Só havia visto
Arnaldo Antunes no palco ao vivo há mais de 30 anos. Precisamente em 1992, quando este, ainda com os
Titãs, veio a Porto Alegre para o
show de “Tudo Ao Mesmo Tempo Agora”, no Gigantinho. Aliás, ótimo show: enérgico, potente, performático, a cara dos Titãs e com direito a banda completa (Marcelo Frommer, um dos guitarristas, morto em 2001, ainda era vivo). Porém, um lance quase despercebido me chamou atenção. Quando Arnaldo, após sua vez de cantar, voltava do microfone principal, posicionado à frente do palco, ao seu microfone de
backing vocal, que fica uma linha atrás,
Paulo Miklos, comumente esfuziante àquela época, cumprimentou-o pela performance e propôs aquele
“toca aqui” de mãos. Que Arnaldo, inerte, não retribuiu. Sem deixar a peteca cair, Miklos, ao ver que o colega não aderira ao entusiasmo, abraçou-o e o show, que já tinha outro vocalista em ação, prosseguiu sem percalços.
No entanto, a imagem ficou na minha memória: a de um Arnaldo contrariado. Profissional, entregando um bom show junto com a banda, mas contrariado. Pode se cogitar muita coisa, mas não é difícil de imaginar que já tivesse a ver com a saída dele dos Titãs, a qual ocorreria logo em seguida, visto que “Tudo...” foi seu último como integrante. O motivo do desligamento, uma bomba para a banda na época, foi que Arnaldo tinha outros projetos e interesses que não cabiam no contexto de uma banda com oito cabeças pensantes, oito pop stars. Interesses que passavam pela poesia, pelas artes visuais, pela dança e, claro, pela música. Arnaldo sentia-se preso ao formato que um conjunto de rock oferecia e que nunca iria dar vazão a seus anseios artísticos e pessoais.
Corta para maio de 2025. 33 anos depois daquele show no Gigantinho e depois de várias vindas a Porto Alegre, Arnaldo Antunes retorna à cidade com sua própria banda para a turnê do seu novo disco, “Novo Mundo”, 14º de uma hoje consolidada carreira solo iniciada logo após aquela apresentação ainda como titã. O que se vê, da coreografia vanguardista característica e do tradicional figurino longilíneo à liberdade no palco, é um artista íntegro e contente consigo mesmo. Algo que transparece, obviamente, para o público, que não superlotou, mas encheu o bar Opinião, cantando e dançando com ele. Hoje maduro e experiente artisticamente, Arnaldo mostra sentir-se à vontade com sua obra, seja ela da carreira solo, a dos livros, a das artes visuais ou a de projetos como Tribalistas, Banda Performática, Pequeno Cidadão e, claro, os Titãs.
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A ótima iluminação pondo Arnaldo num cone de luzes |
Muito bem iluminado e dirigido, o show começa com a excelente faixa-título, cuja letra fala desta sociedade atual impermanente e superficial (“
Bem-vindo ano novo mundo/ Que vai se desintegrar no próximo segundo”). Como Arnaldo ainda continua sabendo criar boas
“músicas de trabalho”! Canções que encerram seu jeito concretista de escrever letra e compor melodias, mas trazendo uma pegada pop, ao estilo de “Saia de Mim” e “Lugar Nenhum”. Grande música. Do novo disco, ouviu-se quase todas de forma entremeada com sucessos e clássicos da carreira. Também novas, “O Amor é a Droga mais Forte”, “Tanta Pressa Pra Quê?”, “Viu, Mãe?” (parceria com
Erasmo Carlos), “Acordarei” e “É Primeiro de Janeiro”. Dessa leva se destaca o
iê iê iê moderno “Pra Não Falar Mal”, que cita um dos cantos do “Tao-Te King”, Lao Tzu (
“Pureza e quietude são o padrão de medida do mundo”). O sangue titã ainda corre nas veias de Arnaldo.
Outra excelente é a eletropunk “Tire o seu Passado da Frente”, em que o arranjo engendrado com a banda do show – e do disco – merece um destaque à parte. Afinal, tratam-se de Vitor Araújo (teclados e piano), Betão Aguiar (baixo), a cabeça da heavy-nagô Metá Metá Kiko Dinucci (guitarras, violões e efeitos eletrônicos) e o cara que revolucionou o som já revolucionário da Nação Zumbi, Pupillo (baterista e também produtor de “Novo Mundo”).
Com essa turma, Arnaldo concebe ótimas versões de canções mais antigas de seu repertório, tal “Sem Você”, gravada por Carlinhos Brown, e o reggae “Cultura”, lá do seu primeiro álbum solo, “Nome”, que virou o dub viajandão. Também tiveram os hits, casos de “Passe em Casa” e “Já Sei Namorar”, ambas dos Tribalistas, e a maravilhosa "Pulso", dos Titãs. Ainda rolaram as emocionantes “Socorro”, um de seus maiores sucessos da carreira solo (“Socorro, não estou sentindo nada/ Nem medo, nem calor, nem fogo/ Não vai dar mais pra chorar/ Nem pra rir”), e “Debaixo D’Água”, interpretada originalmente por Maria Bethânia.
trecho da clássica "Pulso", do repertório dos Titãs
Mas Arnaldo surpreende ainda mais com a nova “Body/Corpo”, samba malucão e uma das parcerias com um dos maiores nomes da música pop de todos os tempos: o talking head David Byrne (a outra é a boa “Não Dá pra Ficar Aí Parado na Porta”). Um encontro de pares, afinal ambos têm muito a ver um com o outro. Arnaldo sempre se espelhou na performance de palco espalhafatosa e cênica de Byrne, bem como foi um dos principais responsáveis por introduzir nos Titãs elementos da sonoridade da Talking Heads – veja-se, por exemplo, a música “Medo”, de “Õ Blésq Blom” e cantada por Arnaldo, claramente inspirada em “Fear of Music”, dos nova-iorquinos (“precisa perder o medo da música”). Por outro lado, Byrne, um verdadeiro esteta da world music, de muito vem acessando e introjetando os sons brasileiros. “Body/Corpo”, no entanto, mais do que um teoria, funciona muito bem na prática, sendo possível ouvir a musicalidade de um e de outro neste quase-samba quase-rock. Vendo Arnaldo cantando e dançando-a no palco faz a gente se perguntar: “como que esse encontro dele com Byrne não havia acontecido antes?”
A excelente "Body/Corpo", Arnaldo e Byrne juntos
No bis, uma vibrante versão de “Fora de Si”, do seu segundo disco, “Ninguém”, e conhecida por integrar a trilha sonora do filme “Bicho de 7 Cabeças”, e a irresistível “Comida”, que, não precisa nem dizer: pôs o Opinião abaixo. Um belo show, que confirma, tantos anos depois da traumática saída dos Titãs, o porquê da mudança de rota de Arnaldo, um artista que sempre soube o que queria fazer – e faz. Afinal, diferentemente daquele show do Gigantinho, que talvez poucos além de mim tenham visto o discreto episódio do abraço não retribuído com Paulo Miklos, havia um Arnaldo inteiro e feliz no palco. E isso todo mundo viu.
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| Arnaldo e sua excepcional banda |
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| Arnaldo super à vontade no palco |
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Mais show rolando
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Momento especial em que muda o figurino
para cantar "Debaixo D'Água"
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| Alta vibração no palco do Opinião |
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Performático como sempre
Mais um pouco da performance de Arnaldo, aqui em "Sem Você"
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A fantástica "Comida", melhor música
para encerrar o show
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| Arnaldo e banda se despedem depois de um grande show |
texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa