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segunda-feira, 21 de julho de 2025

Talking Heads - “Little Creatures” (1985)


 
"Com o resto do mundo pop ainda se recuperando do brilhante 'Remain in Light', o que poderia ser mais subversivo do que um disco limpo e feliz?"
Rob Tannenbaum, para a revista Rolling Stone, em 1985

"É muito divertido poder relaxar e tocar sem sentir que você tem que ser vanguardista o tempo todo".
Tina Weymouth

Pode-se contar nos dedos o número de bandas ou artistas que chegaram ao seu sexto disco de forma irrepreensível. Afinal, isso subentende já se ter começado acertando. Nem os Beatles, oscilantes no início da discografia, ou a Kraftwerk, que levou quatro trabalhos para encontrar sua verdadeira sonoridade, ou mesmo Bob Dylan, cuja musicalidade e visceralidade poética começaram a valer de fato a partir de seu segundo, o clássico “The Freewheelin’ Bob Dylan”. Não é fácil entender a si próprio já no início da carreira a ponto de “estar pronto” no primeiro disco, bem como manter a qualidade nos trabalhos subsequentes e, mais ainda, evoluir.

A Talking Heads pode orgulhar-se de ser esse exemplo de banda. O que David Byrne, Tina Weimouth, Cris Frantz e Jerry Harrison construíram em termos de discografia perfaz esse caminho: um disco de estreia, “77” (1977), já dotado dos principais elementos da sua sonoridade, algo entre o punk nova-iorquino e a new wave; um segundo álbum de consolidação da mesma ideia e encontro com o produtor Brian Eno, “More Songs About Buildings and Food” (1978); um terceiro que avança sobre si mesmos e põe o pé na vanguarda, “Fear of Music” (1979); um quarto de recriação de identidade, “Remain in Light” (1980), pisando fortemente no terreno da world music; e, no quinto, a emancipação do grupo e o encontro com o pop de “Speaking in Tongues” (1983).

Todo esse percurso irretocável de Byrne e cia. faz com que eles cheguem a “Little Creatures”, de 1985, maduros, experientes e integralmente autorais. O resultado é, se não é o melhor disco da música pop dos anos 80, o crème de la crème da própria banda, que soube evoluir e se aperfeiçoar. Totalmente produzido pelos próprios integrantes, "Little..." é a cristalização de todas as experiências sonoras, estéticas e conceituais que souberam, como músicos inteligentes e antenados, recolher desde que formaram o grupo. Assim, o disco soa ao mesmo tempo pop, rock, world music, experimental e vanguarda, tudo de maneira muito fluida e amalgamada, numa sequência de faixas daquilo que se pode chamar de “perfect pop” do início ao fim do álbum.

A clássica “And She Was”, dos melhores hits da banda e também das melhores aberturas de disco deles (e da discografia oitentista), dá os ares num pop-rock alegre, melódico, saboroso. O marcante refrão (“The world was moving and she was right there with it (and she was)/ The world was moving she was floating above it (and she was) and she was”), cantado em coro, é evidente legado de Eno para a banda. O britânico, que produziu a trilogia “More Songs....”/“Fear...”/“Remain...”, trazia na bagagem a influência dos cantos africanos e arábicos, o que foi parar na sonoridade de músicas da Talking Heads, como já se via em “Born Under Punches” (“Remain...”) a “I Get Wild / Wild Gravity” (“Speaking...”). 

Por sua vez, Byrne, um dos mais inventivos e carismáticos artistas da sua geração, está excepcional nos vocais e como front man, assim como toda a banda, que atinge em “Little...” um nível técnico de excelência. Não é mais somente Tina a grande instrumentista do grupo: todos, com o auxílio da ótima produção musical, estão perfeitos. Tudo soa no lugar certo, na altura certa, na medida certa. As guitarras, outrora experimentais (“Fear...”, “More Songs...”) ou vanguardistas (“Remain...”), não se eximem desses exemplos e os adicionam ao contexto. O mesmo com a bateria. Se em “Speaking...” ela perde potência e no álbum subsequente se potencializa, em “Little...” está no meio termo, com o peso certo.

