Daniel Rodrigues, meu irmão e parceiro de blog, acaba de publicar seu primeiro livro solo de contos. Uma grande conquista pessoal, sem dúvida que merece ser remontada desde sua origem, daquele guri que desde pequeno já inventava histórias, criando pequenos "filmes" com seus bonequinhos de forte-apache. Soldadinhos e índios de plástico, playmobil, super-heróis, podiam assumir qualquer identidade, personalidade, personagem, conforme sua imaginação ditasse. Carrinhos podiam ser naves espaciais, eletrodomésticos podiam ser monstros, o sofá um castelo. Essa criatividade, manifesta desde a infância, aliada a um posterior gosto por cinema, pelas diferentes possibilidades de formas de se contar uma história, um senso de observação aguçado, um gosto pela língua, pela palavra escrita, eram a pólvora para que em algum momento essas criações saíssem da cabeça e tomassem forma. Acredito que o blog tenha sido o fogo que acendera o rastilho. Aquele espaço que eu criara e que abrira para que expuséssemos o que tivéssemos de mais criativo, era o canal no qual ambos depositávamos uma vasta produção, não somente de contos, como também de resenhas, crônicas e poesias.
A experiência com o Clyblog, a quantidade produzida e a notada qualidade que daquele despretensioso material, o encorajara a que se aventurasse em seletivas de contos, nas quais textos de escritores de todo o país eram selecionados para integrar coletâneas temáticas promovidas por editoras independentes. A qualidade dos contos era, de fato, inequívoca, de modo que seus trabalhos literários passaram a ser escolhidos com frequência para integrar diversas coletâneas às quais se candidatava. Algumas vezes somente ele se inscreveu, em algumas apenas eu, em algumas eu entrei, em outras somente ele, mas em duas ocasiões tivemos a felicidade de integrarmos a mesma antologia, "Conte Uma Canção vol.2" e "Meia-Noite: Contos da Escuridão". Se já era algo muito legal os irmãos colocarem suas criações literárias em publicações conjuntas, eis que um deles, agora, publica seu livro solo.
Daniel que, a bem da verdade, já lançara, um livro de sua autoria exclusiva, o premiado "Anarquia na Passarela", sobre moda e comportamento, tem desta vez a possibilidade de mostrar todo seu talento criativo e narrativo com o eclético "Chapa Quente", reunião de cinco contos que confirmam toda sua facilidade de transitar entre formatos, temas e estilos.
Entre criminosos de um morro no Rio, vizinhos que mal se conhecem, internos em um conservatório, Daniel nos entrega histórias de grande sensibilidade humana, cada uma a seu modo, fruto de um atento e constante exame do que o rodeia.
"Chapa Quente" é bem construído, é versátil, faz com que o leitor queira descobrir o que virá depois, e, para sua surpresa, ele encontrará algo totalmente diferente.
Elemento fundamental na formação de Daniel, inclusive como escritor, a música está sempre presente em "Chapa Quente", seja na camiseta de uma banda pela qual desconhecidos se identificam, seja numa cantoria indígena no fundo de um estábulo, seja no toque de um celular na barriga de um sequestrado. O livro até mesmo se aproxima da estrutura de um álbum musical, pensado faixa a faixa. Embora conheça bem sua musicalidade e conheça bem suas referências, não tenho certeza se Daniel pensou o livro nessa concepção, mas se o fez, nada mais apropriado para abrir a obra do que um conto que chama-se "Abrindo-se", belíssimo conto que retrata um pouco dessa loucura que é viver nas cidades, nesses "caixotes" coletivos, estar cercado de tanta gente e não conhecer quase ninguém, sendo que às vezes pessoas que valem a pena conhecer estão tão perto. "Abrindo-se" é sobre afinidades, sensibilidade, fragilidade e força. A menção ao músico, maestro e arranjador, Philip Glass, na história que aproxima um aspirante a músico e uma jovem que tenta reencontrar seu rumo, sugere que esse início de álbum, ou melhor de livro, seja um daqueles art-rock com o perfeito equilíbrio entre o pop e o erudito.
Como em muitos grandes discos que começam com uma abertura grandiosa, a faixa que dá nome à obra vem logo em seguida. "Chapa Quente", conto que alterna a narração formal à linguagem coloquial e vulgar, no qual bandidos se refugiam num morro com um refém logo após uma fuga, é tenso e muito bem conduzido pelo autor que desenha o perfil dos integrantes da gangue enquanto o rumo que o líder pretende dar à situação depois daquela breve parada em segurança vai sendo traçado. Se a primeira é um pop-rock sofisticado, "Chapa Quente" é "batidão" do morro, "...sub-uzi equipadinha com cartucho musical de contrabando militar da novidade cultural da garotada favelada carregando sub-uzi equipadinha com cartucho musical de batucada digital", como diria Fausto Fawcett.
Os sentidos aguçados de um fazendeiro no interior do Wyoming, no pequeno faroeste "Tocaia", intrigado com uma suposta m0ovimentação vinda de seu estábulo, tem tons de mistério, delírio e fantasia. Um folk psicodélico ao estilo Neil Young cheio de paisagens campeiras, sonhos malucos, reflexos distorcidos, danças rituais, espíritos indígenas e cavalos ao luar.
"Os Amantes do Tempo" traz uma situação que quem é do rock convive muitas vezes que é ver alguém com uma camiseta de determinada banda, e ter vontade de falar com aquela pessoa, especialmente grupos alternativos, bem desconhecidos, que fazem com que a gente pense "não sou a única pessoa no mundo a gostar disso!". Aqui, Daniel, habilidosamente desenvolve a história para além do óbvio da mera identificação com o usuário da camiseta, fazendo com que ela transcenda o material, o palpável, presenteando o leitor (e o protagonista) com um final delicioso. Dentro do meu imaginado conceito "livro-álbum", "Os Amantes do Tempo" seria um noise-rock indie daqueles cheio de nuances e camadas, mas pela doçura, pela perspectiva romântica, não seria nada tão hermético e experimental quanto o som do Hash Jar Tempo, banda de papel central no conto.
Se fosse um LP, o conto "O orfão do orfeão e uma noite transfigurada" seria aquela faixa que ocupa um lado inteiro do disco. Conto em cinco partes que gira em torno de compositores de épocas diferentes e um suposto acorde "maldito" que, criado por um aluno de um antigo conservatório na Alemanha, no século XVIII, sobrevive através dos tempos e será finalmente executado num concerto em Viena, dois séculos depois. Devo admitir que, embora muito bem fundamentado, estudado, trabalhado, considero o conto um tanto desgastante e arrastado em determinados momentos, com excessiva atenção e detalhamento da tal nota "Diabólica". Mas como muitas canções longas que finalizam grandes álbuns e tem suas variações, "O orfão..." recupera o fôlego para explodir um desfecho anárquico de catarse, ódio, vaias, aplausos, confusão, num teatro lotado, e logo serenar, reduzindo numa espécie de fade-out em loop, que sugere que aquilo tudo aquilo, o acorde, a herança, a música, a arte, nada acaba ali.
E assim esperamos! que não fique por aí. Que "Chapa Quente" seja só o começo desse brilhante voo de Daniel Rodrigues e que venham por aí mais e mais dessas excitantes experiências literário-musicais. Pouse a agulha sobre o papel e ouça o livro.
Cly Reis