Quatro capas de diferentes versões: a original, da Columbia, com a fantástica arte de Neil Fujita, e as posteriores pelos selos Pan Am, Green Corner e Jazz Images |
terça-feira, 27 de abril de 2021
Charles Mingus - "Mingus Ah Um" (1959)
quinta-feira, 19 de agosto de 2021
Lee Morgan - “The Gigolo” (1965)
Como no rock, a história do jazz também é marcada por astros que tiveram uma passagem muito breve sobre o palco da vida. Se é comum lembrar-se de Jim Morrison, Janis Joplin, Kurt Cobain e Amy Winehouse, no gênero mais norte-americano de todos não é muito diferente. Eric Dolphy, Albert Ayler (mortos aos 34 anos), Wynton Kelly (40), John Coltrane (41) e Django Reinhardt (43) são exemplos de músicos de jazz que tiveram suas trilhas abreviadas seja por questões de saúde, seja por alguma tragédia, caso este de outro grande nome do jazz: Lee Morgan. O enfant terrible do trompete, que, aos 17 anos, já assombrava Nova York com seu virtuosismo e confiança, foi assassinado quando tinha apenas 33 por um tiro desferido propositalmente pela própria esposa. Morgan, assim, viveria pouco mais de uma década após sua estreia. Tempo suficiente, contudo, para gravar 20 álbuns próprios, vários deles memoráveis e sem os quais é impossível contar a trajetória do jazz moderno, como “The Cooker” (1958), “Search For The New Land” (1966) e “Live At The Lighthouse” (1971). Além destes, outro indispensável trabalho de Morgan deste período mágico é “The Gigolo”, de 1965.
Tal um roqueiro, a vida intempestiva de Morgan refletia-se na sua arte para bem e para mal. Junto à genialidade, convivia a dependência de heroína, tristemente comum entre os músicos de jazz da época. Em meados dos anos 60, já alçado a grande talento do seu instrumento depois de Miles Davis, Morgan quase sucumbiu às drogas. Quem o salvou foi aquela que pode ser considerada seu “bálsamo maligno”: a esposa Helen, que anos mais tarde, ironicamente, seria também sua algoz. Mulher negra, independente e de vida difícil, foi ela, para quem tinha 13 anos de diferença, que recolheu da sarjeta o jovem Morgan. Afeiçoaram-se e casaram-se, o que não quer dizer, no entanto, que tenham vivido às mil maravilhas. Entre o amor e o ódio, a convivência entre os dois, abastecida por momentos bons mas também por ciúmes e traições, oscilava, o que aparecia na música de Morgan conforme a situação. “The Gigolo”, desta fase, não poupa em ironia, visto que faz uma sarcástica referência à conturbada e dúbia relação dele com Helen, que mais do que somente amante, também lhe era empresária e quase uma mãe adotiva. Um relacionamento tão controverso, que parecia por vezes que ele aproveitava-se dela como um gigolô.
Graças a ela, porém, Morgan entrava nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, em 1º de julho daquele ano de cara e pulmões limpos e com um supergrupo formado por Bob Cranshaw (baixo), Billy Higgins (bateria), Harold Mabern Jr. (piano) e Wayne Shorter (sax tenor). A boa fase fica explícita no memorável tema de abertura: “Yes I Can, No You Can't”. Um animado e suingado jazz-funk, fusão a qual Morgan já havia sido um dos precursores desde “The Sidewinder”, de um ano antes, gravada posteriormente, inclusive, pelo pai da soul, James Brown. Modernidade, porém, sem perder a elegância bop aprendida nos night clubs nova-iorquinos desde os anos 50 em bandas como a Orquestra Dizzy Gillespie, a Hank Mobley Quintet e a Jazz Massangers, nas quais tocou antes de alçar seu próprio voo. Shorter, virtuoso, abre os trabalhos de solo, seguido pelo próprio Morgan, que tem a “cozinha” mais eficiente da sua carreira em operação: um incrível Higgins não poupando pratos, rolos e batidas firmes marcando o ritmo; Mabern Jr., reverenciando o blues nos teclados; e Cranshaw, outro craque, fazendo o baixo mexer os quadris.
Escrita por Shorter – que dificilmente não deixa sua marca com alguma composição própria em trabalhos dos colegas, compositor profícuo que é – é o saxofonista que improvisa por cerca de 3 min dos pouco mais de 5 da faixa. Mabern Jr. também participa para, somente quase ao final, Morgan, generoso e com espírito de grupo, não ofuscar o parceiro e apenas dividir com ele um duo entre sax e trompete. Saborosa, daquelas de acompanhar estalando os dedos, “Speedball” vem na sequência, com seu riff encantador e seus detalhes de leve quebra das frases. O band leader, nesta, toma a frente no solo: limpo, bem pronunciado, engendrado com a máxima integridade de um músico em boa forma física e mental.
Muito bem apropriada por Morgan, a música de Styne e Cahn, que dá título ao álbum, carrega complexidades harmônicas muito distintas, inclusive um toque hispânico pouco visto no trabalho do trompetista até então, talvez o que menos tenha aderido de sua geração a esta tendência, que fez a cabeça dos jazzistas a partir da segunda metade dos anos 50. Modal intenso, "The Gigolo" é daquelas que tiram o ouvinte do chão. E que solo de Morgan! Em tom alto, ele exercita tudo o que sabe (viradas, ataques, escalonamentos, vibratos), enquanto o grupo talentosamente mantém por trás uma base quase tão solística quanto. Shorter também se esmera no improviso, elevando ainda mais a atmosfera emotiva, algo que ele sabe muito bem fazer. Após mais um chorus, Morgan volta para, aí sim, arrebentar tudo de vez.
Mesmo não sendo um rocker, Morgan tinha muito do espírito jovem destes, pois também sabia quebrar padrões. É o que ele faz com sutileza com “You Go To My Head”, uma tradicional balada, que ganha, na versão do criativo e subversor trompetista, um tom mais inconstante e lírico como ele próprio o era em vida. Sem perder o romantismo, Morgan e sua trupe dão ao número um improvável clima cadenciado, boper, que redimensiona o charme desse standart. Como Coltrane fez com “My Favourite Things”, transformando um singelo tema infanto-juvenil em um jazz modal arrebatador, Morgan aplica a mesma inventividade ao capturar para si o cerne do tema da dupla Gillespie e Coots e recriá-lo. Um final de disco com o tamanho da revolução que Morgan legou ao jazz.
Ceifada prematuramente por um acontecimento trágico, assim como a de vários ídolos do rock, a vida de Lee Morgan guarda essa dubiedade muitas vezes típica dos grandes: uma capacidade que parecia infinita, não fosse a implacável finitude material. Como nos romances ou na mitologia, vida e morte, beleza e terror, amor e ódio se entrelaçam para deixar para sempre algo maior do que o convencional. Como lembra Shorter, falando com carinho do colega e parceiro: “Quando gravávamos, sempre havia a ideia de que aquilo duraria para sempre, de que o que escolhemos perdurará”.
FAIXAS:
Daniel Rodrigues
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016
Dexter Gordon - "Go" (1962)
segunda-feira, 27 de setembro de 2021
Kenny Dorham - "Quiet Kenny" (1959)
Os orientais são os que mais celebram o silêncio dentro da música. Aquilo que chamam de "ma" (algo como “intervalo”, “tempo”, “espaço”) pode ser interpretado e captado de diversas formas, seja filosófica, prática ou formalmente. Advinda da filosofia dualista do yin e yang, a ideia de “silêncio” trazida do Oriente se incutiu também em músicos do Ocidente, aqueles cujos ouvidos e sentimentos souberam compreender essa sabedoria milenar originária da própria natureza. Kenny Dorham foi um desses perspicazes aprendizes. Como um mestre taoísta, ele transpôs para seu trompete a sabedoria do silêncio oriental através de uma das formas mais sublimes que os sentidos humanos podem captar: a quietude. Não por coincidência, seu melhor disco chama-se “Quiet Kenny”, uma definição sintética, didática e até profética de si mesmo.
Dorham, formado nas big-bands de be-bop dos anos 50 de Lionel Hampton, Billy Eckstine, Dizzy Gillespie e Mercer Ellington, além do quinteto de Charlie Parker e a primeira formação da Jazz Massangers de Art Blakey, curiosamente não é tão celebrado quanto alguns de seus colegas de instrumento como Miles Davis, Lee Morgan e Chet Baker. Os motivos podem ser vários para ser considerado, como disse o crítico e escritor Gary Giddins, “sinônimo de subestimado”. Uma suspeita pode-se levantar: “Quiet...”, um trabalho tão definidor de sua verve e sua primeira incursão no selo Prestige, saiu justo no mesmo ano do acachapante “Kind of Blue”, de Miles, que, além de ser o álbum de jazz mais vendido da história e revolucionário por "inventar" um subgênero, o jazz modal, marcou justamente a saída de Miles do selo Prestige para a abastada gravadora Columbia. “Quiet...”, com a sombra ainda de outras obras daquele ano, como “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman, e “Time Out”, de Dave Brubeck, igualmente marcantes para o jazz, pareceu, como o título sugere, aquietar-se.
No entanto, passados os anos e o impacto midiático de seus concorrentes, “Quiet...” mostra-se tão fresco e brilhante quanto merecia ter sido recebido à época de seu lançamento. O estilo depurado de Dorham, tanto de compor e versar quanto de, principalmente, tocar, estão cristalinos no disco. Acompanhado de Tommy Flanagan, ao piano, Paul Chambers, no baixo, e Art Taylor, bateria, Dorham desfila estilo e classe sem, contudo, perder o diálogo com seu ouvinte ao exercitar uma pronúncia clara e sem rodeios do trompete. Essa proposta fica bem evidente em "Blue Friday" e "Blue Spring Shuffle", em que preserva a linguagem pop do blues ao lhe captar a essência e sem complexá-la desnecessariamente. Simplicidade. Até os ouvidos menos rebuscados conseguem sorvê-las saborosamente.
Antes disso, porém Dorham mostra que também sabia ousar, provando que apenas os desatentos o subestimavam. "Lotus Blossom", que abre o álbum, é um dos mais originais e engenhosos temas do jazz daquele final de anos 50, quiçá de toda a história do hard-bop. Intensa, lírica, dissonante, desconcertante. De andamento que ondula, surpreende por seu riff inteligente, mas também pela variação de ritmos e encadeamentos, bastante a cargo, aliás, das baquetas de Taylor. "Lotus...”, aberta referência ao Oriente, tem condensado, em menos de 5 min, tudo isso: solos incríveis de Dorham, Flanagan e de Taylor, subidas e descidas, be-bop, blues e música indiana.
Se a serenidade está mais escondida numa faixa tão vívida quanto a de abertura, nada melhor do que aplicá-la num clima de balada. É o que Dorham sabiamente faz na versão de "My Ideal", em que conta com uma rica dobradinha com o piano de Flanagan e a condução consciente de Taylor, só nas escovinhas e pratos, e de Chambers, acostumado com estas ocasiões sonoras visto que recentemente saído do quinteto que acompanhou anos Miles em seus clássicos discos pela Prestige, tais “Steamin’” e “Cookin’”. Tratamento delicado e semelhante o band leader traz para outra adaptação: "Alone Together". O trompete, que atinge notas altas de pura emoção romântica, é transparente, sem exaltação, um exemplo de como utilizar as pausas e ataques de forma sutil e fluida. Nota-se a mesma limpidez do conjunto sonoro – muito ajudada pela captação sempre perfeita do engenheiro de som Rudy Van Gelder – nos “quiet blues” "I Had the Craziest Dream" e "Old Folks". Em ambas, contracenando com Dorham, o piano de Flanagan prioriza as teclas pretas, agudas e faceiras, enquanto o baixo e a bateria mantêm a base ideal para o desenvolvimento harmônico.
Kenny Dorham é fatalmente menos lembrado que outros trompetistas contemporâneos a ele. O temperamento reservado que manteve até sua morte sem alardes, aos 72 anos, após anos de doença renal, provavelmente explique o descompasso entre reconhecimento e qualidade artística. Esse ofuscamento pode ter sido também pela genialidade ou pela personalidade explosiva de Miles? Pelo carisma ou a intempestividade midiática de Lee Morgan? Pelo charme ou a face polêmica de Chet Baker? Probabilidades. Há de se supor, quem sabe, que a diferença de prestígio recaia sobre o estilo, quiçá mais identificável nestes outros. De fato, diversamente destes, Dorham não vai nem pela economia estruturada de Miles, nem pelo virtuosismo jovem de Morgan e nem pela expressividade cool de Chet, mas, sim, pela simplicidade. Esse era seu campo e onde atuava com desenvoltura.
Não se sabem ao certo os motivos, porém nada disso impediu que Dorham, a seu modo, demarcasse o seu lugar entre os grandes do jazz norte-americano. Tranquilo, discreto e quieto como classificou a si próprio, Dorham não promoveu uma revolução do nível do free jazz, da avant-garde, do modal ou cool jazz, mas sim, uma (quase) silenciosa. A sua própria revolução: interna e consciente. Como um sensei do jazz.
Daniel Rodrigues
quinta-feira, 25 de novembro de 2021
Bento Jazz & Wine Festival - Casa das Artes - Bento Gonçalves/RS (19, 20 e 21/11/2021)
Estive no último final de semana em Bento Gonçalves acompanhando a segunda edição do Bento Jazz & Wine Festival, que tem a curadoria do meu amigo Carlos Badia. Depois de uma abertura festiva com o Secretário da Cultura, Evandro Soares, o ex-prefeito Guilherme Pasin e do atual Diogo Siqueira, foi feita a homenagem à pianista, tecladista e cantora Ana Mazzotti, que deu nome ao palco da Rua Coberta. Pra começar a função na sexta-feira, tivemos o Quarteto New Orleans, formado por Roberto Scopel no trompete; Luis Carlos Zeni no sax tenor; Jhonatas Soares na tuba e Edemur Pereira, na percussão. Nos moldes da POA Jazz Band, o grupo toca clássicos do dixieland, como a clássica "When The Saints Go Marching In". No final da apresentação, o Quarteto New Orleans desceu do palco e se misturou ao público, bem ao estilo da cidade americana.
Na sequência, no palco do teatro da Casa das Artes - um moderno centro cultural incrustrado na Serra - o Quartchêto iniciou as comemorações de seus 20 anos de estrada. Com sua formação inusitada de trombone, violão, acordeon e bateria e percussão, a banda desfilou composições de seus três discos com destaque para "Mas Tá Bonito". A novidade nesta apresentação foi a adição de Matheus Kleber no acordeon em substituição a Luciano Maia, que segue sua carreira solo. Como sempre, o Quartchêto demonstrou sua competência em mesclar os ritmos gaúchos à sonoridade do trombone de Julio Rizzo. Hilton Vacari mantém a base rítmica enquanto Ricardo Arenhaldt mostra todo o veneno do percussionista brasileiro.
Depois tivemos uma das surpresas do festival: o trio Blue Jasmine, formado por Fran Duarte na voz, Débora Oliveira na harmônica e Karina Komin na guitarra. As meninas fizeram um repertório de blues, R&B e rock com segurança e musicalidade. Entre as músicas apresentadas, estava "See See Rider", gravada originalmente pela blueseira Ma Rainey. A primeira noite foi fechada pelos caxienses do De Boni Quarteto. Liderada pelo acordeonista Rafael De Boni, a formação, que tem ainda Lázaro Rodrigues na guitarra, Gustavo Viegas no baixo elétrico e Cristiano Tedesco na bateria, passeia pelas sonoridades portenhas, com forte influência de Astor Piazzolla.
A El Trio, abrindo a tarde de sábado com jazz moderno |
A tarde de sábado iniciou com as evoluções jazzísticas do DJ Zonatão, tocando Miles Davis, Jeff Beck e George Benson. A música ao vivo começou com El Trio, que tem Leonardo Ribeiro no violão e voz, Cláudio Sander nos saxes tenor e alto e Giovani Berti na percussão. Com forte acento nos ritmos latino-americanos, o El Trio também acerta no repertório de clássicos do jazz como "Tutu", de Miles, e "A Night in Tunisia", de Dizzy Gillespie. Leonardo mantém a harmonia e Giovani no ritmo, enquanto Sander mostra porque é um dos melhores saxofonistas do estado.
O trio de Leonardo Bitencoutrt |
Uma das bandas mais interessantes surgidas no Rio Grande do Sul, o Quinteto Canjerana cativou o público da Rua Coberta com as músicas de seus dois discos gravados. Com Zoca Jungs na guitarra, violão e viola; Maurício Horn no acordeon, Alex Zanotelli no baixo elétrico, Maurício Malaggi na bateria e Fernando Graciola no violão, o grupo mostrou como se pode fazer música gaúcha instrumental contemporânea, dosando as sonoridades dos ritmos do Sul com uma abordagem moderna. A noite de sábado encerrou com um dos destaques de todo o festival, o violonista Lúcio Yanel. Argentino mas radicado há 38 anos aqui no Brasil, Yanel deu uma verdadeira aula do violão portenho e pampiano, passando por chacareras, milongas e valsas. Somente com seu violão, o músico conseguiu fazer com que o público ficasse hipnotizado com sua técnica exuberante.
Yanel: aula de violão portenho |
O domingo começou com o trio de Bento Teia Jazz, que misturou composições próprias com standards. A proposta é interessante e mais estrada vai solidificar o som do grupo. O blues esteve representado pelo Alê Lucietto Trio que interpretou Muddy Waters, Jimi Hendrix e Eric Clapton junto com músicas da banda e animou o público com uma linguagem mais roqueira.
Um dos shows mais esperados do Bento Jazz & Wine Festival foi o de Renato Borghetti Quarteto, que mostrou uma grata surpresa: a participação de Jorginho do Trompete, substituindo o flautista e saxofonista Pedrinho Figueiredo, que estava em outro compromisso. Foi muito interessante ver e ouvir como as composições de Borghetti como "Passo Fundo" e "Milonga Para as Missões" se modificaram com a sonoridade rascante do trompete. Acompanhando os dois e mostrando suas habilidades musicais, estiveram os habituais Daniel Sá ao violão e Vitor Peixoto ao teclado.
Após a música vibrante de Borghettinho, o teatro da Casa das Artes recebeu um dos grupos mais instigantes surgidos no estado, a Marmota. Com os integrantes Leonardo Bittencourt e André Mendonça, que já haviam participado no sábado, tivemos o baterista Bruno Braga e o substituto de Pedro Moser, a revelação Lucas Brum na guitarra. Este se mostrou plenamente integrado ao intrincado e desafiador som da banda. Apresentando as músicas de seus dois discos, "Prospecto" e "À Margem", o quarteto ainda deu lugar a novas composições. O público aplaudiu de pé as evoluções instrumentais de rapaziada.
Para fechar o Bento Jazz & Wine Festival, o palco da Rua Coberta recebeu o Paulinho Cardoso Quarteto em sua formação clássica: Paulinho no aocrdeon, Zé Ramos na guitarra, Miguel Tejera no baixo e Daniel Vargas na bateria. Fazendo sua mistura bem sucedida de música regional com ritmos brasileiros, o grupo foi o perfeito fechamento para três dias de intensa atividade musical. Obrigado, Carlos Badia, e à cidade de Bento Gonçalves por abrir espaço para o instrumental, especialmente após a pandemia. Esperamos ansiosamente a terceira edição do evento em 2022.
Confira mais fotos dos shows do Bento Jazz & Wine Festival:
Paulo Moreira
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
John Coltrane - “Blue Train” (1957)
Porém, não se trata apenas de uma mera reunião para mais um mero disco, nem muito menos Trane estava acompanhado de quaisquer músicos. O trompete, sim senhores, estava a cargo do enfant terrible Lee Morgan, então com apenas 19 anos, mas já considerado em toda a Costa Leste norte-americana como um fenômeno do jazz. Além de Morgan, estavam com ele naquele dia no Van Gelder Studios, em New Jersey, só craques: o trombonista Curtis Fuller, maior do seu instrumento à época e sucessor de J.J. Johnson; o já tarimbado pianista Kenny Drew, da escola de Charlie Parker e Johnny Griffin; o jovem baixista Paul Chambers, presença constante a toda turma do be-bop; e o disputado baterista Philly Joe Jones – estes dois últimos, aliás, ex-colegas de Coltrane do famoso primeiro quinteto de Miles Davis. O resultado é um dos maiores clássicos da história do gênero e um dos mais célebres da exitosa, mas curta carreira do artista.
Com uma das aberturas mais emblemáticas da discografia jazz, aquele chorus dos metais marcados pelos dois acordes de piano, a faixa-título é daquelas desbundes provadores de que ali estava pronto, lapidado, já no primeiro projeto solo, o maior nome do jazz: John Coltrane. Como compositor, arranjador e, principalmente, pelo sofisticado e intrincado modo de tocar. Algo único e inédito até então, haja vista que, experimentado nas bandas de Dizzy Gillespie e Earl Bostic, no quinteto de Miles Davis e ex-aluno de Thelonious Monk, Trane unia num só soprar o blues, o spiritual, o be-bop e a vanguarda. Em “Blue Train”, embora um trabalho inicial, já fica notória a forma de tocar de Coltrane num movimento em direção ao que se tornaria seu estilo característico: solos harmônicos e linhas arpejadas em que o tempo muitas vezes está fora ou acima do compasso, estabelecendo sutis conexões com a melodia.
Mas quem não fica para trás são Morgan e Fuller. Convidados de honra para dividirem os sopros com o anfitrião, eles se esmeram em suas participações sempre inspiradas. Caso de “Blue Train”, mas também da gostosa “Moment's Notice”, quando dividem o chorus com Coltrane. Fuller com seu jeito colorido de tocar um instrumento de registro grave. Já Morgan exibe seu virtuosismo possante de viradas criativas, agudos surpreendentes e encadeamentos improváveis. Chambers tira das cordas do baixo através do tanger do arco sons mágicos num solo luminoso. Já o blues ligeiro “Locomotion”, como o nome indica, tem na bateria de Joe Jones o impulso inicial para improvisações de alta habilidade de Coltrane, Morgan e Fuller. Mais uma vez, funciona com perfeição a trinca, com o devido destaque para cada um. Porém, não são somente eles que se sobressaem. Drew é pura elegância, enquanto Jones repete o destaque da abertura num curto, mas marcante improviso.
Diminuindo o ritmo com elegância, a romântica “I'm Old Fashioned”, originalmente da trilha sonora do musical de Fred Astaire “Bonita como Nunca”, de 1942, capta a atmosfera de que Coltrane muito se valeu junto a Miles Davis em suas inseparáveis baladas. Porém, também antecipa o tipo de releitura de standarts do cinema norte-americano que faria a partir de então, culminando na obra-prima “My Favourite Things”, de “A Noviça Rebelde”, o qual versaria em seu álbum homônimo em 1960. A pronúncia lânguida do sax na abertura, articulada com leves salpicos nas teclas, são de arrebatar. Escovinhas na caixa e no prato, um baixo vadio por detrás e um piano machucado dão aquele ar de fim de noite de nightclub.
Para terminar, outro clássico, das preferidas dos amantes do jazz e de Coltrane: “Lazy Bird”, brincadeira com a progressão harmônica de “Lady Bird”, do pianista e então recente parceiro Tadd Dameron. A impressionante performance do líder pela metade da faixa quase não deixa perceber que quem a abre com o riff e executa a primeira sessão de improviso não é ele e, sim, Lee Morgan. A inteligência musical de Coltrane é tamanha que, longe de qualquer vaidade, ele percebe que cabia ao trompete esta função dentro do arranjo do tema. E olha que se trata do número de encerramento e para o qual podia, com todas as razões, puxar para si o protagonismo. Mas o que se escuta é, a bem dizer, uma música do repertório de Morgan. Na sequência, Fuller, Coltrane, Drew, Chambers e Jones cada um entra para seu momento, fechando, novamente, com a irreverência vigorosa de Morgan.
Não por coincidência, "Blue Train" foi um dos trabalhos preferidos pelo próprio Coltrane, que continuaria a promover maravilhas fosse com duos, trios, quartetos, sextetos, octetos... Sua escalada sonora e espiritual ainda revelaria muitos momentos singulares para o desenvolvimento do jazz moderno até seu apogeu criativo naquela que pode ser considerada a trilogia máxima: "Crescent", "A Love Supreme" e "Ascencion". Porém, nada disso seria construído não fossem os trilhos abertos por este "trem azul", a linha de partida para o estilo hipnótico e exultante que o músico seguiria até sua prematura estação final, em 1966. Quase uma metáfora para um artista que passou pelo planeta "blue" na velocidade de um trem, iluminando por onde passava e emanando os sons que simbolizam o supremo.
FAIXAS:
OUÇA O DISCO:
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Lee Morgan – “The Sidewinder” (1964)
me veio à mente,
quinta-feira, 25 de março de 2021
Wynton Marsalis - "J Mood" (1986)
Assim como para com os saxofonistas, existe uma mítica no jazz em torno de outros instrumentistas do sopro: os trompetistas. Certamente a tradição de grandes solistas e band leaders desde que o gênero se formou no início do século XX colabora para essa percepção. Buddy Bolden, Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Chet Baker, Miles Davis e Lee Morgan dão dimensão da responsabilidade que é ser um trompetista no mundo jazzístico. Pode-se até dizer que exige uma certa dose de milagre tal aparição, haja vista a raridade de tamanhas habilidade e inspiração que exige.
Mas, igualmente ao que acontece com o sax, quando parece que essa ação divina vai falhar, surge, como que por milagre, um novo talento do trompete totalmente absorvido pelo mistério que envolve o instrumento. Caso de Wynton Marsalis, que, no final dos anos 70, apareceu para a cena musical como promessa de continuidade dessa linhagem de músicos do sopro, a qual ele não apenas confirmou como acabou por se tornar ele uma nova lenda, o primeiro artista de jazz a vencer um Prémio Pulitzer, em 1997.
Da extensa discografia de Wynton, um profundo conhecedor de música, além de um homem de posicionamentos fortes em defesa das questões raciais e da cultura afro-americana, “J Mood”, de 1986, é um exemplar modelo. Cores perfeitamente pinceladas do hard bop, no melhor estilo daqueles a quem ele reverencia, Thelonious Monk, Lester Young, Herbie Hancock, Charles Mingus, Charlie Parker, Miles, Morgan e toda uma história galgada em técnica e alma. Numa época em que o jazz em essência perdia força ou para a música pop ou para a vanguarda, Wynton apresentava um deleite para os ouvidos já mal acostumados com a tradição.
A história de Wynton com a música e o ativismo vem de berço e de sangue. Nascido na terra-mão da música negra norte-americana, New Orleans, é o segundo de seis filhos do pianista Ellis Marsalis Jr., influente professor de música que, nos anos 50/60, trabalhara com gente como Ed Blackwell, Cannonball Adderley e Nat Adderley. Mal havia chegado ao mundo e Ellis e a esposa deram um jeito de lhe eternizar a ligação com a música lhe registrando com o primeiro nome do pianista de jazz Wynton Kelly. Ellis, aliás, que por sua vez era filho de Ellis Marsalis Sr., um dos primeiros empresários negros dos Estados Unidos e atuante ativista pelos Direitos Civis em seu país. A casa dos Marsalis respirava música e orgulho racial, tanto que, dos irmãos, também seguiram por este caminho Delfeayo, trompetista como Wynton, Jason, que virou baterista, e o igualmente famoso saxofonista Brandford.
Não é de se estranhar que, desde muito cedo, Wynton tenha mostrado aptidão com a arte musical, com domínio de melodia e harmonia tanto no jazz quanto na música clássica. Estudante da Jillard School, em Nova York, seus primeiros discos trazem, por isso, acordes não dos deuses do gênero mais norte-americano de todos, mas versões de Heydn, Handel, Purcel e música barroca. Porém, com tamanha proximidade e genética não havia como Wynton fugir de suas raízes. Não tinha como fugir do jazz. Primeiramente recrutado para integrar a banda do já sexagenário Gillespie, um privilégio de poucos, foi outro velho band leader do jazz que o fez enveredar de vez para aquilo que mais lhe pertencia. Em 1980, o baterista Art Blakey, convicto de que convenceria aquele jovem trompetista de apenas 20 anos a abandonar a carreira de recitais pomposos, convida-o para excursionar com sua clássica e formativa The Jazz Massangers pela Europa. A partir dali, Wynton foi definitivamente fisgado pelo jazz.
O primeiro disco solo somente jazzístico veio dois anos depois deste batismo de Art. Quando chega em “J Mood”, seu quinto neste estilo, o herdeiro das lendas do trompete já estava totalmente confortável e pronto para ocupar seu lugar no olimpo. Foi o início de uma segunda e definitiva fase na carreira de Wynton, com a formação de uma nova banda, o quarteto J Master, formado por Marcus Roberts, ao piano; Robert Hurst III, do duplo baixo; e Jeff "Tain" Watts, na bateria. Ali, Wynton passava a internalizar o entendimento de algo que lhe seria um grande diferencial: o de que não precisava abandonar a veia erudita para realizar jazz.
Como disse o crítico musical Robert Christgau para a Playboy, em 1986, “J Mood” é puro “comando técnico” e “respeito pela história”. Habilidade, sim, mas nada de excessos: expressão certa na medida certa. Miles e Monk não legaram justamente isso? Assim é a faixa-título, que abre o álbum: um blues cadenciado em que o norte é totalmente dado pelo trompete de Wynton. Os praticamente 5 primeiros minutos dos pouco mais de 8 da faixa são desenhados por suas frases inspiradas, “claras” e “concisas” como bem observou o produtor de jazz e escritor Michael Cuscuna ao ouvi-lo pela primeira vez no início dos anos 80. Roberts, outro talento daquela geração de jovens jazzistas, aproveita a deixa e finaliza o número com um magistral solo.
A dobradinha entre Wynton e Roberts se repete na romântica “Presence That Lament Brings”, de autoria deste último. Lamentosa como o título sugere, mas profundamente sentimental, tem solfejos longos e elegantes de Wynton e a pontuação lírica dada pelo pianista. Isso, adensado pela bateria conduzida nas escovinhas sobre a caixa da bateria e o duplo baixo de Hurst III cumprindo com excelência o escalamento.
Os ânimos se reacendem no bop intenso “Insane Asylum”, em que a improvisação de Wynton é quase que puramente melódica, beneficiando-se da sensibilidade dele e do grupo em contrastes de volumes e ataques. Mais dissonante é "Skain's Domain", que começa com Watts chamando nas variações de caixa, bumbo e pratos para, em seguida, a banda inteira entrar e formar um blues suingado, mas sem perder sua personalidade harmônica. Hora de baixar a rotação novamente, e nisso Wynton é, como todos os grandes trompetistas que o antecederam, um “ás”. Em “Melodique”, na qual se ouve um baixo cristalino e um piano mais ainda, o trompetista puxa uma surdina para diferenciar sua pronúncia e desfilar uma melodia elegante, que faz jus à referência francesa. Quão apaixonadas soam suas notas!
Acordes eruditos das teclas de Roberts abrem “After”. Claro, visto que de autoria de outro pianista. Mas não qualquer um, pois quem a escreveu é, justamente, o pai de Wynton, Ellis. Um verdadeiro resgate da ancestralidade dos Marsalis. Balada sensível, vaporosa, quase adormecendo. Como disse o próprio Wynton ao referir-se à ideia do disco, temas como este são como o repouso que se segue ao diálogo íntimo do romance real, o doce silêncio e a respiração suave após o ato de amor. Para terminar essa joia temporã do jazz que é “J Mood”, o baixo dobrado de Hurst III e a agilidade mental do front man conduzem "Much Later", cujo ritmo acelerado e o título (“muito tarde”) mostram a urgência do resgate do jazz tal como os mestres o conceberam. Wynton e seu quarteto provam que sempre há tempo, contudo.
“J Mood”, juntamente com outro importante disco – não coincidentemente, de autoria do seu irmão Brandford, “Scenes In The City”, de dois anos antes –, salvou o jazz nos anos 80 de dois extremos: o fascínio palatável da música pop, como ocorrera com Hancock e Miles, por exemplo, ou o cerebralismo do pós-bop, que desviava perigosamente o jazz de novo para fora de suas raízes negras. Wynton, ao encontrar a si próprio, encontrou também o caminho do jazz que jamais deve ser perdido. O feito ganhou reconhecimento: Grammy de Melhor Performance Instrumental de Jazz e menção entre as gravações essenciais do gênero do Penguin Guide to Jazz Recordings. Afinal, Wynton Marsalis entendeu que quando ele sopra uma nota em seu trompete, não é somente seus pulmões que agem, mas os de Bolden, Armstrong, Dizzy, Chet, Miles, Morgan. A mística se manifesta e, pelo menos durante os 42 min 35 seg entre a primeira e a última faixas do disco, o jazz está eternamente salvo.
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1. "J Mood" - 8:35
2. "Presence That Lament Brings" (Marcus Roberts) - 5:53
3. "Insane Asylum" (Donald Brown) - 6:34
4. "Skain's Domain"- 6:30
5. "Melodique" - 4:32
6. "After" (Ellis Marsalis Jr.) - 6:10
7. "Much Later" - 4:36
Todas as músicas de autoria de Wynton Marsalis, exceto indicadas