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terça-feira, 10 de março de 2020

Marisa Monte - "Mais" (1991)



"Ela tem umas coisas
 que nasceram com ela:
carisma, uma beleza calma
e uma enorme cultura musical."
Nelson Motta




Ela já havia interpretado uma música deles em seu álbum de estreia e, não muito tempo depois, um encontro num especial da Rede Globo que a colocava no mesmo palco com os Titãs, além de servir de alavanca para o namoro com o baixista Nando Reis, encaminharia a parceria que se materializaria objetivamente, logo ali adiante no excelente álbum "Mais", de 1991 e ainda abriria o caminho para, mais futuramente, o projeto Tribalistas, já mencionado aqui nos A.F., de Marisa, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, que faz a percussão em grande parte das músicas. "Mais" pode até parecer, num primeiro momento, uma espécie de projeto alternativo dos Titãs com outro tipo de concepção vocal, dada a quantidade de músicas em que eles têm, no mínimo, participação nas composições. Causa ou consequência da então recente relação de Marisa com Nando, a parceria com os Titãs refletiria na linguagem do trabalho como um todo, até mesmo, de certa forma nas versões de outros artistas. Com exceção de "Rosa", de Pixinguinha, de estrutura mais complexa e letra rebuscada, a maioria das outras covers poderia caber, sem problemas num disco do octeto paulista, como no caso de "De Noite na Cama", de Caetano Veloso, por exemplo, a adaptação do folclores nordestino, "Borboleta", e até mesmo, por incrível que pareça, "Ensaboa", de Cartola, que dentro do espectro da obra do mestre da Mangueira, pode ser considerada uma de suas letras mais minimalistas e de estrutura diferenciada. Mas seria uma injusta simplificação reduzir o trabalho a uma experimentação titânica. "Mais" é muito mais! Marisa Monte canta, encanta, brinca, emociona, impressiona. Com produção do norte-americano Arto Lindsay, o disco é eclético sem ser pretensioso e tem um equilíbrio perfeito entre as faixas o que faz com que seja prazeroso e mantenha um frescor mesmo para quem já o conhece de muitas audições.
"Beija Eu", com letra de Arnaldo Antunes, comprova que o mesmo cara que fazia coisas como "Saia de Mim", era capaz de compor algo tão belo e delicado como aquela faixa de abertura, que, por sinal, não merecia outra interpretação que não à de Marisa Monte, doce e graciosa. "Volte para o seu lar", rebelde e impositiva, é a mais titânica das músicas do disco, contando com uma leitura musical perfeita de Marisa que dosou com sabedoria a melodiosidade com a pungência da letra ("Aqui nessa casa/ Ninguém quer a sua boa educação/ Nos dias que tem comida/ Comemos comida com a mão...", "Aqui nessa tribo/ Ninguém quer a sua catequização/ Falamos a sua língua/ Mas não entendemos o seu sermão"...). "Ainda Lembro", canção de amor elegante e de muito bom gosto, conta com a luxuosa participação de Ed Motta compõe com Marisa um dueto que pode se incluído entre os grandes da música brasileira. Em "De noite na cama", Marisa dá um ar leve à canção de Caetano Veloso, inúmeras vezes regravada na discografia nacional, desta vez com uma interpretação bem solta e alegre; e a "Rosa", de Pixinguinha e Otávio Cruz, a confere senão a versão definitiva, no mínimo uma das mais memoráveis. E em "Borboleta", cantiga tradicional do nordeste, Marisa Monte começa fazendo a voz pairar suavemente sobre nosso jardim sonoro para em seguida, sobre uma base acústica, desfilar seu canto doce e gracioso.
Marisa começa esticando a voz em "Ensaboa", sugerindo um cântico de lavadeiras, a música ganha um coro no refrão que também remete a um canto do trabalho conjunto na beira do tanque e de ribeirões, e culmina num pout-pourri, simplesmente extático, com "Lamento da Lavadeira", "Colonial Mentality", "Marinheiro Só", "A Felicidade" e "Eu Sou Negão". Espetacular!
"Eu não sou da sua rua", outra muito titânica, é uma espécie de "Lugar Nenhum"l mais leve e melancólica. "Diariamente", de Nando Reis, uma das melhores do disco, usa um formato em lista, como era característico dos Titãs em músicas como "Nome aos bois", do próprio Nando, só que aqui com atividades e situações rotineiras, numa anáfora conduzida de maneira brilhante pela cantora sobre uma base de violão constante e repetida.
Marisa se aventura pela primeira vez em uma composição solo e se sai bem na gostosa "Eu Sei";
"Tudo pela metade", parceria de Marisa com Nando, talvez seja a mostra mais perfeita no álbum do êxito da combinação de seu estilo com o dos Titãs, ficando bem evidenciado o ponto onde acaba um, começa o outro e onde se fundem. Um pop delicioso de refrão cativante e que fica mais bacana ainda na última vez em que se repete com um coro de crianças bem espontâneo e "bagunçado"; e "Mustaphá", uma balada zen, tranquila, com um belíssimo trabalho de violão, fecha o disco com competência.
"Mais" era a confirmação de Marisa Monte. Se passara uma boa impressão com o primeiro disco "MM", um ao vivo só de versões de outros artistas, mas deixara uma certa dúvida sobre ser ou não um daqueles fenômenos efêmeros que parecem de vez em quando, este disco mostrava que ela não era só mais uma cantora de um ou dois hits. Ela chegara para ficar. Era mais uma das grandes mulheres da música brasileira. Uma mulher com M maiúsculo! M de música, M de Marisa, M de Mais.

