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terça-feira, 28 de novembro de 2023

“A Guerra dos Botões”, de Yves Robert (1962)


Botões, bolitas e bytes ou A mesma guerra*

“Nunca vamos nos transformar 
em bobocas como os adultos.” 

Não é de se estranhar que crianças ou adolescentes, ao perceberem a divisa que se lhes impõe entre infância/adolescência e a desencantada fase adulta, pensem assim. Um dos filhos da psicanálise, o cinema, invariavelmente, toma-lhe emprestado conceitos teóricos para, a seu modo, evidenciar a condição humana e as mudanças sociais. Pois mesmo que nem sempre dita da boca pra fora, esta frase ecoa através das últimas décadas através de filmes que, historicamente pontuais, revelam sentimentos em comum no comportamento juvenil da idade contemporânea. Terreno onde se encontram e dialogam “A Guerra dos Botões” de Yves Robert (“La Guierre des Boutons”, França, 1962), “Os Meninos da Rua Paulo” e “A Rede Social”.

Se a tal frase é proferida em apenas um dos filmes, o fato de não aparecer nos dois outros é quase detalhe. Aliás, nem precisaria, de tão implícita que está. Afinal, todos os três se compõe do mesmo barro: a construção do sujeito e seus limites de razão e moral.

"A Guerra...": equilíbrio entre realidade e sonho

”A Guerra dos Botões” equilibra realidade e sonho, empunhando aspectos sociais universais através de um olhar sincero e lúdico, mas não menos satírico e crítico. Ao estilo dos realistas fantásticos (além de Vigo, lembra bastante Renoir na sua suave complexidade humanística), conta a história de um grupo de estudantes da interiorana e pobre Longeverne, que, liderados pelo rebelde Lebrac, declaram guerra aos da vizinha e igualmente carente Velrans. A ideia é arrancar todos os botões e confiscar os cintos dos “presos”, para que, mais do que serem castigados pelos pais ao voltarem para casa, percam sua honra ao deixar à mostra as cuecas. Revoltado contra a tirania dos adultos, Lebrac - um símbolo inconsciente da criança que quer ter o direito de ser criança - foge para não ser internado no orfanato. Através de uma temperada fotografia p&b e do clima fantástico proporcionado pela ambientação silvestre Robert mostra como o ser humano, a partir de sua tomada de consciência da realidade, elabora as questões de afeto, orgulho, rejeição e socialização.

Peanuts e Ozu

Não à toa, a ”A Guerra dos Botões” foi premiado com o Jean Vigo de Melhor Filme infanto-juvenil, pois presta uma justa homenagem ao diretor de “Zero de Conduta” (1933) a ponto de parecer-lhe uma obra póstuma. Robert, assim como Vigo, joga sua perspicaz lente sobre as questões da criança numa pequeno universo, ajustando o foco sobre os desajustes sociais, o abismo entre as gerações e os valores decaídos. Seu enquadramento lembra o plano rebaixado das tirinhas Peanuts de Charles Schultz e dos filmes do japonês Yasujiro Ozu, tal é a sintonia que estabelece com a vida das crianças. Os adultos aparecem aos poucos, como “fantasmas”, como uma triste materialização do erro a que aquelas crianças se tornarão no futuro. 

A turma de Charlie Brown e "Filho Único", de Ozu: Ocidente e Oriente na visão das crianças

Feito sete anos depois, sob uma textura de cores oníricas que valoriza a tonalidade natural (como o amarronzado da terra, da madeira e das peles coradas da meninice), o húngaro “Os Meninos da Rua Paulo” (“A pál-utcai fiúk”, dirigido por Zoltán Fábri e inspirado no clássico do escritor Ferenc Molnár) se assemelha bastante a “A Guerra dos Botões” estrutural e formalmente falando. A narrativa, os elementos simbólicos, as atribuições de valores, a dinâmica e a variedade dos enquadramentos, etc. Porém, diferente do primeiro, onde o personagem Lebrec revolta-se contra o opressor sistema da família e da escola, neste, é o pequeno Nemecsek quem paga pela bravura ao desafiar os rivais, acamando-se com pneumonia por causa de um banho gelado e, consequentemente, morrendo.. 

A paisagem inocente de “A Guerra...” é substituída por uma capital Budapeste do final do século XIX de ares bucólicos, uma cidade grande ainda por se tornar grande como aquelas crianças. Os “botões morais”, aqui, se trocam por bolitas de gude – e tão importantes moralmente quanto botões. Se o orfanato antes representava a pena por virar adulo, aqui, passa pela perda do amigo e pelo progresso social que avança ao ser construído sobre o terreno da rua Paulo, palco das divertidas guerrinhas, um moderno e imponente prédio.

Rua Paulo

Pois ambas as obras se unem por um ponto: a necessidade de se inventar convenções de interatividade social. A psicologia infantil julga natural que a criança imite o adulto como um “ensaio para o futuro”. Hoje, no entanto, na era da Internet, jogar gude ou fazer guerrinha na floresta já não é tão interessante às crianças como prática de interação social, e a esta etapa fundamental do que se chama de Psicologia do Desenvolvimento se põe um imenso vazio. A mídia, ditadora de padrões e proto-verdades, ocupa o lugar dos pais em aspectos relevantes da criação, como a elaboração dos valores e a orientação cognitiva. Isso faz com que as crianças/adolescentes pulem etapas, agindo não só cada vez mais igual aos adultos como, também, “amadurecendo” precocemente. 

"Os Meninos...": os conflitos reais entre realidade e sonho

É o caso do jovem Mark Zuckerberg, do bom “A Rede Social” (“The Social Network”, 2010). No filme do talentoso David Fincher, a não-assimilação das frustrações da vida adulta, como o fora da namorada e a rejeição pela “fraternidade” a qual dava tanto valor, inflamaram a necessidade de pertencimento do protagonista, levando este “herói pós-moderno” a criar, em resposta, a sua própria “fraternidade”. Mas não sem pena: cunhar o bilionário Facebook (hoje Meta, agrupando aí o Instagram) rendeu-lhe fama e divisas (ou seria “admiração dos coleguinhas” e “muitas bolitas”?), mas também algo mais grave, típico dos dias atuais: o isolamento –  tal qual num orfanato ou uma cama de enfermo. Mas se os personagens de “A Guerra...” e “Os Meninos...” lograram reconhecimento, por conta de suas condutas pautadas em símbolos comuns ao grupo, a amoralidade despreocupada de Mark, característica da Geração Y, abre espaço para uma nova ética. A razão, nos dias atuais, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli, dá lugar à lógica da “hedonização”, à fragmentação dos sentimentos e emoções no coletivo, e não mais no âmbito pessoal. 

Assim, os três filmes, mesmo produzidos em épocas tão distintas, se conectam por esta necessidade de criação de significados que justifiquem a existência. Junto ao “rito de passagem” que marca a fase inicial da vida para aquilo que se será até a morte brota a insegurança do esvaziamento de sentidos, da perda de algo genuíno, de si mesmo. “Serei, a partir de agora, só mais um ‘boboca’”? “O quão inevitável é esse ciclo”? Como em “Zero de Conduta”, onde as impostas verdades da escola interna oprimiam principalmente as crianças que se opunham àqueles cambaleantes valores do mundo entre-Guerras, a vida moderna coloca, hoje, situações que, embora diferentes em forma, implicam no questionamento de signos semelhantes.

Zero de conduta

Poster do clássico de Vigo
“A Rede Social”, mesmo não se tratando de um conto de crianças, não só traz o tema da necessidade comum de interação afetiva como também se centra na dificuldade de se transpor a barreira infância/fase adulta. A esquizofrênica busca de valores da pós-modernidade ofusca o que o psicólogo infantil Lev Vygotsky chamaria de processo de “mediação” no desenvolvimento do ser humano. Para ele, ao contrário do que pensava Piaget, o desenvolvimento cognitivo dependia das interações com as pessoas e com os instrumentos reais do mundo da criança, como o brinquedo, o computador ou o lápis. Mas se os signos culturais já vêm distorcidos, como os instrumentos (mesmo tão avançados como o computador) serão capazes de desenvolver o indivíduo a um estágio mais elevado de consciência?

Entretanto, mais do que isso, outro fator une ideologicamente essas obras: os limites entre as razões moderna e pós-moderna. Se nos dois filmes mais antigos ainda se preservava uma crença na razão, esta passa, agora, a não ter peso. N’”A Guerra dos Botões” há uma cena que, no meio da batalha na floresta, os dois exércitos se unem para socorrer um coelho com a pata machucada. Naquele momento, todos pararam de guerrear, e se estabeleceu uma fronteira entre real e imaginário. Igualmente, ao perceberem que cometeram um erro ao roubar à força as bolas de gude do pequeno Nemecsek, de “Os meninos...”, os grandalhões e valentões do grupo rival reveem sua conduta e devolveram-nas a seu dono. Em “A Rede Social” tudo isso cai por terra. Mark rouba ideias descaradamente e “puxa o tapete” de amigos sem culpa. E isso, na sua “crença”, é normal. Afinal, para que lhe servem valores de lealdade ou justiça com tanta fortuna e 500 milhões amigos (virtuais)?

Mark, Lebrac, Nemecsek

Mark é astuto como Lebrac e Nemecsek, mas moralmente alheio. Algo dentro de pessoas da sua geração, desta geração, se perdeu, e não é de se estranhar que justo a palavra “amizade” soe ao mesmo tempo tão poderosa e irônica nas redes sociais. Já não se acodem mais coelhos machucados nem se arde em febre até a morte para se preservar dignidade. Para aquele jovem Zuckenberg, não é isso que tem valor. O negócio é se proteger. Encarar as emoções de frente dá margem a se demonstrar fraco. É mais fácil fechar-se num tubo de mensagens curtas e de distâncias físicas seguras; pois, se não, a guarda se abre para que se lhe arranquem os botões e lhe caiam as calças. 

Zuckenberg: astúcia sem tempos de hedonização

Pensando bem, parece, sim, estar se falando de dignidade; só que de outra forma, assim como de reconhecimento, proteção, laços, amor... e talvez “A Rede Social” também seja um filme sobre crianças... e sejamos todos meio bobocas.

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trailer de "A Guerra dos Botões"


Daniel Rodrigues
* texto atualizado, originalmente escrito em 2011 para o blog O Estado das Coisas

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

"Estorvo", de Chico Buarque - Ed. Companhia das Letras (1991)

 

À esq., capa original, de 1991; à dir.,
nova capa da edição comemorativa de 30 anos da obra
Dias atrás li na postagem de uma amiga de redes sociais a pergunta capciosa de quando Chico Buarque ganharia uma indicação para Nobel de Literatura. O comentário vem em um momento bem apropriado, pois, além do lançamento recente de um novo livro, “Anos de Chumbo”, seu primeiro de contos, a trajetória literária do celebrado autor carioca atinge um marco importante em 2021: os 30 anos de “Estorvo”. Embora não seja o primeiro livro de Chico, homem da música mas também das letras desde os anos 60 (sua primeira peça para teatro, “Roda Viva”, data de 1968), este pequeno romance determina-lhe o começo de uma carreira editorial propriamente dita. Tamanha importância, inclusive, justifica-se no relançamento da obra em caprichada edição comemorativa.

Narrado em primeira pessoa, "Estorvo" é a saga de uma caçada de um homem sem rosto a um homem tolhido por sombras e fantasmas. Uma trajetória obsessiva, constantemente no limite entre o sonho e a vigília, pela qual o protagonista se depara com situações e personagens estranhamente familiares. Através da metáfora de um olho mágico, que distorce a imagem humana, engendra projeções de um desespero subjetivo e uma crônica do cotidiano.

Passadas três décadas de dedicação ora aos livros, ora à música, intercalando projetos entre um universo e outro com domínio incomum, é evidente que Chico evoluiu em termos literários de lá para cá. Seja por berço ou por talento próprio, Chico carrega em si o trato com a palavra, a se ver por toda sua obra. A exatidão do emprego dos verbos, o proveito da musicalidade vocálica e o uso preciso das possibilidades gramaticais e sintáticas infinitas do português lhe são inegáveis, seja na música, no teatro ou no cinema. Depois de “Estorvo”, entre seis discos novos de estúdio, escreveu o mesmo número de obras, entre as quais “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003) e “Leite Derramado” (2009), esta última, uma obra-prima da literatura brasileira do século XXI. Como prêmios, o próprio “Estorvo” levou Jabuti em 1992, feito repetido por “Leite Derramado”, em 2010. Em 2019, pouco antes de lançar “Essa Gente”, nova consagração: o Prêmio Camões, maior reconhecimento dado a um escritor em língua portuguesa.  

Mas o que “Estorvo” trouxe a este exitoso caminho de Chico pelas palavras escritas? A começar que, se houve evolução em seu estilo, muito já estava presente neste primeiro romance. A prosódia machadiana, farta de elementos visuais e psicológicos, e o ritmo e construção narrativos muito bem armados (não raro, de pegada musical) estão ali muito mais conscientes do que em “Fazenda Modelo”, novela escrita nos anos 70, esta sim, o primeiro impulso estritamente literário do artista sem que houvesse alguma relação com o teatro. Outra característica de “Estorvo” amplamente desenvolvida nas obras subsequentes, é o olhar social crítico e o universo imaginário, que coloca o leitor em uma fronteira interessante entre o surrealismo e a vida real. A isso soma-se, ainda, outra peculiaridade da escrita do autor de “Vai Passar”, que é o humor – por vezes, ácido dada a ocasião em que se lhe usa –, o que ajuda tanto a quebrar o estranhamento para com surreal quanto, em igual tamanho, condicionar o leitor à proposta narrativa.

Este trecho de “Estorvo” denota bem esta composição formal muito própria de Chico:

“O porteiro quer porque quer carregar a mala, quer correr para me abrir o elevador, quer me chamar de patrãozinho e diz que o bom filho à casa torna. Negro quase azul, embora perdendo o lustre ultimamente, já tinha a cabeça branca trinta anos atrás. Usa sempre o mesmo colete listradinho, com que fica parecendo escrevo de cinema. Anda num passo miúdo, sofre de artrose, e vive contente da vida. Certa vez comprou um rádio e deu para escutar programas de variedades, desses em que as pessoas falam de todos os assuntos com eco na voz. O aparelhinho era potente, irradiava do hall para o poço do elevador, e daí para o prédio inteiro. Uma noite meu pai foi me buscar na rua, e já desceu impaciente, porque quando chegava em casa queria ver todo mundo lá dentro. "Qualquer dia eu entro e passo o ferrolho na porta!" Arrastou-me de volta pelo pescoço, cruzando o hall pela terceira vez seguida, com o locutor lendo o horóscopo, meu pai mandou o porteiro desligar aquela porcaria. E disse que nunca viu empregado ligar para astrologia, ainda por cima crioulo, que nem signo tem. O porteiro achou aquilo coisa mais engraçada. Vendeu o rádio e passou meses rindo muito e repetindo: "crioulo não tem signo, crioulo não tem signo."

“Estorvo” também tem a importância de ser mais uma obra de Chico levada ao cinema em anos depois de "Ópera do Malandro" e "Pra Viver um Grande Amor" na ousada versão do amigo Ruy Guerra, de 1998, movimento que ocorreria posteriormente com “Benjamim” (Monique Gardenberg, 2003) e “Budapeste” (Walter Carvalho, 2009) e, em certa medida, “O Irmão Alemão” (2014), cujo elemento central é antecipado no documentário “Chico – Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr. (2013).

filme "Estorvo", de Ruy Guerra (1998)


É natural que Chico tenha aperfeiçoado sua forma literária, assim como, noutro âmbito, ocorrera em sua música. Por esta ótica, “Estorvo” é quase como serviu-lhe a trilogia “Chico Buarque de Hollanda”, gravada por ele entre 1966 e 1968, fundamental para erigir, com maturidade e experiência, os grandes álbuns que legou à discografia nacional a partir de “Construção”, de 1971. Trazendo para a literatura, sem o passo inicial de “Estorvo” não teria este chegado ao prestígio que hoje goza não fosse este livro, que o pôs definitivamente na lida da escrita. Quem sabe, então, agora, um Nobel? Considerando a relativização que os prêmios e instituições literários no mundo todo vem fazendo após a Bob Dylan tornar-se Nobel de Literatura em 2016, abrindo espaço para "não-literatos" mais fortemente ligados à música, por que não pensar num segundo autor de língua portuguesa depois de Saramago? Chico, com mais merecimento do que muitos outros, capacita-se totalmente.


Daniel Rodrigues

sábado, 18 de setembro de 2021

cotidianas #728 - O Ginógrafo *



" (...) Eu era um jovem louro e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa. Ao ouvir cantar Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu para ter ciúme, deu para me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora para Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa. Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava para escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda a concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saíam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu já sorvera, me fez beber da água com que havia lavado sua blusa. (...)"



trecho do livro "Budapeste"
de Chico Buarque de Hollanda
* nome do livro que o personagem José Costa escreve dentro do romance

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

"Essa Gente", de Chico Buarque, ed. Companhia das Letras (2019)



"Essa Gente", último trabalho literário de Chico Buarque, não chega a ser uma decepção, mas passa longe das melhores expectativas que eu pudesse ter. Se a irregularidade de "O Irmão Alemão" podia ser relevada pelo caráter autobiográfico do romance e alguma possível dificuldade de conciliar as características ficcionais com as realísticas, aliadas a um compromisso com os fatos ocorridos e sua cronologia, somados ainda a uma eventual carga emocional que o relato pudesse carregar, no novo romance não há tantos atenuantes para uma obra tão simplória. Chico escreve bem, é claro, o livro não é um lixo, mas em "Essa Gente" parece excessivamente relaxado e quase descompromissado com o produto final. O livro concentra suas atenções na vida do personagem Duarte, um escritor que alcançara sucesso com um de seus romances mas que no momento vive uma crise criativa, sendo constantemente cobrado pelo editor para concluir seu prometido novo trabalho. Em meio a isso convive com questões mal-resolvidas com as ex-esposas, tenta uma aproximação com o filho adolescente, vai sobrevivendo do jeito que pode às dificuldades financeiras, conhece pessoas em suas caminhadas pelo Leblon e idas à praia e vivencia situções cotidianas, que vão lhe servindo de material para a construção do livro que vai se escrevendo e se confundindo com sua prórpia vida ao mesmo tempo que vamos acompanhando o passar de seus dias, num relato em forma de diário. Embora Duarte seja o protagonista, "Essa Gente" é mais sobre todo o entorno do personagem, todo o contexto, do que exatamente sobre ele mesmo. A crise econômica, política, social e moral do país; a natureza das pessoas que o cercam; as distorções sociais com a dura realidade do brasileiro comum e os privilégios das classes altas... e ele, Duarte, como que vivendo entre dois mundos, em meio a isso tudo, por uma lado ainda desfrutando do prestígio de seu romance de sucesso, de um sobrenome de respeito, da sombra de uma antiga condição social, e por outro, se equilibrando na corda bamba com para pagar as contas, para viver, longe de viver seus melhores momentos como escritor e sentindo-se mais à vontade com o pessoal da favela do que com os da alta-roda carioca.
No fim das contas, embora não seja ruim e tenha lá seus méritos, a gente lê "Essa Gente" e sai com aquela sensação de "Tá bom, né...", mas, no íntimo, lá no fundo querendo mais. E a gente quer mais porque sabe que dali sai mais. É que Chico meio que nos deixou mal acostumados. Depois da boa estreia com "Estorvo", aquela crescente empolgante com "Benjamim", "Budapeste" e "Leite Derramado", nos fez esperar sempre por coisas maravilhosas e às vezes vem coisas... normais. Coisas que parecem ter saído de um escritor comum. O problema é que nós sabemos que não é.


Cly Reis

terça-feira, 19 de setembro de 2017

As minhas músicas preferidas de Chico Buarque (e as deles também)

Chico Paratodos os gostos

Por ocasião do recente lançamento do disco novo de Chico Buarque, “Caravanas” – o qual ainda não escutei integralmente, mas tudo que ouvi me agradou bastante – a Ilustrada da Folha de S. Paulo publicou uma matéria interessantíssima trazendo uma enquete com 40 personalidades afins com o músico e escritor, que fizeram, cada um, a seleção de suas três canções preferidas dele. Pronto, tocou em duas coisas que adoro: Chico Buarque e listas.

Bem abrangente, a publicação da Folha traz, entre os votantes, pessoas diretamente ligadas ao artista, como a irmã Miúcha, o genro Carlinhos Brown e a companheira de estrada Gal Costa, mas também nomes bem distintos, como o carnavalesco Alexandre Louzada, autor do enredo "Chico Buarque da Mangueira", com o qual a escola foi campeã em 1998; Adelia Bezerra de Meneses, autora dos livros "Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque" e "Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque"; e o cineasta Bruno Barreto, diretor de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), que tem na trilha a inesquecível “O Que Será?”.

"Construção": a
campeã
Das escolhidas, várias se repetem de um votante para outro, mostrando o quanto são temas que realmente arrebatam os admiradores de Chico. Caso de “Construção”, a campeã em menções, 9 no total, “O Que Será” (8), “As Vitrines” (6), “Roda Viva” (5) e outras, como “Vai Passar” (“Mais atual do que nunca”, segundo o diretor de teatro João Falcão), “Futuros Amantes”, “O Meu Guri” e “Todo o Sentimento”.

É de se destacar que não apenas os clássicos consagrados pelo tempo entraram na seleção. Aparecem também obras das novas safras de Chico, como “Sinhá” (do seu penúltimo álbum, “Chico”, de 2011, parceria com João Bosco vencedora do Prêmio Tim de Música do Ano) e as recentes “As Caravanas” e "Tua Cantiga" – esta última, entre as preferidas de Zé Celso Martinez Corrêa e Miúcha.

Nessa linha, fico feliz (até por não tê-las conseguido incluir entre as minhas) em ver citados temas mais "escondidos" do cancioneiro de Chico, ou seja, aquelas músicas que não são necessariamente as mais populares e que, uma vez escolhidas, denotam um profundo apreço por parte de seu eleitor. Dentre estas, "Meio Dia Meia Lua", "Uma Canção Desnaturada", "Mil Perdões", "Quando o Carnaval Chegar" e "O Futebol". Senti falta, entretanto, de "Samba do Grande Amor" e "João e Maria", comumente queridinhas dos fãs. Porém, como se sabe, trata-se de uma obra gigantesca e qualificadíssima, por isso ausências como estas são mais do que justificáveis.

Então, vão aqui as listas das eleitas de cada participante e, claro, a minha também. Missão difícil, quase impossível. Mas como eu mesmo escrevo esta matéria, dou-me, ao menos, à liberdade de escolher não apenas três, mas 10 faixas. Eu posso.


A MINHA LISTA:
1 - “Construção” (em “Construção”, 1971)
2 - “A Bela e a Fera” (com Edu Lobo, em “O Grande Circo Místico”, por Tim Maia, 1982)
3 - “Futuros Amantes” (em “Paratodos”, 1992)
4 - “O Cio da Terra” (com Milton Nascimento, em “Chico & Milton”, 1977)
5 - “Cotidiano” (em “Construção”, 1971)
6 - “Meu Caro Amigo” (com Francis Hime, em “Meus Caros Amigos”, 1976)
7 - “O Meu Guri” (em“Almanaque”, 1981)
8 - “Estação Derradeira” (de “Francisco”, 1987)
9 - “Vida” (em “Vida”, 1980)
10 - "Valsinha" (com Vinícius de Moraes, em "Construção"), "Rosa dos Ventos" (em "Chico Buarque de Hollanda nº 4", 1970) e "Amando sobre os Jornais" (em "Mel", por Maria Bethânia, 1979)


.....................................

ALEXANDRE LOUZADA
Carnavalesco
[1] "Carolina" (1967) 
[2] "Quem te Viu, Quem te Vê" (1966) 
[3] "Cálice" (com Gilberto Gil - 1973) 

ADELIA BEZERRA DE MENESES
Professora da USP
[1] "Cala a Boca, Bárbara" (com Ruy Guerra - 1972/73) 
[2] "Todo o Sentimento" (com Cristóvão Bastos - 1987) 
[3] "O Que Será" (1976) e "Construção" (1971) 

BETH CARVALHO
Gravou "O Meu Guri" e inúmeras canções do compositor
[1] "Apesar de Você" (1970)
[2] "O Meu Guri" (1981) 
[3] "Sinhá" (com João Bosco - 2010)

BIBI FERREIRA
Atriz da primeira montagem de "Gota d'Água" (1975)
[1] "Gota d'Água" (1975)
[2] "Basta Um Dia" (1975)
[3] "Bem Querer" (1975)

BRUNO BARRETO
Cineasta, dirigiu, além de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), episódios de "Amor em Quatro Atos" (2011), baseada em canções de Chico 
[1] "O que Será"
[2] "As Vitrines" (1981) 
[3] "Folhetim" (1977/78) 

CACÁ DIEGUES
Cineasta, encomendou a Chico canções para "Quando o Carnaval Chegar" (1972; aqui, o cantor também atua), "Joanna Francesa" (1973) e "Bye Bye, Brasil" (1980), entre outros
[1] "Morro Dois Irmãos" (1989)
[2] "Joana Francesa" (1973) 
[3] "A Banda" (1966) 

CADÃO VOLPATO
Jornalista e autor de conto inspirado em música de Chico para a antologia "Essa História Está Diferente" (Companhia das Letras)
[1] "Flor da Idade" (1973)
[2] "Quando o Carnaval Chegar" (1972) 
[3] "Joana Francesa" 

CARLINHOS BROWN
Cantor e pai de dois netos de Chico
[1] "Trocando em Miúdos" (com Francis Hime - 1978)
[2] "As Vitrines"
[3] "Olhos nos Olhos" (1976)

CAROLA SAAVEDRA
Escritora, assinou conto para o livro "Essa História Está Diferente"
[1] "Mil Perdões" (1983) 
[2] "Construção" 
[3] "Roda Viva" (1967) 

CHARLES MÖELLER
Diretor de "Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos" (2014) e "Ópera do Malandro" (2003)
[1] "O Que Será" - A primeira ("Abertura")
[2] "Mil Perdões" 
[3] "Bye Bye, Brasil" (com Roberto Menescal - 1979)

CRIOLO
Rapper, compôs nova letra para "Cálice" e foi elogiado por Chico
[1] "O Que Será" 
[2] "Cálice" 
[3] "Construção" 

DIOGO NOGUEIRA
Gravou com Chico "Sou Eu"
[1] "Roda Viva"
[2] "Homenagem ao Malandro" (1977/78)
[3] "Sou Eu" (com Ivan Lins - 2009)

ELBA RAMALHO
Participou da primeira montagem da "Ópera do Malandro" (1978)
[1] "O Meu Amor" (1977/78) 
[2] "Todo o Sentimento" 
[3] "As Vitrines”

ELIFAS ANDREATO
Ilustrador de discos de Chico como "Ópera do Malandro" (1979) e "Almanaque" (1981)
[1] "Sobre Todas as Coisas" (com Edu Lobo - 1982) 
[2] "Tempo e Artista" (1993) 
[3] "Todo o Sentimento" 

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Diretor de Redação da "piauí" e autor de "Folha Explica Chico Buarque" (Publifolha, 2004)
[1] "Beatriz" (com Edu Lobo - 1982) 
[2] "Pelas Tabelas" (1984)
[3] "O Futebol" (1989) 

GABRIEL VILLELA
Diretor de "A Ópera do Malandro" (2000), "Os Saltimbancos" (2001) e "Gota d'Água" (2001)
[1] "Uma Canção Desnaturada" (1979)
[2] "O Meu Guri" 
[3] "Brejo da Cruz" (1984) 

GAL COSTA
Intérprete de "Folhetim", dedicou "Mina d'Água do Meu Canto" (1995) à obra de Chico e de Caetano
[1] "Folhetim" 
[2] "Desalento" (com Vinicius de Moraes, 1970) 
[3] "As Vitrines" 

GEORGETTE FADEL
Atriz da montagem "Gota d'Água - Breviário" (2006)
[1] "Valsa brasileira" (com Edu Lobo - 1987-88)
[2] "Gota d'Água" 
[3] "Bárbara" (com Ruy Guerra - 1972-73) e "Roda Viva" 

HELOISA STARLING
Professora da UFMG e autora de "Uma Pátria Paratodos - Chico Buarque e as Raízes do Brasil" (Língua Geral)
[1] "Construção"
[2] "Futuros Amantes" (1993) 
[3] "Sinhá" 

HUMBERTO WERNECK
Jornalista, autor da reportagem biográfica de "Tantas Palavras" (Companhia das Letras)
[1] "Futuros Amantes" 
[2] "As Vitrines" 
[3] "Vai Passar" (com Francis Hime - 1984) 

JOÃO FALCÃO
Diretor de "Cambaio" (2001) e "Ópera do Malandro" (2014)
[1] "Futuros Amantes" 
[2] "Leve" (com Carlinhos Vergueiro - 1997) 
[3] "Vai Passar" - Mais atual do que nunca

JOÃO FONSECA
Diretor de "Gota d'Água" (2007)
[1] "O Que Será" 
[2] "Construção" 
[3] "Beatriz" 

LAILA GARIN
Atriz de "Gota d'Água [A Seco]" (2016)
[1] "As Vitrines"
[2] "Uma Palavra" (1989) 
[3] "Uma Canção Desnaturada"

LEILA PINHEIRO
Gravou com Chico "Renata Maria" e participou de álbuns dele como "Dança da Meia-Lua" (1988)
[1] "Futuros Amantes" 
[2] "Valsa Brasileira" 
[3] "Retrato em Branco e Preto" (com Tom Jobim, 1968) 

MIÚCHA
Cantora e irmã de Chico
[1] "Maninha" (1977) 
[2] "Tua Cantiga" (com Cristóvão Bastos, 2017) 
[3] "As Caravanas" (2017) 

MÔNICA SALMASO
Gravou com Chico "Imagina", além do disco "Noites de Gala, Samba na Rua" (2007), todo dedicado à obra dele
[1] "Beatriz"
[2] "Construção"
[3] "Sinhá" - Encontro arrebatador de mestres sobre a história do Brasil

MONIQUE GARDENBERG
Diretora do filme "Benjamim" (2004), adaptado do livro homônimo de Chico
[1] "Apesar de Você"
[2] "Joana Francesa" 
[3] "A Rita" (1965) 

NANA CAYMMI
Gravou com Chico "Até Pensei" e participou de projetos dele, como a trilha de "O Corsário do Rei" (1985)
[1] "Até Pensei" (1968)
[2] "O Que Será"

[3] "Gota d'Água"

NEY MATOGROSSO
Gravou o disco "Um Brasileiro" (1996), dedicado à obra de Chico
[1] "Construção" 
[2] "Almanaque" (1981) 
[3] "Tatuagem" (com Ruy Guerra, 1972/73) 

OLIVIA BYINGTON
Gravou diversas canções de Chico e participou de trabalhos dele, como a trilha de "Para Viver um Grande Amor" (1983)
[1] "Eu te Amo" (com Tom Jobim - 1980) 
[2] "Tatuagem"  
[3] "Apesar de Você" 

OSWALDO MONTENEGRO
Gravou um disco em torno da obra de Chico ("Seu Francisco", 1993)
[1] "Construção"
[2] "Todo o Sentimento" 
[3] "Roda Viva" 

RAFAEL GOMES
Diretor de "Gota d'Água [A Seco]" (2016)
[1] "Você Vai Me Seguir" (com Ruy Guerra - 1972/73) 
[2] "A Voz do Dono e o Dono da Voz" (1981) 
[3] "Meio Dia Meia Lua (na Ilha de Lia, no Barco de Rosa)" [com Edu Lobo, 1987/88] 

REGINA ZAPPA
Autora de "Chico Buarque para Todos" (Ímã Editorial) e "Chico Buarque - Cidade Submersa" (Casa da Palavra), entre outros
[1] "Construção"
[2] "Joana Francesa" 
[3] "O Meu Guri" 

RICARDO CALIL
Jornalista e codiretor do documentário "Uma Noite em 67", que mostra o Festival de MPB em que Chico apresentou "Roda Viva" com o MPB 4
[1] "Construção" 
[2] "Olhos nos Olhos" 
[3] "Cotidiano" (1971) 

SYLVIA CYNTRÃO
Professora da UnB e autora de "Chico Buarque, Sinal Aberto!" (7Letras)
[1] "O Que Será" 
[2] "Roda Viva" 
[3] "Sem Fantasia" (1967) 

TADEU JUNGLE
Roteirista e diretor de episódio da série "Amor em Quatro Atos"
[1] "Geni e o Zepelim" (1977/78) 
[2] "Sem Açúcar" (1975) 
[3] "Todo o Sentimento" 

VIVIAN FREITAS
Fundadora e vocalista do bloco Mulheres de Chico, dedicado à obra buarquiana
[1] "O Que Será (À Flor da Terra)" 
[2] "Roda Viva" 
[3] "Geni e o Zepelim" 

WALTER CARVALHO
Cineasta e fotógrafo, diretor de "Budapeste" (2009), baseado no livro homônimo de Chico
[1] "A Banda" 
[2] "Apesar de Você" 
[3] "Feijoada Completa" (1977)

ZÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
Diretor da montagem original de "Roda Viva" (1967)
[1] "Sem Fantasia”
[2] "O Meu Amor”
[3] "Tua Cantiga" 

ZIZI POSSI
Intérprete de "Pedaço de Mim", está montando show dedicado às parcerias de Chico com Edu Lobo
[1] "Cantiga de Acordar" (com Edu Lobo, 2001)
[2] "Beatriz"
[3] "O Circo Místico" (com Edu Lobo, 1982)


por Daniel Rodrigues