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segunda-feira, 3 de abril de 2023

Ryuichi Sakamoto - "Beauty" (1989)

 

"O mundo dá adeus comovido a um dos seus maiores músicos."
Caetano Veloso

“O que eu quero fazer agora é música livre das restrições do tempo.”
Ryuichi Sakamoto

Como pode a gente se apegar a alguém que nunca se viu pessoalmente – nem sequer através da distância plateia/palco como se dá a artistas a que se assiste – e que está a quilômetros de ti, noutro país? Neste caso, não somente noutro país, mas ainda mais longe, noutro continente, no outro lado do mundo. No Japão. Ryuichi Sakamoto era, é, como um parente sanguíneo na minha casa. Ele é seguidamente convidado a entrar, sentar-se ao sofá, estender-se na cama, a cozinhar ouvindo música. Sempre aceitou os convites com a gratidão e a sapiência calma dos orientais. Embora toda esta intimidade, obviamente, o parentesco não existe. Nem sequer, como abri dizendo, conheci-o pessoalmente quando em vida - quanto menos conhecemo-nos, de ele e eu reconhecerem-se mutuamente como fazem os próximos. Eu, brasileiro fruto da África e da Europa. Ele, japonês, filho de dinastias orientais longevas.

Então, como se explica tamanha familiaridade, tamanha cumplicidade? Bastam poucas audições de sua grandiosa e universal música para se entender. Afora a proximidade dele com a música daqui do Brasil, a qual não apenas admirava como atuava a se ver pelas parcerias com Caetano Veloso, Arto Lindsay, Marisa Monte, Jacques Morelembaum e outros, a obra de Sakamoto, mesmo as mais identificavelmente orientais, pertencem ao Planeta. Até mesmo quando diversas vezes usou os elementos folclóricos típicos do Japão em sua música, Sakamoto o fez à sua maneira: abarcante, cosmopolita, conectada, democrática, inclusiva. Soava japonês, mas africano, americano, indígena, nórdico. Soava a todos os povos. 

Sakamoto, de fato, são muitos. O Sakamoto do final dos anos 70, que ajudou a cunhar o synth pop e a new wave com a precursora Yellow Magic Orchestra e que tanto inspirou grupos do Ocidente como Cabaret Voltaire, Human Leaugue, New Order, Depeche Mode. O Sakamoto maestro, que regeu a Filarmônica de Tóquio. O Sakamoto dono de uma das discografias mais ecléticas e diversas da música pop, com trabalhos que vão desde o experimental à bossa nova, passando pela eletrônica, o erudito e a trilhas sonoras. O Sakamoto instrumentista, colaborador de obras marcantes do pop-rock, como da Public Image Ltd., David Sylvian, Thomas Dolby e Towa Tei. O Sakamoto que engendrava trabalhos multiplataformas, que cruzavam música, artes visuais e performance. 

"Beauty", seu oitavo disco solo, de 1989, é, afora a própria nomenclatura, um resumo de uma concepção de mundo múltipla, pois humanista e libertária. Gente de todas as nacionalidades tocam em suas 11 faixas. Suíça, Senegal, Brasil, Inglaterra, Japão, Espanha, Jamaica, Índia, Estados Unidos, Burkina Faso, Canadá, Coréia... Sakamoto realizou, com a naturalidade de um mestre sensei, a conjunção difícil da world music, aventada por alguns, mas nem sempre acessível e palatável. "Beauty" aprofunda a experiência lançada em “Neo Geo”, seu álbum anterior, convidando para este passeio sonoro músicos da mais alta qualidade e diferentes vertentes, como o icônico beach boy Brian Wilson, o veterano “The Band” Robbie Robbertson, a poesia ancestral de Youssou N'Dour, os percussionistas africanos Paco Yé, Seidou "Baba" Outtara e Sibiri Outtara, os jazzistas Mark Johnson e Eddie Martinez e mais uma turba de conterrâneos arraigados na música tradicional oriental. 

Do Brasil, especialmente, Arto toca guitarra, canta e coassina com ele cinco faixas, entre elas as tocantes “A Pile Of Time”, com o som característico do gayageum coreano; “Rose”, com percussões de ninguém menos que Naná Vasconcelos, e a linda “Amore”, que além da sonoridade arábica do shekere e da batida especial do talking drum, tem contracantos de N'Dour sobre os simples versos cantados pelo próprio Sakamoto: “Good morning/ Good evening/ Where are you?” De arrepiar.