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FAIXAS:
1."Beija Eu" -  Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Arto Lindsay (3:10)
2."Volte Para o Seu Lar" - Arnaldo  Antunes (4:41)
3."Ainda Lembro" - (participação especial de Ed Motta) - Marisa Monte, Nando Reis (4:05)
4."De Noite na Cama" - Caetano Veloso (4:24)
5."Rosa" - Pixinguinha, Otávio de Souza (2:43)
6."Borboleta" - Folclore Nordestino (1:56)
7."Ensaboa (Lamento da Lavadeira)" - Cartola, Monsueto Menezes (4:15)
8."Eu Não Sou da Sua Rua" - Branco Mello, Arnaldo Antunes (1:29)
9."Diariamente" - Nando Reis (4:05)
10."Eu Sei (Na Mira)" - Marisa Monte (2:40)
11."Tudo Pela Metade" - Marisa Monte, Nando Reis (4:11)
12."Mustaphá" - Marisa Monte, Nando Reis (2:23)
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Ouça:
Marisa Monte - Mais


Cly Reis

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Paulinho da Viola - CentenáRIO Samba - Praça Mauá - Rio de Janeiro (06/11/2016)


Paulinho da Viola, à frente de sua banda, emocionou o público na Praça Mauá.
Sob uma brava lua crescente que teimou em se impor às turvas nuvens na noite de ontem aqui no Rio de Janeiro, nas adoráveis companhias de minha mãe e minha irmã, tive a oportunidade assistir a mais um grande show deste homem que é um dos nomes mais notáveis da música brasileira: Paulinho da Viola.
Minha mãe falava antes do show que muito do que nos levava a estarmos ali, nós três, naquele dia para assistir àquele show era nossa memória afetiva de um show que havíamos visto de Paulinho da Viola, há muitos anos atrás em Porto Alegre, e que nos marcou até hoje. Acredito que ela tivesse razão. Não que eu duvidasse do artista mas aquilo seria uma especia de confirmação. Pois tem artistas que a gente vê novamente para ter a sensação de renovação e de confirmação de que realmente a primeira não havia sido por acaso. Às vezes a segunda vez acaba desfazendo a magia como foi para mim no caso do Pearl Jam, que vi num show espetacular em Porto Alegre em 2005 e depois fez um show xoxo no Maracanã no ano passado. Também tem aqueles que frustraram, de certa forma, na primeira, como foi o caso da minha banda favorita, o The Cure, que me decepcionou no Hollywood Rock de 1996 mas que, na segunda chance, aqui no Rio, em 2014 não deixou dúvidas do porquê de minha devoção. No caso de Paulinho da Viola devo dizer que tudo se confirmou. Toda sua musicalidade, poesia, altivez, competência estavam lá de novo. Um grande show ainda que no fundo do meu coração, mantenha a sensação de que aquele, despretensioso, numa manhã de domingo em Porto Alegre, sem nenhuma grande infraestrutura de palco, cenário, iluminação nem nada, talvez pela presença do pai do cantor, o legendário violonista César Faria, tocando na banda, pelo jeito quase de "improviso"que toda a coisa tinha, pela minha descoberta do samba numa época em que minha cabeça roqueira era muito menos aberta do que hoje em dia, acredito que possivelmente continue sendo um dos melhores que eu já assisti. Mas talvez seja apenas memória afetiva.
Mas no que diz respeito à noite de domingo, Paulinho da Viola desfilou sua tradicional elegância de porte e de interpretação e com seu jeito simples e cativante emocionou o grande público presente à reformulada e hoje convidativa Praça Mauá, no centro do Rio como atração principal do evento CentenáRIO Samba, parte do Festival Villa-Lobos que acontece em diversas partes da cidade. Com uma banda competentíssima e um repertório certeiro o cantor teve a companhia das milhares de vozes lá presentes para interpretar seu grandes clássicos. A sensacional "Argumento" e sua ironia fina; a belíssima "Coração Leviano"; a exaltação ao rival "Sei lá, Mangueira" e a "retratação" com a sua comunidade, o hino "Foi um rio que passou em minha vida"; "Pecado Capital", tema inesquecível da novela que levava o mesmo nome; "Dança da Solidão", um dos momentos mais emocionantes da apresentação; e a apaixonada confirmação do ofício "Eu canto samba". O show teve ainda um curto mas marcante momento que foi quando Paulinho interpretou um samba de Moreira da Silva sobre um homem que via-se diante de uma partida de carteado com o Diabo, "Jogando com o Capeta" que levou o público à gargalhada e por fim a mais um estrondoso aplauso.
Ao final do show podia-se ver na plateia pessoas chorando, emocionadas com o que acabavam de presenciar, numa daquelas apresentações que pode-se definir como "de arrepiar". Ou seja, Paulinho da Viola conseguiu em pouco mais de duas horas nos proporcionou um festival de emoções: alegria, arrepio, gargalhada, euforia, nostalgia, paixão, choro, riso...
Minha filha pequena costuma chamar a lua crescente de "lua sorriso". Pois lá, naquele clima bom, naquela vibração gostosa, diante daquele espetáculo dava pra entender perfeitamente o porquê da lua estar sorrindo.