Esse equilíbrio, realizado sem perder identidade, é o que se vê em "Give Me Back My Name", que num primeiro momento lembra a atmosfera art rock de “Remain...” (“Houses In Motion”) e a densidade séria e introspectiva de "Warning Sing" ("More Songs...") ou "No Compassion" ("77"). No entanto, ela resulta num refrão novamente cantarolável e agradável, assim como “And...”.  Tina, por sua vez, não deixa por menos e mostra porque o baixo da Talking Heads é um diferencial estético da banda.

Byrne, que avançaria em sua penetração no universo folk norte-americano no disco seguinte da Talking Heads, “True Stories”, de 1986, já trazia essa ideia em "Creatures of Love", das mais bonitas do repertório. Romântico e cotidiano, esse country típico, com violão de cordas de aço, guitarra com pedal steel e levada simples, diz: “Uma mulher fez um homem/ Um homem fez uma casa/ E quando eles deitaram juntos/ Todos saem pequenas criaturas”. Além de uma bela e tocante canção, é a que traz o título do álbum em sua letra. Semelhanças com “People Like Us”, que Byrne comporia para “True...”, não são coincidência.

Maior sucesso do álbum, "The Lady Don't Mind" é, mais do que isso, um dos grandes hits de toda a música pop dos anos 80. Quem não cantarolou e se divertiu com os vocais de Byrne cantando: “Pee-pee-pee-pee/ Pee-pee-pee-pee/ Peeree-pee-pee-pee”? Mas, claro, “The Lady...” não é feita apenas melismas esquisitos: é um legítimo pop perfeito (mas com cara de Talking Heads). O riff, feito de dois acordes dissonantes de guitarra com tremolo, que se contrapõem por outros dois em notas da mesma escala, só que invertidas, é emblemático. A percussão latina de Steve Scales é outra marca da música, grande responsável pelas ótimas vendagens do disco. O excelente viodeoclipe dirigido pelo cineasta Jim Jarmusch, com cenas de Nova York em P&B e cromatismos e que rodava direto na MTV à época, é também impossível de se esquecer.

O clipe de "The Lady Don't Mind",
do cineasta Jim Jarmusch

O primeiro lado do vinil se encerra com outra linda e, com o perdão da redundância, perfeita: "Perfect World". Aliás, quiçá dotada do mais bonito refrão de todo o disco. Igualmente cantada em coro, diz os versos: “This is a perfect world/ I'm riding on an incline/ I'm staring in your face/ You'll photograph mine” (“Este é um mundo perfeito/ Estou subindo uma ladeira/ Estou olhando na sua face/ Você vai fotografar a minha”). A melodia é tão bonita (principalmente, no refrão), que chega a emocionar. E ainda conta com as percussões mágicas de Naná Vasconcellos, que abrilhanta a música.

Animada, "Stay Up Late", assim como “And...”, abre um dos lados do LP em alto-astral. Pode-se dizer que é um aperfeiçoamento, em termos melódicos e de produção, do que haviam feito em “Speaking...”, que se ressente do peso que “Stay...” tem, principalmente na bateria de Frantz, aqui bem funkeada. Mas não só: as guitarras ao estilo “percussivo” de Adrian Belew de “Remain...” estão também presentes, mas integradas e menos “étnicas”. Uma suavização, que dá ganho à faixa no contexto em que está inserida.

Já "Walk It Down", outra maravilha, traz a típica melodia estranha de uma banda que não se exime de ser assim. Nunca se eximiu, aliás, pois sempre foi o diferencial deles diante da secura da cena punk nova-iorquina da qual eles emergiram. Os teclados de Harrison são fundamentais na textura dada a essa faixa, que traz elementos do conceito de produção aprendidos com craques com quem trabalharam, como Eno e Toni Visconti. E assim como “Give...”, segunda do lado A, “Walk...” repete a fórmula: melodia mais densa, mas um refrão que dá vontade de entrar de backing vocal com eles batendo palmas em ritmo: “Walk it down/ Talk it down/ (oh, oh, oh) Sympathy. Luxury/ Somebody will take you there”.

