quarta-feira, 9 de abril de 2025
Música da Cabeça - Programa #406
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Sinéad O'Connor - "Am I Not Your Girl?" (1992)
Sabe aqueles discos que a gente acha que ninguém mais gosta além de você? Pois é, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor era assim pra mim. Já era fã da cantora de seus trabalhos de carreira, mas aí na compilação "Red Hot + Blue" coletânea com vários artistas em homenagem a Cole Porter, descobri a veia jazz da irlandesa. No projeto da organização Red Hot, em benefício às vitimas da AIDS, Sinéad interpretava, de forma magnífica, a lindíssima "You do something to me" e aquilo me arrebatou. Mas acredito que a experiência tenha sido importante para ela também, uma vez que a cantora lançaria dois anos depois, um álbum só de standarts do jazz.
Sinéad canta com elegância, com precisão, confere a emoção exata para cada canção.
A faixa de abertura já justificaria todos os elogios à obra: "Why don't you do right?", canção originalmente do filme "As noivas do Tio Sam", mas imortalizada na voz da sensual personagem de desenho Jessica Rabbit, ganha carne e osso na boca de Sinéad O'Connor numa interpretação provocativa, insinuante, venenosa, digna da femme-fatale do desenho animado.
"Bewitched, Botched and Bewildered" que a segue, conjuga magicamente melancolia, delicadeza e graça, com a cantora colocando uma doçura tal, uma fragilidade na voz... que chega a ser algo realmente tocante. "Secret Love", originalmente cantada por Doris Day, nos anos 50, tem um arranjo mais aberto, mais luminoso, mas Sinéad canta num ar quase confidente ao revelar, "Once I had a secret love" e logo abre o peito para revelar que não tem segredos para mais ninguém, "My secret love is no secret anymore". E "Black Coffee", gravada anteriormente por nomes como Sarah Vaughn e Ella Fitzgerald, e trilha do filme "Algemas Partidas" em 1960, confirma perfeitamente aquela atmosfera misteriosa de filme noir.
No entanto é em "Success has made a failure of our home" que a irlandesa despeja sua maior carga emocional em uma das canções do disco. Apoiada por um arranjo jazz-rock intenso, Sinéad numa interpretação dramática, encarna uma mulher desesperada, quase indo às lágrimas, se desfazendo, se desintegrando diante de seu homem, implorando para que ele simplesmente diga que ela ainda é sua garota.
Outro ponto alto do disco é a ótima "I want to be loved by you", do filme "Quanto mais quente melhor", na qual Sinéad conserva a discontração e a leveza da original, interpretada por Marilyn Monroe, com direito até a um "Boop-boop-a-doop!", que, se não tem a mesma sensualidade da loira, tem graça e doçura.
A sombria canção do compositor húngaro Rezső Seress, letrada por László Jávor, "Gloomy Sunday", associada frequentemente a suicídios, traduzida para o inglês e cuja interpretação mais famosa é de Billie Holiday, ganha uma verão não menos emocional, intensa e cheia de possíveis "leituras" e "interpretações" na voz da irlandesa que, sabe-se bem, embora tenha morrido de causas naturais, tentara o suicídio diversas vezes durante a vida.
"Love Letters", clássico que já esteve nas trilhas de diversos filmes e peças, com os mais variados andamentos e ênfases, neste disco ganha uma sonoridade imponente de metais com uma poderosa introdução de uma orquestra de jazz, enquanto Sinéad, se comparada a outras grandes vozes como Nat King Cole e Elvis Presley que já interpretaram a canção, opta por uma interpretação sóbria, comedida, que lhe confere um aspecto ainda mais fragilizado.
Em uma leitura extremamente melancólica e dramática do clássico da bossa-nova, "Insensatez", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a irlandesa demonstra toda a importância e a influência da música brasileira em sua formação. "Scarlett Ribbons", canção de Natal na sua origem, aqui adquire uma carga quase fúnebre. Muito se dá pelo formato: a voz acompanhada apenas por uma flauta, e o tom cru do estúdio, com o ouvinte podendo captar todas as respirações, as pausas, os vazios...
