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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Wayne Shorter - “Schizophrenia” (1967)



"Toda personalidade musical, quando atinge a maturidade, é capaz de se dividir em muitas direções. Compare a complexidade rítmica e melódica de 'Playground', a faixa final, com o rhitym-and-blues-quase-objetivo de 'Tom Thumb', a de abertura. Não muito tempo atrás na história do jazz, teria sido difícil encontrar um compositor capaz de produzir duas obras de natureza tão díspares."
Leonard Feather, no texto original da contracapa do disco

Wayne Shorter nunca foi homem de pouco trabalho. Se hoje, aos 86 anos, ainda se mantém ativo, com disco lançado recentemente e não raro fazendo shows pelo mundo, nos anos 60, na flor da idade, seu ânimo era irrefreável. Além de compor as bandas de Herbie Hancock, Lee Morgan, Miles Davis, Grachan Moncur III, Art Blakey, Tony Williams, Lou Donaldson e outros, tinha gás e criatividade suficientes para tocar mais de um projeto solo ao mesmo tempo. Entre 1964 e 65, por exemplo, ele lançava nada menos que seis discos: "JuJu", "Night Dreamer", "The All Seeing Eye", “The Collector”, "Et Cetera" e "The Soothsayer". Em 1966, outros dois: "Adam's Apple", "Speak No Evil". Todos marcos do jazz. Na esteira desta fase abençoada, Shorter trouxe “Schizophrenia”, que se não é tão celebrado quanto alguns de seus antecessores, guarda igualmente as mesmas qualidades: o jazz vigoroso, a melodia penetrante e um punhado de sutilezas muito peculiares de seu autor, certamente uma das mais lendárias figuras da música moderna.

O deleite começa com “Tom Thumb”, um rhytm & blues cheio de latinidade e clara homenagem a Tom Jobim e à bossa nova em que dois acordes dissonantes, tal qual o mais famoso gênero musical brasileiro legou à música moderna, se entrecruzam para formar a melodia central. Tudo começa na elegante base de baixo de Ron Carter, mestre do instrumento e sabedor como poucos do fraseado do samba. Já Shorter e James Spaulding estão arrepiantes cada um com seu saxofone, tenor e alto, respectivamente. Ainda, um Joe Chambers incrível no gingado da bateria e o parceiro Hancock, outro manifesto admirador da música brasileira, fazendo os teclados batucarem. Das melhores faixas de abertura de um disco de Shorter – e olha que têm várias de alto gabarito.

Toda a luminosidade colorida do ritmo latino se converte na enigmática e nebulosa “Go”. Shorter e Spalding soltam literalmente os primeiros sopros, dando a entender que a canção irá se direcionar para determinado lado. Ledo engano, pois os ventos levam a melodia, propositalmente complexa e fugidia, para outras paragens. Primeiro, sobe, depois forma chorus, entra em consonância, desce novamente e nunca estabelece um verdadeiro ritmo, um compasso que a defina. O band-leader e autor da música a domina com altivez e abstratismo, enquanto Spaulding, audaz, amplia essa atmosfera ao atacar agora com a flauta. Mas é mesmo Hancock que se esbalda. Para quem escreveu temas oníricos como “Maiden Voyage”, esse é o tipo de situação para deitar e rolar. Além da base sabiamente modal, que solo brilhante de piano ele extrai!

Dá a se entender que a turma resolveu manter o clima fantástico de “Go”, mas após uma rápida intro de chorus dos sopros, a bateria surge em um crescendo para que todos entrem de vez no hard-bop pulsante da faixa-título em que ninguém deixa por menos em intensidade. A flauta de Spaulding rouba a cena em “Kryptonite”, faixa escrita por ele. Entretanto, não menos engenhosa é a concepção dada por Shorter, que aplica glissandos e variações de volume a seu sax. A bateria potente nas baquetas de Chambers segura, igualmente, um Hancock inventivo tanto na base da mão direita quanto na fluência da esquerda. Carter não fica para trás, tirando do grave do baixo a densidade certa.

Sabe aquele olhar peculiar que Shorter lança sobre sua música a que se referiu anteriormente? Dois deles estão em “Miyako”: a melodiosidade romântica e o toque do Oriente. Budista, o músico era casado à época com a musa inspiradora que dá título à canção, a qual ele já havia dedicado, um ano antes, em “Speak no Evil”, a música “Infant Eyes” e a própria capa daquele mesmo álbum. Resultado: uma balada linda, sensível, algo exótica, com destaque para os saxofones, que se completam mesmo em solos simultâneos. Como era de praxe à sequência de discos da época, o último número trazia uma harmonia mais complexa, o que acontece com “Playground” que, como se supõe, é um parque de diversões para os músicos soltarem a imaginação e destreza.

A se imaginar o trabalhão que deu fazer discos tão incríveis como “Schizophrenia” em tão pouco tempo renderia, ao menos, umas férias, certo? Errado em se tratando de Wayne Shorter, que logo em seguida emendaria mais discos solo, a fundação da banda referência do jazz fusion, a Weather Report, a parceria com Milton Nascimento e por aí vai. Até hoje não tem como parar esse fenômeno da natureza chamado Wayne Shorter. E nem há por que.

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FAIXAS
1. Tom Thumb - 6:15
2. Go - 4:52
3. Schizophrenia - 6:59
4. Kryptonite (James Spaulding) - 6:25
5. Miyako - 5:55
6. Playground - 6:20
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicada

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OUÇA O DISCO
Wayne Shorter - “Schizophrenia”

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

4ª Feira de Vinil Gira Música - Casa da Polônia - Rio de Janeiro/RJ (1º/09/2019)



O dias em que passamos Leocádia e eu no Rio de Janeiro foram invariavelmente lotados. Só coisa boa, mas lotados. Mas sempre se tem espaço para encaixar mais uma programação, ainda mais quando esta trata de música. Ou melhor: quando esta trata de música E discos, o que para um colecionador é um prato cheio. Minha mãe, sabendo de nosso gosto, havia avisado dias antes que ocorreria, no domingo, a Feira de Vinil Gira Música, na Casa da Polônia, no próprio bairro e avenida onde estávamos instalados, Laranjeiras. Pois que, voltando de um passeio no bairro Jardim Botânico neste dia, eis que cruzamos em frente à feira. Obviamente que descemos e fomos dar uma conferida, o que não só valeu a pena a título de passeio como, claro, de compras.

A feira trazia food trucks, bancas com artesanato e bijuterias e uma exposição sobre o célebre músico, arranjador e produtor Lincoln Olivetti, morto há  4 anos, infelizmente muito primária e amadora e que não dimensionava nem de perto a relevância do homenageado. Mas isso não era o mais importante e, sim, aquilo que nos levou até lá: os discos. Com expositores cariocas mas também vindos de Minas Gerais e São Paulo, a feira estava muito boa em termos de quantidade e variedade. Todos os gêneros musicais contemplados, mas principalmente rock, MPB e jazz. O nível dos expositores chamou atenção, uma vez que todos sabem muito bem o acervo que oferecem. Ou seja: os discos raros tinham preços que justificavam suas particularidades. Títulos como "A Bad Donato", de João Donato, "Stand", da Sly & Family Stone, o primeiro disco de Arthur Verocai, "Spirit of the Times", de Dom Um Romão, "Blue Train", de John Coltrane, ou o disco do próprio Lincoln em parceria com Robson Jorge, clássico da AOR brasileira, não saíam por menos que 500, 400, 350, 200, 180 Reais ou valores parecidos.

Galera percorrendo as prateleiras em busca "daquele" vinil
Clima descontraído e musical da Feira de Vinil na Laranjeiras
Não só vinil tinha na feira
Eu vasculhando as preciosidades da banda do Sonzera, um dos expositores
Pedaço da miniexposição sobre Lincoln Olivetti: deixou a desejar

Em compensação, vários balaios. E bons! Com muita variedade e, às vezes, até discos raros, era possível encontrar unidades a 10, 20 ou 30 Reais. E foi aí que me esbaldei, passando algumas horas na feira percorrendo as caixas com promoções enquanto Leocádia aproveitava outras atividades ou simplesmente me aguardava. Uma das atrações da feira seria a presença do cantor e compositor Hyldon, lenda da soul brasileira, que estaria à tarde autografando seu disco relançado, mas não ficamos para isso. Afinal, já estávamos muito bem alimentados com o que encontramos de variedade e qualidade de bolachões, inclusive esses, os que levamos para casa:



“Limite das Águas” – Edu Lobo (1976)
Edu tem vários discos solo cultuados, como “Missa Breve”, “Camaleão” e “Jogos de Dança”, mas não raro este aparece como o preferido do autor de “Ponteio”. Afinal, não tem como não adorar as parcerias como Capinan, Cacaso e Guarnieri, além do primor dos arranjos do próprio Edu e as participações de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Cristóvão Bastos, Joyce, Toninho Horta, Danilo Caymmi e o grupo vocal Os 3 Morais. Coisa fina da MPB.


“Libertango” – Astor Piazzola (1974)
Um dos gênios da música do século XX em seu disco mais icônico. Gravado em Milão, é a representação máxima do tango argentino moderno, tanto que as próprias faixas, assim como a que o intitula, trazem o termo “tango” no nome: Meditango, Violentango, Undertango, entre outras. De ouvir ajoelhado - ou tangueando.



“Brazilian Romance – Sarah Vaughn with Milton Nascimento” ou “Love and Passion”  Sarah Vaughn (1987)
A grande cantora norte-americana Sarah Vaughn, amante da MPB, recorrentemente voltava ao gênero. Depois de gravar discos como “Exclusivamente Brasil” e “O Som Brasileiro de Sarah Vaughn”, nos ano 70, em 1987 ela torna à sonoridade do Brasil por meio de um de seus mais admirados compositores: Milton Nascimento. E o faz isso com alto grau de requinte, haja vista a produção de Sérgio Mendes, os arranjos de Dori Caymmi e participações de gente como George Duke e Hubert Laws. Ela quase levou um Grammy de melhor performance feminina por este álbum.

“Merry Christmas, Mr. Lawrence (Music From The Original Motion Picture Soundtrack)”  Ryuichi Sakamoto (1983)
Tenho adoração por este filme intitulado no Brasil como “Furyo - em Nome da Honra”, e tanto quanto pela trilha sonora, escrita pelo genial Ryuichi Sakamoto. Que, aliás, atua neste filme de Segunda Guerra do mestre Nagisa Oshima, o qual conta no elenco (e só no elenco, o que acho legal também em nível de desprendimento) e como ator principal David Bowie em espetacular atuação. A faixa-título é não só linda como um marco das trilhas sonoras feitas para cinema.


“Stories to Tell” – Flora Purim (1974)
Terceiro disco solo de Flora e segundo dela em terras norte-americanas. Ou seja, vindo um ano após o seu debut “Butterfly Dreams”, no mesmo ano de“Hot Sand”, do então marido Airto Moreira, e dois da estreia com Chick Corea na Return to Forever, “Stories...” a consolida como a musa do jazz brasileiro. Ainda por cima tem Carlos Santana, George Duke, Ron Carter e o próprio Airto compondo a “bandinha”. E que voz é essa a dela?! 




“Amor de Índio” – Beto Guedes (1978)
Dos discos mais célebres da chamada “segunda fase” do Clube da Esquina. A galera tá toda lá: Milton, Brant, Toninho, Tiso, Venturini, Tavinho, Caetano e, claro, Ronaldo Bastos, produtor, compositor com Beto da faixa-título e autor da icônica foto dele enrolado no cobertor usada por Cafi na arte da capa.



