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terça-feira, 28 de novembro de 2023

“A Guerra dos Botões”, de Yves Robert (1962)


Botões, bolitas e bytes ou A mesma guerra*

“Nunca vamos nos transformar 
em bobocas como os adultos.” 

Não é de se estranhar que crianças ou adolescentes, ao perceberem a divisa que se lhes impõe entre infância/adolescência e a desencantada fase adulta, pensem assim. Um dos filhos da psicanálise, o cinema, invariavelmente, toma-lhe emprestado conceitos teóricos para, a seu modo, evidenciar a condição humana e as mudanças sociais. Pois mesmo que nem sempre dita da boca pra fora, esta frase ecoa através das últimas décadas através de filmes que, historicamente pontuais, revelam sentimentos em comum no comportamento juvenil da idade contemporânea. Terreno onde se encontram e dialogam “A Guerra dos Botões” de Yves Robert (“La Guierre des Boutons”, França, 1962), “Os Meninos da Rua Paulo” e “A Rede Social”.

Se a tal frase é proferida em apenas um dos filmes, o fato de não aparecer nos dois outros é quase detalhe. Aliás, nem precisaria, de tão implícita que está. Afinal, todos os três se compõe do mesmo barro: a construção do sujeito e seus limites de razão e moral.

"A Guerra...": equilíbrio entre realidade e sonho

”A Guerra dos Botões” equilibra realidade e sonho, empunhando aspectos sociais universais através de um olhar sincero e lúdico, mas não menos satírico e crítico. Ao estilo dos realistas fantásticos (além de Vigo, lembra bastante Renoir na sua suave complexidade humanística), conta a história de um grupo de estudantes da interiorana e pobre Longeverne, que, liderados pelo rebelde Lebrac, declaram guerra aos da vizinha e igualmente carente Velrans. A ideia é arrancar todos os botões e confiscar os cintos dos “presos”, para que, mais do que serem castigados pelos pais ao voltarem para casa, percam sua honra ao deixar à mostra as cuecas. Revoltado contra a tirania dos adultos, Lebrac - um símbolo inconsciente da criança que quer ter o direito de ser criança - foge para não ser internado no orfanato. Através de uma temperada fotografia p&b e do clima fantástico proporcionado pela ambientação silvestre Robert mostra como o ser humano, a partir de sua tomada de consciência da realidade, elabora as questões de afeto, orgulho, rejeição e socialização.

Peanuts e Ozu

Não à toa, a ”A Guerra dos Botões” foi premiado com o Jean Vigo de Melhor Filme infanto-juvenil, pois presta uma justa homenagem ao diretor de “Zero de Conduta” (1933) a ponto de parecer-lhe uma obra póstuma. Robert, assim como Vigo, joga sua perspicaz lente sobre as questões da criança numa pequeno universo, ajustando o foco sobre os desajustes sociais, o abismo entre as gerações e os valores decaídos. Seu enquadramento lembra o plano rebaixado das tirinhas Peanuts de Charles Schultz e dos filmes do japonês Yasujiro Ozu, tal é a sintonia que estabelece com a vida das crianças. Os adultos aparecem aos poucos, como “fantasmas”, como uma triste materialização do erro a que aquelas crianças se tornarão no futuro. 

A turma de Charlie Brown e "Filho Único", de Ozu: Ocidente e Oriente na visão das crianças

Feito sete anos depois, sob uma textura de cores oníricas que valoriza a tonalidade natural (como o amarronzado da terra, da madeira e das peles coradas da meninice), o húngaro “Os Meninos da Rua Paulo” (“A pál-utcai fiúk”, dirigido por Zoltán Fábri e inspirado no clássico do escritor Ferenc Molnár) se assemelha bastante a “A Guerra dos Botões” estrutural e formalmente falando. A narrativa, os elementos simbólicos, as atribuições de valores, a dinâmica e a variedade dos enquadramentos, etc. Porém, diferente do primeiro, onde o personagem Lebrec revolta-se contra o opressor sistema da família e da escola, neste, é o pequeno Nemecsek quem paga pela bravura ao desafiar os rivais, acamando-se com pneumonia por causa de um banho gelado e, consequentemente, morrendo.. 

A paisagem inocente de “A Guerra...” é substituída por uma capital Budapeste do final do século XIX de ares bucólicos, uma cidade grande ainda por se tornar grande como aquelas crianças. Os “botões morais”, aqui, se trocam por bolitas de gude – e tão importantes moralmente quanto botões. Se o orfanato antes representava a pena por virar adulo, aqui, passa pela perda do amigo e pelo progresso social que avança ao ser construído sobre o terreno da rua Paulo, palco das divertidas guerrinhas, um moderno e imponente prédio.

Rua Paulo

Pois ambas as obras se unem por um ponto: a necessidade de se inventar convenções de interatividade social. A psicologia infantil julga natural que a criança imite o adulto como um “ensaio para o futuro”. Hoje, no entanto, na era da Internet, jogar gude ou fazer guerrinha na floresta já não é tão interessante às crianças como prática de interação social, e a esta etapa fundamental do que se chama de Psicologia do Desenvolvimento se põe um imenso vazio. A mídia, ditadora de padrões e proto-verdades, ocupa o lugar dos pais em aspectos relevantes da criação, como a elaboração dos valores e a orientação cognitiva. Isso faz com que as crianças/adolescentes pulem etapas, agindo não só cada vez mais igual aos adultos como, também, “amadurecendo” precocemente. 

"Os Meninos...": os conflitos reais entre realidade e sonho

É o caso do jovem Mark Zuckerberg, do bom “A Rede Social” (“The Social Network”, 2010). No filme do talentoso David Fincher, a não-assimilação das frustrações da vida adulta, como o fora da namorada e a rejeição pela “fraternidade” a qual dava tanto valor, inflamaram a necessidade de pertencimento do protagonista, levando este “herói pós-moderno” a criar, em resposta, a sua própria “fraternidade”. Mas não sem pena: cunhar o bilionário Facebook (hoje Meta, agrupando aí o Instagram) rendeu-lhe fama e divisas (ou seria “admiração dos coleguinhas” e “muitas bolitas”?), mas também algo mais grave, típico dos dias atuais: o isolamento –  tal qual num orfanato ou uma cama de enfermo. Mas se os personagens de “A Guerra...” e “Os Meninos...” lograram reconhecimento, por conta de suas condutas pautadas em símbolos comuns ao grupo, a amoralidade despreocupada de Mark, característica da Geração Y, abre espaço para uma nova ética. A razão, nos dias atuais, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli, dá lugar à lógica da “hedonização”, à fragmentação dos sentimentos e emoções no coletivo, e não mais no âmbito pessoal. 