"Don't cry for me, Argentina", do musical Evita, aparece em duas versões, uma cantada, que se não é nada excepcional, no mínimo é, inegavelmente, melhor do que a da Madonna, e uma instrumental, num jazz descontraído e acelerado, que, praticamente fecha o disco, que ainda tem uma mensagem pessoal da cantora sobre a dor (o que também fez ainda mais sentido depois das circunstâncias de sua morte).
Na época que soube do projeto da irlandesa, tratei de dar um jeito de dar um jeito de conseguir aquele seu novo álbum, só que duro como era na época (e ainda sou), o jeito foi gravar e ter em K7. Muito ouvi aquela fita. Gastei os cabeçotes do walkman com ela. Até evoluí depois, embora ainda sem grana, para o CD gravado, mas nunca havia tido uma mídia original. Até que numa dessas feiras de vinil, encontrei por um preço bem razoável o "Am I Not Your Girl?" em LP. O vendedor, um senhorzinho muito simpático que me contou ter sido DJ em festas disco dos anos 70, se derreteu pelo álbum. Disse ser aquele, na sua opinião, um grande disco, trabalho que muita gente não valoriza mas que para ele era o melhor da cantora, interpretações incríveis e tudo mais... Se eu tivesse alguma dúvida, as teria abandonado naquele momento com uma manifestação tão entusiástica como aquela. Mas a admiração pelo disco não parou nele: tenho o hábito de compartilhar nas redes sociais minhas trilhas sonoras do dia e num dia desses qualquer, ouvindo o álbum, lancei lá no Facebook, no Instagram, no Twitter, um "Ouvindo agora, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor". Ah, foi uma enxurrada de likes e comentários. "Grande disco", "Esse disco é muito bom", "Dos meus preferidos", e etc. Aí que eu descobri que não sou só eu que adoro esse disco. E, cá entre nós, um disco com tantos clássicos, canções eternizadas pelo cinema, músicas já interpretadas por nomes imortais, admirado desta maneira, e com essa importância na vida de tanta gente, não pode ser considerado menos que um ÁLBUM FUNDAMENTAL.
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FAIXAS:Ouça:
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Música da Cabeça - Programa #185
Deram uma batida no QG do Música da Cabeça e nada de achar dinheiro na cueca, só música por todo lado. O programa vem assim hoje: sem nada a esconder, tal como a música de Björk, Richie Valens, Caetano Veloso, Devo, Banda de Pífaros de Caruaru, Billie Holiday, Mutantes e mais. Nos quadros, "Sete-List", "Palavra, Lê" e "Música de Fato" em ritmo de "Marcha da Cueca". Ficha limpa o MDC de hoje, 21h, na incorruptível Rádio Elétrica. Produção, apresentação e alguns reais (na carteira): Daniel Rodrigues.
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
segunda-feira, 12 de março de 2018
John Pizzarelli - Porto Alegre Jazz Festival - Centro de Eventos BarraShoppingSul - Porto Alegre/RS (08/03/2018)
Meu amigo Roger Lerina acertou em cheio em sua resenha do show de John Pizzarelli no último dia 8 de março no Centro de Eventos do BarraShoppingSul, dentro da programação especial do Porto Alegre Jazz Festival: Ele "é diversão na certa”. Tocando para um público de meia idade – mesclado salutarmente com alguns jovens mais atentados –, o guitarrista inovou desta vez. Misturando aquele feijão-com-arroz gostoso de standards clássicos como “They Can’t Take That Away From Me” e “I Got Rhythm”, dos irmãos George & Ira Gershwin, com músicas de Nat King Cole e dos Beatles, o músico provou que sabe cativar uma plateia com sua simpatia, com arranjos bem escolhidos e de fácil assimilação pelo público. Seu grupo, apesar de não ter nenhum virtuoso, mostrou ser correto e direto ao ponto, sem firulas. O pianista Konrad Paszkudzki, o baixista Mike Karn e o baterista Andy Watson cumpriram muito bem seu papel de coadjuvantes da grande estrela.
Mas as semelhanças com os shows anteriores terminaram aí. Escorado um scat singing junto com sua guitarra, Pizzarelli usou a técnica aperfeiçoada por George Benson a seu favor. Usando este expediente em quase todos os solos, o guitarrista mostrou ter amplo conhecimento da história de seu instrumento no jazz, circulando pelos estilos dos sóbrios, Jim Hall, Barney Kessel e Herb Ellis num momento e na exuberância do já citado Benson e de Wes Montgomery no outro. Após começar o espetáculo suavemente com as composições dos Gershwin e de seu ídolo King Cole, Pizzarelli apresentou suas novidades. Primeiro, uma versão de “Honey Pie” dos Beatles quase irreconhecível. Na sequência, talvez o grande momento musical da noite, a versão de “I Feel Fine”, de Lennon & McCartney, utilizando-se do tema clássico do funky soul da gravadora Blue Note, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan como base do arranjo.
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O virtuoso Pizzarelli e sua competente banda |
A partir daí, o guitarrista chama ao palco o neto de Tom Jobim, Daniel – cada vez mais parecido com o avô – para emular o encontro de Frank Sinatra com Jobim há 50 anos atrás. E se saem bem. Como no disco, as clássicas “Dindi” e “Água de Beber” dividem espaço com “Baubles, Bangles and Beads” e “I Concentrate on You, de Cole Porter, mas Pizzarelli tem o cuidado de acrescentar outras pérolas jobinianas no repertório, como “Bonita”, “Two Kites” e “Wave”. Daniel, pouco à vontade somente ao microfone, deslanchou ao piano e voz. No final, a indefectível “The Girl From Ipanema”, que suscitou mais um dos engraçados comentários do guitarrista sobre a onipresença desta canção no mundo inteiro.
Pra finalizar, o número que Pizzarelli sempre apresenta em sues shows: a homenagem ao seu estado natal, New Jersey, com “I Like Jersey Best”, onde brinca com “as versões” de Bruce Springsteen, Bob Dylan, Paul Simon, Lou Reed, Lou Rawls, Billie Holiday, James Taylor, Bee Gees e, até mesmo, João Gilberto e João Bosco. Um final divertido para um show muito musical. Tudo isso começou com o duo da voz de Dudu Sperb com o piano de Luiz Mauro Filho. Como se esperava, dados os talentos do cantor e do pianista, a noite iniciou maravilhosa com clássicos como "Ilusão à Taa", de Johnny Alf; "Stardust", de Hoagy Carmichael, e da linda "Mistérios", de Joyce. Primeiro, a sobriedade gaúcha armando a plateia para a animação de John Pizzarelli. “Volte logo, Pizza”, como disse meu querido amigo Sepeh de los Santos.
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Porto Alegre já está aguardando o retorno de Pizza |
domingo, 9 de outubro de 2016
John Lennon and Yoko Ono - "Double Fantasy" (1980)
sábado, 29 de agosto de 2015
Quadrinhos no cinema #6 - “ Watchmen - O Filme”, de Zack Snyder, (2009)
Adaptação que divide opiniões
por Vagner Rodrigues
Sem rodeios, já vou avisando que gostei do filme de Zack Snyder. O cara sabe fazer adaptações de quadrinhos, está longe de ser um grande diretor, mas é competente, assim como seus filmes. No ano 1985, numa realidade alternativa, no auge da guerra fria, todos os olhares estavam voltados para a possível guerra nuclear entre EUA X URSS. Enquanto isso, nos Estados Unidos, o vigilante Rorschach (Jackie Earle Haley), investiga a morte de outro vigilante, Edward Blake, O Comediante (Jeffrey Dean Morgan), e desconfia que alguém está tentando matar os vigilantes. Rorschach então avisa seus ex-colegas mascarados, conhecidos como WATCHMEN , sobre suas suspeitas. Conforme a investigação se a profunda, mais tenso vai ficando o clima entre o grupo de supers.