Paulinho da Viola - "Dança da Solidão"


Cly Reis



quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Música da Cabeça - Programa #126


Parece que a Nasa descobriu condições de vida na lua de Júpiter, a Europa. Enquanto a gente nãos se muda pra lá, o negócio é aproveitar o Música da Cabeça. Ainda mais porque hoje tem toda essa variedade sonora, que não se encontra em outro lugar do Sistema Solar: Seal, Gustavo Galo, Brian Eno & John Cale, Kid Abelha, Massive Attack, Velha Guarda da Mangueira e mais. Não precisa ser extraterrestre pra entender que aqui na Terra ainda tem coisa que vale a pena, como o MDC, que vai ao ar às 21h, na constelação da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e missão espacial: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Coluna dEle #27




Ó!
Tamo aí, chegando na área.
Como vão Meus filhos?
Tudo na Minha Santa Paz?
Que bom!
Que Eu vos abençoe.
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Sabem que Eu sempre fui meio resistente a essas coisas de tecnologia e coisa e tal, né. Pra automatizar todo o sistema aqui, por exemplo, teve muita resistência da Minha parte. Mas aí ficava o Pedrinho insistindo, dizendo que a gente podia programar as estações do ano, as chuvas, que nunca mais ia ter problemas como aquele do Noé e olha aí as merdas que tem dado. Mas tenho que admitir que mesmo dando uns tilt de vez em quando, é melhor do que no sistema antigo que era todo manual. Era dê-lhe a negada aqui carregar balde e mangueira pra qualquer chuvinha que tivesse que fazer; tinha que desenhar cada cidadão pra ver como é que ia ficar a cara do indivíduo e hoje a gente faz isso no computador; tinha que abrir um livro enorme pra ver quem nascia e quem morria e hoje tá tudo cadastrado num programinha. É maneiro, é maneiro!
Até esse negócio de escrever em blog! Nossa! Pra Mim isso era algo inimaginável mas a modernidade acaba chegando uma hora pra todo mundo e pra Mim, em especial, parece que foram milhões de anos.
Só que agora, de uns tempos pra cá, apareceu outro barato que Eu resolvi aderir também que é essa parada de redes sociais. No início Eu não curti muito, mas até pra ver o que tanto esses santos-do-pau-oco daqui de cima ficavam futricando na Eternet a tarde inteira, Eu resolvi criar uma conta. O fato é que a galera toda aqui também tinha entrado e ninguém mais trabalhava nesse inferno, quero dizer nesse Céu. Que que Eu fiz, então??? Pra saber o que todo esse povo andava pensando e postando nesses Yorkut, Feice, Tuíster ou o diabo que seja, Eu resolvi ser o administrador. Quero dizer, aministrador Eu já sou, né, mas digo, resolvi ser o administrador da Minha própria rede social. Pedi pro Jobs, que acabou de chegar por aqui pra configurar os esquemas pra mim e tal, ele Me disse que não era a especialidade dele, que o que ele sabia fazer mesmo era tablete, Aipode, mas achava que dava pra fazer. Aí que agora Eu tenho a minha rede própria celestial que Eu batizei de Faithbook.
Uma maravilha!
Troco uma ideia com a galera, posto vídeos, sacaneio os caras, discuto futebol, posto fotos. Imagina que o Moisés publicou uma foto minha de quando a gente se encontrou no Sinai pra Eu entregar os Mandamentos pra ele. Putz! Eu nem lembrava mais disso!
Divino!
Cara, e isso vicia!
Não consigo mais deixar de entrar. Aliás, Eu nem saio mais.
E tem a rapaziada, né; tem o Chico de Assis que fica postando aquelas mensagens de adoção de animais e tal; O Jorginho que depois que o Corinthians ganhou a Libertadores só fica botando coisas de futebol, zoando o Paulão chamando ele de Bambi; o Tinhoso, que só fica mandando uns clipes de metal; a patroa que fica trocando umas receitas com a Fátima, com a Gracinha e com a Das Dor; e o Meu filhão, o JC, que adora COMPARTILHAR tudo o que vê pela frente no Faithbook, sempre com aquele coração enorme.
Sem falar nos que vieram aqui pra cima e que também tem perfis, tipo o Shakespeare e o Wilde que tão sempre botando umas frasezinhas bacanas; Aquela velha safada da Dercy que fica falando sacanagem o tempo todo; O Kurt que só fica com aquele ranço pessimista e negativo; e caras como o Chico Anysio sempre tem alguma coisa pra fazer a gente rir.
Se quiserem Me adicionar Eu tô lá como Todo-Poderoso. É fácil de achar.
Já tô com mais de 7 bilhões de amigos.
Me Add lá, vai.