Como toda grande banda, a Talking Heads sabe muito bem montar repertórios – a se ver, por exemplo, o excelente setlist do disco ao vivo “Stop Making Sense”, de um ano antes. Então, eles deixam para o final a parte que impacta no encerramento de uma obra. Nisso, "Television Man", não à toa a faixa mais longa do álbum, vem cumprir esse papel de (quase) fechar o trabalho com uma melodia preciosa, marcada pela bateria potente de Frantz e um riff bem sacado, cheio de inteligência musical. 

Os minutos a mais de “Television...” em relação aos outros números se justificam. Ah, e como se justificam! Pela metade da faixa, uma virada inesperada acontece. É quando entram as percussões brasileiríssimas de Scales e a canção se transforma. Byrne, como bem sabe fazer, eleva os ânimos e energiza o clima, puxando um coro feminino para repetir com ele um simples: “Na-na-na-na-na-na”. Metais, linha de teclados que se cruzam, guitarras percussivas, solo de guitarra: tudo que há em temas como “Crosseid and Painless” ou “The Great Curve”, de “Remain...”, mas agora reelaborados, mais pop. O que começa mais contido se encerra em ebulição. Se Byrne já ensaiava proximidade com a música brasileira, a qual ele consolidaria anos depois no encontro com Tom Zé, Caetano Veloso e com a música nordestina, essa semente está em “Television...”. Além disso, a música, com sua visão sobre a TV e a sociedade de consumo, também serviria de fonte para “True...”, projeto multimídia de Byrne que envolvia música, cinema e livro e de semelhante sucesso de crítica e público. 

A divertida contracapa do disco,
com a banda em trajes espalhafatosos

Faltava, no entanto, o desfecho. Bem que o disco poderia acabar com “Television...”, que não haveria perda alguma. Mas, como dito, eles entendem de narrativa musical. Para quem já finalizou discos anteriores de forma brilhante, como “Drugs” em “Fear...” ou “This Must Be The Place” em “Speaking...”, não haveriam de deixar por menos. Tanto que guardam para o final aquela que, possivelmente, seja a melhor música do vasto e assertivo cancioneiro da Talking Heads: "Road to Nowhere". 

Semelhante ao ritmo marchado de músicas mais antigas da banda, “Thank You For Sending Me An Angel”, de “More Songs...”, e “I Zimbra”, de “Fear...”, “Road...” adiciona algo que estas duas não tinham, que é um universo onírico e poético, como poucas vezes visto na música pop mundial. O começo é de estremecer quando as vozes em estilo gospel entram em uníssono e sem instrumentos, dizendo: “Bom, sabemos pra onde estamos indo/ Mas não sabemos onde estivemos/ E sabemos o que sabemos/ Mas não podemos dizer o que vimos/ E não somos criancinhas/ E sabemos o que queremos/ E o futuro é certo/ Nos dê tempo para entender”. É o prenúncio de uma impactante canção.

Aparece, então, a banda, como numa torrente sonora. Em um crescendo, a música fala sobre a humanidade, a qual “caminha a lugar nenhum” em busca... de amor. O clipe, dirigido pelo próprio Byrne em parceria com Stephen R. Johnson, transmite esse olhar humanista, que dominaria a temática de “True...” logo adiante. E isso sem deixar também de ser engraçado e performático, como nas cenas em que os membros da banda atuam ou na constante corrida sem sair do lugar de Byrne no canto inferior da tela. Profundamente inspirada, “Road...” traz essa mensagem otimista do mundo, intensificada pela instrumentalização, que vai se intensificando, inclusive pela adição do acordeom de Jimmy Macdonell e o washboard de Andrew "El Pantalones" Cader, literalmente uma tábua-de-lavar cujo uso musical é herdado da tradição folk norte-americana. Em êxtase, com um Byrne empolgado, coro intenso e banda contagiada, o último recado é dado, novamente somente com as vozes: “We're on a road to nowhere”. Linda, tocante, universal.

Completando 40 anos de seu lançamento, “Little...” é certamente o disco mais pop da Talking Heads. Pode não o preferido de todos os fãs, que invariavelmente mencionam outros como “True...”, “Remain...” e “Fear...”. Porém, é inegável que este trabalho sinteriza e reúne tudo que a banda fez e faria a partir de então. Além da capa brilhante, do artista outsider Howard Finster (melhor do ano pela Rolling Stone), “Little...” também foi eleito o álbum do ano pela Village Voice, semanário cultural alternativo mais tradicional de Nova York. Mais do que isso: é o disco de estúdio mais vendido da banda, com mais de dois milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos. Ao lado de outros discos memoráveis de 1985, “The Head on the Door”, da The Cure, e “Brothers in Arms”, da Dire Straits, “Little...” é o movimento de uma banda de origem rock, que adere ao pop sem danos à sua própria história. Poucos foram, entretanto, tão felizes como a Talking Heads nesse processo.

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FAIXAS:
1. "And She Was" – 3:36
2. "Give Me Back My Name" – 3:20
3. "Creatures of Love" – 4:12
4. "The Lady Don't Mind" (David Byrne/Chris Franz/Jerry Harrison/Tina Weymouth) – 4:03
5. "Perfect World" (David Byrne/Chris Franz) – 4:26
6. "Stay Up Late" – 3:51
7. "Walk It Down" – 4:42
8. "Television Man" – 6:10
9. "Road to Nowhere" – 4:19
Todas as composições de autoria de David Byrne, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 13 de março de 2020

"Os Mortos Não Morrem", de Jim Jarmusch (2019)



Uma boa ideia, um diretor  tentando sair de zona de conforto, um grande elenco... tem tudo para dar certo, porém em “Os Mortos Não Morrem” ficou no quase.
Numa pacata cidadezinha, os mortos começam a sair dos seus túmulos e causar caos. Cabe a três policiais e uma estranha legista escocesa, unirem-se para derrotar a ameaça.
O elenco, muito inchado, não ajuda o filme. Por mais que o foco principal da história seja a dupla de policiais, o longa vai apresentando inúmeros personagens, dando espaço para eles, para no fim, não aprofundar em nenhum. Tem vários personagens que aparecem e, não só não  fazem o roteiro andar como, pelo contrário, truncam o filme. A gente até pensa, “Bom agora vai desenvolver esse personagem aí, e história vai avançar”, mas não. Foi só mais cena desnecessária que poderia ser substituída por outra com os próprios personagens principais, o que até poderia gerar empatia com eles, algo que, por sinal, acontece muito pouco.
O grande ponto positivo é que , não tira o seu principal aspecto dos filmes, trabalhar de forma reflexiva seus personagens indo mais para intrapessoal do que para o interpessoal. Existem boas críticas sociais e o longa trabalha muito com a ideia do consumismo, do quanto vivemos dedicados ao material, ao ter, e essa crítica e a reflexão dela resulta, funcionam bem no longa.
Apesar do elenco todo ser talentoso, nem todos os personagens são bem aproveitados. Tilda Swintom, por exemplo, como "legista escocesa” poderia ter mais espaço e até merecia mesmo, pois seu personagem é muito bom. Os que realmente conseguem passar algo a mais são Bill Murray e Adam Driver, formando uma dupla de policiais bem bacana, com diálogos bons, e que garantem um humor na medida certa ao filme, com destaque para as cômicas cenas de quebra da quarta parede.
Tinha tudo para ser um grande filme, grande elenco, um ótimo diretor, uma história interessante, porém algo não saiu bem. Não chegou a ser um desastre mas o longa decepciona um pouco pela grandiosidade do seu elenco. Nem todos os personagens tem seu espaço no filme e muitos acabam ficando unidimensionais, faltando, talvez trabalhá-los em camadas. Mas o humor na medida certa e o fato de assistir a um filme de zumbis onde o grande chamariz não são as mortes e cabeças explodindo mas sim a reflexão de como perseguimos algumas ideias, produtos, bens materiais tão cegamente quanto um bando de zumbis, já vale muito a pena. É uma crítica ao povo americano, a Donald Trump, mas serve perfeitamente para nós, e alguns mitos, vestirmos a carapuça aqui no Brasil.

Não custa nada elogiar de novo essa dupla que faz toda a diferença no filme.



por Vagner Rodrigues

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Claquete Especial de Natal



Papai Noel passou por aqui


Nesta época de final de ano, o cinema, essa representação encenada e diegética da realidade, reforça sua função, seja ela de ajudar a refletir ou simplesmente entreter (ou os dois juntos, por que não?). Como n’"O Poderoso Chefão - Parte 2", em que os acontecimentos da máfia e da política estão fervilhando em plena virada de 1959 para 1960 em Cuba, ou em “Boogie Nights”, quando todos interrompem a chegada da década de 80 por causa de um suicídio em plena festa de Réveillon, o dia de Natal também (ou a passagem de 24 para 25) aparece em alguns filmes não necessariamente como tema central, mas como um pano de fundo essencial àquilo que se quer contar. Às vezes é um detalhe, mas extremamente simbólico para determinada obra de cinema. Um nexo narrativo que contribui para a história de forma a lhe trazer os ícones que a data representa (o nascimento e o significado simbólico de Cristo, a figura pop do Papai Noel, a valorização dos sentimentos de fraternidade e compaixão, a representação do consumismo, o pertencimento à sociedade capitalista ocidental, etc.).

Por isso, o Clyblog registra aqui algo nessa linha: não aquelas comédias natalinas típicas que, embora divertidas, são óbvias. Aqui, fugimos da obviedade. Listamos, sim, filmes que se nutrem dos elementos natalinos mais profundos por assim dizer, ainda que apenas como instrumento para dar um toque à trama, para gerar contraste entre a aparência e real ou apenas para contar melhor uma história. Se você está cansado de assistir as franquias “Esqueceram de Mim” ou “Meu Papai é Noel”, aqui vão alguns títulos que não esquecem da data, mas vão além da mesmice – e que, justo por isso, merecem ser vistos mesmo em outras épocas do ano. Mesmo que, porventura, apenas passem pelo tema, o Natal, com seus significados, está lá.


“Duro de Matar” (“Die Hard”, John McTiernan, EUA, 1988) 

Provavelmente o melhor filme de ação dos anos 80 junto com “Um Tira da Pesada”, “48 Horas” e alguns outros poucos, tem o Natal como pano de fundo para uma trama inteligente que mescla policial, comédia e realismo (sim, realismo) na medida certa. O policial nova-iorquino John McClane (Bruce Willis) vai visitar a esposa em Los Angeles, que está numa festa de Natal da empresa onde trabalha, no edifício Nakatomi Plaza. Durante a festa, terroristas alemães, liderados por Hans Gruber (Alan Rickman) invadem o prédio e sequestram todos os convidados com a intenção de roubar milhões em ações da companhia. McClane escapa de ser aprisionado pelo grupo de Gruber e, com grande dificuldade, mas com perícia e astúcia, passa a combatê-los.

A fórmula é muito parecida com o que Hollywood fazia de muito tempo no gênero ação/policial – as sequências com o gancho da tensão e as explosivas cenas de ação, entremeadas por tiradas engraçadas que aliviam a seriedade e a periculosidade – mas adiciona-lhe algo que passaria a servir de exemplo para trocentas produções posteriores: a pegada realista. McClane derrota os terroristas neste dia de Natal atípico, mas o consegue a custas de muito esfolamento. O conceito de anti-herói, humano e mortal, é uma quebra de paradigma no cinema norte-americano do gênero. Se há estilhaços de vidro no chão e McClane está descalço, ele vai cortar o pé, ora essa! É exatamente isso que acontece, numa ressignificação do tipo James Bond, perfeito e inatingível. Tanto é que, por tudo que passa, McClane sai um trapo no final do filme, o qual finaliza emblematicamente com o jazz natalino “Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!” na voz de Vaughn Monroe. Igualmente, o contraste dos elementos visuais e alegóricos da data com a violência (o vermelho da roupa do Papai Noel com o sangue dos ferimentos) funciona muito bem. Daqueles que sempre que estão passando na TV se assiste, inevitável.


  • "Duro de Matar" - "Ho-Ho-Ho!"




“Morte e Vida Severina” (Walter Avancini, BRA, 1981)

Uma obra-prima da teledramaturgia mundial (vencedora do Emmy daquele ano), é a encenação do poema de João Cabral de Melo Neto, o qual se chama também “Auto de Natal Pernambucano”. Com músicas primorosas de Chico Buarque e aproveitando parte do elenco que Zelito Viana usara na filmagem da história quatro anos antes para o cinema, esta é, sem dúvida, a mais bela versão do texto clássico do poeta pernambucano.

De forte cunho social e denunciador, narra a trajetória do retirante nordestino Severino (José Dumond, impecável) do sertão árido à capital Recife através de versos musicados ou recitados em busca de respostas à vida miserável que leva. O que encontra em muitas das etapas dessa cruzada é apenas morte através do descaso e da desassistência do povo, de “Severinos iguais em tudo na vida”, o que o faz pensar em “saltar fora da ponte e da vida”. Mas o nascimento de mais um “Severino”, filho de um carpinteiro pobre mas sábio, vem trazer cores à desesperança. É a “boa nova” que o Natal ensina, o Cristo incutido naquela pequena e franzina vida que se rebenta. “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida?”.





“A Felicidade não se Compra” (“It's a Wonderful Life”, Frank Capra, EUA, 1946)

Capra é um dos mestres do primeiro cinemão norte-americano. Era capaz de criar filmes de marcantes conceitos estético e narrativo a um espírito fortemente nacionalista, seja na valorização dos símbolos de seu país, seja no recorrente tom moral típico daquele povo, o qual vai da puerilidade à arrogância. No caso, mais para onírico, “A Felicidade...” conta a história de um espírito candidato a anjo que, para ganhar suas asas, recebeu a missão de ajudar um empresário (James Stewart) que, em virtude de grave problema financeiro, tinha a intenção de se suicidar. O aspirante a anjo aparece-lhe na véspera do Natal quando este está prestes a saltar de uma ponte. Ele fala de sua missão e comentou que seria um desperdício matar-se, pois ele era importante para muita gente. Ante o ceticismo de seu protegido, que se sentia um fracassado, o amigo espiritual mostrou-lhe várias situações que teriam acontecido se não fosse sua interferência: a morte do irmão, o desespero da II Guerra (recém terminada quando o filme foi rodado), a tristeza da esposa, a situação lastimável de sua cidade, entre outras.

Com fotografia P&B impecável – bastante forjada no cinema soviético de Eisenstein e Vertov –, Capra amarra uma história cheia de acontecimentos com um domínio narrativo espantoso sem deixá-la confusa ou chata. Trata-se de um típico clássico natalino, eu sei, mas com tamanha qualidade não daria para deixá-lo de fora – até por que, atualmente, está em desuso assistir a filmes antigos ainda mais nessa ditatoriamente colorida época natalina. No final, a mensagem é evidente, o que não lhe tira a emoção – até por que muito bem escrito e realizado.



“Cortina de Fumaça” (“Smoke”, Wayne Wang e Paul Auster, EUA/Alemanha, 1995)

Uma ode à solidariedade e ao respeito às diferenças, sejam elas raciais, de gênero ou qualidades pessoais. Tem coisa mais a ver com Natal isso? Pois esta pequena obra-prima com cara de Jim Jarmusch traz isso e mais um pouco. O “isso” é a história envolvente e coral: Auggie Wren (Harvey Keitel) tem uma tabacaria onde circulam tipos bem peculiares (olha aí as diferenças subtextualizadas). Ele também tem um hábito próprio: o de fotografar, às oito da manhã, a fachada de sua loja. É assim que ele conhece o escritor em crise criativa e emocional Paul Benjamin (William Hurt), que, por um momento fortuito, acaba conhecendo um jovem negro morador de rua a quem ajuda a encontrar seu pai. A história é, na verdade, um reencontro das raízes pessoais e dos laços afetivos mal resolvidos no passado.

O “um pouco mais” a que me referi é, além desse instigante subtexto, há a célebre cena em que Auggie vai parar na casa de uma senhora cega cujo neto furtara-lhe a loja. Ela, amorosa e sem os pré-conceitos de quem enxerga apenas com os olhos, o recebe e o convida para cear com ela naquela véspera de Natal. Tudo ao som da belíssima canção “Innocent When You Dream”, de Tom Waits. Cena emocionante. Uma história tão linda que, renovadas as emoções de todos na trama, motiva o até então travado escritor Paul em seu novo romance, chamado: “Auggie When’s a Christmas Story”.


  • "Cortina de Fumaça" - História de Natal de Auggie Wren



“O Natal do Charlie Brown” ou “Feliz Natal, Charlie Brown” (“A Charlie Brown Christmas”, Bill Melendez, EUA, 1965)

Já havia me referido ao filme indiretamente aqui no blog no Natal de 2013 quando escrevi sobre a magnífica trilha sonora de Vince Guaraldi nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Pois além da preciosidade que musica o episódio, a própria animação merece destaque. Com os elementos característicos da série de Charles Schulz, o curta “O Natal do Charlie Brown” é o primeiro desenho animado da turma dos Peanuts. Quando o questionador Charlie Brown reclama sobre o sentido materialista que as pessoas dão à data, Lucy sugere que ele se torne o diretor de uma peça teatral no colégio. Charlie Brown aceita, mas, claro, sua insegurança e os ingovernáveis fatores externos fazem com que ele perca o controle, frustrando-se. “Que puxa!” O amigo de todas as horas Linus, entretanto, lhe consola relembrando o verdadeiro sentido natalino.

Tem um Charlie Brown e Snoopy novo por estrear no Brasil que aproveita o Natal (comercialmente, inclusive) como pano de fundo, mas este aqui é insuperável, não só pela trilha original de Guaraldi mas pela precisão de Melendez na direção, que sempre imprimiu à série de TV a dose certa de doçura, comédia, entretenimento e ludicidade. Atração – e ensinamento – para crianças e adultos.


  • "O Natal do Charlie Brown" 






“Fanny e Alexander” (Ingmar Bergman, SUE/FRA/ALE, 1982)

Sou um tanto suspeito em falar desse filme, pois trata-se de meu preferido da longa, profícua e expressiva filmografia do gênio Bergman. Entretanto, como deixar de fora essa obra-prima que, além de alinhar-se bastante com o recorte que proponho, é o amadurecimento total de um artista que já nascera maduro para o cinema. Superprodução que encerra a carreira do cineasta na grande tela, transcorre-se em dois anos da primeira década do século XX na família Ekdahl. Após um alegre Natal, o pai de um casal de crianças morre. Deste momento em diante Alexander (Bertil Guve), o menino, passa a ver o fantasma do pai frequentemente. Tempos depois, sua mãe casa-se com um extremamente rígido religioso e as crianças são obrigadas a deixar a casa da avó paterna para viverem com a família do padrasto de hábitos severos, onde são tratados como prisioneiros. Na casa do padrasto o sensível e inventivo Alexander passa a ver o fantasma da primeira esposa dele e suas filhas, que haviam morrido tentando escapar dele. Decorrido algum tempo, a mãe se conscientiza da real personalidade do marido e de quanto seus filhos sofrem naquela casa e planeja um modo de tirá-los daquele lugar e levá-los de volta para casa.

O proposital clima espiritualista de toda a história faz cama para a impactante sequência da fuga, em que as forças divinas operam um milagre de Natal e os três conseguem escapar da prisão domiciliar. Haveria muito a se falar sobre “Fanny e Alexander” (a relação entre pais e filhos, a espiritualidade imanente, a percepção afinada da criança, a metáfora da vida como palco – e vice-versa –, os limites entre vida e morte, etc.) mas destaco aqui um fator primordial: o fato de o Natal estar presente no início e no final do filme. A data do nascimento de Jesus demarca dois momentos psicológicos e emocionais dos personagens, numa significação das possibilidades de mudança e desenvolvimento da vida e das pessoas. Cada um com suas qualidades e dificuldades, com suas personalidades e jeitos, mas passíveis de enxergarem o mundo para além de si mesmos. Afinal, é Natal.


  • "Fanny e Alexander" - Ceia de Natal









O ClyBlog deseja um
Feliz Natal a todos!