Um filme de ação muito bem feito, porém, muito distante da profundidade da HQ, esse distanciamento também ocorre na construção dos personagens, que são bem mais profundos do que aparece no longa. O filme chegou aos cinemas com uma expectativa enorme, devido ao grande número de fãs que a HQ tem, porém essas expectativas não foram alcançadas, para a maioria dos fãs. Entendo que Zack Snyder não teria tempo para aprofundar mais a trama do filme, pois estamos falando de Hollywood. Então em alguns momentos vira apenas um filme de ação com a assinatura de Snyder, onde os personagens que em sua maioria são apenas humanos comuns fantasiados de super-heróis, aqui são apresentados com poderes fantásticos, tirando em alguns momentos, aquele clima mais pé no chão da história original.
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Dr. Manhattan, eu esperava mais de você. |
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Rorschach, difícil de escrever, de falar, entender,
mas muito fácil de se encantar com esse jeitinho meigo dele.
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Um aspecto que colaborou muito na narrativa do filme foi ótima trilha sonora que tem Bob Dylan, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Billie Holiday, Nina Simone até a competente (no meu ponto de vista) My Chemical Romance. Quase todas as músicas dialogam muito bem com cena, foram escolhas perfeitas, exceto uma, que ficou muito forçado (ganha um sorvete quem acertar qual foi)*.
"Watchmen - O Filme", realmente dividiu opiniões, e divide até hoje. Como filme de super-heróis, ele é muito bom, diria um pouco acima da média pela forma como aborda o tema (vamos lembrar mais uma vez, é uma adaptação). Mas deixo a dica para que você assista a versão estendida, (eu sei tem 3 horas é um pouco demais), mas vai valer a pena, tem um pouco mais (bem pouquinho) da noção que os humanos comuns do dia a dia tem dos Supers.
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Os efeitos visuais são ótimos. |
*(Promoção do sorvete: quem respondeu que a cena é a que o Coruja II e a Espectral II fazem sexo e o filme fica boa parte em uma tensão sexual dos dois, e quando começa a cena mais quente, começa a tocar "Hallelujah" do Leonard Cohen" e a nave do Coruja começa a disparar chamas e sair fumaça, acetou. Eu particularmente achei bem forçado. Os acertadores devem reivindicar seu sorvete junto aos editores-chefes do blog.)
sábado, 9 de fevereiro de 2013
Billie Holiday - "Lady in Satin" (1958)

Sempre quis ter esse disco da Lady Day até por saber que fora de um dos últimos atos de sua conturbada carreira e por felicidade, agora, encontrando um relançamento da Columbia Records, que botou no mercado também outros títulos interessantes de jazz, finalmente o tenho em minha discoteca.