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Antes de aderir a essa coisa toda de tecnologia, informática e tudo mais Eu era muito ruim nesses troços. Eu lembro que logo que a gente começou a utilizar computadores aqui em cima, Eu sempre esquecia de salvar o que tava fazendo e volta e meia perdia todo o Meu trabalho. Por sorte o Meu filhão, que trabalhava em rede comigo, sempre dava um SAVE e a gente garantia os arquivos na máquina dele. O pessoal aqui sempre comentava como ele era responsável, atento e foi daí que surgiu aquela expressão “Só Jesus Salva”.
É mesmo!
Se não fosse ele...

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Por hoje chega, filharada.
Não se esqueçam de fazer suas orações, não matem, não roubem, não pronunciem Meu santo nome em vão e não desejem a mulher do próximo (se bem que tem umas que não tem como resistir, né?)
Fiquem Comigo e que Eu vos abençoe!
Fui!

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Contato, informações, pedidos, súplicas, etc., pelo
ou no

domingo, 4 de março de 2012

cotidianas #199 - A Mancha Amarela


André cruzou a avenida movimentada de onde trabalha, enfiando-se entre os carros como fazia junto a outros vários pedestres todos os dias a ponto de nem preocupar-se mais com o perigo de não respeitar a faixa – era mais fácil chegar a seu destino assim. Podia pegar uma condução no ponto logo ali, na esquina, sem precisar cruzar a via, mas, horário de verão, costuma empreender a esta época uma caminhada de uns 15 minutos até sua casa, bairro logo ao lado. Carteira com menos relatórios que o normal, sapatos de couro curtido que já podia considerar confortáveis, temperatura amena, economia de dinheiro, maneira de evitar o trajeto alongado do ônibus, desculpa ecologicamente correta, nada melhor para fazer, ninguém a se reportar; tudo contribuía. Então, banalmente, foi.

Ao chegar à calçada oposta, percebeu uma mancha de tinta sobre as pedras portuguesas do calçamento a qual nunca tinha reparado. Amarela. Estranhou (afinal, trabalhava ali há sonolentos 6 anos e nunca tinha sequer batido o olho...). Mas seguiu em marcha. Ficou com a interrogação daquela imagem: espatifada, como que resultante de um tubo cheio de tinta emborcado. Intencional? Sem querer? Deixou “pra lá”, afinal, podia ser que estivesse ali até a mais tempo que ele, e ele é que nunca tivesse percebido, quem sabe, por sempre alcançar um trecho da calçada além da mancha – talvez, meio metro adiante, o suficiente para, tendo em vista seu olhar acostumado a apontar para uma direção só, jamais ter notado. “Sei lá”, disse a si mesmo.

Nem bem completou esse raciocínio desaproveitável e avistou, vindo em sua direção, um senhor falando ao celular. O aparelho, totalmente lambuzado da mesma tinta amarela, porém fresca de recém-derramada, escorria pelos dedos, chegando-lhe até a boca. Alguns pingos entravam lábio adentro, outros trilhavam em direção ao punho do paletó. De um amarelo cítrico, oleoso, brilhoso, pendendo levemente para o esverdeado. Aquela mesma tonalidade do chão. No entanto, viu que o homem mantinha a conversa normalmente, e André pôde até escutar que se tratava de um diálogo com a esposa, pois conseguiu ouvi-lo dizer quando passava: “não, mulher, o cartório pediu mais uma pepelada...”. Admirou-se daquilo... mas não se conturbou, afinal tinha mais o que fazer: chegar em casa. E seguiu a passo moderado, naquela nenhuma solenidade.
Mais adiante, no seu trajeto insosso de tão corriqueiro, um jovem cantava uma garota, ambos de pé em frente ao (provavelmente) prédio dela. Na calça dele, à altura da panturrilha, a tinta, já seca, tingia uma das pernas, formando uma incompreensível imagem abstrata que contrastava com o jeans de estilo moderninho. Ela parecia estar “na dele”, pois sorria e mexia no cabelo enquanto o rapaz macaqueava-se à sua frente, dança da sedução caricatamente sincera. A mancha, incompatível àquela cena, não parecia afetar em nada o cortejo. Ao som de uma gargalhadinha dela, André virou a cabeça e, na mesma quadra, viu uma senhora idosa passeando com um poodle, bem faceiro, tanto que a tinta amarela que pingava de sua boca, no lugar da saliva, não lhe tirava a satisfação de estar na rua com sua dona naquele fim de tarde nem com o provável gosto azedo que produzia. Irracional (decerto, por isso), o cão nem percebia, assim como a dona que, talvez pela velhice, talvez pela mesma irracionalidade, também não.

E no resto do trajeto, ainda, mais daquela estranheza: um grupo de meninas, emanando tesão, aos gritinhos, jogava uma ridiculamente mal jogada partida de vôlei, em que a bola voava de um lado para o outro respingado a tinta, que cuspia pingos nos cabelos delas (nem se importavam!). Um mendigo, na sarjeta, embuchava-se com um pedaço de pão velho emplastrado daquilo. Também, um casal de orientais vinha no tradicional passo rápido e sincronizado dos orientais. Mãos dadas, empapadas, grudadas pelo viscoso amarelo-lima.

Aquilo tudo era muito estranho, de fato, e, embora não chegasse a incomodar, embaraçava sua cabeça um pouco. Não conseguia ligar uma situação à outra. Não fazia sentido... Porém, quase em casa, nem precisava mais pensar. Era chegar e apagar a memória do dia, como se acostumara, dormentemente, a proceder um dia após o outro: ao bater a porta do apartamento, o “para trás” morria.

Enfim, chegou. Depois de trocar cumprimentos de forma consensualmente banal com o zelador – que molhava as folhagens com tinta amarela a jatos de mangueira –, subiu pelo elevador, puxou a chave e: lar doce lar. Foi direto à cozinha. Na geladeira, abriu-lhe a porta e, ao destampar a panela guardada do dia de ontem, enxergou a porção restante do macarrão com frango coberta por uma espessa camada de tinta amarela. As horas de refrigeração já faziam com que, plástica, a tinta revestisse sua comida, formando um bloco compacto e gelado. André enojou-se de tal jeito que fechou a porta e foi direto para a sala zapear os canais da tevê. Sentou-se no sofá meio de lado, tal como caiu, de alça da carteira sobre o ombro, os tais sapatos semiconfortáveis calçados, calça ainda cintada; só a gravata ligeiramente afrouxada no gogó. Adormeceu rápido de uma exaustão que nem sabia que tinha, sem dar tempo de prestar atenção em nada na televisão. Na tela, a âncora da BBC noticiava em inglês na sua postura fria e inabalável que a crise no Oriente Médio mais uma vez afetara as bolsas de todo o mundo, enquanto a tinta amarela cobria totalmente uma das lentes de seus óculos, escorrendo lenta e em camadas até formar pingos graúdos, que salpicavam aos poucos o balcão, começando a formar ali uma poça.


de Daniel Rodrigues

terça-feira, 31 de agosto de 2010

cotidianas #45 - Favela



Numa vasta extensão
Onde não há plantação
Nem ninguém morando lá
Cada um pobre que passa por ali
Só pensa em construir ser lar
E quando o primeiro começa
Os outros, depressa, procuram marcar
Seu pedacinho de terra pra morar


E assim a região sofre modificação
Fica sendo chamada de nova aquarela
E aí que o lugar então passa a se chamar
Favela.

******************
Favela
(Padeirinho da Mangueira e Jorginho Pessanha)

Ouça:
Jards Macalé Favela

quarta-feira, 13 de março de 2019

Música da Cabeça - Programa #101


O Brasil não é só verde-anil-amarelo: o Brasil também é cor-de-rosa e verde! Se a Mangueira trouxe um alento de consciência e resistência com seu samba campeão, o Música da Cabeça segue nessa onda positiva rodando Lulu Santos, Joy Division, Ed Motta, Walter Franco, Vangelis e muito mais. E mais: “Música de Fato”, “Palavra, Lê” e um “Sete-List” cinematográfico. Vem pro lado certo da história com a gente e ouve o programa de hoje, às 21h, nas páginas reescritas da Rádio Elétrica. Produção e apresentação: o índio, negro e pobre Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/


segunda-feira, 26 de novembro de 2018

COTIDIANAS ESPECIAL nº600 - Pega, pega!


P E G A,  P E G A !
R A F A E L  S I M E Ã O


Corre-corre. Perseguição. Três menores disparados com dois uniformizados no encalço. Os moleques têm vantagem, ágeis, se esgueiram pelos becos, saltam areia, desviam dos lentos, trombam, pulam poça, esgoto que corre ou um saco de lixo. Tomam buzinadas dos motoboys e seguem, sem chance. Até uma baixa, corpo no chão, sangue. Os outros dois se assustam, olham pra trás, será que socorrem? Quando veem os grandões rindo, cada vez mais perto, armados, não mesmo. Pinote ainda mais rápido, chinelos que ficam. Olhando pro céu azul entrevisto entre os barracos parecem buscar proteção, ou um atalho ditado pelos deuses. Mudam o rumo. Curva brusca e um muro. Trepam e caem num terreno baldio na beira da autoestrada. Carros zunindo. Despiste? Alguma vantagem. Um dos grandões uniformizados arrega, não aguenta o ritmo. Pezinho pro parceiro e bunda no chão, ofegante, escorado no muro. Barriga grande, cerveja pura, joelhos fudidos. Bufa cansaço e lida com a gozação de quem da pelada assistiu ao papelão. Puto. Do outro lado, segue, dois contra um, ladeando a estrada. Tensão no ar. Todos os três parecem acostumados àquilo e conhecem o pedaço. Crias da área ou frequentadores assíduos no cumprimento do dever. Ao fim daquela rua dobram uma esquina, apinhada de gente, fumaça na cara. À sombra da mangueira um churrasco na calçada. Uns viram a cabeça, a maioria segue na mesa, conversa que rola e cerveja que desce. Pessoal daqui acostuma com isso, é quase todo dia nessa época. Até que chega um ponto em que os três parecem que esquecem de si, desprendem-se do solo e diminuem a corrida, olhando pro alto. Fitam ansiosos o céu, mais uma vez. Só Deus pra ajudar. Chegam outros, de outros becos e vielas. Nutrem o mesmo desejo, anseiam. Adensa-se uma gritaria, alguns confrontos. É minha, é minha! O mais velho tenta se valer da sua arma pra ganhar altura, vara de bambu pra levar vantagem à distância, só assim. Não adianta, no empurra-empurra entre os menores um já alardeou que tá na mão. Pipão cheio de linha, sorrisão na cara, vai ostentando seu troféu, esfrega a glória na cara dos outros. Vitória. O grandão, suado e cabisbaixo, arma abandonada no chão, descarregada e inútil, ainda tem que escutar da janela: velho, velho, mal chegou do serviço, nem trocou de roupa ainda, e já tá aí correndo atrás de pipa. Tem vergonha nessa cara não, Jair? A pia que é bom ainda tá aqui vazando ainda.






