicas de todo
o disco: “Please Send Me Someone to Love”. Nela, Eric Burdon
mostra toda a sua qualidade como cantor. Talvez nunca em sua carreira
ele tenha cantado uma música como essa, cheia de modulações e
subidas e descidas de tom numa mesma frase. Alguém poderia dizer que
é pirotecnia. Eu diria que ele é um excelente cantor. O narrador
pede paz e tranquilidade no mundo, mas se não for pedir muito, mande
um amor. “Heaven please
send / To allmankind /understanding and peace of mind / but if its
not asking too much / please send me someone to love”.
Numa cama de órgão, guitarra jazzística, baixo e bateria, o Fender
Rhodes de Price brinca, permitindo a Burdon uma performance
incrível.
O
antigo Lado 2 começa com uma música de Jimmy Cliff, “Many Rivers
to Cross”, que os Animals transformam de um reggae num lamento
gospel (o deles, não o nosso). A mensagem é de superação:
“Many rivers to cross / But I can't seem to find /my way over”.
Mais adiante, o narrador reclama da solidão: “And
this loneliness just won't leave me alone / It's such a drag to be on
your own”. No final,
Burdon rasga seus lamentos como um cantor negro de igreja batista no
Sul dos Estados Unidos. “Just Want a Little Bit” inicia
enigmática com o piano e passa para um R & B dançante de Little
Mama Thornton. Nesta canção, Alan Price relembra seus velhos tempos
de pré-beatlemania, quando o som da juventude inglesa era o blues e
o Rhythm'n'Blues de grupos com órgão, como o de seu colega Georgie
Fame. A única composição de integrantes dos Animals vem na
sequência: “Riverside County”, outro blues com escala
descendente. O grande compositor Doc Pomus aparece com a clássica
“Lonely Avenue”. Os arranjos deste disco brincam todo o tempo com
esta “simplicidade” do blues e vão colocando camadas e camadas
de pequenos detalhes com vocais, guitarras e teclados, enquanto a
batida é constante. O final é engraçado com “The Fool” que
diz: “Juntem-se a mim,
amigos / ergam suas taças/ e bebam ao bobão /o louco bobão / que
mandou seu amor embora”.
Durante
todo o disco, Burdon reclamou que a mulher tinha ido embora, que
estava numa avenida solitária e tal. Nesta última canção, este
arco dos relacionamentos vira do avesso. “Ela
encontrou um novo amor / eu digo que ele é o cara de sorte/ Bebam ao
bobão / eu mandei meu amor embora”.
Um disco de blues e Rhythm'n'blues em plena era disco e de Boston,
Eagles e Peter Frampton. Não poderia ter dado certo mesmo. Os
Animals saíram em turnê e cinco anos depois tentaram mais uma vez
com o disco “Ark” de 1983. Mas os melhores tempos já tinham
passado. Eric Burdon continua na ativa e acabou de lançar um
trabalho muito festejado pela crítica, “'Til Your River Runs Dry”.
Mas essa história vai ser contada daqui há pouco.
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FAIXAS:
1.
"Brother Bill (The Last Clean Shirt)" (Jerry Leiber, Mike
Stoller, Clyde Otis) - 3:18
2.
"It's All Over Now, Baby Blue" (Bob Dylan) - 4:39
3.
"Fire on the Sun" (Shaky Jake) - 2:23
4.
"As the Crow Flies" (Jimmy Reed) - 3:37
5.
"Please Send Me Someone to Love" (Percy Mayfield) - 4:44
6.
"Many Rivers to Cross" (Jimmy Cliff) - 4:06
7.
"Just a Little Bit" (John Thornton, Ralph Bass, Earl
Washington, Piney Brown) - 2:04
8.
"Riverside County" (Eric Burdon, Alan Price, Hilton
Valentine, Chas Chandler, John Steel) - 3:46
Paulo
Moreira é jornalista e radialista há 32 (!!) anos, apresentador do
cultuado Sessão Jazz, da rádio FM Cultura, de Porto Alegre. Adora
música e cinema ou cinema e música, a ordem não altera o fator dos
produtos. Teve duas filhas (e uma neta) e plantou árvores. Falta
escrever um livro. Adora dois locais em extinção no mundo moderno:
livrarias e lojas de discos. É um jurássico assumido, pois usa mas
não é escravo das novas tecnologias. E nada substitui um bom livro
ou um encarte de discos com ficha técnica completa. Adora Porto
Alegre, mas, se pudesse, morava no Rio de Janeiro.