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segunda-feira, 22 de novembro de 2021

IV Mostra Sesc de Cinema - Debate com realizadores de “Bago Sujo”, “Laços do Ofício” e “Um Pedal”

 

Novamente convidado para mediar um debate de cinema em nome da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, mesmo com a correria diária, não pude deixar de aceitar mais essa empreitada que a crítica de cinema me oportuniza. Afinal, além de gostar da prática, de envolver cinema, tratava-se da valorosa Mostra Sesc de Cinema - Panorama Rio Grande do Sul, que incentivar a produção nacional independente. Em sua quarta edição, a mostra evidencia o audiovisual que não chega ao circuito comercial de exibição, priorizando a seleção de realizadores brasileiros que abordem temas ligados à pluralidade cultural do país ou que se desdobrem em olhares exteriores que dialoguem com as realidades brasileiras.

O debate para o qual fui convidado, ocorrido dia 9 de novembro, trazia os realizadores dos seguintes curtas-metragens: Giordana Forte, pelo filme “Bago Sujo”; Fausto Prado, por “Laços do Ofício”; e Alexandre Derlan, diretor de “Um Pedal”. Única ficção entre os três títulos, “Bago Sujo” aborda, numa estética e narrativa fragmentadas, o primeiro dia de abstinência de um usuário de crack. Já o filme de Fausto, músico de formação, é um documentário sobre as relações entre professores de música e arte e crianças em situação de vulnerabilidade social e deficientes intelectuais em escolas e instituições das cidades gaúchas de Porto Alegre, Viamão, Gravataí e Canoas. Por fim, “Um Pedal” traz o esportista deficiente físico Nicolas Berghan, que percorre estradas inóspitas, com apenas único pedal de sua inseparável bicicleta narrando suas experiências reais, percepções de mundo, liberdade de escolha e inclusão.

Cartazes de "Bago Sujo" e "Laços de Família": inclusão sob ângulos diferentes

O belo doc "Um Pedal", de Darlan
Muito agradável e fluida a conversa com os três realizadores. O tema da inclusão foi uma baliza. Bem selecionados pela curadoria do festival, visto que bastante complementares, cada filme traz esse aspecto inclusivo por uma ótica diferente. “Bago Sujo”, a dificuldade de inserção do ex-dependente químico na sociedade; “Um Pedal”, a deficiência física não como empecilho, mas do ímpeto de superação de desafios na vida. e “Laços do Ofício”, o quanto a arte é capaz de agregar à vida e à família de pessoas com deficiência intelectual e/ou em vulnerabilidade social.

Interessante ressaltar que, para a seleção dos trabalhos, além dos aspectos técnicos e narrativos, foram levados em consideração elementos sociais, diversidades de linguagens e representatividades de gênero, raça, cor e territórios. Como resultado, a programação contou com realizadores de 10 cidades, três filmes com temáticas indígenas e obras dirigidas por 13 mulheres, 18 homens e duas pessoas não binárias.

Quem quiser conferir como foi esse bate-papo, o vídeo está disponível no site da mostra, a qual agradeço imensamente o convite e a oportunidade.

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debate Mostra Sesc de Cinema -“Bago Sujo”, “Laços do Ofício” e “Um Pedal”


Daniel Rodrigues

sábado, 20 de novembro de 2021

Impávido Colosso - Uma Luta que Nunca Termina



Dia desses, conversando com minha mãe, discutíamos sobre como, ao longo da história do Brasil, o negro, mesmo depois de todo o impio jugo ao qual foi submetido, continuou ainda sendo sufocado, amordaçado, reprimido, amassado, de modo a, mesmo liberto, não fazer parte de uma existência social efetiva. O negro estava livre, vá lá, ok... Mas que ficasse lá no seu canto. Cantar suas músicas de negro? Nem pensar. Adorar aqueles "demônios" esquisitos deles? Isso não é cristão. Suas danças extravagantes? Imagina! E no entanto, embora ainda muito oprimido, amordaçado, debaixo de muita resistência, o negro venceu. "Venceu? Mas como venceu?" Perguntar-me-ão os irmãos de cor. "Somos discriminados, ridicularizados, renegados, prejudicados, preteridos, assassinados e tudo mais de possível que as gentes preconceituosas consigam fazer, e tu vens me dizer que vencemos?". Tá bom..., têm razão: vencer pode ser um tanto exagerado, muito otimista, mas convenhamos que, mesmo goela abaixo, tiveram que nos engolir. As qualidades, as virtudes do negro sempre se sobressaíram, se impuseram, e foi impossível não nos aceitar.

O samba foi marginalizado, era tido como música vulgar, e, no entanto, tornou-se, nada menos que a maior expressão musical tipicamente brasileira e, praticamente, formadora de todas as demais; “eles” criaram o clubinho de elite deles para praticar o esporte inglês que chegava ao Brasil, mas quando perceberam que o criolinho jogava mais que eles, tiveram que deixar o neguinho participar de brincadeira e o convidado indesejado, não só tomou conta, como sedimentou a identidade do esporte e foi grande responsável por sua popularização; o Brasil foi colonizado por portugueses, espanhóis, holandeses, italianos, alemães e, mesmo com as mais vastas possibilidades culinárias, o prato mais popular do país é uma invenção dos negros, feitas praticamente com os restos que lhes davam nas senzalas; a capoeira era proibida, seus praticantes eram hostilizados, presos, mortos e hoje ela é patrimônio cultural nacional. Não teve jeito. Não tinha como conter o negro.


É bem verdade, que a sociedade racista, uma vez vendo-se impotente no que não consegue contestar, mesmo resistente em reconhecer os méritos, concede-nos sua “permissão” apenas parcial para integrar seu clube privado. “Tá bom, a música de vocês é boa, mesmo. Mas então fiquem aí. Vocês podem cantar, tocar e eu até posso gostar das músicas de vocês”; “Vocês correm mais, pulam mais alto, são mais fortes, então podem usar as cores do nosso país. Mas nos tragam medalhas, hein!”; “Vocês jogam muita bola, mesmo, hein! Mas então, tá, a gente deixa vocês jogarem, vocês nos entretêm e, enquanto nos forem úteis (se não falharem), a gente pode até idolatrar alguns de vocês”. Uma espécie de “passe” implícito, de passaporte para o “mundo deles” que só é concedido em determinados campos para aqueles, segundo eles, “diferenciados”, bem colocados ou, como dizem muitos, “negros com alma de branco”.

Mas é insuficiente!

Têm razão, amigos, isso não é vitória.

Embora tratando-se de segmentos de extrema importância dentro da formação da identidade nacional, é insuficiente e limitado dar-se por satisfeito em sermos respeitados basicamente no futebol e na música. Temos o desejo, a vontade e o potencial para nos inserirmos e brilharmos em quaisquer outros segmentos da sociedade mas, durante muito tempo, foi praticamente decretado que o negro só era bom nessas atividades físicas ou em coisas de “vagabundo” porque não teria capacidade para outras atividades.

Nunca deixaram!

O negro saiu da senzala com uma mão na frente e outra atrás sem uma retratação, sem uma compensação e sem qualquer plano de inserção social. Pelo contrário: foi jogado para a margem das cidades e ganhou apenas um belo “dá teu jeito”. Como fazer médicos, advogados, engenheiros, jornalistas assim? Um que outro afortunado teve a oportunidade porque ficou na fazenda do Sinhô, porque era mais clarinho e não sofria tanto preconceito, porque o negócio que abriu deu certo e deu pra juntar um dinheirinho, e assim foi. Mas, de um modo geral, ficamos praticamente um século sem conseguirmos entrar mesmo no clubinho.

Pois mesmo nos empurrando pra baixo, tentando nos manter como mera mão-de-obra, filhos dos filhos dos filhos daqueles escravos conseguiram empregos dignos, conseguiram entrar numa faculdade, conseguiram seus diplomas e hoje, tardiamente vemos mestres, pesquisadores respeitados, juristas, protagonistas de novelas, comentaristas esportivos, políticos, aparecendo cada vez mais e sem dever nada para ninguém. Eles berram quando a negra ancora o telejornal, quando a família negra aparece no comercial, quando o super-herói é negro, mas não tem mimimi. O choro é livre. Nós estamos em todo lugar!

Eles tentam nos atrasar dificultando nosso acesso à educação, fazendo o neguinho trabalhar desde pequeno para não poder ir à escola; contestando e negando, sempre que possível, as cotas, reparação mínima diante de todo atraso que nos causaram; entram nas favelas atirando para acabar com o máximo de indesejáveis que puderem mas não adianta: é irreversível. Nós estamos aí.

Vencer? Ainda não vencemos e tem muita luta pela frente. Mas apesar de todos os golpes, estamos em pé, inteiros, cada vez mais fortes, enquanto o adversário está atordoado, enfraquecido e, claramente, usando métodos sujos para tentar nos derrubar.

Como um Mohamed Ali, levantamos, gigante e impavidamente no nosso córner prontos para mais um round. Que soe o gongo. Estamos prontos.

 



Cly Reis


Texto publicado originalmente
no site Coletiva.net

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

cotidianas #735 - Nada Poderá Detê-lo




foto: D.S. Sanchez
Adu não entendia, absolutamente, o que os símbolos desenhados em seu torso significavam mas tinha plena confiança no velho Mafoh. Embora fosse conhecedor de práticas místicas e dono de métodos estranhos à compreensão comum, chamar aquele homem sagrado de feiticeiro não seria correto. Mafoh era antes um homem sábio com entendimentos de terra e além. Por isso Adu não contestou, quando ao expôr seu plano de fuga da fazenda, que o ancião lhe fizesse uma "proteção", como o próprio ancião definira. Aquela pintura em seu corpo e as palavras mágicas pronunciadas pelo velho Mafoh - rezas tradicionais carregadas com ele, provindas de seu povo, lá da África - tornariam o jovem invisível aos olhos de qualquer um que pretendesse lhe fazer ou causar mal. 
"Eu sinto cheiro de negro", dizia o Capitão do Mato sem, contudo conseguir encontrar qualquer escravo fugitivo à sua volta. Os cães se alvoroçavam, latiam, mas nem sinal da caça. E, no entanto, Adu estava ali, a não mais que cinco metros do grupo de busca. Mafoh lhe dissera que a condição para que a proteção funcionasse era que o jovem acreditasse. Se realmente acreditasse, estaria também acreditando nas tradições, nas origens de seus antepassados, em suas raízes. Adu acreditava! Ele sabia que naquele momento os deuses de seu povo estavam com ele e sua jornada seria iluminada.




Cly Reis




quinta-feira, 18 de novembro de 2021

"Doutor Gama", de Jeferson De (2020)

 

O Dia da Consciência Negra, embora não adotado em todo o Brasil (nem mesmo pela cidade na qual surgiu, Porto Alegre), tem ganhado a cada ano mais reverberação. Oxalá! Se acontecimentos recentes como a morte de repercussões mundiais de George Floyd ou o alarmante assassinato de Júlio César acabam por nos fazer lembrar da necessária e constante vigília contra o apagamento histórico – não raro, caracterizado pelo aniquilamento –, por outro lado, mais e mais a sociedade passa a enxergar esta data e não o 13 de Maio como aquela que, de fato, representa a valorização da cultura afro-brasileira e um avanço do maior espaço do negro em todas as esferas sociais.

Um dos aspectos positivos que esta conscientização gera é o do resgate da ancestralidade. E quando se fala em direito ao povo negro, é impossível não se lembrar no Brasil de uma personalidade tão histórica quanto admirável: Luiz Gama, figura central do filme "Doutor Gama", do diretor paulista Jeferson De. Nascido de ventre livre, o baiano Gama foi, mesmo assim, vendido como escravo aos 10 anos para pagar dívidas de jogo de seu pai, um homem branco. Mesmo escravizado, ele conseguiu se alfabetizar e, assim, conquistou sua liberdade, tornando-se um dos mais respeitados juristas de sua época. Vivido por Cesar Mello na vida adulta e por Angelo Fernandes na adolescência (além do competente Pedro Guilherme, que faz o personagem quando criança), o filme mostra a vida de Gama desde a infância até a conquista de seu primeiro grande caso jurídico, uma verdadeira quebra de paradigmas na mentalidade vigente da época cujo preconceito era ainda protegido por lei. 

Num desses apegamentos que a cultura colonialista tenta nos imputar, Gama por muito tempo foi classificado como “rábula”, ou seja, tanto "advogado pouco culto, incompetente, pilantra" quanto aquele que "exerce a advocacia sem ser qualificado". Errado. O historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha, mostra que esta imagem, propositadamente construída para diminuir a importância de Gama, está totalmente equivocada. E sempre esteve. Lima encontrou diversos (repito: não poucos, mas diversos!) documentos que provam que, já à sua época, Gama – que foi também escritor, jornalista e abolicionista – era creditado, sim, como “advogado”. Isso porque o exercício da advocacia não era restrito apenas aos bacharéis em Direito, mas também àqueles que tivessem alguma provisão, temporária ou definitiva, que reconhecesse a função por notório saber. 

O herói Luiz Gama: que rábula, que nada! Advogado

Não precisa de um profundo entendimento para se constatar que, num país forjado sobre a mentira da democracia racial, os ventos deste apagamento continuem sendo soprados. Recentemente, a tão conceituada editora Companhia das Letras foi motivadora de um episódio lamentável envolvendo a figura do próprio Luiz Gama. A editora decidiu retirar de circulação o livro infantil “Abecê da Liberdade: A História de Luiz Gama, o Menino que Quebrou Correntes com Palavras” depois de uma série de polêmicas na qual a empresa se colocou, deslavadamente, como "desavisada". Isso porque os autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta – brancos, claro –, tiveram a absurda irresponsabilidade (pra não dizer coisa pior) de escrever cenas do pequeno Gama quando criança brincando de “escravos de Jó” em pleno navio negreiro e pulando corda com as correntes... Ora, tenha dó! O próprio filme retrata esta passagem com a devida tristeza e crueldade como de fato ocorreu com Gama e milhares de negros escravizados. Mais uma mostra cabal do racismo estrutural, visto que mascarado de desentendimento, tanto por parte dos autores quanto da editora.

O que dizer, então, dessa sociedade preconceituosa que pretensamente grita aos quatro cantos que é antirracista mas que, justamente por isso – por não sê-lo, por não acreditar no que mesmo diz – acaba por ser exatamente aquilo que era desde o princípio: racista? Diretamente ligado a isso, note-se que "Doutor Gama" avança discursivamente num aspecto de profunda violência e desumanidade da escravocracia, que é a possibilidade de se subjugar, apenas pela cor da pele, alguém que nem mais escravo era - reforçando, pois, que a ideia de escravidão era e é social e não somente política. Este aspecto é o mote do oscarizado "Doze Anos de Escravidão" (de Steve McQueen, 2013) e é impressionante ver que somente agora obras comecem a relembrar tais práticas repugnantes. Porém, enquanto no filme norte-americano o protagonista passa uma vida lutado para sair da condição a qual foi injustamente colocado, em "Doutor Gama" vê-se um passo além: não só trata de um negro que conquistou a liberdade como ajudou outras centenas a também exercerem seus direitos à vida.

O longa brasileiro, por sinal, é muito bem realizado tanto técnica quanto narrativamente. Roteiro na medida certa entre o recorte histórico e a abordagem biográfica; fotografia impecável de Cristiano Conceição constituída sobre o conceito de luz natural de um Brasil de fins de século XIX; trilha deslumbrante do músico baiano Tiganá Santana (que em vários momentos lembra os memoráveis arranjos e composições de Dori Caymmi para televisão e cinema) e, principalmente, as interpretações. Neste aspecto – além da aparição sempre iluminada de Zezé Motta e de um igualmente luminoso Romeu Evaristo – é Cesar Mello quem mais desponta. O papel de Gama é difícil, visto que requer uma construção histórico-fisiológica longínqua e pouco documentada. Mas é ainda mais elogiável quando se considera o tamanho da responsabilidade para atores negros como Mello e Fernandes representá-lo. Aliás, sempre foi assim: tudo o que cabe a um negro fazer que não seja o seu comum papel subalterno carrega o dobro de obrigação para que não se perca a oportunidade nunca tida.

Cineasta negro, De é uma referência para a negritude de alguém capaz de ascender no meio audiovisual ainda tão desigual e racista. Sua produção, desde o longa de estreia "Bróder” (2005), aborda a questão negra em diversos aspectos. Recentemente, De lançou a comédia a la Globo Filmes "Correndo Atrás", com Aílton Graça no papel principal, que embora guarde suas validades, difere drasticamente da qualidade e essencialidade de “Doutor Gama”. Neste ponto, o longa de De acerta em cheio, preservando na força dos diálogos a dificuldade de negros e abolicionistas e, em contrapartida, o desafio dos primeiros impulsos contrários a este tão perverso status quo. As sequências de tribunal são exemplares, uma vez que visivelmente se baseiam nos autos jurídicos para sustentar a dramaticidade proposta.

Juntamente com o sucesso de bilheteria “Marighella”, com Seu Jorge como protagonista, e “Pixinguinha”, também estrelado pelo músico e ator carioca, Gama, com o filme, também passa a ser mais publicitado proximamente como de fato foi. O cinema nacional, assim, começa a recuperar seus personagens negros de uma forma como nunca foram realmente considerados. Afinal, suas importâncias vão muito além de uma obra de cinema, haja vista que têm dimensões sócio-políticas que repercutem até hoje. Ao passo de que Marighella não era um assassino perigoso e que Pixinguinha não foi somente mais um músico de antigamente, Gama merece ser lido nos livros de história pela sua gigantesca contribuição para a sociedade brasileira. Como Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares, dos poucos cinebiografados até então, são eles verdadeiros heróis nacionais que começam a se salvar das forças do apagamento/aniquilamento. Caso de Doutor Gama. Não o rábula, mas o advogado Gama, Vossa Excelência.

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trailer de "Doutor Gama"


Daniel Rodrigues