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domingo, 28 de janeiro de 2018

ARQUIVO DE VIAGEM - Aracaju - SE (11/01 a 18/01/2018)



Farol da Coroa do Meio
Quando se pensa em destinos de férias no Nordeste logo vem à cabeça Natal e suas dunas, o mar 'caribenho' de Maceió, as belezas do vasto litoral baiano, praias de Pernambuco como Porto de Galinhas ou do Ceará como Jericoacoara, mas Aracaju, a capital do estado de Sergipe, raramente é lembrada e no entanto tem seus encantos, atrativos e é, sim, uma boa opção de férias. Se seu litoral não conta com aquele azul fascinante da vizinha Alagoas, suas praias são gostosas e aprazíveis normalmente emolduradas por tranquilizantes coqueirais embalados por uma gostosa brisa. Sua orla, remodelada a pouco mais de dez anos, é uma das melhores do Brasil, proporcionando as mais diversas alternativas de lazer e entretenimento. Restaurantes, feiras, quiosques, quadras esportivas, ciclovia, pedalinho, oceanário, mirantes, tudo isso está espalhado ao longo da bela e convidativa Orla do Atalaia ao dispor dos turistas e da população local e são equipamentos urbanos como estes associados a um bom sistema de transporte, níveis de violência "aceitáveis", boa infraestrutura urbana, fazem de Aracaju a capital com melhor qualidade de vida do país. Além das praias e da orla remodelada com todas suas opções, é interessante visitar o Museu da Gente Sergipana, o Mercado Municipal, a Ponte Aracaju-Barra dos Coqueiros, o Farol da Coroa do Meio, o Oceanário do Projeto Tamar e a Passarela do  Caranguejo na própria Orla do Atalaia e ainda a belíssima e interessante Croa do Goré, uma pequena "ilha" de areia que só pode ser aproveitada pelos turistas até que a maré suba, quando então fica totalmente submersa. Fora da cidade ainda, não muito distante, pode-se conhecer ainda as cidades históricas de Laranjeiras e a quarta cidade mais antiga do Brasil, a interessante São Cristóvão, fundada em 1590; e um pouco mais distante, na divisa com a Bahia, o Mangue Seco, lugar que inspirou a obra "Tieta" de Jorge Amado e que foi uma das locações da novela de mesmo nome, exibida pela Rede Globo de Televisão. Bem mais longe, mas mesmo assim uma das atrações da região, e  que pode ser negociada com qualquer agência da cidade, ficam os fascinantes Cânions do Xingó. O passeio é lindo mas exige um dia inteiro e muita disposição, uma vez que a cidade de Canindé do São Francisco, de onde parte o catamarã, fica a três horas da capital.
Então tá sem destino certo? Não decidiu ainda para onde ir? Aquelas badaladas estão caras e a grana tá meio curta? Tenta Aracaju que é uma boa opção.
Vão aí algumas imagens da cidade e dos passeios por lá.

A grande extensão de praias e seus belos coqueiros
(Praia do Refúgio)

O calçadão da Orla do Atalaia

A fachada do Museu da Gente Sergipana

No saguão central do Museu,
uma rede de pescaria cheia de cultura local.

Os elementos da cultura sergipana em destaque no Museu.


No centro histórico, o mirante Ponte do Imperador.

Saindo da área urbana, a Croa do Goré.
Lazer só até a maré encher.

o passeio de bugre pelas dunas do Mangue Seco

Os famosos coqueiros "Romeu e Julieta"
em Mangue Seco.

Os belíssimos cânions do Xingó cortados pelas águas do Rio São Francisco

As impressionantes formações rochosas e os desenhos da natureza.

A cidade histórica de São Cristóvão,
a quarta mais antiga do Brasil.

A praça São Francisco em São Cristóvão

Em Laranjeiras, uma das igrejas no alto da colina.

E o casario antigo da cidade.

Voltando à Orla, o Oceanário do Projeto Tamar

Ainda no Tamar, o tanque dos tubarões.

O caranguejo que dá as boas vindas à passarela


A plataforma que leva à praia do Atalaia,
uma larga faixa de areia


O calçadão da Orla e uma declaração de amor a Aracaju.



C.R.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Legião Urbana - "Dois" (1986)


“Eu não falo porque quero salvar alguém. Eu falo porque gosto. Quem sou eu para salvar alguém? Eu é que tenho que me salvar!”