Assim, os três filmes, mesmo produzidos em épocas tão distintas, se conectam por esta necessidade de criação de significados que justifiquem a existência. Junto ao “rito de passagem” que marca a fase inicial da vida para aquilo que se será até a morte brota a insegurança do esvaziamento de sentidos, da perda de algo genuíno, de si mesmo. “Serei, a partir de agora, só mais um ‘boboca’”? “O quão inevitável é esse ciclo”? Como em “Zero de Conduta”, onde as impostas verdades da escola interna oprimiam principalmente as crianças que se opunham àqueles cambaleantes valores do mundo entre-Guerras, a vida moderna coloca, hoje, situações que, embora diferentes em forma, implicam no questionamento de signos semelhantes.

Zero de conduta

Poster do clássico de Vigo
“A Rede Social”, mesmo não se tratando de um conto de crianças, não só traz o tema da necessidade comum de interação afetiva como também se centra na dificuldade de se transpor a barreira infância/fase adulta. A esquizofrênica busca de valores da pós-modernidade ofusca o que o psicólogo infantil Lev Vygotsky chamaria de processo de “mediação” no desenvolvimento do ser humano. Para ele, ao contrário do que pensava Piaget, o desenvolvimento cognitivo dependia das interações com as pessoas e com os instrumentos reais do mundo da criança, como o brinquedo, o computador ou o lápis. Mas se os signos culturais já vêm distorcidos, como os instrumentos (mesmo tão avançados como o computador) serão capazes de desenvolver o indivíduo a um estágio mais elevado de consciência?

Entretanto, mais do que isso, outro fator une ideologicamente essas obras: os limites entre as razões moderna e pós-moderna. Se nos dois filmes mais antigos ainda se preservava uma crença na razão, esta passa, agora, a não ter peso. N’”A Guerra dos Botões” há uma cena que, no meio da batalha na floresta, os dois exércitos se unem para socorrer um coelho com a pata machucada. Naquele momento, todos pararam de guerrear, e se estabeleceu uma fronteira entre real e imaginário. Igualmente, ao perceberem que cometeram um erro ao roubar à força as bolas de gude do pequeno Nemecsek, de “Os meninos...”, os grandalhões e valentões do grupo rival reveem sua conduta e devolveram-nas a seu dono. Em “A Rede Social” tudo isso cai por terra. Mark rouba ideias descaradamente e “puxa o tapete” de amigos sem culpa. E isso, na sua “crença”, é normal. Afinal, para que lhe servem valores de lealdade ou justiça com tanta fortuna e 500 milhões amigos (virtuais)?

Mark, Lebrac, Nemecsek

Mark é astuto como Lebrac e Nemecsek, mas moralmente alheio. Algo dentro de pessoas da sua geração, desta geração, se perdeu, e não é de se estranhar que justo a palavra “amizade” soe ao mesmo tempo tão poderosa e irônica nas redes sociais. Já não se acodem mais coelhos machucados nem se arde em febre até a morte para se preservar dignidade. Para aquele jovem Zuckenberg, não é isso que tem valor. O negócio é se proteger. Encarar as emoções de frente dá margem a se demonstrar fraco. É mais fácil fechar-se num tubo de mensagens curtas e de distâncias físicas seguras; pois, se não, a guarda se abre para que se lhe arranquem os botões e lhe caiam as calças. 

Zuckenberg: astúcia sem tempos de hedonização

Pensando bem, parece, sim, estar se falando de dignidade; só que de outra forma, assim como de reconhecimento, proteção, laços, amor... e talvez “A Rede Social” também seja um filme sobre crianças... e sejamos todos meio bobocas.

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trailer de "A Guerra dos Botões"


Daniel Rodrigues
* texto atualizado, originalmente escrito em 2011 para o blog O Estado das Coisas

sábado, 24 de julho de 2021

Vince Guaraldi Trio – “A Boy Named Charlie Brown” (1964)







Acima, capa original com Guaradi
transformado em HQ. A outra,
clássica capa da reedição com
o catcher Charlie Brown
"Que puxa!" 
Bordão do personagem Charlie Brown

É ímpar a figura de Vince Guaraldi no mundo do jazz. Branco e de ascendência italiana, já se diferenciava quando surgiu, nos anos 50, pela cor de pele e pela origem da grande maioria dos músicos do gênero, pretos e afrodescendentes. Mesmo para com brancos e pianistas como Dave Brubeck e Lennie Tristano mantinha dessemelhanças, haja vista seu tipo meio dândi, meio personagem de quadrinhos: bigode pontudo, terno slim e óculos nerd. Talvez essas particularidades (e, principalmente, a semelhança com um HQ), tenham levado o já vencedor de um Grammy de Melhor Canção de Jazz (em 1962, por “"Cast Your Fate to the Wind”) a topar abraçar um projeto único e pelo qual, quiçá, nem imaginasse que seria mais lembrado anos mais tarde do que pelo prêmio que venceu. A convite do produtor da TV CBS Lee Mendelson, a partir de 1963, Guaraldi passa a assinar a trilha sonora da série Peanuts, do simpático e inteligente cachorrinho Snoopy e seu dono, o introvertido e sensível Charlie Brown. Qual a melhor maneira de “musicar” o universo lúdico do programa? Na cabeça diferentona de Guaraldi, com jazz. E por que não? A ousadia não apenas funcionou, como se tornou uma marca até hoje ligada diretamente ao desenho e à história do jazz.

Dentre os mais de 40 episódios e os diversos discos produzidos para a série, o que melhor resume o universo sonoro criado pelo compositor sobre a criação do cartunista Charles M. Schulz é “A Boy Named Charlie Brown”, de 1964. Muito deste resultado se deve, por incrível que pareça, à “crueza” escolhida pelo músico para vestir esse trabalho. Se os ouvidos da maioria são acostumados nos programas infantis com arranjos lotados de sonoridades cintilantes, harmonias simétricas e vozes muito bem equalizadas, Guaraldi despe a música de “A Boy...” de qualquer floreio desnecessário. Única e somente a sonoridade poderosa – e suficiente – de um trio de jazz em temas instrumentais com ele ao piano, Monty Budwig, ao baixo, e Colin Bailey, na bateria. E mais: ao invés de construções melódicas previsíveis, a “dificultação” dos improvisos, tal como o jazz feito para adultos.  