"Lady in Satin", de 1958, com certeza não é o melhor trabalho pessoal da cantora, não tem suas performances mais brilhantes ou o melhor de seu potencial vocal, mas até pelo fato de sua voz, outrora doce, suave, maviosa, mostrar-se extremamente fragilizada pelo estado de saúde debilitado, naquele que seria o último ano de sua vida, resultado do uso excessivo de ácool e heroína ao longo de toda sua trajetória, faz com que suas interpretações ganhem em dramaticidade e intensidade. Assim, cada ciúme soa mais trágico, cada desilusão mais sentida, cada decepção mais dolorida, cada adeus mais triste. "I'm a Fool to Wanto You", que abre o disco, é um ótimo exemplo disso, onde com a voz limitada, fraca, rasgando na garganta em determinados momentos, nos proporciona uma interpretação emocionate e única. "You don't Know What love Is" chega a ser mesmo ruim tal a deficiência da cantora contrastando, contudo, com o brilhantismo do arranjo e da execução da orquestra; em "For All We Know" e "Glad to Be Unhappy" é possível notar o esforço da cantora tentando se superar (e conseguindo); e "The End of Love Affair", que encerra o disco, mesmo com um fio de voz, Billie ainda consegue nos brindar com outra atuação vocal comovente em outra das grandes faixas do álbum. Em "Get Along" Billie é graciosa; em "For Heaven's Sake" consegue mesmo a duras penas trazer de volta o velho encanto com muito brilho; e tem ainda interpretações fenomenais na ótima "But Beautifull" e na excepcional "You've Changed", a preferida do prórpio meastro Ray Ellis que admite, de início, ter ficado decepcionado com o que encontrou de Billie Holiday no estúdio, mas que depois, ouvindo o resultado, percebeu que aquilo que registraram era uma das melhores coisas que já havia escutado na vida.
Um triste porém belo epitáfio de uma das maiores e mais importantes cantoras de todos os tempos. De certa forma, um documento de uma vida, pois tudo estava ali naquele final, naquele álbum, naquela voz rouca, débil, triste, dolorosa: toda a vida de sofrimentos, erros, paixões, desilusões, vícios, mas também de beleza, amor, sensibilidade e talento.
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FAIXAS:
01 - I’m a Fool to Want You
02 - For Heaven’s Sake
03 - You Don’t Know What Love Is
04 - I Get Along Wiyhout You Very Well
05 - For All We Know
06 - Violet for Your Furs
07 - You’ve Changed
08 - It’s Easy to Remember
09 - But Beaultiful
10 - Glad to Be Unhappy
11 - I’ll be around
12 - The End of a Love Affair
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Ouça:
Billie Holiday Lady In Satin
sábado, 3 de março de 2012
Neyde Zis e Tim Maia - "Neyde & Tim" - (1974)


O disco é o ápice da carreira da “Diva Black”, “A menina mulher da pele preta”, como a apelidara Jorge Ben , que a homenageara com a música que dá título ao primeiro álbum dela, de 1969. Depois de várias participações em trabalhos de parceiros – leia-se Cassiano, Tony Tornado, Hyldon e Bebeto, ou seja, só a nata da soul music brasileira –, ela, influenciada pela guinada pós-tropicalista do amigo Erasmo Carlos e do próprio Ben, grava o já muito bem comentado neste blog por Eduardo Wolff , "Dó-Ré-Mi-Fa-Sol-Lá-Zis" , considerado por Oberdan a principal influência da Banda Black Rio e o melhor disco brasileiro dos anos 70. E não só ele a idolatrava. Até artistas internacionais louvavam Neyde Zis, como declarou Isaac Hayes, em entrevista de 1997 a BBC, quando perguntado qual a melhor cantora black de todos os tempos: Aretha Franklin ou Billie Holiday. Negando ser nenhuma das duas, ele respondeu com seu vozeirão de Chef: “The best black woman singer lives in Brazil. She’s called Neyde Zis.”
“Neyde & Tim” não tem comparação, e pode ser considerado um capítulo à parte na carreira tanto dela quanto na do “Síndico”. A sessão foi quase ininterrupta, tudo ao vivo, apenas uma paradinha e outra para emborcar um gole de uísque, fumar unzinho e comer um pouco de goiabada – coisa que Tim sempre carregava consigo para a sobremesa. O disco abre com uma obra-prima composta por Gilberto Gil no exílio em Londres: “Nêga”, que não coincidentemente fez parte do repertório de uma outra jam que jamais existiria não fosse “Neyde & Tim”: o disco “Gil & Jorge Xangô Ogum”, confessa homenagem de Gil e do Babulina à dupla. Nessa versão, mais cadenciada e romântica que a original, o vocal fica por conta de Neyde, que carrega na sensualidade. Tim, responsável por toda a cozinha, entrecorta a linha melódica soltando versos que pareciam ter sido escritos por Gil para Neyde: “The tropical nêga” ou “This nêga is my”.