“Minha geração sempre foi tachada de vazia e idiota. Eu não podia fazer uma besteira.”
Renato Russo


Lembro que ganhei o “Dois” em cassete num Natal. O rock Brasil estava em plena efervescência, “Tempo Perdido” tinha estourado havia pouco tempo e todo mundo queria ter discos de Titãs, RPM, Legião. Pedimos de presente então, eu, o novo do Legião Urbana, e meu irmão, o “Selvagem?” dos Paralamas. Lembro que botamos a fita pra tocar, ali, ainda naquela noite. Iniciava com um ruído de sintonia radiofônica que passava brevemente por “Será”, como que anunciasse exatamente que ali estava uma continuação melhorada do bom álbum de estréia. E “Daniel na Cova dos Leões”, começava então, confirmando bem o refinamento e aperfeiçoamento em relação ao que haviam feito anteriormente, num rock preciso, intenso, numa composição forte claramente mais elaborada que os punks quase crus do disco anterior, com um final clássico com um piano cheio de dramaticidade.
“Quase sem Querer” que a seguia, apresentava uma faceta meio cancioneira que o público não conhecia até então dada a característica do disco anterior. Com um rock acústico de letra introspectiva e intimista Renato expunha sentimentos de tal forma que músicas como esta seriam fundamentais para consolidar a proximidade que o público viria a assumir a partir dali cada vez mais com a banda.
A terceira, “Acrilic On Canvas” tinha um arranjo duro, baixo, com vocal forçado nos graves. Tem como maior mérito o interessante paralelo, cheio de matáforas, entre uma desilusão amorosa e a concepção e pintura de um quadro. Talvez seja a mais amarga e dolorosa do disco.
Já a seguinte, “Eduardo e Mônica”, com sua levada acústica, foi sucesso imediato apesar de sua letra longa, sem refrão e sua historinha de amor. Meio piegas, meio breguinha, é verdade, mas provavelmente fora exatamente isto o que cativara tanto as pessoas. Uma história contada de forma objetiva e direta cheia de ternura e bom humor versando sobre pessoas comuns; comuns como nós.
“Central do Brasil” era um pequeno interlúdio; um lamento acústico, meio sertenejo, breve, servindo praticamente de entrada para um dos grandes hits da banda, “Tempo Perdido”, esta por sua vez, um dos maiores ‘hinos’ da Legião. Talvez seja a que tenha conquistado o público de vez e que tenha efetivamente impulsionado o disco e a popularidade do quarteto de Brasília. Forte, intensa, cheia de sentimento, “Tempo Perdido” mostrava uma levada bem próxima ao som do The Smiths, que na época era influência forte de Renato Russo, desde a sonoridade, passando pelo jeito de dançar no palco e pelas flores que carregava em shows e fotos, assim como Morrissey. Mas “Tempo Perdido” era mais que uma “imitação” de Smiths, era algo como um grito desesperado da juventude e Renato Russo aparecia como uma espécie de representante. Todos nos identificamos na época com Renato porque ele se colocava no nosso mesmo barco e lamentava o fato de que ainda éramos tão jovens e já havíamos perdido tanta coisa.
A seqüência do disco era destruidora com duas pancadas sonoras, “Metrópole” e “Plantas Embaixo do Aquário”, especialmente a primeira, um punk-rock agressivo no melhor estilo Aborto Elétrico.
Seguia então com “Música Urbana 2”, um blues acústico lamentoso e amargo que a seu modo resumia o dia-a-dia nas cidades grandes; e “Andréa Doria”, que vinha em seguida, funcionava como uma de gêmea de “Acrilic On Canvas”, apenas um pouco mais leve sonoramente mas tão triste, infeliz e com o coração tão partido quanto na outra.
“Fábrica”, a seguinte, também lembrava Smiths no som - mais de leve, mas lembrava -, e era uma das mais belas e emocionantes do disco com Renato novamente se colocando junto com a massa, exigindo justiça e elevando valores como honestidade, bondade, igualdade. Era uma espécie de Messias?
Mas seu 'messianismo' ainda estava por mostrar-se mesmo na última faixa, “Índios”, uma letra longa, difícil, construída a partir de uma anáfora cujo verso repetido passaria a ser emblemático para a banda: “quem me dera ao menos uma vez”. “Índios” era um canto de esperança e desesperança ao mesmo tempo, uma demonstração de inocência traída, um clamor de justiça, uma declaração de amor ao país e um pedido de algo em troca. E nós nos sentíamos aqueles índios. Nós éramos a partir de então os índios, e todos sabíamos disso.
Não à toa, a partir daí passou-se a chamar, informalmente e extraoficialmente, os fãs do Legião Urbana de “tribo” e a banda de A legião, como se aquilo tudo do que fazíamos parte fosse uma espécie de seita, de religião.
E era mais ou menos isso, e por incrível que pareça, hoje exatamente 14 anos depois da morte de Renato Russo, não é muito diferente. Já não somos mais crianças, já não somos mais tão jovens quanto o próprio Renato cantou, sabemos que não somos fiéis de ninguém e que essa coisa de líder messiânico é bobagem, mas, independentemente disso, A Legião Urbana, sobretudo na figura de seu líder, ainda preserva essa aura de ascendência sobre uma geração. A geração Coca-Cola.

Renato Russo era soropositivo desde 1989 e morreu em virtude complicações causadas pela AIDS em 11/10/1996.
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FAIXAS:
  1. "Daniel na Cova dos Leões" (Renato Russo/Renato Rocha) – 4:04
  2. "Quase Sem Querer" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha) – 4:42
  3. "Acrilic on Canvas" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha/Marcelo Bonfá) – 4:43
  4. "Eduardo e Mônica" (Renato Russo) – 4:31
  5. "Central do Brasil" (Renato Russo) – 1:34
  6. "Tempo Perdido" (Renato Russo) – 5:03
  7. "Metrópole" (Renato Russo) – 2:42
  8. "Plantas Embaixo do Aquário" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha/Marcelo Bonfá) – 2:53
  9. "Música Urbana 2" (Renato Russo) – 2:40
  10. "Andrea Doria" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá) – 4:53
  11. "Fábrica" (Renato Russo) – 4:55
  12. ""Índios"" (Renato Russo) – 4:17
* o formato cassete trazia ainda a faixa "Química" que depois vira a fazer parte do álbum seguinte, "Que País é Este".
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Ouça:
Legião Urbana Dois



Cly Reis

sábado, 11 de março de 2023

"Argentina, 1985”, de Santiago Mitre (2022)

 

“Marte Um” é um dos melhores filmes brasileiros do século XXI e um dos melhores do cinema nacional. Mas por que abrir falando deste filme e não de “Argentina, 1985”? Pelo fato de que, mais uma vez, o Brasil não é representado no Oscar. O filme de Gabriel Martins era o candidato brasileiro a concorrer à estatueta, o que não se confirmou mais uma vez como vem ocorrendo há 25 anos, desde “Central do Brasil”, em 1998. E por que a comparação entre os países? Porque, embora “Marte Um” tenha sido preterido a títulos de outros quatro países que não só a Argentina, é inevitável a comparação entre o cinema feito no Brasil e na terra de Gardel, vizinhos e afins em uma série de aspectos. O fato é que este último vem, há aproximadamente duas décadas, se sobrepondo de tal maneira ao primeiro – inclusive no próprio Oscar, com a indiscutível vitória de “O Segredo dos Seus Olhos”, em 2004, e a indicação de “Relatos Selvagens”, em 2015 – que chega a eclipsar um grande filme como “Marte Um”.

Esta comparação denota o quanto o cinema argentino soube encontrar o seu lugar na indústria internacional. “Argentina, 1985” traz as qualidades e o hibridismo que caracterizam a produção audiovisual recente dos hermanos. Baseado em fatos reais, o filme conta a história dos promotores públicos Julio Strassera (o lendário Ricardo Darín) e Luís Moreno Ocampo (Juan Pedro Lanzani, ótimo no papel) e sua jovem equipe, que tomam a inédita missão de processar os militares da ditadura argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas.  O processo todo ouviu 850 testemunhas e durou cerca de 530 horas de audiência, vindo a resolver-se no fatídico ano que denomina o título.

Impressiona a capacidade do cinema argentino de saber contar histórias de forma equilibrada e sem pesar demasiadamente para o superficial ou para o denso. Isso coloca a obra no difícil limiar entre o cinema de arte e o filme popular, química facilmente identificada em outros títulos argentinos como “Família Rodante”, “Um Conto Chinês” e “Medianeiras”. No longa de Santiago Mitre, há sempre porções bem conjugadas de drama, humor, romance e registro histórico-documental. Neste ponto, a reconstituição de cenas, principalmente as de tribunal, são capazes de fazer reviver o passado. Além disso, o roteiro vale-se do recurso da construção de narrativas “paralelas” (o pretensamente perigoso namoro da filha Strassera) e a complementaridade de perfis entre os personagens, o que transmite uma percepção de coesão ao espectador.

Recuperando a história: acima, foto do julgamento
original; abaixo, a reconstituição do filme

Há de se ressaltar também aquele que é a cara e o coração do novo cinema argentino: Ricardo Darín. Em mais um exímio papel, ele interpreta Strassera com a habilidade cênica a que o público já se acostumou. Resultado este, porém, nada fácil de se encontrar, visto que perscruta a alma do personagem. O público sabe o que isso quer dizer, basta lembrar de seu protagonismo em filmes como “Neve Negra”, “A Odisseia dos Tontos”, “Koblic”, “Truman” e nos já citados “O Segredo dos Seus Olhos” e “Relatos Selvagens”. A entrega de Darín é tocante, pois capaz de transmitir as inseguranças, as mudanças e os conflitos deste funcionário público tão essencial para a história recente da Argentina, humanizando-o para o espectador. Mais do que humanizá-lo, é um trabalho de recriação e materialização de um personagem que supera o simples cargo de um promotor. É. sim, um símbolo da democracia, da justiça e de resistência.

Darín em mais uma atuação de pura entrega
Afora estes aspectos técnicos comumente impecáveis no cinema da Argentina, este também cumpre outra função fundamental, visto que espelha questões culturais e sociológicas que muito servem de exemplo para a América Latina (incluso Brasil). A porta aberta pelo corajoso e também oscarizado “A História Oficial”, de 1985, denota a consciência de um povo latino-americano que não foge ao compromisso cívico de mexer nas próprias feridas. A sangrenta ditadura que acometeu o país é talvez a principal delas. No momento em que vizinhos como o Brasil saem de um período de trevas pelo conflito permanente entre o comando de um ditador e um regime democrático, bem como a ebulição política recente de países como o Chile, Peru, Nicarágua e Bolívia por motivos semelhantes, que é a sombra fétida do totalitarismo, filmes como “Argentina, 1985” têm muito a ensinar.

Tudo indica que a Argentina levará mais uma vez a estatueta para casa. A se medir pelo grande adversário, o alemão “Nada de Novo no Front” (o qual também concorre a Melhor Filme, pelo qual pode ganhar), a obra de Mitre tem tudo para deixar este e os outros para trás. Assim como deixou o belo “Marte Um”, que por melhor que seja, evidencia o quanto não o Brasil, mas a Argentina achou o caminho para um cinema representativo da América Latina.

trailer de "Argentina, 1985"



Daniel Rodrigues

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Sete Documentários sobre Carnaval



Cena do filme "Nossa Escola de Samba"
É farta a filmografia sobre o samba e seus autores. O gênero musical, assim como o Carnaval brasileiro, ao qual está associado, é tema e/ou perpassa histórias ficcionais das mais diversas no cinema desde que o samba é samba. Porém, é interessante perceber (e até talvez sintomático) que haja poucos documentários sobre a tradicional festa do Momo. É fato que os filmes, inclusive os de ficção, enquanto resultado da produção artística de suas épocas, assim como quaisquer outras artes, são reflexo da sociedade e da cultura da qual se originam. Neste contexto, entretanto, o documentário pode ser visto como ainda mais incisivo e fiel à sociedade que representa, visto que a concepção documental tem exatamente este propósito de registro histórico. Independentemente se o objeto retratado é do passado ou algo que esteja acontecendo no “presente”, o documentário será sempre um anal de seu tempo.

Por esta ótica é estranho não se encontrar tantos documentários sobre Carnaval no Brasil, o país ao qual o mundo atribui a verdadeira realização de tal festa. Mesmo com o crescimento exponencial da produção documental no País nos últimos 30 anos, o volume de filmes deste gênero não parece ter seguindo a tendência, restando não muitos que versam especificamente sobre o tema. O que explicaria isso? Há motivos socioculturais que interfiram nesta desatenção? Teria a ver com a dificuldade brasileira de assumir sua identidade? Seria a confirmação da pecha do “país sem memória”? Que não se enxerga? Que tem vergonha de sua face? Que não se questiona? 

Perguntas que ficam no ar, mas que os docs aqui listados talvez respondam em parte. Há desde realizações dos anos 60, num Brasil ainda subdesenvolvido, a filmes dos anos 90 e século XXI de abordagens distintas, da grandeza do Carnaval carioca, à religiosidade e o paganismo da festividade e à analogia com outras realidades. Para este Carnaval, então, entre uma pulada no bloco de sua cidade e uma parada em casa pra tomar um refresco, quem sabe ver-se retratado na tela?

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“As Pastoras - Vozes Femininas do Samba”, de Juliana Chagas (2018)

Um tocante e revelador retrato do envolvimento das mulheres com o samba, a comunidade e o carnaval. No caso, da Escola Portela, em que as figuras femininas que dão título ao filme são personagens centrais. As vozes das pastoras, como as mulheres cantoras são chamadas na escola, dão leveza ao samba. Nos primórdios, eram elas que, ao cantar em coro as composições que mais gostavam, determinavam qual seria o samba vencedor na quadra. Hoje, as pastoras fazem parte da Velha Guarda e continuam a emprestar suas vozes aos sambas mais tradicionais de suas escolas. Além de colher depoimentos vivos e destacar a condição feminina, fato raro dentro do samba e da cultura popular, o documentário traz momentos sublimes, como o acompanhamento dos momentos de tensão da apuração dos resultados dos desfiles na casa de Dona Nenê, viúva do bamba Manacéa, ao lado de sua filha Áurea Maria, uma das pastoras pertencentes à Velha Guarda.



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“Ensaio Geral”, de Arthur Fontes (2000)

Indicado ao Emmy Internacional de melhor documentário, este doc produzido para a TV mostra com riqueza de detalhes os bastidores e a linha de frente de todo o processo de construção do carnaval da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano 2000, desde o sorteio da ordem dos desfiles até o seu ápice, o desfile propriamente dito. Num enfoque distanciado, sublinha a influência dos bicheiros na escola, expõe a disputa pela escolha do samba-enredo (na qual são feitas, inclusive, ameaças de morte) e esmiuça a tensão entre conceitos estéticos do carnavalesco Roberto Lage e a vontade de presidentes de ala de colocar mulheres semidespidas na passarela. "Ensaio Geral" é um painel de matizes contraditórios, expondo um Carnaval que surge como produto bonito, mas de um trabalho estafante, fragmentado e mal pago. Um trabalho cujo fundamento é a alegria da identidade comunitária, mas na qual a alienação está sempre presente.



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“Escola de Samba", Alegria de Viver", de Cacá Diegues (1962) - Episódio do filme "5 Vezes Favela"

Embora “ficcional”, este episódio do longa “5 Vezes Favela”, um dos marcos do Cinema Novo brasileiro dos anos 60, tem todas as características de documentário, colocando-se na fronteira entre um gênero e outro tal como este movimento cinematográfico propôs. A história retrata o jovem sambista vivido por Oduvaldo Viana Filho, que assume a direção da escola de samba de sua comunidade poucos meses antes do Carnaval, enfrentando problemas de dívidas, rixa com uma escola rival e discussões com a esposa, a cobiçada mulata Dalva. Primeiro filme do mestre Cacá Diegues, que se tornaria expoente do cinema brasileiro, embora encenado, tem como conceito a aproximação do Brasil de suas realidades até então obscurecidas como a pobreza e a vida das periferias. A história, muito crível dentro do contexto social daquelas pessoas, se passa na agremiação Unidos do Cabuçu, de Engenho Novo, o “Rio, Zona Norte” que Nelson Pereira dos Santos começava a desvendar para o cinema brasileiro anos antes. Realizado dois anos antes do golpe militar, “5 Vezes Favela” já denotava as forças “subversivas” que a Ditadura combateria com unhas e dentes. No caso de “Escola de Samba”, além de montagem de Ruy Guerra e produção executiva de Eduardo Coutinho, dois cineasta diretamente ligados ao comunismo, foi viabilizado pelo CPC - Centro Popular de Cultura, da tão perseguida UNE.



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“Fevereiros”
, de Marcio Debellian (2017)

Não é o primeiro documentário que tem Maria Bethânia como protagonista, a se ver por “Maria Bethânia - Pedrinha de Aruanda”, “Bethânia Bem de Perto”, "Maria - Ninguém Sabe Quem Sou Eu", “Os Doces Bárbaros” e outros. Mas o seu universo é tão rico e mágico que um filme como “Fevereiros” traz qualidades muito próprias não antes exploradas. O diretor faz um feliz paralelo entre o registro da vitória da escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira, em 2016, que teve um enredo homenageando a cantora baiana, com os seus momentos na cidade-natal, Santo Amaro, no Recôncavo, durante as festas da Nossa Senhora da Purificação, ambas ocorridas no mês de fevereiro. As correlações dos aspectos religiosos, ancestrais e sociais entre uma festividade e outra, entre um ritual e outro, são de grande riqueza. Fora, claro, a linda trilha sonora que vai naturalmente pontuando o filme, seja na voz da Abelha-Rainha, seja na de artistas correlatos a ela, como o irmão Caetano Veloso, Chico Buarque, D. Edith do Prato, os sambistas da Mangueira, entre outros. Mais um doc de Bethânia, mas Bethânia nunca é demais. 



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“Nossa Escola de Samba”
, de Manuel Horacio Giménez (1968) - episódio do filme "Brasil Verdade"

Mais antigo registro formalmente documental sobre o Carnaval, esta preciosidade tem como a figura central de Antônio Fernandes da Silveira, conhecido por Seu China, morador do bairro carioca que abriga a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, a qual ele mesmo foi um dos fundadores, em 1945. Com influências do cinéma vérité francês de Edgar Morin e Jean Rouch, em voga nos meios intelectuais à época, este documentário social traz um olhar sociológico-antropológico a um tema até então pouco explorado, com off narrado na própria voz de Seu China, evidenciando as dificuldades sociais da população pobre e o quanto o Carnaval representa um sopro de alegria para o povo. Além disso, intercala episódios cotidianos “encenados”, que se misturam a captações de lances espontâneos da “câmera-olho” de Giménez. Tudo sob um P&B rigoroso, magistralmente bem fotografado por Thomas Farkas e Alberto Salvá. Este curta, integrante do longa "Brasil Verdade", foi filmado no ano do golpe militar e um antes da chegada de um personagem essencial para o desenvolvimento da Escola vindo, ironicamente, de dentro do quartel: um jovem de 27 anos chamado Martinho da Vila, ainda um sargento burocrata do Exército.



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“Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar”
, de Marcelo Gomes (2019)

Parafraseando o samba moroso de Chico Buarque, o filme de Gomes traz uma abordagem bem diferente do comum quando se pensa em Carnaval, até por não ser um filme sobre a festa, mas sobre a fuga dela. Nada de Marquês de Sapucaí, circuito Barra-Ondina ou blocos de rua pelas capitais brasileiras. Na cidade de Toritama, interior de Pernambuco, considerada capital nacional do jeans, mais de 20 milhões do tecido são produzidos anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o Carnaval: quando chega a semana de folga eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas. Exibido na mostra competitiva do 24º festival É Tudo Verdade, o filme recebeu menção honrosa do júri oficial e da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, além de ser escolhido como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.



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“Imperatriz do Carnaval”
, de Medeiros Schultz (2001)

Assim como “Ensaio Geral”, trata-se de outro longa-metragem sobre a preparação de uma escola de samba para o Carnaval do marcante ano de 2000. Porém, esta, ao invés de abordar a Mocidade, traz os preparativos da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para os desfiles na Sapucaí. O diretor acompanhou todo o processo de preparação da escola: a composição e a escolha da música, a criação dos figurinos e alegorias, o trabalho no barracão, a produção das fantasias, os ensaios, a vida dos carnavalescos em casa e na escola e, por fim, o vitorioso desfile de bicampeã. No total, foram gravadas 50 horas de material, incluindo uma gravação inédita da bateria da escola em sistema surround. Segundo o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, narrador do documentário e autor do livro “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, Imperatriz do Carnaval é “a melhor, mais profunda e mais completa radiografia audiovisual de uma escola de samba já realizada no Brasil”.




Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

“Para sempre é sempre por um triz.”




Uma das grandes atuações femininas na história do cinema,
Marilia em "Pixote", de Babenco


Sempre admirei demais Marília Pêra. Desde as atuações em novelas, em tempos que era possível e saudável assisti-las, como aquela rica decadente e sem noção que ela fez em “Brega & Chique”, a Rafaela Alvaray. Quem viu as telenovelas dos anos 70 deve ter recordações ótimas. Era das artistas completas, das raras, que cantava, dançava, encenava e atuava, tanto em drama quanto em comédia. Foi no cinema que Marília me cativou de fato, seja no apaixonante "Bar Esperança", no engraçado “Tieta do Agreste” ou no emocionante “Central do Brasil”, todos em que faz papéis memoráveis. Além disso, tenho para mim que uma das 10 melhores atuações femininas da história do cinema é dela: em "Pixote, A Lei do Mais Fraco", do Hector Babenco (1980). Coisa do nível de uma Giulieta Masina em "A Estrada da Vida", de uma Maryl Streep em "Kramer vs Kramer", de uma Hanna Schygulla em "O Casamento de Maria Braun".

Misto de realidade e ficção, "Pixote" criou uma atmosfera em que o limite entre um e outro se estreitam. O desafio de tornar essa fronteira verossímil, sem que pendesse para o tom amador do empirismo nem para a artificialidade do conhecimento técnico das artes cênica e cinematográfica, era bastante difícil. Qual seria o ponto de harmonização dessa necessária tensão – afinal, o filme, produto necessariamente industrial, se constituía fundamentalmente de um substrato orgânico da miséria social, algo quase documental?

A resposta estava encarnada em Marília Pêra. É ela quem, representando a prostituta Sueli, exerce a função mais do que a de atriz, mas a de “centro tonal” da narrativa. Babenco, sempre muito sensível – como os bons comunistas realmente engajados –, entendeu que isso era papel mais dela como atriz do que dele como diretor. Ele concebeu, conduziu e deu o norte. Porém, a possível interação entre os dois polos, real e imaginário, pobreza e riqueza, excluídos e incluídos, foi dada a Marília naturalmente. Não sei nem se isso de fato ocorreu no set de filmagem de maneira consciente, mas fica bastante evidente nas cenas em que ela contracena com os pivetes, principalmente com o próprio Pixote, o autobiográfico Fernando Ramos da Silva. É mais do que contracenar: é, através das artes cênicas, abrir um espaço de diálogo entre antagonismos sociais.

É exemplar a cena deles no quarto do motel, logo após duas mortes ocorridas ali, em que os sentimentos mais pulsantes e inatos se revelam de um e de outro, do instinto de maternidade à agressividade intransponível. Toda a profundidade antropológica envolvida naquela cena não é realizável apenas pelo o que o roteiro prevê. O peso de fazerem se aproximar através da dramaturgia esses dois universos antagônicos é, claro, comum a todos: equipe, diretor e atores, nessa ordem de complexidade. Exige uma percepção séria e comprometida com o objeto que se está manipulando. Nisso, o desafio cabido a Fernando, vindo da rua e interpretando um alter ego, é enorme, haja vista a óbvia dificuldade que não-atores têm em desempenhar algo crível, ainda mais num nível elevado ao contracenar com atores formados e experientes. É intrincado dar naturalidade à artificialidade intrínseca do encenar quando o que se está expressando é algo que se lhe é tão natural. Porém, a priori é mais fácil que o contrário, o de cobrir de naturalidade o desconhecido por meio da arte da interpretação. Principalmente quando se tem um ambiente propício – coisa que Babenco e sua equipe de fato arranjaram, visto a honestidade do projeto –, desempenhar-se é melhor do que a algo estranho a si.

"Pixote, A Lei do Mais Fraco", de Hector Babenco


Entretanto, a verdadeira profundidade recai sobre o profissional nessa hora. E é aí que Marília Pêra foi exímia. Como principal interlocutora do núcleo amador – e, mais a fundo, da casta excluída da sociedade abordada no filme – com o produto cultural de massa, ela fez a ponte entre os referidos mundos discordantes. Marília, com o aval de Babenco, pôs-se nesse limiar emocional e ajudou sobremaneira a fazer uma coisa cuja arte moderna raramente consegue com vigor e pungência: eliminar as barreiras entre alta e baixa cultura. Materializar as páginas dos livros de Ciências Políticas é para poucos. É, sim, para aqueles que saem só do discurso e se levam à prática. O filme cumpre isso a custa de sofrimento, tristeza e choque. E Marília, enquanto agente consciente e espiritual do conceito central da obra, representa tudo isso.

Se em “Pixote” é impactante ver Fernando trazendo a sua realidade crua para a frente da tela, é igualmente surpreendente Marília perscrutando um estado que não lhe pertence, que é o da loucura e da miséria. Ou será que pertence? A explicação disso se chama: atriz.

Parabéns, Marília. Como diz Chico Buarque: “para sempre é sempre por um triz”.


Marília Pêra
(1943-2015)