O que parece subverter uma lógica, no entanto, é um grande acerto. A carga emocional, as dificuldades das relações humanas e a busca de identidade dos personagens que a história carrega por trás do tom divertido e do traço irregular dos desenhos é, por si, uma inovação da série de Schulz. Algo pouco visto até então na TV norte-americana pós-Guerra, quanto menos em um produto voltado a crianças. Desta forma, a trilha de Guaraldi se adequa de uma maneira muito sensível e poderosa ao desenho e seu enredo, fazendo com que o jazz se integre tão improvável quanto naturalmente. A faixa de abertura, “Oh, Good Grief”, uma das assinaturas sonoras dos Peanuts, é exemplar neste sentido: um jazz suingado, algo totalmente avesso ao que se poderia esperar de uma histriônica ou agitada canção para este tipo de programa. Ao contrário: vê-se, sim, a elegância de mestres do piano como Oscar Peterson e Fats Weller, e um ritmo cadenciado que nem se exalta em demasia, nem recai para algo sisudo e cerebral. 

Já a capa, que faz referência ao esporte olímpico baseball, traz muito dessa atmosfera a qual Guaraldi traduziu em forma de sons: o mundo das crianças, com suas brincadeiras coletivas e atividades lúdicas. Como “Baseball Theme’, uma das faixas, o compositor consegue criar o mais fiel espelho musical da série, captando-lhe o clima alegre, mas também com momentos de melancolia. O esporte praticado pela turminha é um bom exemplo, pois muitas vezes motivo de frustração (e zoação!) do inseguro Charlie Brown e onde as complexidades das relações entre humanos (e não só humanos, pois tanto Snoppy quanto seu fiel parceiro, o passarinho Woodstock, participam das atividades) são experenciadas.

O álbum contém essa capacidade quase didática no que se refere ao universo dos personagens, o qual vinha das tirinhas, criada nos anos 50, e que, com a série televisiva então recém-estreada, ganhava maturidade narrativa. Assim, outras faixas também se baseiam em personagens ou fatos importantes. Charlie Brown, figura central da história e alter ego de Schulz, é motivo de dois números. O primeiro é “Charlie Brown Theme”, o clássico jazz bluesy gravado por Guaraldi em mais discos e com outros arranjos, mas que, neste trabalho, está em sua versão mais pura, mais concisa: o piano deslizando o suave riff, o baixo escalonando as notas e a leve bateria conduzida nas escovinhas. A outra que tematiza o desajeitado Minduim é “Blue Charlie Brown”, ainda mais blueser e, se não tão conhecida como a anterior, igualmente bela e saborosa de ouvir.

Também ganham as suas “Frieda”, a vaidosa garotinha de cabelos cacheados, tão garbosa quanto sua pequena musa; e “Schroeder”, o alemãozinho pianista e fã de Beethoven como o próprio Guaraldi, melodia a qual o autor aproveitaria em uma versão cantada anos depois, a mesma que o músico brasileiro Renato Teixeira “chuparia” descaradamente para criar o famoso jingle da marca de calçados infantil Ortopé, que brasileiros de mais de 40 anos muito escutaram.

Claro, não poderia faltar também o tema que mais define a série musicalmente falando: “Linus and Lucy”, inspirado nos irmãos Van Pelt e com suas duas geniais linhas de piano conjugadas: uma bem marcada nas teclas brancas graves, e outra que desenha o riff em tons médios alegres, mágicos, lúdicos. Na variação, a música ganha um ritmo abrasileirado, haja vista a proximidade e admiração de Guaraldi, já de muitos anos parceiro do violonista carioca Bola Sete, pelo samba e pela bossa nova. Por falar em música brasileira, “Pebble Beach” traz esse forte elemento latino para os baixinhos de uma maneira muito bonita e expressiva, mostrando que na vida também é preciso de um pouco de ginga para sobreviver.

Mas como essa vida não é somente feita de momentos de euforia, Guaraldi, alinhado com o que a próprio enredo da série propõe, apresenta um tema que aparentemente é uma contradição considerando-se seu título: “Hapiness Is”, visto que contemplativa, lenta, quase tristonha. Mas, como sustentam os especialistas em psicologia infantil, na infância, felicidade e tristeza se misturam. Afinal, sofrer também é necessário para saber enfrentar as decepções e as frustrações inerentes a qualquer ser humano. A felicidade é e pode ser um pouco triste ou vice-versa.

Pedagógica, mas não no sentido rígido da palavra, a série Snoppy foi a primeira a tratar a criança como um ser pensante de verdade na televisão, e a música de Guaraldi é um dos principais elementos desta construção conceitual. Sem menosprezar a inteligência dos pequenos de compreenderem as sutilezas existenciais por trás dos lances engraçados e fantásticos, o desenho aninado ousava em associar uma música pouco convencional para este tipo de produto, inventando uma espécie de children jazz. Se outro músico tivesse sido convidado a fazer a trilha que não Guaraldi, por melhor ou mais conceituado que fosse, talvez não funcionasse tão bem, não desse tanta liga. Não se sabe. Mas, com certeza, ter chamado um personagem de HQ para ilustrar em música a vida de seus pequenos parceiros facilitou muito.

Cena da partida de baseball de "A Boy Named Charlie Brown"
transformado em longa-metragem em 1969


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FAIXAS:
1. "Oh, Good Grief" (Lee Mendelson, Vince Guaraldi) - 2:21
2. "Pebble Beach" - 2:47
3. "Happiness Is" - 3:37
4. "Schroeder" - 1:51
5. "Charlie Brown Theme" (Mendelson, Guaraldi) - 4:20
6. "Linus And Lucy" - 3:03
7. "Blue Charlie Brown" - 7:26
8. "Baseball Theme" - 3:13
9. "Freda (With The Naturally Curly Hair)" - 4:31
10. "Fly me to the Moon" (Bart Howard" - 8:55*
Todas as composições de autoria de Vince Guaraldi, exceto indicadas
*Faixa-bônus da reedição em CD

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de março de 2021

Wynton Marsalis - "J Mood" (1986)

 


”Wynton Marsalis é o líder entre os jovens instrumentistas que evitam os excessos expressionistas em favor do comando técnico e do respeito pela história."
Robert Christgau, crítico musical

“Naquela noite um jovem tocou trompete. Foi surpreendente. Suas ideias eram diferentes, novas, muito concisas, claras. Perguntei a Art Blakey: 'quem é esse garoto?’, e Art disse; ‘É o filho de Ellis Marsalis’."
Michael Cuscuna, produtor e escritor de jazz

Assim como para com os saxofonistas, existe uma mítica no jazz em torno de outros instrumentistas do sopro: os trompetistas. Certamente a tradição de grandes solistas e band leaders desde que o gênero se formou no início do século XX colabora para essa percepção. Buddy Bolden, Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Chet Baker, Miles Davis e Lee Morgan dão dimensão da responsabilidade que é ser um trompetista no mundo jazzístico. Pode-se até dizer que exige uma certa dose de milagre tal aparição, haja vista a raridade de tamanhas habilidade e inspiração que exige. 

Mas, igualmente ao que acontece com o sax, quando parece que essa ação divina vai falhar, surge, como que por milagre, um novo talento do trompete totalmente absorvido pelo mistério que envolve o instrumento. Caso de Wynton Marsalis, que, no final dos anos 70, apareceu para a cena musical como promessa de continuidade dessa linhagem de músicos do sopro, a qual ele não apenas confirmou como acabou por se tornar ele uma nova lenda, o primeiro artista de jazz a vencer um Prémio Pulitzer, em 1997.

Da extensa discografia de Wynton, um profundo conhecedor de música, além de um homem de posicionamentos fortes em defesa das questões raciais e da cultura afro-americana, “J Mood”, de 1986, é um exemplar modelo. Cores perfeitamente pinceladas do hard bop, no melhor estilo daqueles a quem ele reverencia, Thelonious Monk, Lester Young, Herbie Hancock, Charles Mingus, Charlie Parker, Miles, Morgan e toda uma história galgada em técnica e alma. Numa época em que o jazz em essência perdia força ou para a música pop ou para a vanguarda, Wynton apresentava um deleite para os ouvidos já mal acostumados com a tradição.

A história de Wynton com a música e o ativismo vem de berço e de sangue. Nascido na terra-mão da música negra norte-americana, New Orleans, é o segundo de seis filhos do pianista Ellis Marsalis Jr., influente professor de música que, nos anos 50/60, trabalhara com gente como Ed Blackwell, Cannonball Adderley e Nat Adderley. Mal havia chegado ao mundo e Ellis e a esposa deram um jeito de lhe eternizar a ligação com a música lhe registrando com o primeiro nome do pianista de jazz Wynton Kelly. Ellis, aliás, que por sua vez era filho de Ellis Marsalis Sr., um dos primeiros empresários negros dos Estados Unidos e atuante ativista pelos Direitos Civis em seu país. A casa dos Marsalis respirava música e orgulho racial, tanto que, dos irmãos, também seguiram por este caminho Delfeayo, trompetista como Wynton, Jason, que virou baterista, e o igualmente famoso saxofonista Brandford. 

Não é de se estranhar que, desde muito cedo, Wynton tenha mostrado aptidão com a arte musical, com domínio de melodia e harmonia tanto no jazz quanto na música clássica. Estudante da Jillard School, em Nova York, seus primeiros discos trazem, por isso, acordes não dos deuses do gênero mais norte-americano de todos, mas versões de Heydn, Handel, Purcel e música barroca. Porém, com tamanha proximidade e genética não havia como Wynton fugir de suas raízes. Não tinha como fugir do jazz. Primeiramente recrutado para integrar a banda do já sexagenário Gillespie, um privilégio de poucos, foi outro velho band leader do jazz que o fez enveredar de vez para aquilo que mais lhe pertencia. Em 1980, o baterista Art Blakey, convicto de que convenceria aquele jovem trompetista de apenas 20 anos a abandonar a carreira de recitais pomposos, convida-o para excursionar com sua clássica e formativa The Jazz Massangers pela Europa. A partir dali, Wynton foi definitivamente fisgado pelo jazz. 

O primeiro disco solo somente jazzístico veio dois anos depois deste batismo de Art. Quando chega em “J Mood”, seu quinto neste estilo, o herdeiro das lendas do trompete já estava totalmente confortável e pronto para ocupar seu lugar no olimpo. Foi o início de uma segunda e definitiva fase na carreira de Wynton, com a formação de uma nova banda, o quarteto J Master, formado por Marcus Roberts, ao piano; Robert Hurst III, do duplo baixo; e Jeff "Tain" Watts, na bateria. Ali, Wynton passava a internalizar o entendimento de algo que lhe seria um grande diferencial: o de que não precisava abandonar a veia erudita para realizar jazz.

Como disse o crítico musical Robert Christgau para a Playboy, em 1986, “J Mood” é puro “comando técnico” e “respeito pela história”. Habilidade, sim, mas nada de excessos: expressão certa na medida certa. Miles e Monk não legaram justamente isso? Assim é a faixa-título, que abre o álbum: um blues cadenciado em que o norte é totalmente dado pelo trompete de Wynton. Os praticamente 5 primeiros minutos dos pouco mais de 8 da faixa são desenhados por suas frases inspiradas, “claras” e “concisas” como bem observou o produtor de jazz e escritor Michael Cuscuna ao ouvi-lo pela primeira vez no início dos anos 80. Roberts, outro talento daquela geração de jovens jazzistas, aproveita a deixa e finaliza o número com um magistral solo.

A dobradinha entre Wynton e Roberts se repete na romântica “Presence That Lament Brings”, de autoria deste último. Lamentosa como o título sugere, mas profundamente sentimental, tem solfejos longos e elegantes de Wynton e a pontuação lírica dada pelo pianista. Isso, adensado pela bateria conduzida nas escovinhas sobre a caixa da bateria e o duplo baixo de Hurst III cumprindo com excelência o escalamento. 

Os ânimos se reacendem no bop intenso “Insane Asylum”, em que a improvisação de Wynton é quase que puramente melódica, beneficiando-se da sensibilidade dele e do grupo em contrastes de volumes e ataques. Mais dissonante é "Skain's Domain", que começa com Watts chamando nas variações de caixa, bumbo e pratos para, em seguida, a banda inteira entrar e formar um blues suingado, mas sem perder sua personalidade harmônica. Hora de baixar a rotação novamente, e nisso Wynton é, como todos os grandes trompetistas que o antecederam, um “ás”. Em “Melodique”, na qual se ouve um baixo cristalino e um piano mais ainda, o trompetista puxa uma surdina para diferenciar sua pronúncia e desfilar uma melodia elegante, que faz jus à referência francesa. Quão apaixonadas soam suas notas!

Acordes eruditos das teclas de Roberts abrem “After”. Claro, visto que de autoria de outro pianista. Mas não qualquer um, pois quem a escreveu é, justamente, o pai de Wynton, Ellis. Um verdadeiro resgate da ancestralidade dos Marsalis. Balada sensível, vaporosa, quase adormecendo. Como disse o próprio Wynton ao referir-se à ideia do disco, temas como este são como o repouso que se segue ao diálogo íntimo do romance real, o doce silêncio e a respiração suave após o ato de amor. Para terminar essa joia temporã do jazz que é “J Mood”, o baixo dobrado de Hurst III e a agilidade mental do front man conduzem "Much Later", cujo ritmo acelerado e o título (“muito tarde”) mostram a urgência do resgate do jazz tal como os mestres o conceberam. Wynton e seu quarteto provam que sempre há tempo, contudo.

“J Mood”, juntamente com outro importante disco – não coincidentemente, de autoria do seu irmão Brandford, “Scenes In The City”, de dois anos antes –, salvou o jazz nos anos 80 de dois extremos: o fascínio palatável da música pop, como ocorrera com Hancock e Miles, por exemplo, ou o cerebralismo do pós-bop, que desviava perigosamente o jazz de novo para fora de suas raízes negras. Wynton, ao encontrar a si próprio, encontrou também o caminho do jazz que jamais deve ser perdido. O feito ganhou reconhecimento: Grammy de Melhor Performance Instrumental de Jazz e menção entre as gravações essenciais do gênero do Penguin Guide to Jazz Recordings. Afinal, Wynton Marsalis entendeu que quando ele sopra uma nota em seu trompete, não é somente seus pulmões que agem, mas os de Bolden, Armstrong, Dizzy, Chet, Miles, Morgan. A mística se manifesta e, pelo menos durante os 42 min 35 seg entre a primeira e a última faixas do disco, o jazz está eternamente salvo.

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FAIXAS:
1. "J Mood" - 8:35
2. "Presence That Lament Brings" (Marcus Roberts) - 5:53
3. "Insane Asylum" (Donald Brown) - 6:34
4. "Skain's Domain"- 6:30
5. "Melodique" - 4:32
6. "After" (Ellis Marsalis Jr.) - 6:10
7. "Much Later" - 4:36
Todas as músicas de autoria de Wynton Marsalis, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #178


Todo o poder que o Pantera Negra Chadwick Boseman nos deixou vai estar no MDC através daquilo que nos empodera também: a música. Além de João Gilberto, The Beatles, Cássia Eller e Nando Reis, James Brown, Gonzaguinha e Metá Metá, teremos também "Palavra, Lê' com Criolo e um "Cabeção" em homenagem aos 100 anos que Charlie Parker completaria em 2020. Anota aí: 21h, na poderosa Rádio Elétrica, Música da Cabeça nº 178. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. #blacklivesmatter #wakandaforever

Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

terça-feira, 16 de junho de 2020

Charlie Brown Jr. - "Transpiração Contínua Prolongada" (1997)



“Meu, tu não sabe o que aconteceu 
Os caras do Charlie Brown
invadiram a cidade”
 (verso da letra de 
"O Coro Vai Comê")




O Charlie Brown Jr é uma banda de Santos que repercutiu bastante no cenário nacional. Mas poucos sabem do quanto a banda suou para lançar seu primeiro disco. A banda passou de poucas e boas para conquistar o seu espaço. Entre 92 a 97 a banda sofreu muito por passarem como desacreditados, sendo motivo de piada, quando disseram o que pretendiam fazer. Os versos “Foram muitos anos de vivência/ Muitos balde de água fria na cabeça" da música que tem o mesmo nome da banda, resumem bem o que foi esse início.

Os shows aconteciam geralmente em campeonatos de skate, atividade que virou parte da identidade da banda, um elo forte criado pelo vocalista Chorão, que chegou a competir nesse esporte. Nesse período, o baixista Champion era menor de idade, e por isso precisava levar consigo uma autorização judicial a todos os shows.

Todo esforço uma hora é recompensado. A banda correu atrás e não abaixou a cabeça até conseguir fechar um contrato com a Virgin Records por meio de Rick Bonadio, grande referência da produção fonográfica brasileira que na época presidia a gravadora. O produtor apostou na banda e pelo visto não arrependeu!

Da parceria com Rick Bonadio surgiu "Transpiração Contínua Prolongada", lançado na data de hoje em 1997, com canções como "O Coro Vai Comê", "Tudo que Ela Gosta de Escutar", "Proibida pra Mim" e "Charlie Brow Jr. ( Deixa Estar, que eu Sigo em Frente)", música que descreve esse período em que a banda buscou conquistar o seu espaço.

Diversos subgêneros como, rap, metal, hardcore, ska e reggae deram a sonoridade que os tornaram tão popular no país inteiro, fazendo o Charlie Brown Jr se tornar referência para novas bandas que vieram a surgir a partir do ano 2000.

"Transpiração Contínua Prolongada" tem êxitos com a vendagem de 250 mil cópias, certificando como disco de platina, e a premiação do VMB de 98 de banda revelação com o clipe de "Proibida pra Mim". O disco foi um marco para o rock brasileiro, prova disso foi ter emplacado a venda de 650 mil cópias anos depois, em 2013.

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FAIXAS:

1. "Tributo ao Frango da Malásia (Instrumental)" - 0:25
2. "O Coro Vai Comê!"  - 2:21
3. "Tudo que Ela Gosta de Escutar" - 2:56
4. "Sheik" - 2:51
5. "Hei! Arreia... (Instrumental)" - 0:26
6. "Gimme o anel" - 2:50
7. "Molengol´s Groove (Instrumental)" - 0:53
8. "Aquela Paz" - 3:02
9. "Quinta-Feira" - 4:50
10. "Proibida pra Mim (Grazon)" - 2:48
11. "Lombra" - 3:11
12. "Corra Vagabundo" - 3:35
13. "Falar, falar..." - 2:47
14. "Festa" - 2:51
15. "Escalas Tropicais (Part. Lagoa 66)" - 2:08
16. "Charlie Brown Jr. (Deixa Estar Que Eu Sigo Em Frente)" - 3:12


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Ouça:




por Diego Almeida


sexta-feira, 3 de novembro de 2017

"Pica-Pau, o filme", de Alex Zamm (2017)



A tentativa de "ressuscitar" para as novas gerações o alucinado personagem Pica-Pau não acrescenta nada. O filme é ruim, a história é ruim, os personagens são ruins, as piadas são ruins... Tirando os recursos técnicos e uma caracterização até que bem aceitável do pássaro doido em animação 3D, pode-se dizer que nada presta no filme do diretor Alex Zamm. Ao contrário da adaptação cinematográfica animada de "Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, O Filme" que despertava nos adultos a nostalgia pelos desenhos antigos e conquistava as crianças pela identificação da infância e com atualizações sutis e interessantes e pontuais, "Pica-Pau, o filme" não consegue nenhuma das duas coisas, não tendo a capacidade de reviver a magia dos desenhos antigos da TV para quem, como eu, tanto curtia e idolatrava as traquinagens do passarinho do topete vermelho, nem ser cativante o bastante para fazer com que as crianças se aficcionem a ele tal como acontecia conosco em nossas infâncias.
Tem um recado ecológico e tal, tipo, "não derrube as árvores", "não jogue lixo na natureza", "não cace e não mate animais silvestres" mas parece que em nome do compromisso com a mensagem, tudo fica meio sem graça, meio engessado. Embora dê uma surra no empresário que quer construir uma mega-mansão no meio de uma reserva florestal (Timothy Omudson), na sua namorada toda dondoquinha (Thayla Ayala) e nos caçadores que insistem em persegui-lo, o Pica-Pau, não tem aquela espontaneidade, aquela imprevisibilidade de comportamento, aquela "maldade" que nos fazia morrer de rir. Teria tido um efeito melhor, pelo menos no público adulto, adaptações de momentos dos desenhos como o da construção da estrada em que a empresa tem que desviar por causa da árvore onde o bichinho mora; a do caçador e seu cachorro tonto que queriam patos mas acabam se vendo às voltas com nosso amiguinho; o o do taxidermista; ou a do lenhador e o desmatamento, que teriam o mesmo apelo ecológico mas manteriam o carisma não só do personagem principal como poderiam ainda trazer de volta aqueles perseguidores do pássaro, os "vilões", estreitando ainda mais a identificação com a antiga série.
A cena do Pica-Pau tocando "Surfin' Bird" com a banda dos garotos até que é legal. Tirando isso mais algum momento que outro (que nem me fixou na mente), algumas bicadas, pancadas, quedas, lambuzos e nada de muito empolgante. Se serve para aliviar, quando começou o filme eu achei que não fosse aguentar até o final mas aí entre uma piadinha aqui outra acolá, um risinho que outro, até deu para aguentar.
O velho truque da Pica-Pau boneca. Acham mesmo que le vai cair nessa?



trailer "Pica-Pau, o filme"



Cly Reis

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Banda Black Rio - "Maria Fumaça" (1977)




“A Banda Black Rio é um dos maiores acontecimentos musicais desse planeta”.
Lucas Arruda


“Coisa mais séria que tem! Um dos discos instrumentais mais bem feitos no Brasil. Tudo absolutamente certo aqui: temas, timbres, só acerto.”
Ed Motta


O jazz no Brasil teve de caminhar alguns quilômetros em círculos para que obtivesse uma identificação real com o país do carnaval. Em termos de indústria fonográfica, até os anos 70 as apostas sempre estiveram sobre o samba e derivados ou outros gêneros comerciais, como o bolero, a canção romântica, a bossa-nova carioca, os festivais, a MPB e até o rock. Mesmo presente na sonoridade das orquestras das gafieiras ou na bossa nova, o jazz se misturava aos sons brasileiros mais pela natural influência exercida pelos Estados Unidos na cultura latina do que pelo exemplo de complexidade harmônica de um Charlie Parker ou Charles Mingus. Expressões bastante significativas nessa linha houve nos anos 50 e 60, inegável, mas jazz brasileiro mesmo, com “b” maiúsculo, esse ainda não havia nascido.

Por essas ironias que somente a Sociologia e a Antropologia podem explicar, precisou que o gênero mais norte-americano da música desse uma imensa volta para se solidificar num país tão africanizado quanto os Estados Unidos como o Brasil. Essa solidificação se deve a um simples motivo: assim como na criação do jazz, cunhado por mentes e corações de descendentes de escravos, a absorção do estilo no Brasil se deu também pelos negros. No caso, mais de meio século depois, pela via da soul music. O chamado movimento “Black Rio”, que estourava nas periferias cariocas no início da década de 70, era fruto de uma nova classe social de negros que surgia oriundos das “refavelas”, como bem definiu Gilberto Gil. Reunia milhões de jovens em torno da música de James Brown, Earth, Wind & Fire, Aretha Franklin e Sly & Family Stone. DJ’s, dançarinos, produtores, equipes de som, promoters e, claro, músicos, que começavam a despontar da Baixada e da Zona Norte, mostrando que não eram apenas Tim Maia e Cassiano que existiam. Tinha, sim, outros muitos talentos. Dentro deste turbilhão de descobertas e conquistas, um grupo de músicos originários de outras bandas captou a essência daquilo e se autodenominou como a própria cena exigia: Black Rio.

Formada da junção de alguns integrantes dos conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição, a Black Rio compunha-se com o genial saxofonista Oberdan Magalhães, idealizador e principal cabeça da banda; o magnífico e experiente pianista Cristóvão Bastos; os sopros afiados de José Carlos Barroso (trompete) e Lúcio da Silva (trombone); o não menos incrível baixista Jamil Joanes; Cláudio Stevenson, referência da guitarra soul no Brasil; e, igualmente impecável, o baterista e percussionista Luiz Carlos. Com uma insuspeita e natural mescla de samba, baião, funk, gafieira, rock, R&B, fusion, soul e até cool, a Black Rio inaugurava de vez o verdadeiro jazz brasileiro. Um jazz dançante, gingado, sincopado, cheio de groove e de rebuscamentos harmônicos.

Banda das mais requisitadas dos bailes funk daquela época, eram todos instrumentistas de mão cheia. Se nas apresentações eles tinham a luxuosa participação vocal de dois estreantes até então pouco conhecidos chamados Carlos Dafé e Sandra de Sá, tamanhos talento e habilidade não podia se perder depois que a festa acabasse e as equipes de som guardassem os equipamentos. Precisava ser registrado. Foi isso que a gravadora WEA providenciou ao chamar o tarimbado produtor Mazola – por sua vez, muito bem assessorado por Liminha e Dom Filó, este último, um dos organizadores do movimento Black no Brasil. Eles ajudaram a dar corpo a Maria Fumaça, primeiro dos três discos da Black Rio, a obra-prima do jazz instrumental brasileiro e da MPB, uma joia que completa 40 anos de lançamento em 2017.

Como se pode supor, não se está falando de qualquer trem, mas sim um expresso supersônico lotado de musicalidade e animação, que transborda talento do primeiro ao último acorde. Sonoridade Motown com toques de Steely Dan e samba de teleco-teco dos anos 50/60. Tudo isso pode ser imediatamente comprovado ao se escutar a arrasadora faixa-título, certamente uma das melhores aberturas de disco de toda a discografia brasileira. O que inicia com um show de habilidade de toda a banda, num ritmo de sambalanço, logo ganha cara de um baião jazzístico, quando o triângulo dialoga os sopros, cujas frases são magistralmente escritas e executadas. A guitarra de Cláudio faz o riff com ecos que sobrevoam a melodia; Jamil dá aula de condução e improviso no baixo; Cristóvão manda ver no Fender Rhodes; Luis Carlos faz chover na bateria. Quando o samba toma conta, praticamente todos assumem percussões: cuíca, pandeiro e tamborim.

Sem perder o embalo, uma versão originalíssima de “Na Baixa Do Sapateiro”, comandada pelo sax de Oberdan, que atualiza para a soul o teor suingado da melodia, e outra igualmente impecável: “Mr. Funky Samba”. Jamil, autor do tema, está especialmente inspirado, fazendo escalamentos sobre a base funkeada e sambada como bem define o título. Mas não só ele: Luiz Carlos adiciona ritmos da disco ao jazz hard bop, e Cristóvão mais uma vez impressiona por sua versatilidade na base de Fender Rhodes e no solo de piano elétrico. Uma música que jamais data, tamanha sua força e modernidade.

O líder Oberdan assina outras duas composições, a sincopada “Caminho Da Roça” e a carioquíssima “Leblon Via Vaz Lôbo”, em que Cláudio e o próprio improvisam solos da mais alta qualidade. Outros integrantes, no entanto, não ficam para trás nas criações, caso de Cláudio e Cristóvão, que coassinam uma das melhores do disco: “Metalúrgica”. Como o título indica, são os sopros que estão afiados no chorus. O que não quer dizer que os colegas também não brilhem, caso de Luiz Carlos, criando diversas variações rítmicas, Cláudio, distorcendo as cordas, e a levada sempre inventiva de Jamil.

A versatilidade e o conceito moderno da Black Rio revisitam outros mestres da MPB, como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (“Baião”), onde o ritmo nordestino ganha tons disco e funk; Edu Lobo (“Casa Forte”), de quem realçam-lhe a força e a expressividade das linhas melódicas; e Braguinha, quando o lendário choro “Urubu Malandro”, de 1913, vira um suingado e vibrante samba de gafieira. Nota-se um cuidado, mesmo com a sonoridade eletrificada, de não perder a essência da canção, o que se vê na manutenção de Cristóvão nos teclados e da adaptação das frases de flauta para uma variação sax/trompete/trombone.

Outra pérola de Jamil desfecha essa impecável obra num tom de soul e jazz cool, que antevê o que se chamaria anos adiante no Brasil de “charme”. Embora a canção seja de autoria do baixista, é o trompete de Barrosinho que arrasa desenhando toda melodia do início ao fim.

Talvez seja certo exagero, uma vez que já se podia referenciar como jazz “brazuca” o som de Hermeto Pascoal, Moacir Santos, Airto Moreira, João Donato, Eumir Deodato, Flora Purim, Dom Um Romão, entre outros – embora, a maioria tenha-o feito e consolidado seus trabalhos fora do Brasil. Com a Black Rio foi diferente. Com todos pés cravados em terra brasilis, foi o misto de contexto histórico, necessidade social, proveito artístico e oportunidade de mercado que a fizeram tornar-se a referência que é ainda hoje. Uma referência do jazz com cheiro, cor e sabor latinos. Mas para além das meras classificações, a Black Rio é o legítimo retrato de uma era em que o Brasil negro e mestiço passou a mostrar a riqueza "do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão".

Banda Black Rio - "Maria Fumaça"


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FAIXAS
1. Maria Fumaça (Luiz Carlos Santos/Oberdan) - 2:22
2. Na Baixa Do Sapateiro (Ary Barroso) - 3:02
3. Mr. Funky Samba (Jamil Joanes) - 3:36
4. Caminho Da Roça (J. Carlos Barroso/Oberdan) - 2:57
5. Metalúrgica (Claudio Stevenson/Cristóvão Bastos) - 2:30
6. Baião (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga) - 3:26
7. Casa Forte (Edu Lobo) - 2:22
8. Leblon Via Vaz Lôbo (Oberdan) - 3:02
9. Urubu Malandro (Louro/João De Barro) - 2:28
10. Junia (Joanes) - 3:39

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

3ª Festa de Rua da Bento Figueiredo – Bairro Bonfim – Porto Alegre/RS (25/09/2016)

 



Visão geral da entrada da rua.
Convidados por nossa hermana Carolina Costa, Leocádia e eu fomos a uma agradável feira a céu aberto ocorrida na Rua Bento Figueiredo, uma pequena travessa do bairro Bonfim acostumada a, durante a semana, comportar apenas a correria dos automóveis, uma vez que funciona como passagem entre duas vias de bastante movimento, a Felipe Camarão e a Ramiro Barcellos, as quais se ligam uma a outra por meio desta primeira. Neste domingo de uma tarde nublada, entretanto, a via serviu de abrigo para a feira, esse belo tipo de iniciativa que aos poucos Porto Alegre vai adotando a exemplo de Rio de Janeiro e São Paulo: a da ocupação de espaços públicos para ações comunitárias e alternativas ao comércio pasteurizado.
Tinha de tudo um pouco na feira: antiguidades, roupas, bijuteria, brechó, artesanato. Havia também vinis, os quais, claro, dei uma boa parada para ver. Muito bons, tanto em conservação quanto de diversidade e qualidade na banca da Bugio Discos, que, organiza, inclusive, a Feira do Vinil de Porto Alegre, a qual acontece na Casa de Cultura Mário Quintana e já é um sucesso de público em sua 5ª edição. Nesta feira, entretanto, eles eram os únicos a oferecer discos, tanto reimpressões novas quanto usados. Coisas bem variadas de rock internacional, MPB e um pouco de jazz. Grata surpresa foi encontrar uma edição do “Tubarões Voadores”, do Arrigo Barnabé, de 1985 (que o meu primo e clyblogger Lúcio Agacê me apresentou lá nos anos 80), contendo o encarte original, que é um HQ, de autoria do cartunista Luiz Cê, super raro. Tão raro, que justificava o valor do disco: R$130,00. Contentei-me em levar, a um preço bem mais em conta, um João Bosco, “Gagabirô”, de 1984, um dos de maiores vendagens do cantor e compositor mineiro, que contém o hit “Papel Machê”.
Fora isso, tinham brincadeiras coletivas para crianças, como bolhas gigantes, além de musica mecânica e apresentações artísticas, como a de um espirituoso mambembe e suas acrobacias. Paramos para assisti-lo, e não é que, sob os olhares atentos de adultos e pequenos, o sol, até então escondido por detrás da espessa camada de nuvens, deu de aparecer? Não por muito tempo, pois a nebulosidade logo o cobriu de novo e a noite chegou para selar de vez a tarde. Mas enquanto esteve presente, fosse com os raios pelas frestas das nuvens ou mesmo por entre elas, o astro-rei nos permitiu enxergar com olhos mais atentos aquela rua de construções antigas bonitas, as quais não raro se anulam no vai e vem acelerado da maior parte dos dias da semana. É como se nos projetássemos em um tempo e como se aquela rua ali ganhasse uma aura mágica – a qual, na verdade, é uma magia que já lhe pertence. A nós é que cabe reduzir a marcha um pouquinho e apreciar as coisas do jeito que elas são. Na nossa bela tarde mais nublada que ensolarada, deu para fazer isso.

Público conferindo a Feira

Roupas e acessórios independentes.

Tem de tudo na feira da Bento Figueiredo
Vinis da Bugio foram devidamente apreciados.

Sapatos à venda no brechó

Leocádia conversa com o dono do brechó Gama

As hermanas Leocádia e Carolina caminham pela feira

Carolina se senta com a criançada para assistir ao show

E agora as facas.

Snoopy e charlie Brown encontraram companhia.

A Kombi nos levou de volta à era hippie







por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Eu Fui!



The Rolling Stones - Olé Tour 2016
Maracanã - Rio de Janeiro (20/02/2016)
por Cly Reis



Mick Jagger, Richards e Watts, no palco.
Provavelmente não voltaremos a ver esse time junto novamente.
foto: Jacson Vogel
Meus caros, eu fiquei emocionado.
Fiquei com os olhos marejados por praticamente todo o show e em alguns momentos, devo admitir, não pude conter as lágrimas. Como se não bastasse estar ali diante da, possivelmente, maior banda de rock do planeta, uma lenda viva da humanidade, o que já seria suficiente para que uma pessoa como eu tão envolvida emocionalmente com a música, se entregar à emoção, os caras, senhores de idade, setentões, vovozinhos, fizeram um show absolutamente incrível, competente, profissional, vivaz e emocionante. Senhores, um dos melhores shows que vi em minha vida.
A emoção já começou com "Start Me Up", que como já falei aqui no blog, é a música da minha filha, o que a torna absolutamente especial para mim. Mas independente disso, pelo musicaço que é, pela energia que passa, é uma escolha sempre acertada da banda que a utiliza com frequência nas aberturas de show. E não foi diferente, "Start Me Up", literalmente ligou, acendeu o público, e dali pra frente eles incendiaram o Maracanã.
Num repertório praticamente só de grandes hits, com exceção, talvez, para "Doom and Gloom", o êxtase foi garantido do início ao fim. A energia ficou nas alturas praticamente o tempo todo, com um breve momento para respirar com a balada "Angie", mas que já seria sucedida pela devastadora "Paint It, Black" com a batida elegante mas potente de Charlie Watts e com Ron Wood tocando cítara como na original. No trecho "acústico" do show provavelmente para que o elétrico Mick Jagger pudesse ir fazer uma nebulização, se o ritmo também diminuiu, com a balada "You Got The Silver", a energia não, com uma emocionante, demorada e merecida ovação para o gênio da guitarra Keith Richards que depois ainda emendou nos vocais "Before They Make Me Run", do "Some Girls".
Escolhida pelo público em votação, "Like a Rolling Stone", de Bob Dylan, foi para mim uma agradabilíssima surpresa uma vez que não a tinha visto nas listas dos outros shows pela América Latina; a quilométrica "Midnight Rambler" foi absolutamente fantástica cheia de improvisos dos guitarristas que mostraram mais uma vez porque são dois dos monstros do instrumento; "Miss You", não menos incrível, com seu embalo convidativo foi um show à parte do baixista Darryl Jones que mandou ver, inclusive quando solicitado em solo; e a contagiante "Brown Sugar" teve seu tradicional coro regido pelo maestro Mick Jagger, provavelmente o melhor frontman que já pisou num placo.
"Gimme Shelter", irradiando aquela sua estranha aura pelo estádio inteiro, no seu misto de beleza, fascinação e terror, me levou definitivamente às lágrimas. Sua execução, as performances individuais e o efeito que causou no público justificam sua grandeza e mais confirmam que considero a maior dos Stones e uma das maiores da História.
De energia não menos estranha e mais sinistra ainda, "Sympathy For The Devil" começava como um verdadeiro inferno com o palco todo iluminado em vermelho, pentagramas no telão e o líder da seita vestido com sua tradicional capa de pele perguntando a todos ali conheciam seu nome. E não?
E a primeira parte fechava com a favorita da minha esposa que estava lá comigo, "Jumping Jack Flash", outro dos grandes clássicos da história do rock, cheia de energia e com seu o velho Richards executando seu inspirado e inconfundível riff. Espetacular!
E então, depois de uma breve pausa, da escuridão do palco, um suave côro gospel de voz femininas anunciava a música escolhida para abrir o bis: era a monumental "You Can't Always Get What You Want", um épico do rock, uma pequena grande obra prima que se estendeu, ganhou um ritmo acelerado no final e preparou terreno para um final ainda mais apoteótico. Pois quando o riff destruidor de "(I Can't Get No) Satisfaction" irrompeu rascante  e corrosiva nas caixas de som dos estádio a celebração então estava completa. O estádio foi abaixo! Aliás, tenho que dar uma passada por lá daqui a pouco pra ver se ainda restou alguma coisa dele porque "Satisfaction" foi simplesmente destruidora! Êxtase, êxtase! Um final mais que apropriado para um show como aquele. Um show à altura da maior banda de rock em atividade. Os caras justificaram plenamente porque é que são essa lenda. Porque são os ROLLING STONES!
E eu vi!
Eu estava lá.
E, não querendo secar, mas, tirando as brincadeiras que se faz com a longevidade dos 'rapazes', especialmente do "fenômeno" Keith Richards, provavelmente foi a última vez que tivemos a oportunidade de ver essa turma toda junto por essas bandas. Ou seja, quem viu, viu, quem não viu, acho que não verá mais.
Eu vi.


"Start Me Up" filmada do meu celular. O som, é claro, não está dos melhores, mas vale para sentir a vibração do lugar.



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SETLIST
Start Me Up
It’s Only Rock ‘n’ Roll (But I Like It)
Tumbling Dice
Out of Control
Like a Rolling Stone
Doom and Gloom
Angie
Paint It Black
Honky Tonk Women
You Got the Silver (vocal: Keith Richards)
Before They Make Me Run (vocal: Keith Richardss)
Midnight Rambler
Miss You
Gimme Shelter
Brown Sugar
Sympathy for the Devil
Jumpin’ Jack Flash


Bis:
You Can’t Always Get What You Want
(I Can’t Get No) Satisfaction

Galeria de fotos

Galera chegando e o céu se preparando para um temporal.

Na rampa.
It's Only Rock'n Roll But I Like It

Com minha esposa no banner do show

Pré-show. Pessoal ainda chegando.

Este bloguiero e, ao fundo, o palco.

A multidão no ritmo dos Stones

Grande noite de rock'n roll!