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Hayes: "Neyde Zis é a melhor
cantora negra de todos os tempos."
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Sabe-se lá como, mas o Paulo Ricardo, o Rubens e o Serginho Trombone, que na época tocavam tanto na banda de um quanto de outro, apareceram por lá e gravaram a guitarra, o baixo e os sopros, enquanto Tim cuidava da bateria, do violão e de uma caxeta que trouxeram de um show em Niterói ocorrido horas antes. Neyde só se incumbia de emprestar sua voz. E era o que bastava. No máximo, um chocalho ou uns acordes de violão. Foi com essa formação que gravaram “Psychoblack”, um funk lisérgico de dar inveja a qualquer Parliament-Funkadelic; “Farofa”, baião eletrificado com uma bateria pesada cheio de groove; e “Retorno”, um samba-rock que captou o momento em que Tim reclamava do técnico de som que era... humm, ele mesmo. Todos – àquela altura já envoltos na fumaceira que tomava todo o estúdio –, caíram na gargalhada, e a música ficou uma das mais espontâneas do disco.
Ao todo são apenas 10 faixas de várias que a dupla tocou até as 7 da manhã do dia seguinte. Pelo menos foi isso que veio parar na mão do produtor Mariozinho Rocha, que finalizou a mixagem. Os LP’s impressos na época hoje são raridade, e valem uma fortuna no mercado alternativo. Sabe-se de colecionador no Japão que não vende seu exemplar nem por dez castelos de Osaka. Mas agora esta versão remasterizada com capricho no Abbey Road pode fazer com que mais pessoas possam dar o devido valor a uma das obras mais importantes da nossa música e, enfim, fazer justiça a uma artista infelizmente esquecida neste Brasil sem memória. Salve o “Gênio” Tim, claro, mas, acima de tudo, salve a “Musa” Neyde Zis!
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O impacto da noite de orgia musical e lisérgica foi tanto que, logo depois desta fatídica madrugada, Tim caiu em uma forte abstenção e a uma crise existencial que lhe levou a ler um tal de livro chamado “Universo em Desencanto”. O resto da história todos sabem no que deu.
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Poucos sabem, mas “Acenda o Farol”, gravada por Tim em 1978 no disco “Tim Maia Disco Club”, foi criada naquela noite. Quando os dois tiveram a delirante ideia de se dirigir ao estúdio da Somil, ambos vinham juntos de Niterói no tal fusquinha, que aprontou de furar um pneu no caminho. Tim, puto com o ocorrido, ao invés de ralhar, inventou uma música. Enquanto trocava o estepe lá fora, gritava para Neyde lá dentro do carro: “Pneu furou/ Acenda o farol/ Acenda o farol...”. A música foi gravada para “Neyde & Tim”, mas, infelizmente, perderam o único take porque puseram outra por cima (coisa de gente grogue). Tim só foi redescobrir a música anos mais tarde porque a encontrou escrita num papel amarrotado no bolso de uma calça que tinha usado apenas uma vez, ou seja, na histórica noite da gravação de “Neyde & Tim”.
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FAIXAS:
1. Nêga (Gilberto Gil)
2. Zismaia (Neyde e Tim)
3. Ogulabuiê (tradicional: ponto de umbanda)
4. Batuque (Neyde e Tim)
5. Farofa (Tim Maia)
6. Psychoblack (Tim Maia)
7. Kaxassa (Tim Maia)
8. Som (Ari, Célio e Tim Maia)
9. Retorno (Tim Maia)
10. Brother (Jorge Ben)