Rafael Simeão, 31 anos, é formado em Filosofia,
estuda Letras, dá aulas e revisa textos.
No mais, não quis nos contar muito sobre ele,
mas fornece algumas pistas quando escreve

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Ravi Coltrane – 3º Canoas Jazz Festival – Parque Getúlio Vargas - Canoas/RS (24/11/2013)



foto: Paulo Moreira
Cheguei atrasado ao terceiro dia do Canoas Jazz Festival e só vi o final do show do octeto de Luizinho Santos. Mas o que vi só me confirmou o que eu já sabia: que iria ser uma excelente apresentação. Vi todas as outras vezes em que o octeto se apresentou e eles nunca fizeram nada menos do que um concerto espetacular. Peço desculpas ao Luiz e à Bethy por esta falta grave, porém, involuntária da minha parte. Vi inteiro, porém, o show de Alegre Correa. Este guitarrista de Passo Fundo morou fora do Brasil durante muito tempo e agora está de volta à Floripa. No palco com ele, um quinteto, com destaque absoluto para Uilian Pimenta, um pianista que vai dar muito o que falar. No repertório, canções compostas pelo guitarrista que abrem espaço para todos os integrantes da banda solarem. O problema, em minha opinião, é o próprio Alegre que insistiu em fazer vocalises acompanhando seus solos de guitarra em TODAS as músicas, deixando-as umas iguais às outras. Além disso, o som não favoreceu, deixando o líder da banda com um volume abaixo do que se esperava. A aparição de Jorginho do Trompete na última música ajudou a levantar o astral, pois tocou um solo muito bom no flugelhorn.
A coisa começou a esquentar quando o baterista Kiko Freitas subiu ao palco com seu trio, integrado pelo mestre Paulo Russo no baixo acústico - uma verdadeira instituição musical do Brasil - e o não menos exímio pianista gaúcho radicado no Rio, Rafael Vernet. Começando com "Beautiful Love", do repertório do Bill Evans Trio, logo se viu que a magia iria se instalar na próxima hora e não deixaria a cena. De "Prenda Minha", tocada no baixo de Russo, até "Piano na Mangueira", tivemos um concerto memorável. Uma aula de musicalidade e de empatia entre os três integrantes. Kiko até exagerou, iniciando uma versão de "Someday My Prince Will Come" com um solo de bombo legüero! Agora, todos estão esperando por um registro do trabalho deste grupo.
Bem, pra finalizar o "filho do homem" merece um capítulo à parte. Acompanho o trabalho de Ravi Coltrane desde 2000, quando o vi tocar no Free Jazz Festival. Sempre o considerei um bom saxofonista, que conseguia fugir da sombra acachapante de seu pai, um dos pilares do jazz moderno. Mas confesso que não estava preparado para revê-lo com a maturidade e a desenvoltura com que se apresentou em Canoas. Acompanhado por um quarteto formado por excelentes músicos (David Virelles, ao piano, Hans Glawichnig, no baixo acústico, e o impressionante Johnathan Blake na bateria), Ravi desfilou sua técnica exuberante, tanto no sax tenor quanto no soprano.

