Mostrando postagens classificadas por data para a consulta cartola. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta cartola. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Música da Cabeça - Programa #35
Em semana em que sir. George Harrison é pauta por mais de um motivo, fica impossível não se elevar o espírito. Assim estará nosso programa hoje: elevado. Isso porque teremos ainda no nosso quadro de entrevistas ‘Uma Palavra’ um papo-cabeça-astrológico-musical com o carioca Waldemar Falcão. O “som dos anjos” dos Cocteau Twins também vão dar o ar da graça, assim como Caetano Veloso e Jorge Mautner, Cartola e Nelson Cavaquinho e outras maravilhas igualmente elevadas. Afinal, estamos falando do Música da Cabeça, que vai ao ar às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e mapa astral, Daniel Rodrigues.
segunda-feira, 20 de novembro de 2017
Gilberto Gil - "Refavela" (1977)
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra” do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê |
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/ Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela" |
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros, buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"
Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"
*******************
FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas
*******************
OUÇA
por Daniel Rodrigues
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
Madeleine Peyroux - Teatro Bourbon Country - Porto Alegre/RS (09/11/2017)
Pra começar, um aviso: se você é fã da cantora Madeleine
Peyroux, não siga em frente. Você vai ficar muito irritado e vai me xingar, me
destratar e até vai ter vontade de me dar uns tapas. Por quê? Porque nunca
gostei de sua voz (aquele timbre "billieholidayesco" só funciona com
a própria) e acho que o resultado final de sua música é mediano. Não tem
brilho.
Com seus músicos no palco |
Posto isso, depois de ignorar os shows anteriores dela,
resolvi dar uma chance de ser surpreendido. Afinal, a formação é jazzística -
violão e ukulele mais guitarra e baixo acústico – para o show no Teatro Bourbon
Country, em Porto Alegre. E o guitarrista era o grande Jon Herrington, que toca
com o Steely Dan há muito tempo.
O show começou morno, demorando pra deslanchar. Diga-se a
favor de Peyroux, que ela foi muito simpática ao se comunicar com a plateia em português.
Musicalmente, os altos momentos foram "A Good Man is Hard to Find",
dedicada às mulheres; "Everything I Do Gonna be Funky", do mestre de
New Orleans, Allen Toussaint; e até mesmo "um cantchinho e um
violaaaao", "Corcovado". Em compensação, o pior veio logo
depois: uma versão horrorosa de "Água de Beber", também de Tom Jobim,
interpretada ao ukulele, como se o maestro tivesse vivido em Maui, ao invés do
Rio.
Para salvar o show, Peyroux e seus rapazes puxaram da
cartola "Dance me to the End of Love", de Leonard Cohen, no
encerramento. Ainda não foi desta vez que Madeleine Peyroux me convenceu. Não
sei se terá outra chance.
texto: Paulo Moreira
fotos: Cris Moreira/Divulgação
quarta-feira, 5 de abril de 2017
James Taylor e Elton John – Anfiteatro Beira-Rio – Porto Alegre /RS (04/04/2017)
Duas ou três palavras sobre o show de ontem de James Taylor e de Elton John. Em primeiro lugar, sou fã declarado e juramentado dos dois. Acompanho o Elton John desde meus 12 anos, quando ouvi pela primeira vez "Rocket Man" e pedi para minha professora de inglês no colégio. Já o JT foi um pouquinho adiante, quando começou a tocar "You've Got a Friend" e "Fire and Rain" na Continental. Entrei no glorioso Beira-Rio já gostando.
Não me surpreendeu eles se apresentarem com bandas acima de qualquer suspeita. O James Taylor sempre se fez acompanhar pelo melhor dos estúdios americanos. Só que desta vez ele extrapolou!! Steve Gadd na bateria é um luxo só. Um dos maiores bateristas do mundo que tocou com todo mundo, desde Steely Dan até Bee Gees (é, o batera que vocês ouvem em “Stayin’ Alive” e Night fever” é ele!!!); Lou Marini no sax (da banda dos Blues Brothers); o trompetista e tecladista Walt Fowler, que integrou a banda de Frank Zappa e o espetacular Arnold McCuller, provavelmente o melhor backing vocal do planeta. Com tudo isso, mais aquele repertório maravilhoso de quase 50 anos de carreira só podia dar no que deu: um show impecável, com ele se esforçando para se comunicar com o público e ainda tirando da cartola “Steamroller”, aquele blues que mandou no meio do show. Só faltou uma namorada para abraçar na hora do “Handy Man” e do “Shower the People”.
Já Elton John resolveu tirar as backing vocals do espetáculo anterior e a banda ganhou um punch roqueiro muito interessante. Parecia que estava vendo um show do começo dos anos 70. O repertório foi nessa linha: “Levon”, “Tiny Dancer”, “Skyline Pigeon”, “Your Song”, “Burn Down the Mission” em, especialmente pra mim, que sou fãzaço do disco “Captain Fantastic and the Brown Dirt Cowboy”, “Someone Saved my Life Tonight”. Isso sem falar nos hits, que são obrigatórios. Endiabrado ao piano, solando como senão houvesse amanhã, ele colocou pra fora toda a influência do jazz de New Orleans no seu jeito de tocar. O público meio morno é que pareceu esperar pelas chatérrimas “Nikita” e “Sacrifice”, canções menores na carreira de Elton. Pra mim, foi um banho de música pop com os melhores do gênero. Alma lavada foi pouco.
por Paulo Moreira
Fotos gentilmente cedidas por Marcelo Bender da Silva
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Cartola - "Cartola" (1976)
"A delicadeza visceral de
Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...)
Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do
malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro,
tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a
centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou
até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os
dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha,
outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também
soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade
O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que
proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como
exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o
guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do
alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para
alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De
fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a
ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que
chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de
classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a
música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e
a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como
pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do
justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais
genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente
para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística
definitiva deste Mozart do morro: Cartola.
Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a
consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando
negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a
capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente
nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em
1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67
anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a
isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi
o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a
discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram.
Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos
carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se
entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a
primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira,
época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen
Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às
vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os
estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai
meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo
desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o
descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos
botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia
conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores,
monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante
na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a
partir dali fadado finalmente só aos aplausos.
Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da
vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o
organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos
Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio
mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram
dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música
brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e
protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das
joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes –
“Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia,
1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares,
1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos
gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É
Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas
da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal
dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre
buscou. “Preste atenção querida/ De cada
amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo
que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e
admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo,
assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão
solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.
Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como
mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a
tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas
imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que
só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse
questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos
marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja
vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o
primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom
moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os
versos! “Pois então saiba que não
desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas
canções”.
Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela”
vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de
Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone
inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa
inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos;
Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento
originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino
7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula
de uso poético do idioma lusófono: “Pode
ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama
“rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde
sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.
Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta
por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente
gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro
mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de
um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro
de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de
“Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do
personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/
Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos
versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.
“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de
tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa,
seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra
(En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses
sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura
parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz,
ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade
superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um
Moinho” (e outras composições sui-generis
como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar
como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da
revista Rolling Stone Brasil.
Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não
parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por
Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e
pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da
melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar
algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para
tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado
a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes
de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O
arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o
brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza
literária desses versos: “Queixo-me às
rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume
que roubam de ti, ai”?
“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor
desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente
com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana,
repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista,
no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem
social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa
linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais
um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e
técnica, entre artista e sua arte. “Ai,
essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus
acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão,
compreende porque/ Perdi toda alegria”.
O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão
conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de
Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande
riqueza cultural”. Foi nesta época
que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba,
tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e
morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois
primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam
um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da
cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões
socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para
que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como
Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e
Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na
última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e
vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos,
em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E
se a fama chegou até a porta de
Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência,
enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.
FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço
todas as faixas compostas por
Cartola, exceto indicadas.
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
quarta-feira, 6 de janeiro de 2016
“Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino (2015)
Quentin Tarantino ataca outra vez. Seu autointitulado oitavo filme “Os Oito Odiados” merece uma rápida
reflexão. Pra começar, o diretor volta ao Oeste – que foi retratado em “Django
Livre” – e se utiliza de alguns símbolos do gênero, como a música de Ennio Morricone (inferior à de clássicos como as partituras compostas para Sergio Leone) e a utilização do 70 mm Panavison como antigamente, deixando a tela
cheia.
Como sempre, Quentin se esforça para subverter os cânones do gênero. Ao
invés das pradarias verdejantes dos westerns
de John Ford, vemos uma paisagem insólita, coberta de neve, que vai percorrer
toda a projeção. Os personagens não estão divididos entre mocinhos e bandidos.
Todos são foras-da-lei. Novamente, ele se preocupa em usar o racismo, tão
presente em “Django Livre”, e especialmente a misoginia. Samuel L. Jackson é o
Major Marquis Warren, caçador de recompensas que carrega os cadáveres, enquanto
seu “colega” John Ruth – maravilhosamente interpretado por Kurt Russell –
prefere levar os condenados vivos. No caso, a condenada Daisy Domergue
(Jennifer Jason Leigh, num daqueles papéis destinados pelo diretor para
reavivar carreiras, como realizado com Pam Grier e Robert Forster).
A paisagem insólita e opressiva é um dos elementos da narrativa. |
Interessante é que sem querer estragar as inúmeras surpresas que o
roteiro em capítulos permite, “Os Oito Odiados” traz no centro de sua trama a
figura feminina de Daisy, envolvida numa grande confusão quando os personagens
ficam todos isolados em um armazém no meio do nada em Wyoming. Tarantino usa o
exíguo espaço como um palco de teatro, onde os personagens vão se apresentando
uns aos outros e tudo chega a um clímax muito antes do final. Como ele havia
feito em "Bastardos Inglórios", na famosa cena do bar quando os soldados americanos
são confrontados por um oficial alemão e tudo termina em carnificina.
Narrando um flashback, o
diretor desvenda o mistério e transforma o banho de sangue em uma espécie de
anticlímax, quando o espectador fica se perguntando “qual será o ‘coelho’ que ele vai tirar da cartola para resolver a
trama?”. Só posso dizer que a justiça é feita. Todos os atores em cena têm
seus momentos de brilho. Destaque especial para o veterano Bruce Dern –
redescoberto em "Nebraska" - usado como um dos personagens mais reacionários em
cena, o General Sandy Smithers, que dizimou uma tropa de negros durante a
Guerra de Secessão. Pode-se dizer que Tarantino escalou Dern, um reconhecido
rebelde de Hollywood, num papel exatamente o oposto da personalidade do ator. O
diretor também coloca em cena seu elenco de preferidos como a dublê Zoe Bell,
Michael Madsen e Tim Roth (lembram dele sangrando durante todo “Cães de
Aluguel”?).
Russel, de atuação destacada. |
O banho de sangue sempre presente em seus filmes ganha um status de
quase caricatura em “Os Oito Odiados”. Para resolver o imbróglio, Tarantino faz
uma autocitação, usando o prólogo de “Bastardos Inglórios” para introduzir o
personagem do galã Chaning Tatum, aqui quase irreconhecível. A fotografia de
Robert Richardson, velho companheiro de Tarantino, valoriza cada canto da
cabana onde os personagens ficam isolados. A direção de arte consegue recriar o
ambiente daqueles armazéns do velho oeste e os efeitos especiais valorizam a
violência proposta pelo diretor.
Aqui no Brasil, não há intervalo, como nos Estados Unidos, o que não
permite ao espectador um segundo de folga. De uma maneira geral, a crítica não
tem gostado de “Os Oito Odiados”, reclamando de sua duração, de passagens
dispensáveis no roteiro e dos diálogos nada inspirados. Se um dos trunfos do diretor
em trabalhos anteriores era a conversa, sempre afiada, irônica e demolidora,
aqui parece ter se estendido em demasia e se utilizado do termo racista “nigger” uma centena de vezes, reforçando
o preconceito. Um trabalho menor na filmografia de Quentin Tarantino, “Os Oito
Odiados”, mesmo assim merece ser visto.
trechos de "Os Oito Odiados"
por Paulo Moreira
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Velha Guarda da Portela – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (28/11/2014)
A Velha Guarda no palco da Redenção (foto; Tita Strapazzon) |
“Corri
pra ver, pra ver quem era/
Chegando
lá era a Portela”.
Como
são essas coisas da vida, né? Leocádia e eu não pudemos
comparecer ao show do guitarrista Stanley Jordan, no Canoas Jazz
Festival, o qual eu mesmo havia anunciado aqui no Clyblog como me
sendo imperdível. Porém, um dia antes, tivemos a oportunidade de
assistir a outro show de total arrebatamento. Pois mesmo sabendo em
cima do laço, fomos. Coincidentemente antecipando a semana em que se
comemora o Dia Nacional do Samba (2/12), o mais autêntico dos ritmos
brasileiros pôs os dois pés em Porto Alegre. Em celebração aos 80
anos de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Velha
Guarda da Portela foi convidada para uma apresentação gratuita
no Parque da Redenção. Um verdadeiro espetáculo, histórico na
cidade, que me fez lembrar outro memorável ocorrido de 1996, quando
o nobre portelense Paulinho da Viola tocou no mesmo local.
Mestre Monarco, aos 80 anos,
comandando o samba
(foto: Tita Strapazzon)
|
Mas
foram muito mais que estas. Muito mais. Empolgados com a
receptividade do público gaúcho, mandaram ver um show de quase 2
horas e meia, quando executaram não apenas sambas da escola que
pertencem, mas de vários outros autores e agremiações, como o
Império Serrano Silas de Oliveira, homenageado com “Senhora
Tentação” e seu grande sucesso, o samba-enredo “Aquarela
Brasileira” (considerada por Monarco como o mais bonito samba já
escrito). Todo o público cantou junto de ponta a ponta a canção,
que começa com os inconfundíveis versos: “Vejam essa maravilha
de cenário/ É um episódio relicário...” Igualmente, a
empolgante “É Hoje”, de Didi e Mestrinho, samba-enredo da União
da Ilha de 1982, um dos mais célebres da história dos carnavais.
Pra arrebatar os amantes do samba, Monarco, com sua voz de barítono
e modos elegantes típicos de um monarca do morro, presenteou-nos com
“O Sol Nascerá” (“A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois
chorando eu via mocidade perdida...”), emblemático samba do
gênio mangueirense Cartola. As emoções, no entanto, ainda não
terminariam por aí.
Obras
da Portela mesmo foi o que não faltou. Paulo da Portela, Chatim,
Ventura, Antonio Caetano, Alvaíde, Mijinha, Chico Santana. Os nomes
dos poetas e músicos desconhecidos do morro vêm à tona quando a
Velha Guarda toca. A começar pelo “abre-alas” “Esta Melodia”,
de Jamelão e Babu da Portela, composição híbrida das duas mais
tradicionais escolas de samba do Rio, que ficou conhecida na voz de
Marisa Monte. Paulo da Portela, fundador, principal compositor e
exemplo para toda a geração de sambistas portelenses, foi,
obviamente, lembrado mais de uma vez. “Hino Da Velha Guarda Da
Portela” dele, foi executada, mas seu nome é mencionado
seguidamente, como nas letras de “Corri pra ver” (“Foi
mestre Paulo seu fundador/ Nosso poeta e professor”), “Passado
de Glória” (“Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos
só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”) e “De Paulo a
Paulinho”, que Monarco (autor também das duas anteriores) fez para
homenagear o mestre e seu discípulo, unindo passado e presente:
“Antigamente era Paulo da Portela/ Agora é Paulinho da
Viola...”
As pastoras Áurea, Neide e Tia Surica, divinas. (foto: Tita Strapazzon) |
Paulinho,
aliás, foi igualmente lembrado. “Foi um Rio que Passou em Minha
Vida” foi entoada com gosto pela plateia. Candeia, outro dos
grandes, também não faltou à festa, num samba cantado por Sérgio
Procópio, que comandava o cavaquinho. Ele – atual presidente da
Portela e parecido com Candeia, inclusive – relembrou “Dia de
Graça”, dos clássicos do compositor, muito bem selecionada no
set-list, pois soou extremamente adequada àquele público
ligado à universidade e pela ocasião comemorativa à UFRGS.
Contando a história de um filho de sambista do morro que consegue
chegar à faculdade, a poética letra desfecha assim: “E cante o
samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de
verdade/ Aí então jamais tu voltarás ao barracão”. Dele,
também teve a parceria com Casquinha “Falsas Juras”, com aquela
impressionante escalada vocal das pastoras no refrão: “Não
adianta aos meus pés se ajoelhar/ Pode chorar, pode chorar”.
Em
meio a tanta beleza, ainda tiveram a filosófica “O Mundo é Assim”
(“O mundo passa por mim todos os dias/ Enquanto eu passo pelo
mundo uma vez...”), de Alvaíde; “Tudo azul”, de Ventura; a
linda “Lenço”, de Chico Santana e Monarco; e “Você me
abandonou”, de letra extremamente feminista (“Você me
abandonou/ Ô ô, eu não vou chorar/... O castigo que eu vou te dar
é o desprezo/ Eu te mato devagar”), mas composta por um homem,
Alberto Lonato. De Monarco, simpático e feliz pela ocasião, não
faltaram igualmente suas numerosas composições importantes para o
repertório do grupo. Além das já citadas, teve dele também
“Portela desde que eu nasci” – seu primeiro sucesso, na voz de
Martinho da Vila, quando ele, Monarco, ainda era um mero guardador de
carros, nos anos 70 –, sua primeira composição, escrita quando
tinha 13 anos, e os hits na boca de Zeca Pagodinho: a gostosa “Vai
Vadiar” e a iluminada “Coração em Desalinho”, dos mais lindos
sambas jê escritos: “Agora uma enorme paixão me devora/
Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho
curto a minha dor”.
A
comoção não parou por aí. Vieram outros clássicos como “O
Amanhã” (“Como será o amanhã/ Responda quem puder...”),
clássico samba-enredo, e “Portela na Avenida” (Mauro Duarte e
Paulo Cesar Pinheiro), imortalizada por Clara Nunes, que pôs tudo
mundo pra sambar e cantar, acendendo a galera, num verdadeiro êxtase:
“Salve o samba, salve a santa, salve ela/ Salve o manto azul e
branco da Portela/ Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”.
Simplistamente um espetáculo.
A
delicadeza, a simplicidade, a pureza da poesia destes sambas, unida
às engenhosas e límpidas melodias que se situam entre o
partido-alto, o sambe-enredo, o samba-de-roda, o batuque, o maxixe.
Assim são os sambas que a Velha Guarda da Portela, com o perdão do
trocadilho, guarda. Já escrevi sobre isso no meu blog: a
Velha Guarda abre um real espaço documental de registro de obras
que, não fosse a valorização de apreciadores ilustres – como
Paulinho e Marisa, que, em épocas diferentes, motivaram sua
existência e manutenção –, perder-se-iam no terreiro de
Madureira num pagode qualquer e, talvez, caíssem no esquecimento dos
tempos. Ainda bem que não, para o bem de amantes desses sambas como
nós que podem, ainda hoje, ser arrebatados como fomos naquela
histórica noite na (ou “de”) Redenção.
por Daniel Rodrigues
quinta-feira, 15 de maio de 2014
O Jogo da Sua Vida #4 - Grêmio 0 x Flamengo 0 (1989)
A Jogada do Zico
Não é de hoje que
digo que meu interesse por futebol se restringe ao Sport Club Internacional. Cada vez mais, ao longo dos anos, desde que, guri, fui
ao Gigante da Beira-Rio, em meados dos anos 80, assistir a um Inter e
Coritiba levado por meu pai e meu irmão, percebo que não gosto
propriamente do esporte em si, mas do meu time. Minha impressão é
que, nascido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, como sou, se, por
acaso do destino, os irmãos Poppe não tivessem fundado uma
agremiação que sustenta, até hoje, o desígnio sincero de “clube
do povo”, e isso significasse que restasse apenas o arquirrival
como alternativa, não torceria por clube nenhum. Por isso, deve ser
estranho para quem está lendo ver no enunciado que, justamente, no
jogo que considero o da minha vida o Inter não seja um dos
disputantes. E pior: não só não ser jogo do Inter como ser do
Grêmio! E um 0 a 0?
Pois essa aparente
incoerência tem explicação, inclusive a ausência de gols. O
referido jogo, quartas-de-final do Campeonato Brasileiro de
1988-1989, tinha, sim, direta ligação com o Inter. E com a minha
vida, ou melhor, com a preservação dela. Grêmio e Flamengo disputavam uma das vagas na semifinal do certame nacional, enquanto o
Inter enfrentava o Cruzeiro mirando a mesma finalidade. E o Inter
daquele ano, treinado por um jovem técnico chamado Abel Braga, tinha
boas chances de avançar. Contávamos com um centroavante goleador, Nílson, um ponta-direita rápido e atrevido, Maurício, o goleiro da
Seleção Brasileira, Taffarel, além de um meio campo e uma zaga de
qualidade. Depois de uma ótima campanha (1º colocado, com 47 pontos, considerando os dois primeiros turnos), estávamos embalados
e chegávamos às quartas confiantes.
Porém, avançar de
fase também significava, além do esperado aumento da dificuldade do
confronto, a possibilidade de dar um Gre-Nal inédito numa semifinal
de Brasileirão. Podíamos topar com o Grêmio logo à frente, e isso
era bem provável. Meu irmão e eu havíamos ido a todos os jogos
ocorridos no Beira-Rio naquela campanha, fosse na geral, fosse na
saudosa “coreia”, ora acompanhados de amigos e parentes, ora
somente nós dois. Não perdemos uma partida, e comungávamos da
mesma confiança de todos os colorados naquele ano. Entretanto, se
para meu irmão assustava a possibilidade de cruzar com o Tricolor na
fase seguinte, a mim, mais irresponsável, agradava. Queria a emoção
de derrotá-los num confronto inédito e sem precedentes na história.
Aconteceu de o jogo
de ida do Inter contra o Cruzeiro ser no Mineirão, em Belo
Horizonte, num domingo. Assistiríamos pela TV uma partida que
terminou em 0 x 0. Entretanto, no dia anterior, sábado, num fatídico
28 de janeiro de 1989, Porto Alegre receberia outra partida, ou seja,
nós dois não ficaríamos sem atração naquele fim de semana, mesmo
que não fosse diretamente do nosso time. Era o primeiro
enfrentamento da outra chave, o tal Grêmio e Flamengo. Queríamos
ver de perto nosso possível adversário, fosse um ou outro. Então decidimos assistir ao jogo no estádio Olímpico. Na torcida do
Grêmio.
Isso não foi uma
escolha, bom que se diga. Tendo definido em cima do laço de irmos ao
jogo, não deu tempo de articularmos a compra de ingressos na seção
destinada aos torcedores visitantes, no anel superior. Aliás, seria
quase trocar seis por meia dúzia, uma vez que compartilhamos ainda
hoje quase da mesma antipatia com relação ao Flamengo a que
dedicamos ao Grêmio. Resultado: usando camisetas de cores neutras
(dois colorados usarem azul, jamais!), eu e meu irmão, sem nenhum
outro colorado corajoso que tenha aceitado nos acompanhar, compramos
entradas para a geral do Olímpico e sentamos atrás de uma das
goleiras. Rodeados de gremistas. Ali assistimos ao jogo “na nossa”,
sem falsas manifestações de exaltação, como se fôssemos
torcedores pacatos e concentrados no evento.
Essa junção de
fatos fez toda a diferença para este episódio.
O estádio estava
inexplicavelmente não-lotado, e eu e meu irmão, sem dizer uma
palavra, nos entreolhamos com cumplicidade e espanto crítico como
que dizendo: “como esses gremistas conseguem não lotar o próprio
estádio num fim de semana e numa quartas-de-final de Brasileiro?”.
Assistimos a uma partida morna. Os adversários se equiparavam, o que
motivou um jogo de meio campo, com poucas oportunidades para os dois
lados. A não ser por uma jogada. Do Zico.
Arthur
Antunes Coimbra, o Zico, já era um dos maiores jogadores que
a história do futebol havia visto. Craque desde os anos 70, havia
comandado seu Flamengo, em 1981, na conquista do título Mundial, e,
no ano seguinte, embora derrotado pela Itália, fez parte da
inesquecível Seleção Brasileira ao lado de Sócrates, Júnior,
Falcão, Éder e outros – para muitos, o melhor selecionado
canarinho de todos os tempos. Artilheiro, driblador, armador, exímio
cobrador de faltas. Jogador inteligente, rápido e habilidoso, havia
quem o apelidasse de “Pelé branco”, alcunha que por si só já
fala tudo. Mesmo a desclassificação para a França na Copa do Mundo
de 1986, a qual foi um dos principais responsáveis ao perder um
pênalti no segundo tempo que selaria a vitória brasileira, não
ofuscara a idolatria a Zico. Somava-se a essa mitologia o fato de, um
ano antes da Copa do México, um zagueiro chamado Márcio Nunes
ter-lhe propositadamente quebrado o joelho esquerdo numa jogada
covarde e criminosa. À época, de pré-informatização e de uma
medicina esportiva ainda pouco avançada, uma contusão como aquela
geralmente tirava um jogador para sempre dos gramados. Zico, no
entanto, com persistência, curou-se, ajudou seu Mengo a ganhar o
Módulo Verde da Copa União, em 1987
(em cima do Inter!) e, naquele 1989, disputava mais uma vez a
temporada nacional.
E
ele estava em campo naquele sábado. Além dos jogos pela TV e da
Copa de 86 – a primeira a qual me lembro com clareza de assistir e
torcer –, já o tinha visto jogar duas vezes ao vivo, ambas contra
meu Inter. Gabo-me disso. Uma, em 1987, num 2 x 0 para nós (contra
um Flamengo treinado por Telê Santana e que tinha ainda em campo
Renato Gaúcho, Zinho, Leonardo, Andrade e Jorginho); e num histórico 3x1, já válido por aquele campeonato, em que, afora os dois gols
de Nilson e um de Edu, foi ele, Zico, quem marcou pelo Rubro-Negro.
Numa jogada na ponta da grande área, do lado direito, o Galinho
cortou o zagueiro para dentro e, na frente da área, enfiou um chute
seco e certeiro no ângulo, descontando. Nunca me esqueci da
habilidade e velocidade de movimentos e pensamento de Zico naquele
lance, que calou por uns instantes todo o estádio, ainda eufórico
com o segundo gol do Inter um minuto antes. Eu assistia,
coincidentemente, também atrás do gol.
Era
onde eu e meu irmão estávamos. Mas não na nossa casa, Beira-Rio,
e, sim, no Olímpico em uma tarde nublada em todos os sentidos. Quase
o mesmo ângulo. Porém, ao contrário do movimentado confronto do
time carioca com o Inter (com quatro gols, três só no primeiro
tempo), aquele Grêmio e Flamengo chegava a dar sono. Intervalo, e
zero a zero. Na segunda etapa, as equipes voltam a campo com uma
tentativa de jogar melhor. Tentativa. Seguia o mesmo marasmo, e já
se começava a ouvir reclamações aqui e ali por conta de uma jogada
mal concluída, um passe errado, um chute não arriscado. Os
torcedores gremistas já perdiam a paciência – e nós, ali,
secadores enrustidos, na maior satisfação.
Até
que, por volta dos 35 minutos, uma jogada marcaria para sempre a mim,
não necessariamente por sua beleza futebolística, mas por outro
motivo. Zico, pouco inspirado naquele dia como todos os companheiros,
havia mudado seu estilo de
jogo depois que voltou das contusões, substituindo seu ímpeto e
dribles rápidos pela cadência, toques de primeira e lançamentos.
Mas, como diz Jorge Ben naquela música dedicada ao Camisa 10 da Gávea: “quando não está inspirado, ele procura a inspiração”.
Afinal, craque é craque, né, meu amigo? De repente, mesmo num dia
ruim, pode tirar da cartola uma jogada e mudar o destino. E, além do
mais, um Zico com 60% de capacidade equivale a 100% da maioria dos
jogadores. Pois, numa surpreendente arrancada da intermediária,
Zico, a quem os defensores gremistas não esperavam tal atitude,
driblou um e avançou rápido rumo ao gol, carregando a bola, como
nos velhos tempos. Havia outros dois adversários à sua frente, e
seria difícil supô-los. Pois foi que ele se livrou do primeiro na
velocidade e, já chegando na ponta da área, do lado esquerdo,
aplicou o mesmo drible curto e ligeiro sobre o zagueiro tal qual
havia executado meses antes contra o Inter. Parecia que via a
repetição da jogada, porém do lado inverso. Mas dessa vez era
contra o Grêmio, então, pensava na minha cabeça de torcedor: Zico
tinha a minha permissão para acertar. Ele disparou o chute seco
mirando o ângulo do goleiro Mazzaropi.
Ao
contrário da primeira ocasião, no entanto, Zico, dessa, não fez o
gol. O chute bateu na rede, mas pelo lado de fora. Aquele
tradicional: “uhhhh!!” ecoou no estádio. Foi só um susto para a
torcida tricolor, que terminou quando a bola foi para fora. Porém,
para nós dois, o susto permaneceu. Meu irmão, empolgado com a
jogada e com a possibilidade de o Flamengo abrir vantagem contra o
Grêmio fora de casa (podendo administrar o jogo no Maracanã no jogo
de volta e, assim, eliminar os gaúchos), acompanhou a investida de
Zico de pé na arquibancada feito um torcedor flamenguista, mas sem
dar bandeira até então. Quando o atacante errou o alvo, porém, ele
não conteve a “coloradisse” e, apontando o dedo para o campo,
gritou, a plenos pulmões: “Filho da puuuuutaaaa!...” Sim, as
reticências colocadas por mim após o xingamento são propositais.
Foi exatamente isso que aconteceu naquele momento: reticências.
Dando-se conta do que acabara de fazer, ele congelou. E eu junto. A
impressão era de que toda a geral havia silenciado para entender
aquela reação. Foram segundos intermináveis, que demoraram mais
tempo do que aqueles sonolentos 80 minutos de partida até ali. “Como
vamos sair dessa?”, pensei incrédulo, olhando-o sentado e
boquiaberto com o rabo de olho. Haviam visto que estávamos juntos,
e, afora isso, somos bem parecidos de rosto. Não tinha como negar
que eu não conhecia aquele cara. Então, se ele apanhasse, eu
apanhava também. De toda a geral do Olímpico.
Senti
cerca de 30 mil pares de olhos gremistas nos olhando sem entender
aquela atitude do meu irmão, todos já armando um ar de fúria de
quem está prestes a atacar caso se confirme a suspeita: a de que nós
éramos infiltrados. Estávamos prestes a sermos linchados em plena
arquibancada. No entanto, por alguma graça enviada pelos deuses
colorados, meu irmão teve a espirituosidade que só o instinto de
preservação oferece nessas horas e completou aquela desastrosa e
obscena fala com um: “Mas coooomo vocês deixam o cara entrar assim
na área?!”. A expressão enrubescida de raiva dos gremistas, ao
ouvir aquilo, passou em milésimos da confusão para concordância e
indignação mútua. Um de nosso lado falou: “É! Isso mesmo:
coooomo vocês deixam o cara entrar assim na área?! Mandou bem,
cara”, parabenizando meu irmão. Olharam-nos orgulhosos por aquela
reação incontida de indignação por amor a seu time, coisa que só
um gremista de verdade poderia manifestar... Meu irmão sentou-se
novamente com a promessa de não abrir mais a boca até a eternidade
e só levantou de novo para irmos embora quando acabou o jogo.
Entreolhamo-nos novamente em silêncio, dizendo um para o outro com
os olhos: “Ufa! Escapamos dessa!”.
Meu
irresponsável desejo se realizara. O Grêmio bateu o Flamengo em
pleno Maracanã e o Inter venceu o Cruzeiro no jogo de volta diante
da sua torcida. Em 1º de fevereiro, o aguardado e temido Gre-Nal, o
do Século (depois de um 0 x 0 no primeiro jogo), aconteceu. Vencemos
o Grêmio: 2 x 1, um jogo que ficou marcado na história, o qual
também tive a felicidade de presenciar, porém desta dentro do nosso
Templo. Perdemos o campeonato para o Bahia na final, mas o melhor já
tinha vindo. Afinal, depois de termos passado aquele sufoco em nome
da paixão pelo Internacional, nós merecíamos pelo menos essa
recompensa.
Agora
imaginem o que aconteceria se o Zico tivesse
acertado aquele lance...
************************************
Jorge Ben - "Camisa 10 da Gávea"
************************************
Jorge Ben - "Camisa 10 da Gávea"
(A
meu quase-algoz Clayton)
torcedor do Internacional
terça-feira, 22 de abril de 2014
João Bosco - "Galos de Briga" (1976)
“Não
é o sucesso, é o contrário: é o sufoco mesmo,
é a vontade de
cantar e de falar.
Só que de repente isso não foi possível de
acontecer a nível popular,
porque a cada dia as pessoas têm mais
medo, não têm defesa,
cada vez sabem menos o que está acontecendo.
Aí você vem e começa a cantar umas coisas
que elas gostariam de
dizer e cantar.
A razão do sucesso, então, não é bem ele mesmo.
Talvez a razão dele seja o fracasso de todo mundo.”
João
Bosco,
em entrevista de 1976
sobre o disco “Galos de Briga”
Este
mês de abril de 2014 não ficará marcado apenas pelas vésperas de
Copa do Mundo no Brasil (quando se espera dos cidadãos, sem querer
pedir muito, civilidade) ou pelas celebrações de 222 anos pela
memória do “patrono cívico” brasileiro, Tiradentes, mas,
também, por outra data de importância patriótica menos feliz,
porém necessariamente rememorável: os 50 anos do começo da
Ditadura Militar, em 1º de abril de 1964. Diante de tantas
manifestações contra a realização da Copa, de mais um feriado que
não se acessa o verdadeiro motivo da paralisação nacional e de
tantas controvérsias em razão dos arquivos ainda velados dos porões
da ditadura, o que seria capaz de unir de alguma forma futebol,
liberdade civil e política, representando essas três datas
distantes cronologicamente, mas próximas em simbologia?
Um
disco que une esses três polos como nenhum outro é “Galos de
Briga”, terceiro da carreira de João Bosco. Gravado em 1976 pela
RCA Victor, este sucesso de público e crítica à época é fruto,
curiosamente, de um momento de alta ebulição no Brasil: enquanto
Geisel iniciava seu governo anunciando uma “abertura lenta e
gradual”, o AI-5 inda vigorava e barbaridades aos direitos humanos
ainda ocorriam em todos os cantos do País. A Lei Falcão punha uma
mordaça na oposição política; a estilista e mãe de guerrilheiro
Zuzu Angel, pedra no sapato dos militares, morria num ainda
inexplicado acidente de carro no mesmo fatídico abril; meses antes,
o jornalista Vladmir Herzog era assassinado dentro
do DOI-CODI.
Torturas tomavam os porões do DOPS e pessoas desapareciam sem
praticamente ninguém saber. Porém, a resistência se mostrava
forte: o rabino Henry Sobel e Dom Evaristo Arns comandam a missa
ecumênica em nome de Vlado na Praça da Sé, reunindo milhares de
pessoas que, sob o olhar e a mira dos policiais, rezam
silenciosamente; Ulysses Guimarães fundava a OPB, Ordem dos
Parlamentares do Brasil, associação sem vínculos partidários,
religiosos ou sociais que representava a luta pela abertura política;
o PCdoB, esfacelado na Guerrilha do Araguaia, voltava a se
reorganizar através das lideranças estudantis. O Brasil estava
pegando fogo, e a classe artística, obviamente, ansiava por se
manifestar, por resistir de alguma forma.
Eis
então que, no início dos anos 70, através do meio universitário,
se dá o encontro de João Bosco com Aldir Blanc. João, um mineiro
que virou carioca, mas que nunca perdeu a vastidão poética de Minas
Gerais dentro de si. Aldir Blanc, típico poeta maldito da Rio de
Janeiro carnavalesca e vadia, do fervor pelo futebol e pela
militância política. A fusão dessas duas forças artísticas foi
explosiva, e eles criam com “Galos de Briga” uma obra que é tapa
contundente na cara do regime em mensagens inteligentes aos milicos e
aos mantenedores do sistema. Com crítica social, combatividade e um
posicionamento de esquerda visível, o álbum só podia ter este
título, uma vez que, como animais de rinha, eles vão para o
enfrentamento com as armas que têm: os sons e a palavra.
Exímio
violonista e compositor, amante de Clementina de Jesus, dos mitos da
Rádio Nacional, de sambas antigos, de João Gilberto e do populacho
das rádios AM, João consegue criar desde boleros emanados dos
puteiros do baixo meretrício da Lapa até sambas gingados, passando
por ritmos portugueses e marchas da antiga. Isso, aliado à poesia
afiada de Aldir. É esse arsenal rítmico e melódico que “Galos de
Briga” traz, como uma dupla de atacantes habilidosos que tiram da
cartola jogadas inesperadas. O clássico samba "Incompatibilidade de Gênios" dá o pontapé inicial com seu humor ácido, já
pontuando a crítica social de um país que persegue e mata seus
filhos enquanto, dentro dos lares, a violência e a incompreensão
reinam. A referência ao futebol, tanto como paixão do brasileiro
como fuga da realidade, já aparece no primeiro verso na rusga entre
marido e mulher: “Dotô, jogava o Flamengo, eu queria escutar/
Chegou, mudou de estação, começou a cantá...” Na mesma
linha, porém ainda mais aguda, “Gol Anulado” usa o futebol de
forma metafórica para expressar a mesma incompatibilidade entre amor
e o momento político de dureza e opressão, o que, numa sociedade
ignorante, machista e inculta, desemboca na válvula de escape, o
futebol. É o caso do marido que espanca a mulher por que ela mentia
ser vascaína como ele, mas, na verdade, torcia pelo rival Flamengo.
“Quando você gritou Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem
pensar o cinto/ E bati até cansar...” E desfecha, reforçando
esse simbolismo maléfico que o entretenimento futebol
desgraçadamente pode ter: “Eu aprendi que a alegria/ De quem
está apaixonado/ É como a falsa euforia/ De um gol anulado”.
De
igual potência crítica, “O Cavaleiro e os Moinhos”, das canções
imortalizadas na voz de Elis Regina (lançadora de João e Aldir em
1972, ao gravar-lhes o hit “Bala com Bala”), inicia com um
provocador ritmo de marcha militar sob os versos: “Arrebentar/ a
corrente que envolve o amanhã/ Despertar as espadas/ Varrer as
esfinges das encruzilhadas...”. De repente, o clima marcial se
transforma numa debochada rumba! E a letra, pontuda como um bico de
galo, continua atacando: “Todo esse tempo/ foi igual a dormir
num navio/ sem fazer movimento/ mas tecendo o fio da água e do
vento/ Eu, baderneiro/ me tornei cavaleiro/ malandramente/ pelos
caminhos”. E, exaltando os diversos grupos da guerrilha armada,
finaliza referenciando Cervantes: “Meu companheiro/ tá armado
até os dentes/ já não há mais moinhos/ como os de antigamente”.
Afinal, numa época como aquela, quem era o “louco Quixote” e
quem era o “moinho”?
O
suingue caribenho reaparece na gostosa “Rumbando”, assim como o
bolero nas não menos deliciosas “Latin Lover” (já gravada por
Simone um ano antes) e “Miss Suéter”, o antigo certame
que destacava as jovens que apresentavam os bustos, digamos, mais
avantajados. Aldir penetra no universo brega de forma
engraçada e crônica (“Eu conheço uma assim/ Uma dessas
mulheres/ Que um homem não esquece/ Ex-atriz de TV/ Hoje é
escriturária do INPS/ E que, dia atrás/ Venceu lá no concurso de
Miss Suéter...”) e João realiza o sonho de fazer duo com uma
de suas divas, Ângela Maria, que executa uma impressionante
progressão tonal no riff com sua treinada voz de contralto.
Embora
ainda tenha o divertido partido-alto “Feminismo no Estácio“ e o
samba-canção “Vida Noturna”, típica fossa-boemia-carioca,
o negócio naquele momento era mesmo partir para a briga. Aí é que
o jogo engrossa! “Transversal do Tempo”, outra eternizada por
Elis (foi título de disco e espetáculo dela, em 1978), que fala
sobre pobreza (“As coisas que eu sei de mim/ São pivetes da
cidade/ Pedem, insistem e eu/ Me sinto pouco à vontade/ Fechada
dentro de um táxi/ Numa transversal do tempo”), exílio (“As
coisas que eu sei de mim/ Tentam vencer a distância/ E é como se
aguardassem feridas/ Numa ambulância”) e desesperança (“Acho
que o amor/ É a ausência de engarrafamento”). Pungente.
Igualmente, o fado lusitano que dá título ao álbum, de poesia
rebuscada e caráter combativo: “Não o rubrancor da vergonha/
mas os rubros de ataduras/ o rubro das brigas duras/ dos galos de
fogo puro/ rubro gengivas de ódio/ antes das manchas do muro”.
(Sim, não é coincidência que a imagem das pichações com
palavras de ordem contra a ditadura venha à cabeça.)
Mas
não para por aí. A raiva de toda a sociedade civil oprimida e sem
voz parecia não caber em apenas poucas músicas para João e Aldir.
Tinham que falar, exatamente, desta raiva, deste inconformismo. Pois
então, toma!: “O Ronco da Cuíca”. Tal samba-enredo,
literalmente, enredou a censura que, burra e limitada, embaralhou-se
com seus versos circulares e envolventes, que a denunciavam como que
dizendo: “vocês até podem parar nossa reação através das
força, mas jamais serão capazes de conter nosso desejo pela
liberdade”. Uma “Opinião”, de Zé Keti, revisitada. Letra
e música geniais, que expande os sentidos e simbologias das palavras
(como na personificação do instrumento “cuíca”, dando-lhe vida
e politizando-o), uma vez que o próprio termo “fome” tanto pode
significar a crítica econômico-social da falta de comida ao povo
(talvez tenha sido isso que induzira os milicos ao erro) quanto, num
espectro maior, a urgência da democracia.
Pra
terminar, o “tiro de misericórdia” (não à toa, título do LP
seguinte de João Bosco, de 1977): “O Rancho da Goiabada”, uma
marcha-rancho aparentemente festiva mas que, como em poucas obras do
cancioneiro brasileiro, denunciam algo que se falava somente nas
esquinas e a boca pequena: a situação desumana dos boias-frias –
trabalhadores rurais escravos apelidados assim por causa das
refeições que levavam em recipientes sem isolamento térmico desde
que saíam de casa, de manhã cedo, o que faz com que estas já
estejam frias na hora do almoço. Os versos pintam um quadro
sócio-profissional perturbador, que contrasta com o ritmo de
carnaval da melodia: “Os boias-frias quando tomam umas biritas/
Espantando a tristeza/ Sonham, com bife a cavalo, batata frita/ E a
sobremesa/ É goiabada cascão/ com muito queijo...”. E
finaliza condenando sem meias-palavras os latifundiários criminosos
em suas fantasias de homens poderosos comparando-os aos soberanos
egípcios cujo tempo já passou dizendo que, bravamente, os
boias-frias: “São pais de santos, paus de arara, são
passistas/ São flagelados, são pingentes, balconistas/ Palhaços,
marcianos, canibais, lírios pirados/ Dançando, dormindo de olhos
abertos/ À sombra da alegoria/ Dos faraós embalsamados”.
João
e Aldir criaram um disco que é o retrato de um país em período de
mudanças, as quais só se concretizaram por que artistas corajosos
como eles, junto a centenas de opositores ativos – entre estes,
vários desaparecidos –, ofereceram resistência, seja em armas ou
em ideias. Estes são grandes responsáveis pela democracia que se
vive hoje num País capaz de receber, inclusive, uma Copa do Mundo
sem a sombra da vigília militar como ocorrera na Argentina em 1978.
Afinal, naquele tempo, quem se opunha sabia claramente o porquê de
estar fazendo. Não era por 20 centavos: era para viver num país
livre.
.........................................
Certamente,
foi por uma causa nobre como esta que, naquele mesmo 1976, João Bosco e Aldir Blanc recusaram o prêmio Golfinho de Ouro, conferido
pelo Governo do Rio de Janeiro, pois queriam que o premiado fosse
Cartola, uma vez que consideravam, sem modéstia burra, o trabalho do
compositor daquele ano, o histórico LP com “As Rosas não Falam”
e “O Mundo é um Moinho”, melhor do que o seu. A dupla recebeu,
então, o troféu de Compositores do Ano pela Associação Brasileira
dos Produtores de Disco.
******************************
FAIXAS
1 -
Incompatibilidade de Gênios
2 -
Gol Anulado
3 - O
Cavaleiro e os Moinhos
4 -
Rumbando
5 -
Vida Noturna
6 - O
Ronco da Cuíca
7 -
Miss Suéter
8 -
Latin Lover
9 -
Galos de Briga
10 -
Feminismo no Estácio
11 -
Transversal do Tempo
12 - O
Rancho da Goiabada
todas
as músicas são de autoria de João Bosco e Aldir Blanc
***********************************************
OUÇA
O DISCO
por Daniel Rodrigues
Assinar:
Postagens (Atom)