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa e fanpage Gira Brazil - Gira Música

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Airto Moreira - "Seeds of the Ground" ou "The Natural Sounds of Airto" (1971)



Capa original, de 1971, e a da reedição
em CD, de 1994
“Airto tem um curto período de tempo [nos Estados Unidos] e já tem um impacto importante aqui. Sua influência, expressões criativas e sons inovadores têm sido fortemente sentidos por muitos de nossos principais músicos. O som único de Airto beneficia-se fortemente da compreensão da necessidade de melhores métodos de comunicação – uma necessidade que ele sente que pode ser respondida através da música”. 
Bob Small, produtor musical

A virada dos anos 60 para os 70 foi um momento especialmente frutífero para músicos brasileiros no mercado internacional. Após uma primeira leva de compositores, cantores, instrumentistas e arranjadores descobertos pelos gringos por conta da bossa-nova, vários outros aproveitaram o prestígio já estabelecido da musica brasileira no exterior para abrir novas frentes. O principal destino: Estados Unidos. É quando talentos como Hermeto Pascoal, Dom Um Romão, João Donato e Eumir Deodato, entre outros, partem de mala e cuia para residir naquele que é maior mercado da música no mundo.

Caso de Airto Moreira. O já experiente percussionista catarinense, que, no Brasil, havia integrado os célebres trios Sambalanço (com César Camargo Mariano e Humberto Cláiber) e Sambrasa – ao lado de Hermeto e Cláiber –, além do igualmente icônico Quarteto Novo – novamente ao lado do “Bruxo”, mas também contando com Theo de Barros e Heraldo do Monte. Em 1967, participa do III Festival de Música Popular Brasileira, acompanhando Edu Lobo e Marília Medalha na interpretação da vencedora "Ponteio", a qual coassina com Edu o arranjo. Êxitos obtidos, o negócio era, agora, alçar outros voos.

Dono de um tempo rítmico que abarcava a sutiliza harmônica da bossa nova ao arrojo do jazz moderno, Airto, já em terras yankees, foi impulsionado definitivamente no disputado meio do jazz com a participação no referencial “Bitches Brew”, de Miles Davis, em 1969. Foi em apenas uma faixa (“Feio”), mas o suficiente para pô-lo no rol dos músicos da primeira linha. Tanto é que, um ano depois, veio o primeiro disco solo: “Natural Feelings”, pela Buddah Records, uma joia do jazz fusion com a cara daquilo que só um artista brasileiro é capaz de conceber mesmo longe de casa. Tão melhor que o álbum de estreia, no entanto, é “Seeds of the Ground”, de 1971, onde Airto, acompanhado do inseparável Hermeto (piano, teclados, violão e flauta), responsável pelas composições e arranjos, da magnífica Flora Purim aos vocais, do mago do baixo acústico Ron Carter e a maestria de Sivuca (violão e acordeom), deságua toda a sua inventividade enraizada na cultura brasileira mas conectada com a vanguarda internacional. E ali eram o lugar e a hora perfeitas para deixar fluir esta nova música.

“Andei”, que abre “Seeds...” (também intitulado como "The Natural Sounds of Airto"), deixa bem clara a proposta. Trata-se de um baião nordestino, que inicia com o som característico do Brasil: o de um berimbau. Em seguida, a potente bateria de Airto entra, carregando consigo toda a banda e os próprios vocalizes, formando uma sonoridade cheia e quase funkeada. O baixo de Ron, brasileiríssimo, dialoga com o berimbau. Ainda, a flauta de Hermeto completa a intensa atmosfera com aqueles solos que somente ele sabe extrair. Um “cartão de visitas” irrepreensível. Além disso, como classificar uma peça ímpar como esta? Um baião-fusion? Um brazilian-groove? Ou um ethnic-funk? É o talento do músico brasileiro dando um nó no sempre tão inovador jazz.

A incrível “O Sonho” traz pela primeira vez no disco a voz de Flora, esposa de Airto. A abertura onírica e dissonante, que remete ao abstratismo de Gil Melle e Don Cherry, logo se resolve em um jazz modal em que Airto e Hermeto estão especialmente afinados, um na bateria e o outro no piano elétrico – este último que, aliás, manda ver num longo e inspirado improviso. E Flora, então?! Que performance! Sua voz desenha com naturalidade a complexa e variante linha melódica, mudando de escalas e tons e, principalmente, dando unidade a este devaneio sonoro. Além de tudo isso, Flora ainda inventa de soltar gritos e sussurros pra lá de sensuais ao final da faixa. Caramba! De arrepiar.

Airto como a esposa e cantora Flora Purim e o parceiro
Hermeto: união de craques da música brasileira nos EUA
Na sequência, vem a bucólica e soturna “Uri”, que, pela atmosfera sertaneja e idílica, bem poderia compor a trilha de algum filme ou peça teatral baseada em uma obra da Guimarães Rosa. O violão sustenta a base, enquanto Airto intercala diversos instrumentos de percussão (chocalhos, tímpano, temple block e outros). A voz do coautor Googie e a de Flora, especialmente, que vai do agudo ao grave num lance, convivem com contracantos, gritos e vocalizes. Outro craque brasileiro vivendo na terra de Charlie Parker, Sivuca, em uma de suas participações, solta notas densas do acordeom, ampliando o clima sombrio e contemplativo. Mais uma mostra da contribuição sui genneris do Brasil para a música moderna que se produzia no exterior àqueles idos.

O baião aparece novamente em “Papo Furado”, em que Airto, brilhante na instrumentalização da percussão junto com outro ilustre convidado, Dom Um Romão, divide vocais com Hermeto, este, segurando todas no violão. O mesmo pode-se dizer de Carter, que parece ter vestido gibão e entrado no forró. A romântica “Juntos”, noutro clima, exige mais uma vez de Flora habilidades vocais – as quais ela, claro, mostra dominar totalmente dado a grande cantora que é. O tom baixo, que pede cuidado na afinação, dá um charme todo especial ao número, o qual conta, como em “Andei”, com o solo de flauta de Hermeto. Uma febril balada jazz, que faz remeter a Sarah Vaughan dos anos de Columbia.

“Seeds...” encerra com duas versões de “O Galho da Roseira”, composição de Hermeto originalmente de 1941, que era cantada por seus pais durante os trabalhos da roça em sua infância no interior de Alagoas. Porém, não se trata apenas de dois takes lançados ao final do disco com pequenas diferenças entre si, haja vista que ficam quase irreconhecíveis de uma para a outra. A parte 1, bem fiel à estrutura original – visto que arranjada pelo próprio Hermeto –, traz já de início o acordeom de Sivuca em solfejos serenos junto com as vozes de Hermeto e Flora. Até que, então, entra o restante do time, com Ron impressionando em suas modulações típicas no braço do baixo, Dom Um diversificando as texturas (sinos, chocalho, reco-reco, temple block) e Hermeto fazendo suas “bruxarias”, como transformar um violão em rabeca. Mas em termos de violão, a criatividade da turma não para por aí, porque contam com as mãos mágicas de Sivuca, que larga a gaita para pegar a viola caipira, num dos solos mais brilhantes do disco. Hermeto, no entanto, não fica atrás em um novo improviso, agora, no eletric harpsichord, articulando um momento modal ao tema tipicamente rural.

“O Galho...”, que recebeu da crítica o título de uma das melhores de 1971, ganha, na versão 2, caráter de um típico jazz fusion, como o que Airto contribuiria a partir daquele ano na banda Return to Forever ao acompanhar o pianista norte-americano Chick Corea em um de seus melhores momentos da carreira. Airto, como na faixa anterior, deixa tudo para os companheiros Ron, Hermeto, Sivuca e Dom Um, que se soltam, fechando o disco com uma pegada mais jazzística impossível.

Depois de “Seeds...”, vieram outros projetos de prestígio de Airto, a contratação pelo cultuado selo CTI, a participação na legendária Weather Report e a formação de uma nova banda. Bastante ativo nas décadas seguintes e ainda hoje vivendo nos Estados Unidos, Airto virou, merecidamente, uma lenda do calibre de Wayne Shorter, Herbie Hancock, Stanley Clarke, Keith Jarrett, George Benson, Jaco Pastorius e George Duke, parceiros com quem tocou. Mas o fato é que, por obra natural do destino, a fenomenal banda responsável por “Seeds...” nunca mais voltou a tocar junta. Isso faz com que o disco ganhe ainda mais importância por ter registrado um momento especial da música brasileira em que esta nada devia a qualquer outra que estivesse sendo produzida àquela época. Pelo contrário: estava dando exemplo e ensinando ao mundo um pouco de ginga, que só um brasileiro é capaz de oferecer.

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FAIXAS:
1. Andei (I Walked) - 2:40 
2. O Sonho (Moon Dreams) - 7:45 (Ray Evans/ Jay Livingston)
3. Uri (Wind) - 6:10 
4. Papo Furado (Jive Talking) - 3:29 
5. Juntos (We Love) - 3:22 (Hermeto/ Flora Purim)
6. O Galho Da Roseira (The Branches Of The Rose Tree) - 7:54
7. O Galho Da Roseira (The Branches Of The Rose Tree) Part II - 8:21
Todas as composições de autoria de Hermeto Pascoal, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Airto Moreira - "Seeds of the Ground"

Daniel Rodrigues

sexta-feira, 29 de março de 2019

Kamasi Washington - Bar Opinião - Porto Alegre/RS (26/03/2019)


Considerações a respeito do show de Kamasi Washington no Opinião

por Paulo Moreira

1 - Há dois anos, eu e os queridos amigos Cuscos (José Beltrame Cusco e Jucemara Beltrame) fomos ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro ver o show de lançamento de "The Epic", o álbum triplo de estreia do saxofonista Kamasi Washington. A banda era basicamente a mesma, com o acréscimo de um trompete, um sax alto e flauta (o pai de Kamasi) e até mesmo um DJ. Foi intenso e MUITO jazzístico e a cantora cantou e não fez aeróbica, como bem disse meu amigo Sérgio Karam.

2 - Desde então, Kamasi tem participado do trabalho do rapper Kendrick Lamar, que tem preponderante vínculo com a música negra, especialmente dos anos 70.

3 - O terceiro disco de Kamasi, "Heaven And Earth", já demonstra esta influência marcada da black music setentista, inclusive na canção "Fists of Fury", trilha de um filme de Bruce Lee.

Kamasi, o trombonista Ryan Porter  à frente no palco
do Opinião (foto: Roger Lerina)
4 - Como música é momento, o show de Kamasi de ontem apresentou todas estas influências. Em determinados momentos, me senti ouvindo um daqueles discos da CTI (soul jazz) com o fusion de Herbie Hancock e seus Headhunters mais a soul music de George Clinton e seus Parliament/ Funkadelic. As influências estavam todas à mostra. Junto com isso, pitadas de free jazz a la Archie Shepp. Até um mini-moog foi ressuscitado. Uma grande mistura intensa e, como diriam os americanos, "in your face". Com esta intensidade toda, é normal que se "jogue pra torcida". Foi o que Kamasi e seu grupo fizeram. O que não quer dizer que não foi bom. Eu curti. Mas é da série: "Azar, eu gosto". Entretanto, tenho de confessar que a apresentação do Rio foi melhor.

5 - Durante o show, encontrei o Pedro Verissimo que estava curtindo. Até comentei que não era bem o estilo do pai dele, ao que retrucou: "ele quase veio....". Fiquei imaginando o Verissimo sendo assaltado por todo aquele som.

6 - Entendo o que disse o Karam mas Kamasi faz parte desta turma nova (Robert Glasper, Snarky Puppy, Thundercat) que mistura tudo numa linguagem jazzística. É jazz?? Também é!!

7 - Ah, roubei a foto do Roger Lerina. Obrigado, Roger.

8 - O Marcelo Figueiredo matou a charada!! 10 de maio tem Ron Carter no Centro de Eventos do BarraShopping no lançamento da quinta edição do POA Jazz Festival. Jazz acústico e de primeira! Todo mundo lá!!!!