Mas parecia que faltava alguma coisa. De repente, foi como se o espírito do pai se apossasse de seu filho. Respondendo a este estímulo, reinterpretou "For Turiya", composta por Charlie Haden para Alice Coltrane, mãe de Ravi e uma figura importantíssima na sua escolha pela música, quando a dúvida ainda o acometia. E para mostrar que está em paz com o legado de seu pai, Ravi e seu grupo fizeram no bis uma versão monumental da clássica "Giant Steps", canção definidora do trabalho solo de Trane no início da década de 60. O público saiu de Canoas flutuando. E esperando a confirmação da quarta edição do festival.
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O que me mobilizou a ir ao Canoas Jazz Festival especialmente foi para ver Ravi Coltrane. Embora seja grande fã de jazz, poucas atrações me motivariam a ir a um ponto fora de Porto Alegre tão contramão. Mas desde que soube, através do Paulo Moreira, que Ravi Coltrane viria, não pensei duas vezes. Valia a pena.
Isso tudo porque Ravi é nada mais, nada menos do que pode se chamar de, como Paulo bem disse aqui, “o filho do homem”, e este homem se chama John Coltrane. Não à toa as quase invariáveis referências que faço a ele em meus textos musicais aqui no ClyBlog, pois o saxofonista é, para mim, o maior jazzista e um dos maiores músicos que já baixaram por estas bandas a qual chamamos de planeta Terra. Um mito na correta acepção da palavra. Eu e Leocádia Costa, que (não podia ser diferente) estava lá comigo, nutre como eu uma profunda admiração por sua obra, com a qual mantemos uma relação quase religiosa. Ver seu filho, o também jazzista, também saxofonista, também band leader (e muito parecido fisicamente com o pai) era uma ocasião especial.
Confesso que, por conhecer pouco do trabalho de Ravi, mesmo tendo ciência de que não são a mesma pessoa Ravi e John, fui com certo medo de me frustrar não sei exatamente com o quê: se em ser algo que não me tocasse tanto; que me desse a impressão de ser ele apenas uma farsa com um sobrenome que garante o credibilidade; que fosse tecnicamente perfeito, mas seco de emoção. Sei lá.
Mas, depois do excelente show de Kiko Freitas Trio, os temores foram embora na primeira execução de Ravi e seu trio. Irreparável. Ravi, como os bons virtuoses do jazz, é o próprio equilíbrio entre técnica e coração. O que se ouve em mestres do sax tenor como Dexter Gordon, Wayne Shorter, Coleman Hawkins, Sonny Rollins ou Joe Henderson vê-se claramente nele. Como, de forma exímia, foi seu pai, incomparável tanto pelo motivo óbvio, o de ser outra pessoa, quanto pelo de ser o maior ícone do jazz mundial. Ravi, no entanto, alinha-se a estes mestres que inclui John, dando uma bela continuidade e evolução ao que todos já construíram.
Show lindo e tocante, principalmente nas bem destacadas por Paulo, "For Turiya", tema enlevado e elevado cujo tema é, por si só, cheio de desvelos e assimetrias. Agora imaginem o improviso de Ravi? Espetacular, de tirar do chão. Extasiante. Aliás, este último é o termo que pode ser empregado para o bis do show, quando Ravi e sua maravilhosa banda retornaram para executar uma arrepiante “Giant Steps”. Num compasso mais acelerado e até mais pulsante que a clássica versão de 1959, não só parecia que John Coltrane havia baixado ali, em plena Canoas, como que Wynton Kelly assumira o piano, Jimmy Cobb as baquetas e Paul Chambers o baixo. Ao final, foi interessante ver o público quase sem acreditar no que presenciou demorando em sair da frente do palco mesmo depois de os músicos se despedirem totalmente.
Realmente essa sensação de deleite se manteve, ainda mais para mim e Leocádia, que compartilha comigo a admiração pelos Coltrane pai e, agora, filho. É das coisas mais bonitas ver esse tipo de laço que só a consanguinidade e a relação pai-filho suportam, ainda mais quando esta se expressa em uma arte tão elevada e grandiosa.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Jamelão - "Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues" (1972)





“Eu não sou músico, não sou compositor,
não sou cantor, não sou nada.
Eu sou é boêmio.”
Lupicínio Rodrigues


Há quem ironize que Lupicínio Rodrigues era, como cantor, um grande compositor. O célebre músico gaúcho é, inegavelmente, um dos maiores nomes da história da música brasileira, precursor do chamado samba-canção, antes mesmo de contemporâneos seus como Cartola, Herivelto Martins e Nelson Cavaquinho. É reconhecido nacionalmente – mesmo nunca tendo saído da (até hoje) nada promissora mercadologicamente terra-natal Porto Alegre – e já foi gravado por centenas de intérpretes das mais distintas gerações e vertentes, que vão de Orlando Silva a Elis Regina, de Ângela Maria a João Gilbertode Isaura Garcia a Caetano Velosode Nelson Gonçalves a Arrigo Barnabé. Mas era comum acharem que Lupi não servia para cantar. A voz miúda, a la Mário Reis, dolorida como suas letras, não tinha, principalmente naquele longínquos anos 30, quando surgiu para a música, nada a ver com o, este sim, apreciado vozeirão dos cantores impecáveis e técnicos da Rádio Nacional, a “Globo” da época, primeira era Vargas.

Há controvérsias. Tanto que o histórico “Roteiro de um Boêmio”, álbum com quatro discos de 78 rpm gravado em 1952 por Lupicínio com seu vocal original, daquele jeito mesmo, cool e sutil, é considerado por fãs como o definitivo registro do autor de “Se Acaso Você Chegasse”. Mas o jornalista e compositor Hamilton Chaves, mesmo tentando dar uma força ao amigo, mandou-lhe ver na veracidade: “Tu não é cantor, rapaz. Põe na tua cabeça! Neste país subdesenvolvido, cantor é quem tem voz operística”. O próprio Lupi sabia que estava longe de um Caruso. Considerava-se, antes de tudo, um boêmio – o que, de fato, era acima de qualquer coisa. As paixões, os remorsos, as angústias, as brigas, as bebedeiras, as traições, as desilusões, enfim, tudo o que há de mais intenso e sentimental vivido por ele de bar em bar pelas ruas da cidade servia de substrato para o universo de suas composições. Misto de Lord Byron com Nelson Rodrigues, este dândi do subúrbio compôs, fosse sozinho ou com parceiros de copo e canção (como Alcides Gonçalves, Felisberto Martins e David Nasser), obras-primas do chamado samba “dor-de-cotovelo”, uma magnífica metonímia inventada por ele próprio para classificar seu estilo mais característico.

Porém, como dizia outro célebre sambista, Ataulfo Alves, “a maldade desta gente é uma arte”, e a desconfiança com sua autointerpretação sempre pairou, ainda mais por quem, a estas alturas, já tinha sido imortalizado na voz de Francisco Alves, Cyro Monteiro e uma penca de cantores “oficiais”.

Até que surge alguém para dar ponto final à discussão. Amigo pessoal de Lupicínio desde quando, excursionando pelo Rio Grande do Sul nos anos 50, o conheceu, o ilustre Jamelão se encantou com a obra de Lupi e passou a incluir suas músicas em seu repertório tanto de shows como em discos. Autointitula-se, então, sem o menor zelo, como seu principal intérprete. E tinha razão. Nem a impostação excessiva, nem o minimalismo asséptico, mas, sim, um canto possante com toques da malandragem do morro. A lapidação disso está em “Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues” (Continental, 1972), que traz 12 joias representativas do tesouro que é a obra deste autor, desde as primeiras canções “Meu Pecado” e “Sozinha”, os sucessos radiofônicos “Exemplo” e “Vingança” até clássicos absolutos, como “Nervos de Aço” – aqui, bonita num compasso mais ligeiro que o normal.

Carrancudo e de personalidade forte, Jamelão, antes de tornar-se marca registrada do Carnaval do Rio de Janeiro como o maior puxador de sambas-enredo pela escola Mangueira, desde os anos 60, já era conhecido nas gafieiras como crooner por sua voz encorpada tomada de intensidade e sentimento. E o cancioneiro de Lupicínio fecha totalmente com isso. Acompanhado da excepcional Orquestra Tabajara, uma big-band ao estilo dos grandes grupos de jazz norte-americanos, Jamelão dá um verdadeiro show. Os arranjos, notados com perfeição pelo maestro Severino Araújo, também caem como uma luva, o que não é de se estranhar, uma vez que a melodia lupiciniana, marcadamente escrita em tom menor, carrega com bastante originalidade o arrebatamento sensual do tango e a breguice cult do bolero - além, é claro, da malemolência do samba carioca. Jamelão, por sua vez, solta o gogó a serviço da obra do amigo, um constante flerte entre o vulgar e o sofisticado, entre o coloquialismo e a alta literatura, entre a ironia e o drama. As versões incluídas neste trabalho ganham, assim, a força interpretativa do cantor e o apuro das harmonias, achando a roupagem certa que a música do mulatinho merece.

“Vingança”, de abertura pontuada no naipe de sopros, é notável. “O remorso talvez seja a causa/ Do seu desespero/ Ela deve estar bem consciente/ Do que praticou/ Me fazer passar tanta vergonha/ Com um companheiro/ E a vergonha/ É a herança maior que meu pai me deixou”. Versos de um gênio. A interpretação, que parece sair do âmago de Jamelão, é intensificada pela orquestração, que intercala o andamento suave do piano com os arroubos emocionados da orquestra. “Ela disse-me assim”, a respeito da culpa torturante de um homem pego com as calças na mão pelo marido da amante com ela, é outro destaque do disco: cadenciada, sentida, quase chorosa.

Mais uma história tragicômica é contada em “Um favor”, em que um pobre-diabo pede a quem lhe possa ajudar a encontrar a amada que lhe deu um pé na bunda (“Faça esse mundo acordar/ Para que onde ela esteja/ Saiba que alguém rasteja/ Pedindo pra ela voltar”). O arranjo é especial, principalmente na “deixa” metalinguística da letra ao clamar que músicos e seus instrumentos auxiliem neste chamado desesperado. Claro que a “flauta o trombone e clarim” atenderam. E assim segue em todas as faixas, repletas de dor, angústia e amores não correspondidos como é típico na música de Lupicínio Rodrigues. E Lupicínio Rodrigues cantado por Jamelão, aí mesmo que fica insuperável.

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FAIXAS:

1. Meu recado (Felisberto Martins/ Lupicínio Rodrigues)
2. Homenagem
3. Sozinha
4. Um favor
5. Exemplo
6. Quem há de dizer (Alcides Gonçalves/Lupicínio)
7. Cigano (Martins/Lupicínio)
8. Amigo ciúme (Onofre Pontes/Lupicínio)
9. Torre de babel
10. Nervos de aço
11. Ela disse-me assim
12. Vingança

todas de Lupicínio Rodrigues, exceto indicadas

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Ouça: