Os orientais são os que mais celebram o silêncio dentro da música. Aquilo que chamam de "ma" (algo como “intervalo”, “tempo”, “espaço”) pode ser interpretado e captado de diversas formas, seja filosófica, prática ou formalmente. Advinda da filosofia dualista do yin e yang, a ideia de “silêncio” trazida do Oriente se incutiu também em músicos do Ocidente, aqueles cujos ouvidos e sentimentos souberam compreender essa sabedoria milenar originária da própria natureza. Kenny Dorham foi um desses perspicazes aprendizes. Como um mestre taoísta, ele transpôs para seu trompete a sabedoria do silêncio oriental através de uma das formas mais sublimes que os sentidos humanos podem captar: a quietude. Não por coincidência, seu melhor disco chama-se “Quiet Kenny”, uma definição sintética, didática e até profética de si mesmo.
Dorham, formado nas big-bands de be-bop dos anos 50 de Lionel Hampton, Billy Eckstine, Dizzy Gillespie e Mercer Ellington, além do quinteto de Charlie Parker e a primeira formação da Jazz Massangers de Art Blakey, curiosamente não é tão celebrado quanto alguns de seus colegas de instrumento como Miles Davis, Lee Morgan e Chet Baker. Os motivos podem ser vários para ser considerado, como disse o crítico e escritor Gary Giddins, “sinônimo de subestimado”. Uma suspeita pode-se levantar: “Quiet...”, um trabalho tão definidor de sua verve e sua primeira incursão no selo Prestige, saiu justo no mesmo ano do acachapante “Kind of Blue”, de Miles, que, além de ser o álbum de jazz mais vendido da história e revolucionário por "inventar" um subgênero, o jazz modal, marcou justamente a saída de Miles do selo Prestige para a abastada gravadora Columbia. “Quiet...”, com a sombra ainda de outras obras daquele ano, como “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman, e “Time Out”, de Dave Brubeck, igualmente marcantes para o jazz, pareceu, como o título sugere, aquietar-se.
No entanto, passados os anos e o impacto midiático de seus concorrentes, “Quiet...” mostra-se tão fresco e brilhante quanto merecia ter sido recebido à época de seu lançamento. O estilo depurado de Dorham, tanto de compor e versar quanto de, principalmente, tocar, estão cristalinos no disco. Acompanhado de Tommy Flanagan, ao piano, Paul Chambers, no baixo, e Art Taylor, bateria, Dorham desfila estilo e classe sem, contudo, perder o diálogo com seu ouvinte ao exercitar uma pronúncia clara e sem rodeios do trompete. Essa proposta fica bem evidente em "Blue Friday" e "Blue Spring Shuffle", em que preserva a linguagem pop do blues ao lhe captar a essência e sem complexá-la desnecessariamente. Simplicidade. Até os ouvidos menos rebuscados conseguem sorvê-las saborosamente.
Antes disso, porém Dorham mostra que também sabia ousar, provando que apenas os desatentos o subestimavam. "Lotus Blossom", que abre o álbum, é um dos mais originais e engenhosos temas do jazz daquele final de anos 50, quiçá de toda a história do hard-bop. Intensa, lírica, dissonante, desconcertante. De andamento que ondula, surpreende por seu riff inteligente, mas também pela variação de ritmos e encadeamentos, bastante a cargo, aliás, das baquetas de Taylor. "Lotus...”, aberta referência ao Oriente, tem condensado, em menos de 5 min, tudo isso: solos incríveis de Dorham, Flanagan e de Taylor, subidas e descidas, be-bop, blues e música indiana.
Se a serenidade está mais escondida numa faixa tão vívida quanto a de abertura, nada melhor do que aplicá-la num clima de balada. É o que Dorham sabiamente faz na versão de "My Ideal", em que conta com uma rica dobradinha com o piano de Flanagan e a condução consciente de Taylor, só nas escovinhas e pratos, e de Chambers, acostumado com estas ocasiões sonoras visto que recentemente saído do quinteto que acompanhou anos Miles em seus clássicos discos pela Prestige, tais “Steamin’” e “Cookin’”. Tratamento delicado e semelhante o band leader traz para outra adaptação: "Alone Together". O trompete, que atinge notas altas de pura emoção romântica, é transparente, sem exaltação, um exemplo de como utilizar as pausas e ataques de forma sutil e fluida. Nota-se a mesma limpidez do conjunto sonoro – muito ajudada pela captação sempre perfeita do engenheiro de som Rudy Van Gelder – nos “quiet blues” "I Had the Craziest Dream" e "Old Folks". Em ambas, contracenando com Dorham, o piano de Flanagan prioriza as teclas pretas, agudas e faceiras, enquanto o baixo e a bateria mantêm a base ideal para o desenvolvimento harmônico.
Kenny Dorham é fatalmente menos lembrado que outros trompetistas contemporâneos a ele. O temperamento reservado que manteve até sua morte sem alardes, aos 72 anos, após anos de doença renal, provavelmente explique o descompasso entre reconhecimento e qualidade artística. Esse ofuscamento pode ter sido também pela genialidade ou pela personalidade explosiva de Miles? Pelo carisma ou a intempestividade midiática de Lee Morgan? Pelo charme ou a face polêmica de Chet Baker? Probabilidades. Há de se supor, quem sabe, que a diferença de prestígio recaia sobre o estilo, quiçá mais identificável nestes outros. De fato, diversamente destes, Dorham não vai nem pela economia estruturada de Miles, nem pelo virtuosismo jovem de Morgan e nem pela expressividade cool de Chet, mas, sim, pela simplicidade. Esse era seu campo e onde atuava com desenvoltura.
Não se sabem ao certo os motivos, porém nada disso impediu que Dorham, a seu modo, demarcasse o seu lugar entre os grandes do jazz norte-americano. Tranquilo, discreto e quieto como classificou a si próprio, Dorham não promoveu uma revolução do nível do free jazz, da avant-garde, do modal ou cool jazz, mas sim, uma (quase) silenciosa. A sua própria revolução: interna e consciente. Como um sensei do jazz.
Daniel Rodrigues






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