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Lindeza e fúria

por Daniel Rodrigues

Parece mentira, mas um baita show que foi o de Kamasi Washington em Porto Alegre, inédito, raro, de casa cheia e da mais alta qualidade técnica, conseguiu render críticas negativas e até reclamações. Para quem estava lá sem a viseira do preconceito, a apresentação foi um arraso, garanto. O grande acontecimento do jazz na cidade em um ano, considerando o fraco line up dos últimos POA Jazz Festival e a vinda, lá em março de 2018, de John Pizzarelli à cidade, o último grande artista de jazz a tocar na cidade bem dizer.

Com uma banda afiadíssima (Ryan Porter, trombone; Brandon Coleman, teclados; Miles Mosley, baixo; Tony Austin e Ronald Bruner, baterias; e Patrice Quinn, vocal) e disposta a doar-se até o último acorde, Kamasi, grande revelação do jazz norte-americano dos últimos anos, desfilou temas do seu repertório, que passeiam pelos mais diferentes estilos jazzísticos e da música pop, do hard bop ao funk, do fusion ao trip hop, do free jazz ao rock, da vanguarda ao blues, do modal à bossa nova. Não raro, a plateia é pega ouvindo um suingue da primeira metade do século XX e, logo em seguida, a coisa evolui para heavy metal setentista. Sim! Mesmo sem guitarra, o baixo com arco de Mosley e o moog de Coleman cumpriram muito bem a ausência desse instrumento, encorpando um som a la Led Zeppelin em meio aos acordes livres do jazz.
"Muito lindo", disse o próprio Kamasi
As referências são claras a ídolos do jazz-soul dos anos 70 (Herbie Hancock, Weather Report, Stanley Clarke, George Duke, George Clinton), o que talvez para os críticos tire da obra de Kamasi a tão imputada “inovação”. Mas do que isso importa? Não seria mais fácil simplesmente ouvir e admirar? Como não se tocar pelo funk-soul “Street Fighter Mas” ou a meditativa “Truth”, épicas? Ou a suingada “The Rhythm Changes”, com o voz aveludada de Patrice? “Miss Understanding”, um retorno consciente aos mestres Dexter Gordon, John Coltrane e Pharoah Sanders? Ou “Re Run”, irresistível misto de latin jazz e funk. E o que dizer da gigante “Fists of Fury”, um soundtrack soul de arranjo elaboradíssimo? Como não se tocar por tudo isso?

Chamou-me atenção em especial, no que diz respeito às harmonias, as evoluções comandadas por Kamasi, que faz com que a música tenha, através não só dos improvisos e variações de intensidade, espécies de microriffs, os quais vão dando aos temas diferentes personalidades no seu decorrer, mas, transitando dentro da mesma escala, não menos espelhadas em sua célula matriz. Tudo sob a égide do sax alto tenor imponente mas afagador de Kamasi, tão gigante quanto aquele que o faz extrair sons. Magia pura de um coração docemente furioso. Como o emocionado Kamasi dizia repetidamente em limitado português: “Muito lindo, muito lindo”.

Li comentários pós-show de que Kamasi Washington é moderno, mas não tão inovador assim, como se ele tivesse entrado no palco e prometido que haveria inovação e não música. Li que sua performática vocalista, a quem os movimentos no palco não atrapalharam em nenhum momento o principal, o seu canto, mexia-se demais. Li que o Opinião, que sempre foi assim, não dispunha de cadeiras suficientes para se sentar. Li que a banda estava lá para tocar para a... galera (afinal, para QUEM MAIS queriam que a banda tocasse?). Li, inclusive, o descabimento de alguém dizendo que o show não foi bom mesmo sem que essa própria pessoa tivesse ido! Olha, que cidade atrasada essa Porto Alegre, irritante. Um atraso até moral, que chega ao ponto de não querer admitir que a cidade recebeu um evento empolgante, de alta qualidade e que conseguiu atrair um público maior do que somente os ardorosos fãs do gênero. Não é isso que sempre se quer para a boa arte: que mais pessoas apreciem? Eu estava lá e foi o que fiz.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Meus 10 melhores baixistas de todos os tempos

Não é a primeira vez – nem deve ser a última – que, abismado com alguma lista de supostos “melhores” publicada na imprensa, eu venha aqui por meio do Clyblog manifestar a minha contrariedade. E preferências. O modo de fazê-lo é, no entanto, não apenas criticando, mas montando a minha própria lista em relação àquele mesmo tema. Desta vez, o alvo é uma listagem publicada pela famosa revista de música britânica New Musical Express, que elencou os 40 maiores baixistas de todos os tempos (?!).

De novo, minha ressalva é pelos critérios. Como respeitar uma seleção que não inclui, pelo menos entre os 40, nomes fundamentais do instrumento para o desenvolvimento da música pop como Geddy Lee, do Rush, ou Steve Harris, do Iron Maiden? “Ah, Simon Gallup (The Cure) e Matt Freeman (Rancid) não são ‘dinossauros’ virtuosos”. Mas Krist Novoselic (Nirvana) nem Colin Greenwood (Radiohead) o são – e estão entre os votados. E mais: está lá – por merecimento, diga-se – o jazzista Charles Mingus. Ok, mas, se vai entrar na seara do jazz, da qual diversos músicos são de altíssima qualidade, técnica e influência, como não abarcar os óbvios nomes de Ron Carter, Paul Chambers, Jimmy Garrison, Stanley Clarke, Marcus Mïller e Dave Holland? Ou ainda: em 40, nenhum brasileiro? Nem Dadi, Bi Ribeiro ou Arthur Maia? Num mundo globalizado e conectado como o de hoje, foi-se o tempo em que músicos como eles eram meros desconhecidos de um país de música desimportante para o cenário mundial.

Como dizem por aí: “se não sabe brincar, não desce pro play”! Parece, sinceramente, que a tão consagrada NME não tem gente suficientemente entendedora daquilo que está tratando. As lacunas, sejam pelos critérios tortos, desconhecimento ou até preconceito, comprometem as escolhas largamente. Além disso, a ordem de preferências é bastante questionável. Parece terem optado por contemplarem baixistas de todos os estilos e subgêneros dentro daquilo que se considera música pop e deram “com os burros n’água”. Claro que há acertos, mas muito mais pela obviedade (seriam também loucos de não porem Jaco Pastorius, John Paul Jones, Kim Deal ou John Entwistle), fora que há aberrações como Flea aparecer numa ridícula 22ª posição - a Rolling Stone, em 2011, havia escolhido o baixista do Red Hot Chili Peppers como 2º melhor...

Pois, então, minimamente tentando “corrigir” o que li, monto aqui a minha lista de 10 preferidos do contrabaixo. Toda classificação deste tipo, inclusive a minha, é cabível de julgamento, sei. Porém, ao menos tento, com o conhecimento e gosto que tenho, desfazer algumas injustiças a quem ficou inexplicavelmente mal colocado ou, pior, nem incluso foi. E faço-o com algumas regrinhas: 1) sem ordem de preferência; 2) lançando breves justificativas e; 3) ao final de cada, citando três faixas em que é possível ouvir bons exemplos do estilo, performance e técnica de cada um dos escolhidos.

1 - Peter Hook
Um dos mal colocados da lista da NME, Peter Hook é certamente o baixista da sua geração que melhor desenvolveu sua técnica, tornando-se quase que o principal “riffeiro” do New Order. Entretanto, seu estilo próprio e qualidade já se notam desde o 1º disco da Joy Division. Baixo inteligente, potente e de muita personalidade.

Ouvir: “She’s Lost Control” (Joy Division); "Leave Me Alone" (New Order); “Regret” (New Order)



2 - Ron Carter
Qualquer um que pense em elencar os melhores contrabaixistas de todos os tempos, jamais pode deixar de mencionar o mestre do baixo acústico, cujo toque inconfundível tem inequívoca presença para a história do jazz, da MPB e da música pop moderna. O homem simplesmente tocou no segundo quinteto clássico de Miles Davis, participou da gravação de “Speak No Evil”, do Wayne Shorter, e tocou nos discos “Wave” e “Urubu” de Tom Jobim, pra ficar em três exemplos. Aos 80 anos, Ron Carter é uma lenda vida.

Ouvir: “Blues Farm” (Ron Carter); “O Boto” (com Tom Jobim); “Oliloqui Valley” (com Herbie Hancock)


3 - Flea
O cara parece de outro mundo. Compõe linhas de baixo complexas e não apenas sustenta tal e qual durante os show como o faz improvisando e pulando enlouquecidamente. Vendo Flea no palco, seja na mítica banda punk Fear, no Chili Peppers ou em participações como as com Jane’s Addiction e Porno for Pyros, parece fácil tocar baixo. Como diziam Beavis & Butthead: “Flea detona!”

Faixas: “Sir Psycho Sexy” (Red Hot Chili Peppers); “Pets” (Porno for Pyros); “Ugly as You” (Fear)


4 - Jaco Pastorius
Dos acertos da lista da revista. Afinal, como deixar de fora a maior referência do baixo do jazz contemporâneo? O instrumentista e compositor, presente em gravações clássicas como “Bright Size Life”, de Pat Metheny, e “Hejira”, de Joni Mitchell, equilibra estilo, timbre peculiar e rara habilidade. Como seria diferente vindo de alguém que se diz influenciado (nessa ordem) por James Brown, Beatles, Miles Davis e Stravinsky?

Ouvir: “Birdland” (com Weather Report); “The Chicken” (Jaco Pastorius); “Vampira” (com Pat Metheny)


5 - Geddy Lee
Quando o negócio é power trio, fica difícil desbancar qualquer um dos três no seu instrumento. Caso de Geddy Lee, do Rush. Mas acreditem: ele não está na lista da NME! Pois é: alguém que cria e executa linhas de baixo altamente criativas, de estilo repleto de contrapontos (e ainda toca teclado com o pé ao mesmo tempo), não poderia deixar de ser citado jamais. Pelo menos aqui, não deixou.

Ouvir: “La Villa Strangiato”; “Xanadu”, “Spirit Of The Radio


6 - Les Claypool
Outro dos gigantes do instrumento que não tiveram sua devida relevância na lista da NME (29º apenas). Principal compositor de sua banda, o Primus (outro power trio), Claypool, além disso, é um verdadeiro virtuose, que faz seu baixo soar das formas mais improváveis. Tapping, slap, dedilhado, com arco: pode mandar, que ele manja. Domínio total do instrumento.

Ouvir: “My Name is Mud”; “Tommy The Cat”; “Mr. Krinkle


7 - Simon Gallup
Se Peter Hook aperfeiçoou o baixo da geração pós-punk, colocando-o à frente muitas vezes da sempre priorizada guitarra no conceito harmônico do Joy Division e do New Order, o baixista do The Cure não fica para trás. Dono de estilo muito próprio, seu baixo é uma das assinaturas do grupo. Se a banda de Robert Smith é uma das bandas mais emblemáticas dos anos 80/90 e responsável por vários dos hits que estão no imaginário da música pop, muito se deve às quatro cordas grossas de Gallup.

Ouvir: “Play for Today”; “Fascination Street”; “A Forest


8 - Mark Sandman
Talvez a maior injustiça cometida pela NME – pra não dizer amnésia. Se fosse apenas pela mente compositiva e pelo belo canto, já seria suficiente para Sandman ser lembrado. Mas, além disso, o líder da Morphine, morto em 1999, era um virtuose do baixo capaz de inventar melodias com a elegância do jazz e a pegada o rock. Fora o fato de que seu baixo soava a seu modo, com a afinação totalmente fora do convencional, que ele fazia parecer como se todos os baixos sempre fossem daquele jeito: geniais.

Ouvir: “Buena”; “I'm Free Now”; “Honey White



9 - Bernard Edwards
A Chic tinha na guitarra do genial Nile Rodgers e no vocal feminino e no coro de altíssima afinação uma de suas três principais assinaturas. A terceira era o baixo de Bernard Edwards. O toque suingado e vivo de Edwards é um patrimônio da música norte-americana, fazendo com que a soul disco cheia de estilo e harmonia da banda influenciasse diretamente a sonoridade da música pop dos anos 80 e 90.

Ouvir: "Good Times" (Chic); “Everybody Dance“ (Chic); “Saturday” (com Norma Jean)"



10 - Bootsy Collins
Quando se pensa num contrabaixista tocando com habilidade e alegria, a imagem que vem é a de Bootsy Collins. Ex-integrante das míticas bandas Parliament-Funkadelic e da The J.B.’s, de James Brown, Bootsy é um dos principais responsáveis por estabelecer o modo de tocar baixo na black music. Quem não se lembra dele no videoclipe de “Groove is in the Heart” do Deee-Lite? A NME não lembrou...

Ouvir: “P-Funk (Wants to Get Funked Up)” (com Parliament); “Uncle Jam” (com Funkadelic); “More Peas” (com James Brown & The J.B.'s)



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de
Marcelo Bender da Silva
e Ricardo Bolsoni

segunda-feira, 24 de julho de 2017

The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)



“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956

“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957

Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.

Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.

É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.

"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.

"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.

O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.

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FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09

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OUÇA

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de março de 2017

Dom Um Romão – “Dom Um Romão” ou “Braun-Blek-Blu” (1973)




As duas capas: edição original e
da reedição de 1974
“Agora as mesas foram viradas. 
Os brasileiros estão contratando músicos 
de jazz para tocar sua música. 
É ainda um casamento da música
 brasileira e do jazz, mas o corte 
está sendo feito do ponto de vista brasileiro.” 
Gary Giddins,
no texto original 
da contracapa do LP



Quando o jazz fusion, no final dos anos 60 e início dos 70, escancarou as portas do jazz tradicional, mesclando-o ao gênero mais pop do século XX, o rock, um novo paradigma se abriu. Até então fortemente ligado ao ritmo dançante do swing, ao virtuosismo do be-bop e à sofisticação do cool, o jazz passava a ser, na prática, tudo: rock, funk, vanguarda, clássico, ritmos latinos, música indiana, oriental, etc.. Para bem ou para mal, qualquer coisa que minimamente se valesse de elaboração musical passou a também poder ser considerado jazz. Houve quem se favorecesse com tal releitura, caso da música brasileira. Principalmente pós-bossa nova, o Brasil e seus músicos entraram de vez no mapa da música moderna e passaram a ditar, Tetê a Tetê com norte-americanos e europeus, os rumos da arte musical “culta”. Tom Jobim, João Donato, Moacir Santos, Eumir Deodato e Sérgio Mendes, nos Estados Unidos desde os anos 60, desbravaram essa trilha. Agora uma nova e ainda mais arejada geração de brazucas desembarcava nos “states”. Os percussionistas, em especial, considerando as características da música brasileira, tiraram vantagem. Caso dos rapidamente reconhecidos Naná Vasconcelos e Airto Moreira e de outro craque das baquetas, que ganhou os corações e mentes dos exigentes jazzistas: Dom Um Romão.

Dono de um estilo único e muito natural que une a versatilidade adquirida nas orquestras da noite carioca à alta técnica da sincopa e das divisões rítmicas, Romão tem uma história peculiar. Filho de um também baterista, literalmente herdou-lhe o dom, pondo-o em prática, nos anos 50, nos bares boêmios do Beco das Garrafas. Cedo, já havia realizado feitos invejáveis para qualquer músico de sua geração: no Brasil, participara, em 1958, da gravação do marco inicial da bossa nova “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, e, alguns anos mais tarde, do memorável “O Som”, da Meirelles e os Copa 5, de 1964, o “A Love Supreme” brasileiro. Já nos Estados Unidos, integrou a “cozinha” do clássico “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”, em 1967, e substituíra o amigo Airto na mitológica banda Weather Report, a maior referência do jazz fusion, tocando, de 1972 a 1976, ao lado de feras como Wayne Shorter, Josef Zawinul, Alphonso Johnson e Eric Gravatt. Mas faltava-lhe o trabalho solo no exterior (já tinha um LP homônimo, de 1964, gravado no Brasil), aquele que ratificasse não apenas suas qualidades como instrumentista, mas também como compositor e band leader. A oportunidade veio em 1973, quando o cultuado selo Muse o chama para realizar um projeto à altura de seu merecimento.

A reverência ao novo contratado fica evidente pelo time convidado a participar das gravações. O set reuniu uma lista extensa de músicos: dos “gringos”, figuras referenciais como Stanley Clarke e Frank Tusa, no contrabaixo; Gravatt, na percussão; Lloyd McNeill, flauta; Joe Beck, guitarra elétrica; Jerry Dodgion; sax-alto e flauta; Richard Kimball, sintetizador; Mauricio Smith, sax-soprano e flauta; Jimmy Bossey, sax-tenor; e William Campbell Jr., trompete. Ainda, como não poderia deixar de ser, o disco conta com músicos brasileiros – e não quaisquer músicos –: no órgão e no piano acústico, Sivuca; no harpischord, Donato; no piano elétrico e acústico, Dom Salvador; na percussão, Portinho; e no violão, Amauri Tristão.

“Dom Um Romão” traz seis faixas de absoluta perfeição e que representam a contribuição sui generis que o Brasil dava à nova feição do jazz: o samba, o baião, o maracatu e os ritmos folclóricos brasileiros e latinos fundidos ao hard-bop, ao jazz modal, ao cool jazz. Tudo começa na espetacular “Dom’s Tune”, um “cartão de visitas” arrasador que virou tema cult entre os músicos e admiradores tardios de Romão. Pura destreza e musicalidade, a começar pela rica percussão do próprio autor, que comunga vários instrumentos como caxixi, chocalho, pratos, chipô, tamborim e sinos. Sobre uma base modal de tempo 5/3 do piano de Dom Salvador, Beck esmerilha a guitarra, solando os mais de 8 minutos do número. Isso sem falar dos sintetizadores de Richard Kimball, das incursões percussivas de Portinho e da frase repetida dos sopros que, a partir da segunda metade, passam a dar um riff para a música. Certamente um dos melhores exemplares do jazz dos anos 70.

Segue “Cinnamon Flower”, uma versão bastante original de “Cravo e Canela”, de Milton Nascimento, evidenciando a inventividade harmônica e melódica do compositor mineiro, muito a ver com o jazz contemporâneo. Em ritmo de baião, tem Romão percutindo a trinca típica do gênero (bumbo-caixa-triângulo), além do riff executado nas flautas, os quais evocam aqueles lindos versos: “A lua morena/ A dança do vento/ O ventre da noite/ E o sol da manhã/ A chuva cigana/ A dança dos rios/ O mel do Cacau/ E o sol da manhã”. A guitarra com pedal wah-wah faz não só a levada como também o principal solo, dando ainda mais modernidade a um tema de raízes folk. O melhor do jazz fusion, mas num ritmo tão tipicamente tupiniquim, que somente um brasileiro podia estar à frente.

Romão relembra os tempos de bossa nova num tema altamente elegante: “Family Talk”. Composição sua mas que bem poderia ser de Tom Jobim nalgum de seus discos da A&M, “Tide” ou “Wave” (este último, em que o baterista participa), haja vista a parecença da sonoridade transparente e o conceito musical sofisticadíssimo: dominante em “Sol”, batida de violão ao estilo João Gilberto, baixo acústico trasteando como o de Ron Carter, a levada malemolente da bateria no aro da caixa e, principalmente, o arranjo, que privilegia a flauta como executora do riff. Perfeita. Não bastasse, o mestre Donato aparece para fazer um solo bem a seu estilo: econômico e inteligente.

Assim como a segunda faixa, “Ponteio” é mais uma releitura de clássico da MPB, esta agora, que em muito lembra Shorter e a Weather Report, talvez a versão mais inspirada que a composição de Edu Lobo e Capinam pudesse ganhar. Romão comanda um constante triângulo, enquanto seu xará Dom Salvador, o electric piano. É o pianista também quem desvela um rico solo no teclado acústico, que tem por trás as inventivas viradas e variações rítmicas de Romão na bateria, enquanto os intensos baixo de Clarke e congas de Gravatt mantém uma atmosfera caribenha. Outro solo, agora de flauta na segunda parte, incute ainda mais a complexidade jazzística ao tema, que não perde, entretanto, o teor grave da melodia original, a qual remete inevitavelmente às rodas e duelos de viola nordestinos.

“Braun-Blek-Blu”, que informalmente dá nome ao disco, é outro espetáculo à parte. Sozinho no estúdio, somente ele e seu aparato, Romão substitui uma bateria de escola de samba inteira. Ao mesmo tempo em que é um samba marchado e acelerado, exigindo alta técnica e controle dos tempos, lembra, sem erro, também o maracatu rural do Nordeste brasileiro com seus tambores, chocalhos e gonguê. Hábil, o percussionista consegue variar o compasso, acelerando e desacelerando o ritmo. Isso, enquanto executa viradas e ataques junto com os próprios vocalises, que se hegemonizam às batidas. Nada menos que impressionante.

O sertão dos trópicos retorna com a interpretação de mais um hino do cancioneiro brasileiro: “Adeus, Maria Fulô”. No entanto, Romão e Cia. dão uma pegada de latin jazz explosivo ao singelo baião. E com consentimento do próprio autor, Sivuca, que comanda o órgão e o piano, enquanto o sax soprano de Mauricio Smith anuncia, apenas em sons, o riff (“Adeus, vou-me embora, meu bem/ Chorar não ajuda ninguém/ Enxugue o seu pranto de dor/ Que a seca mal começou”). O mesmo Smith é quem manda um belo solo, desta vez improvisando com total liberdade no tenor. Romão preenche o espaço com uma rara multiplicidade de texturas e cores, ajudado pela percussão de Gravatt e Portinho. Um final digno a um disco irreparável do primeiro ao último acorde.

Como disse o jornalista Maurício Pinheiro:“No viés de reinvenção dos conceitos do jazz moderno, o álbum é um testemunho dos estímulos provocados por essa geração que marcou o início dos anos 1970”. Junto com trabalhos igualmente essenciais e revolucionários dos compatriotas Airto, (“Fingers”), Flora Purim, (“Butterfly Dreams”) e Hermeto Pascoal (“A Música Livre de Hermeto Pascoal”) – todos do mesmo ano e gravados nos Estados Unidos –, “Dom Um Romão” marca uma fase áurea do jazz moderno brasileiro no exterior, servindo de referência até os dias de hoje para músicos (brasileiros ou não) das mais diferentes vertentes. Afinal, tudo é jazz.

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Reeditado dois anos depois com nova arte, em 1990, a 32 Jazz lançou em um único CD, intitulado “The Complete Muse Recordings”, os dois trabalhos de Dom Um Romão pelo selo Muse, este e o também ótimo “Spirit of the Times”, de 1974, do qual se incluíram suas sete faixas: “Shakin' (Ginga Gingou)”, “Wait On The Corner”, “Lamento Negro”, “Highway”, “The Angels”, “The Salvation Army”, e “Kitchen (Cosinha)”.

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FAIXAS:
1, “Dom’s Tune” (Dum Um Romão) - 8:39
2. “Cinnamon Flower” (“Cravo e Canela”)(Milton Nascimento) - 3:30
3. “Family Talk” (Romão) - 5:30
4. “Ponteio” (Edu Lobo/Capinam) - 6:30
5. “Braun-Blek-Blu” (Romão) - 4:40
6. “Adeus, Maria Fulô” (Sivuca/Humberto Teixeira) - 7:59

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues