"O disco é um diálogo,
e
temos ressuscitado nós mesmos,
de certa forma, como John e Yoko.
Não como John
ex-Beatle e Yoko ex-Plastic Ono Band.
É apenas nós dois,
e nossa posição foi a
de que,
se o disco não vendesse,
isso significava que as pessoas
não querem
saber sobre John e Yoko.”
John Lennon,
na histórica última entrevista
à Rolling Stone em maio de 1980
“Eu acho que John está aqui
conosco hoje.
Ambos, John e eu, sempre nos sentimos muito orgulhosos
e felizes
por fazermos parte da raça humana.
E ele fez uma boa música
para a Terra e para
o universo.”
Yoko Ono,
ao receber o Grammy de Álbum do Ano
por “Double
Fantasy” em fevereiro de 1981
Nesta semana, eu não poderia colocar outro disco entre os meus
favoritos de todos os tempos que não fosse esta maravilha de
“Double Fantasy”, o último disco de
John Lennon. Por todos os motivos do
mundo. Inclusive por ser a semana do aniversário dele. E por ser um disco que
fala de uma coisa muito em desuso hoje em dia: relacionamentos que dão certo,
apesar de tudo. E não briguem comigo, pois acho que a
Yoko tem tudo a ver com
este disco e com sua proposta. Montado como uma crônica da vida de um casal
normal – mais ou menos, né? Afinal, eles eram John e Yoko –, o disco passeia
pelas várias fases legais e outras nem tanto do cotidiano. Coisa que muita
gente não quer nem ver pintada.
Vamos começar com “(Just Like) Starting Over”, o primeiro grande
sucesso do disco. John diz nela que, mesmo que se conheçam há tempos e já
tenham atravessado poucas e boas,
“É como
se nós estivéssemos nos apaixonando de novo/ será como começar de novo”.
Claro que no caso deles, um ex-
Beatle e uma artista plástica de classe alta
japonesa, as coisas ficam mais fáceis, mas a luta com o dia-a-dia é a mesma. Lá
pelas tantas, John diz pra Yoko:
“Por que
não nos mandamos sozinhos/ Viajamos para algum lugar muito, muito longe/
Estaremos juntos por nós mesmos/ como fazíamos nos velhos tempos”. A velha
tática de escapar da rotina. Só que, aqui, o lance é estar juntos.
“Kiss Kiss Kiss” traz Yoko pedindo pra John beijá-la, tocá-la, dar-lhe
carinho num clima new wave (estilo
musical de sucesso na época). Durante a canção, Yoko lhe pede atenção para que
este amor não se perca. Como na vida real, os beijos e os carinhos levam até o
orgasmo, que é explícito. Pelo menos, em japonês.
“Cleanup Time” já traz John contando suas vicissitudes caseiras.
Naquele tempo, Yoko foi cuidar das finanças da família, enquanto John ficou
responsável pelo filho
Sean e pela casa.
“A
rainha está na casa da moeda/ contando o dinheiro/ o rei está em casa fazendo
pão e mel/ sem amigos e até agora sem inimigos/ completamente livres/ Sem ratos
a bordo do navio mágico de harmonia (perfeita)”. A perfeição da harmonia
está entre parênteses porque nada é realmente perfeito. Enquanto “Starting
Over” fazia a apologia da viagem para fugir da rotina, em “Cleanup Time”, John
garante que
“Não interessa quão longe
viajemos/ Onde nós formos/ O centro do nosso círculo/ será sempre nosso lar”.
O casal se entocou no seu apartamento no Edifício Dakota durante os anos em que
John esteve fora do circuito.
Depois dessa lição caseira de felicidade, as coisas começam a pesar.
Yoko vem com “Give me Something”. E as reclamações aparecem com tudo: “A comida está fria/ Seus olhos estão frios/
A janela é fria/ A cama é fria/ Me dê alguma coisa que não esteja fria, me dê”.
É bom lembrar que Yoko fez parte daquelas famílias japonesas que criaram suas
filhas para o casamento, mas que piraram no meio do caminho. Ela se envolveu
com artes plásticas, teve uma filha e começou seu caso com John enquanto ele
estava casado. O feminismo estava em seu DNA. No final, ela afirma: “Te dei minhas batidas do coração/ e um
pouco de lágrimas e carne/ não é muito, mas enquanto estiver aí/ você pode
pegar”. Tudo isso num cenário novamente new
wave. É de se notar que, enquanto John é mais tradicional em suas escolhas
musicais, Yoko sempre circulou pela vanguarda.
Depois desta reclamação, ele se dá conta de que as coisas não estão exatamente
muito bem e diz:
“Estou perdendo você”
numa batida blues. A música, “I’m Losing You”, conta um pouco do que foi o
famoso “Lost Weekend” de John em 1974, quando se separou de Yoko e tomou todas
ao lado de bebuns juramentados como
Ringo Starr, Harry Nilsson,
Elton John,
Keith Moon, entre outros menos cotados. Pra começar, ele diz que:
“Aqui em um quarto estranho/ no final da
tarde/ O que estou fazendo aqui?/ Não tem dúvidas sobre isso/ Estou perdendo
você/ De alguma maneira, as linhas se cruzaram/ A comunicação se perdeu/ Nem
consigo falar contigo pelo telefone/ apenas tenho de gritar/ que estou perdendo
você”. A dor de John é palpável, assim como as guitarras lancinantes de
Hugh McCraken, Earl Slick e do próprio John. Ele tenta se defender, afirmando
que
“você diz que não está ganhando o
suficiente/ Mas eu te lembro de todas as coisas ruins/ Então que diabo tenho de
fazer?/ Botar um bandaid
?/ E parar
com o sangramento agora/ parar com o sangramento agora”. No final da
canção, John tenta novamente se defender dizendo:
“Sei que te magoei então/ mas isso foi muito tempo atrás/ E bem, você
ainda tem de carregar esta cruz?/ Não quero ouvir sobre isso/ Estou perdendo
você”.
O curioso é que, na mesma batida firme e no tempo de Andy Newmark, Yoko
dá sua versão da história. Em “I’m Moving On”, ela mantém sua postura de
confronto. “Guarde sua conversinha suave
pra quando estiver paquerando/ Guarde seus beijos de segunda-feira para sua
dama de vidro/ Quero a verdade e nada mais/ Estou indo embora, estou indo embora,
você está ficando chato”. Ao contrário de todo o disco – e mantendo sua
postura de sempre –, Yoko foge da vanguarda e da modernidade da new wave daquele momento e segue sua
diatribe na batida do blues, mostrando que o sofrimento é dos dois.
Para aliviar a pressão, John faz sua homenagem ao filho Sean, então com
cinco anos de idade. “Beautiful Boy” inicia com o pai dizendo ao filho para “Fechar os olhos/ não ter medo/ O monstro se
foi/ está indo embora e seu pai está aqui”. Os steel drums de Robert Greenidge dão a medida da suavidade da
canção. Mesmo assim, algo dizia a John que as coisas não estavam bem. Em
diversos momentos do disco, tanto ele quanto Yoko, soltam pistas de que havia
uma ameaça no ar. “No oceano, navegando
pra longe/ mal posso esperar/ ver você crescer/ mas acho que ambos deveremos
ser pacientes”. E a premonição se consuma quando afirma: “Antes de atravessar a rua/ pegue minha mão/a
vida é o que acontece a você/ enquanto você está ocupado/ fazendo outros
planos”. É bom lembrar que, na noite em que foi assassinado, John e Yoko
voltavam do estúdio onde mixavam seu próximo disco, “Milk and Honey”, lançado
postumamente.
“Watching the Wheels” é, provavelmente, a melhor música de todo o
disco. Usando a metáfora de uma roda gigante como o movimento da vida, John faz
um inventário da atitude das pessoas, fãs e jornalistas em relação ao seu
sumiço. “As pessoas dizem que estou louco
fazendo o que faço/ Bem, eles me dão todos os tipos de avisos pra me salvar a
da ruína/ Quando digo que estou ok, eles me olham de um jeito estranho/
certamente você não está feliz, não está mais jogando”. No refrão, ele
reforça sua postura: “Estou apenas
sentado olhando a roda gigante girando e girando/ Eu realmente adoro vê-la
rolar/ Não mais andando no carrossel/ eu apenas tive de deixar ir embora”.
O oberheim de Ed Walsh percorre toda a música, enquanto John faz o tema ao
piano. Outro destaque é para o baixo sempre presente de Tony Levin.
“Yes, I’m your Angel” traz Yoko brincando de jazz da década de 30, meio
Billie Holiday, meio Bessie Smith (sem, é claro, o poder vocal destas duas
cantoras). Até parece uma daquelas paródias jazzísticas que o grupo Queen fazia
em seus discos dos anos 70, “A Night at the Opera” e “A Day at the Races”. A
letra fala de um amor de conto de fadas que Yoko usa para dar um
relax neste disco, onde o relacionamento
entre homem e mulher, às vezes, chega a momentos muito difíceis.
“Woman” é simplesmente a maior declaração de amor que um cantor e
compositor já fez para sua amada perpetrada em disco. Não somente porque tem um
clima romântico, mas porque John admite suas falhas na condução do sucesso e da
fama e porque dá o crédito a Yoko por tê-lo colocado no caminho certo. “Mulher, sei que você entende/ a criança
dentro do homem/ por favor, lembre que minha vida está em suas mãos”.
Depois de dizer isso, sobra muito pouco para John entregar. E ele consegue: “Mulher, deixe-me explicar/ Nunca pretendi
te causar sofrimento ou dor/ então deixe-me dizer de novo, de novo, de novo/ Te
amo agora e pra sempre”. Ao ouvir com fones, vocês vão notar os Benny
Cummings Singers, um coral de igreja que participa sutilmente.
O disco até poderia terminar aqui tamanha a carga emocional que esta
canção carrega. Mas Yoko ainda fala de seus “meninos” John e Sean em “Beautiful
Boys”. Do filho, ela diz que “você é um
menino bonito/ com todos os teus pequenos brinquedos/ teus olhos tem visto o
mundo/ apesar de ter apenas quatro anos de idade... Por favor, nunca tenha medo
de chorar”. Já a respeito de John, Yoko afirma que “sua mente mudou o mundo/ e agora você tem quarenta anos de idade/ você
tem tudo o que conseguir carregar/ e ainda assim se sentir vazio/ Nunca tenha
medo de voar”. O violão clássico de McCracken se mistura ao baixo fretless de Levin e aos teclados de Walsh
dando um clima soturno à canção.
Na última participação de John no disco, a pop music beatelesca volta com “Dear Yoko”, outra declaração de
amor, embalada numa faixa dançante e onde John retoma a harmônica dos velhos
tempos, mesclada com as guitarras de Slick e McCracken, dois mestres dos
estúdios. A canção chega a ser bobinha em alguns momentos como “mesmo quando eu vejo TV/ Tem um buraco onde
você deveria estar/ Não tem ninguém deitado perto de mim, Yoko”. “Double
Fantasy” também é um disco interessante porque alterna estes momentos mais
“pesados”, de dificuldade no relacionamento de um casal, com climas mais
animados, pra cima.
A influência da cultura japonesa na vida Yoko se faz presente em “Every
Man Has a Woman Who Loves Him”, uma afirmação que eu realmente gostaria que
existisse. Os teclados e as guitarras tecem uma teia de informação musical
nipônica, enquanto as batidas de Newmark e o baixo de Levin marcam o ritmo. “Todo homem tem uma mulher que lhe ama/ na
chuva ou no sol, na vida ou na morte/ se ele a encontrar em sua vida/ ele
saberá ao colocar o ouvido em seu seio”. Depois, ela troca a perspectiva,
falando da mulher: “Toda mulher tem um
homem que a ama/ ao levantar ou cair na sua vida ou na morte/ e se ela o
encontrar em sua vida/ Ela vai saber ao olhar em seus olhos”. No refrão,
ela é quem faz o mea culpa: “Por que fico circulando quando sei que tu
és a pessoa/ Por que eu corro quando tenho vontade de te abraçar?”.
O impressionante é que, ao chegar o final de “Double Fantasy”, Yoko
tenha feito um exercício de premonição absoluto, sem imaginar o que iria
acontecer. “Hard Times Are Over” ou “Os Tempos Difíceis Terminaram”. Num tom
celebratório, Yoko começa dizendo que “tem
sido muito difícil/ mas está ficando mais fácil agora/ Os tempos difíceis
terminaram, terminaram por um tempo”. Mal sabia ela que, dois meses depois
do disco ter sido lançado, Mark David Chapman faria todo aquele estrago na vida
da gente em dezembro daquele mesmo ano. Com solo de sax de David Tofani, a
canção usa os backing vocals para dar
aquele astral de fim de disco. No relançamento do CD, ainda constam uma música
que John estava terminando, “Help Me to Help Myself”, e a criticada “Walking on
Thin Ice”, cuja mixagem encerrou no dia da morte de John e que Yoko lançou em fevereiro
de 1981.
Além deste tom “cinema verité”
de todo o disco, quando nem John nem Yoko escondem seus problemas e suas
dificuldades, “Double Fantasy” tem a seu favor uma divisão bem clara de
sonoridades: John mais clássico, tanto rock quanto pop, e Yoko trafegando com
desenvoltura pela vanguarda e pelo new wave,
muito em moda na época e cujos praticantes – especialmente The B-52’s – citavam
nominalmente Yoko como grande influência.
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FAIXAS:
1. (Just Like)
Starting Over - 3:56
2. Kiss Kiss Kiss - 2:41
3. Cleanup Time - 2:58
4. Give Me Something -
1:34
5. I'm Losing You - 3:57
6. I'm Moving On - 2:21
7. Beautiful Boy
(Darling Boy) - 4:05
8. Watching the Wheels
- 3:59
9. Yes, I'm Your Angel
- 3:09
10. Woman - 3:32
11. Beautiful Boys - 2:55
12. Dear Yoko - 2:34
13. Every Man Has a
Woman Who Loves Him - 4:03
14. Hard Times Are
Over - 3:19
Faixas inclusas na versão em CD,
de 2000:
15. Help Me to Help
Myself - 2:37
16. Walking on Thin
Ice - 6:00
todas as faixas compostas por
John Lennon e Yoko Ono
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OUÇA O DISCO
por Paulo Moreira