Os encantos não param por aí. O craque Robert Wyatt empresta sua dolorida voz para Sakamoto versar Rolling Stones em "We Love You", que tem ainda as contribuições do congolês Dally Kimoko na guitarra, do britânico Pino Palladino no baixo, do porto-riquenho Milton Cardona no shekere e de coro multiétnico encabeçado por Wilson, Kazumi Tamaki, Misako Koja, Yoriko Ganeko e o próprio Sakamoto. Tem ainda “Calling From Tokyo”, a faixa de abertura, um art-pop com a bateria jamaicana de Sly Dunbas e a tabla indiana de Pandit Dinesh; a espetacular “Diabaram”, com a voz penetrante de N'Dour, que faz remeter a uma humanidade pacífica da Ática-Mãe quiçá perdida; a contemplativa “Chinsagu No Hana”, adaptação de canção tradicional do folclore de Okinawa, assim como “Chin Nuku Juushii”, de “Neo Geo”; “Asadoya Yunta”, cujo inconfundível som do samisém tocado pela japonesa Yoriko Ganeko lhe confere séculos de conhecimento, e “Romance”, totalmente oriental, mas totalmente planetária.

Por essa riqueza toda que a obra de Sakamoto carrega que fico chateado (mas não surpreso) com as manchetes de anúncio de sua morte, ocorrida no último dia 28, aos 71 anos. As notícias de veículos referenciais da imprensa dão conta, em sua maioria, de que: "Morre Ryuichi Sakamoto, célebre compositor que levou o Oscar por 'O Último Imperador'". Ora, Oscar é importante, sim, mas ESSE é o destaque para se falar em Sakamoto?! Pegando-se apenas o cinema, não precisa ser um fã ou profundo conhecedor de Sakamoto para apenas atentar-se a outras trilhas sonoras assinadas por ele e perceber o quanto sua obra se entrelaça com as nossas vidas há décadas, a exemplo de “De Salto Alto”, "Femme Fatale", "O Regresso" e "Black Mirror".

Sakamoto, como Akira Kurosawa, me mostrou há muitos anos que essa dicotomia Orient-Occident, tal o yin-yang taoísta, serve para a geografia ou a estadistas divisionistas. Se Kurosawa quebrou as barreiras ao levar para o cinema do Oriente Shakespeare, Dostoiévski e Gorki, intercambiando, igualmente, a cultura japonesa com o Ocidente, Sakamoto fez, a seu curso, semelhante trajeto. Ao atravessar o Greenwich com sua música, provou que não existem divisões na humanidade. Difícil ensinamento para um mundo tão desigual e superficial... E mais: mostrou que lhe existe, sim, o belo. Sakamoto, esse meu ente que se foi. Mas só de corpo físico. As outras matérias ele generosamente deixou para nós mundanos através dos sons. Por isso, estará sempre presente aqui em casa, pois sabe que a porta está permanentemente aberta para ele entrar com sua beleza e ficar quanto tempo quiser. 


RYUICHI SAKAMOTO 
(1952-2023)



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FAIXAS:
1. "Calling from Tokyo" (Arto Lindsay, Roger Trilling, Ryuichi Sakamoto) - 4:26
2. "Rose" (Lindsay, Sakamoto) - 5:12
3. "Asadoya Yunta" (Katsu Hoshi, Choho Miyara) - 4:35
4. "Futique" (Lindsay, Sakamoto) - 4:09
5. "Amore" (Lindsay, Sakamoto) - 4:55
6. "We Love You" (Mick Jagger, Keith Richards) - 5:16
7. "Diabaram” (Sakamoto, Youssou N'Dour) - 4:13
8. "A Pile of Time" (Lindsay, Sakamoto) - 5:34
9. "Romance" (Kazumi Tamaki, Misako Koja, Yoriko Ganeko, Stephen Foster) - 5:29
10. " Chinsagu no Hana" (Folclore japonês) - 7:26
Faixa Extra da versão CD americana*
11. "Adagio" (Samuel Barber) - 7:47 


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Ryuichi Sakamoto – "Neo Geo" (1987)


"Eu ainda penso e me pergunto 'o que é música'. É claro que essa pergunta não tem resposta. Hoje, músicos ou compositores se interessam pelas novas tecnologias, como por exemplo Beethoven em seu tempo. Eu acredito que se Beethoven estivesse vivo agora, ele estaria muito interessado em usar novas tecnologias."
Ryuichi Sakamoto


Quando se fala na contribuição que países deram à indústria fonográfica, é normal se associar o Japão muito mais à aptidão científica do que pela produção artística em si. Afinal, quem não tem ou teve ao menos um aparelho Sony, Hitachi, Mitsubishi, JVC, Toshiba, Panasonic ou de alguma outra marca? A alta competência e a disciplina do povo japonês, capaz de erguer um país destroçado pela bomba atômica ao final da Segunda Guerra e levá-lo a uma potência tecnológica mundial, faz tender-se facilmente a esta percepção. Porém, ao contrário do que possa se pensar, foi justamente esse desenvolvimento científico que promoveu o surgimento nas artes dos filhos desse fenômeno social. Na música, o principal nome dessa geração certamente é Ryuichi Sakamoto

Compositor, maestro, tecladista, produtor, arranjador, professor – e às vezes cantor e até ator –, Sakamoto surgiu para o mundo da música nos anos 70 ao compor o revolucionário mas pouco creditado pelos ocidentais Yellow Magic Orchestra, grupo synthpop que deu os primeiros ensinamentos a toda a turma britânica e norte-americana do gênero – que entrariam anos 80 adentro fazendo sucesso muito por conta do que a banda japonesa inventou. Ali, Sakamoto já trazia parte da essência de sua música, que une sofisticação à alta modernidade e a uma visão globalizada da arte, bem como a música clássica e a tradição da cultura milenar da Terra do Sol Nascente.

Precisaram alguns anos, no entanto, para que o exigente Sakamoto calibrasse essa difícil química, cuja fórmula somente o cadinho de alguém muito talentoso como ele poderia misturar sem que resultasse desastroso. Gravou discos solo, compôs trilhas sonoras brilhantes, venceu Oscar, Bafta e Globo de Ouro de Trilha Sonora e, como ator, foi dirigido por cineastas do calibre de Bernardo Bertolucci e Nagisa Oshima, além de colaborar com projetos de diversos outros artistas, como P.I.L. David Sylvian, Bill Laswell e Thomas Dolby. Mas ainda era pouco. Como bom oriental, Sakamoto mantinha uma incessante busca pelo “kodawari”, o “caminho da perfeição”. Passada uma década após sua estreia na YMO, só então o músico pode dizer-se, enfim, minimamente maduro. A materialização desta caminhada perseverante está em “Neo Geo”, nono disco de carreira em que tanto Sakamoto definiu o seu estilo quanto, além disso, ajudou a estabelecer padrões de toda a música pop a partir de então.

Afora a obstinação nipônica, outra característica de Sakamoto é a de, chegado ao ponto que almejava, saber valorizar o que construiu. Os anos de lapidação de sua obra trouxeram, como um ideograma, o poder de síntese. A começar pelo título do álbum em questão, que propositalmente faz referência a uma nova arquitetura geográfica mundial visto que já se percebiam os últimos suspiros da Guerra Fria. Através dos sons, ele recupera a world music, a new age, o pop, a soul, o rap e o jazz fusion e posiciona sua música num ponto certeiro deste mapa. Os sons da África e das Américas (com uma boa dose de harmonias bossa novistas, aliás) convivem em perfeita composição com elementos eruditos e étnicos. Sakamoto adiciona a isso também sempre um ingrediente muito bem preparado de cultura da sua terra, seja num riff, num acorde de teclado, num sample, num canto ou num detalhe em meio a arranjos invariavelmente preciosos. Uma fórmula tão improvável cuja melhor classificação é, justamente, “Neo Geo”.

Os primeiros acordes vêm com toda essa carga de síntese e musicalidade. “Before Long”, como é de praxe nos discos de Sakamoto, ele abre com um tema instrumental. Emotiva e de ares clássicos, é baseada no piano, seu instrumento-base, usando com maestria notas agudas típicas da sonoridade oriental. Ele repete o expediente climático que já havia usado na abertura de “Marry Christimas Mr. Lawrence”, de 1984, na faixa-título, ou "Calling from Tokyo", do álbum exatamente posterior a “Neo...”, “Beauty”, de 1989. Uma pequena obra-prima de pouco mais de 1 minuto. O que já muda bruscamente na segunda faixa – que não desavisadamente dá título ao disco – quando começa um ethnic-funk, adaptação de um tema tradicional japonês, com a timbrística com a qual Sakamoto, alinhado aos modernistas do jazz de então, coloriria a música pop a partir dali: programação eletrônica, recortes, guitarras afro-beat, vozes étnicas e um baixo marcado em slap tocado pelo baixista e produtor norte-americano Laswell. Aliás, outra marca de “Neo...” é o encontro de Sakamoto com uma turma de alquimistas arrojados como ele. Ao lado de Laswell, figura essencial para a fusão do rap na música nos anos 70/80, ele recruta tanto músicos conterrâneos, como o guitarrista Harry Kubota, a cantora Misako Koja e o DJ Hiroaki Sugawara, quanto agrega participantes de outras nacionalidades, seja da música, das artes cênicas ou do cinema.

Fazendo do estúdio o seu laboratório, Sakamoto permite-se experimentar as mais diferentes formulações, mostrando que havia valido a pena acumular conhecimentos e vivências até ali. Um dos pontos altos do disco, “Risky”, não deixa dúvida disso: um pop funkeado e sensual que conta com a voz de Iggy Pop, que empresta seu barítono, um dos mais inconfundíveis da música pop, para deixar a música ainda mais elegante. A pertinência da participação de Iguana está no cerne da própria canção, que lembra o padrão estilístico que ele e o parceiro David Bowie ajudaram a dar à música pop dos anos 80.

Se “Risky” continha toques orientais, “Free Trading” os combina com o Brasil e com os Estados Unidos. Impossível não associar o riff de teclados com a música brasileira, da mesma forma que este soa igualmente muito nipônico. Afora isso, Sakamoto, fervoroso amante de MPB e de jazz, promove neste histórico momento o encontro de dois ícones da música norte-americana: um da soul, o baixista “P-Funk” Bootsy Collins, e outro do jazz, ninguém menos que o lendário baterista Tony Williams

Outra de elegância ímpar é a marcial “Parata”, mais uma instrumental e ao estilo de suas trilhas para cinema. Novamente, Williams empresta suas baquetas mágicas, aqui juntamente com a percussão do jamaicano Sly Dunbar. Quanta delicadeza e bom gosto! Voltando ao synth pop de origem, no entanto, Sakamoto o combina agora a diversas outras propriedades de seu conceito “Neo Ge” num tema para homenagear a histórica ilha de Okinawa. Ritmo dançante, percussões africanas e orientais, vozes sampleadas, teclados marcantes e um indefectível som de uma pipa chinesa, tocada pela instrumentista nipo-americana Lucia Hwong. Mais uma vez, fica evidente a essência sintetizadora do músico: a extração do erudito de um tema folclórico e a transformação em uma invenção moderna. 

Um disco primoroso como este não poderia desfechar de forma diferente. Assim como a faixa inicial, “After All”, sua derradeira, é um breve tema instrumental em que o admirador de Beethoven, Ravel e Tom Jobim denota sua infinita sensibilidade ao reprocessar o lirismo da obra de seus ídolos e compõe algo seu, original. Enfim, nem Japão e nem lugar nenhum especificamente: sua música é do mundo todo. Talvez por isso sua influência seja tamanha nos trabalhos de artistas da música como Sinéad O’Connor, Towa Tei, Madonna, New Order, Cornelius e Deep Forest, além de Caetano Veloso, Ambitious Lovers, Jaques Morelenbaum e Marisa Monte, com quem passaria a contribuir diretamente nos anos 90. Vivo e ativo, Sakamoto prova que talento e sensibilidade estão no coração independentemente do contexto ou da cultura. Como um cientista da música, ele foi capaz de condensar todas as suas referências e trazê-las para dentro de seu núcleo afetivo, que muito bem pode ser representado por uma esfera vermelha tal qual a da bandeira do Japão.

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FAIXAS:
1. “Before Long” - 1:20
2. “Neo Geo” - 5:05
3. “Risky” – com Iggy Pop (Bill Laswell, Iggy Pop/ Ruychi Sakamoto) - 5:25
4. “Free Trading” (Y. Hagiwara, Y. Nomi) - 5:25
5. “Shogunade” (Laswell/ Sakamoto) - 4:33
6. “Parata” - 4:18
7. “Okinawa Song” - Chin Nuku Juushii (H. As/ S. Mita) - 5:15
8. “After All” – 3:08
Todas as faixas de autoria de Ryuichi Sakamoto, exceto indicadas

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Veja o clipe de "Risky", com Ryuichi Sakamoto e Iggy Pop



Daniel Rodrigues

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Quando o rock encontrou a bossa nova


A semana é de rock, cujo alucinante e revolucionário ritmo é comemorado dia 13, mas o que marcou mesmo esses últimos dias foi a perda da maior referência da bossa nova, João Gilberto, no último dia 6. De modo a contemplar os dois, então, o rock'n'roll e a bossa nova, trago aqui um cruzamento de algo que de muito me instiga: o samba no rock. Como bem classificou Rita Lee: "bossa 'n' roll".

Não é de hoje que os estrangeiros, seja dos Estados Unidos, Europa ou Ásia, morrem de amores por nossa música, especialmente pelo samba – e não tem estilo mais representativo deste ritmo e da música brasileira que a bossa nova, nosso maior produto-exportação depois do futebol. Mas uma coisa é certa: gringo não sabe fazer samba. Não adianta. Eles se esforçam, admiram, veneram, imitam mas não sai igual. Falta ginga, falta sol tropical na moleira, falta melanina, falta pobreza. Sei lá o que, mas falta. E um dos maiores segredos é, justamente, a batida do violão de João. Se muito brasileiro não entende, imagina eles.

O que não quer dizer, entretanto, que não saia legal o que eles fazem. Essas assimilações culturais e troca de percepções me agradam, ainda mais considerando um mundo cada vez mais conectado e de acesso fácil a conteúdos antes apenas nichados.

Mas mesmo assim – e aí que está a graça – um samba feito por alguém de fora tem uma cara diferente. Não raro, sai um troço quadrado, sem molho ou, pior, confundido com rumba ou salsa caribenhas. Tem, contudo, resultados muito legais, inovadores, globalizados. Visto pelo ângulo deles, os de fora, são contribuições do olhar do estrangeiro, a forma como eles entendem nossa cultura.

Por isso, separei aqui 13 (afinal, trata-se também de rock ‘n’ roll) sambas criados e cantados por quem não nasceu no Brasil e nem se criou aqui. Não sai nada igual ao que João fez, eles mesmos sabem. Mas tentaram e não se saíram mal.



Beastie Boys - “I Don’t Know”

Os Beastie Boys são aqueles caras que evoluíram pra caramba disco após disco, e em “Hello, Nasty”, de 1998, permitiram-se arriscar com esta bossa-nova, que ficou bem bonita. O violão, entretanto, não deixa mentir: tocado com palheta e não dedilhado tal como os mestres do instrumento no Brasil. Yuka Honda, figura claramente importante neste cenário (como boa japa admiradora de MPB que é), participa cantando. A rapaziada se saiu bem.
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Beck – “Tropicalia”

Se tem alguém que chegou bem perto de fazer igual aos brasileiros, esse cara se chama Beck. Admirador da MPB, “rato” de loja de disco e, mais do que isso, músico de bom ouvido, em 1998 mandou ver nessa homenagem ao Tropicalismo que tem, até pelas inclusões de funk e elementos modernos, a maior cara do que Caetano, Gil e Cia. Propuseram. A batida do violão, calcanhar de Aquiles pra quem não é daqui, em “Tropicalia” soa perfeito. Podia ser até um Baden ou Macalé tocando.
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Towa Tei - "Let me Know"

Tá bem que Towa Tei é parceiro costumeiro de Bebel Gilberto, que certamente lhe deu umas aulinhas de ziriguidum. Mas o resultado da leitura do samba deste músico japonês é recorrentemente admirável e pessoal. Sob a ótica de um DJ calcado nos beats dançantes, o ex-Deee-Lite tem joias como esta do disco "Last Century Modern", de 1999,, em que nem a batida eletrônica é capaz de excluir o repique típico do samba. Linda canção que muito brasileiro jamais seria capaz de compor.



The Rolling Stones - "Sympathy for the Devil"

Pode não parecer samba, mas os próprios Stones disseram que a compuseram inspirados no que presenciaram numa vinda ao Brasil. Tá na cara que eles confundiram samba com candomblé, música de ponto, mas não importa se foi numa sessão de batuque ou numa quadra de escola de samba - e sabe-se lá em que estado se encontravam. O importante é que saiu essa pérola, um hino do rock que abre o clássico "Beggars Banquet", de 1969.





Sean Lennon - "Into the Sun"

O filho de Lennon e Yoko certa vez perguntou ao Sérgio Dias de onde os Mutantes tiravam aquela musicalidade e o brasileiro sarcasticamente respondeu: "do seu pai, sua besta!" Afora o mau humor desentendido da resposta, dá pra entender a dúvida do talentoso e interessado Sean naquilo que é uma esfinge a um estrangeiro: "como se faz samba?" Do seu jeito, Sean (ao lado de Yuka Honda, de novo nessas funções) compôs essa lindeza de bossa nova, que dá título ao seu primeiro disco, de 1998. O violão é meio duro, rola um pastiche dos arranjos de Tom Jobim, mas é visível que a linda música veio do coração.



The Deviants - "Nothing Man - Bun"

Sabe-se lá o que esses malucos da cena proto-punk de Londres ouviram de samba, mas o que saiu foi algo instigante e transgressor como um bom rock deve ser. A música encerra o baita disco "Ptooff!", primeiro deles, de 1967. Nunca o samba soou tão psicodélico e garage band.






Jamiroquai - "Use the Force"

Jay Kay e sua turma são talhados em tudo que se refere ao jazz soul dos anos 70, inclusive a brasileira Azimuth. São eles a maior inspiração da Jamiroquai para esta música do celebrado "Travelling Without Moving", de 1996. Sopros e vocal perfeitos, além da percussão bem latina. Mas, convenhamos, também não é samba.  






Cornelius - "Brazil"

A célebre "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso, foi o primeiro grande cartão de visitas da música brasileira pré-bossa nova, e por isso vários músicos daqui e de fora dela se apropriaram. Um deles, Keigo Oyamada, o Cornelius (mais um japonês!), compôs, em 2002, no disco "Point", essa reverência chamada, claro, de "Brazil". Indie eletronic de alta qualidade com a sua cara e, detalhe: domínio do violão como poucos, muito próximo à batida da bossa nova.




Ryuichi Sakamoto - "Free Trading"

Mais um japa, mas não qualquer um, pois estamos falando do genial Ryuichi Sakamoto. O universal músico, conhecedor de perto da MPB e sabedor do que estava fazendo, compôs "Free Trading" em seu discaço "Neo Geo", de 1888. Bossa com toques orientais. Afinal, quem e que disse que samba não pode ter também esse sotaque?





The Kinks - "No Return"

Imagina Paul McCartney ou Brian Wilson caindo no samba? Ia dar em coisa boa certamente. Pois quem fez isso foi Ray Davies, da Kinks – o que significa praticamente a mesma coisa em termos de grandeza. Esta joia chamada “No Return”, do espetacular "Something Else" (1967) - grata lembrança do meu amigo Lucio Brancato -, é bossa nova no melhor estilo, e sem deixar a dever em nada o toque do violão. Os versos são em inglês, mas o som é brasileiríssimo.



Ambitious Lovers - "King"

Ok, ok, eu sei que é meio “migué” por a Ambitious Lovers nessa lista sendo o Arto Lindsay tão brasileiro quanto norte-americano. Mas considerando que Peter Scherer é inteiramente de lá e que a banda formou-se em Nova York, vale esse “jeitinho brasileiro”. “King”, essa joia do primeiro disco da dupla, “Greed”, de 1988, tempera na medida certa o rock underground e o ritmo das escolas de samba. Coisa de brasileiro - mas americano também.




Brian Eno - "Kurt's Rejoinder"

A visão world music de Brian Eno não o deixaria fazer um samba convencional tal e qual o que ele ouviu aqui pelo Brasil. Ele até saberia, mas iria de fato resultar em algo reprocessado e personificado. Melhor exemplo é “Kurt's Rejoinder”, essa “samba de plástico” do brilhante álbum “Before and After Science”, de 1977.
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Gabriel Yared - "Chili con Carne"

Para fechar, outros que há muito se rendem à música brasileira são os franceses. Na trilha sonora clássica do cult movie dos anos 80 "Betty Blue" o compositor Gabriel Yared versou a canção-tema, entre outros ritmos, também para a bossa nova. C'était magnifique!
OUÇA








por Daniel Rodrigues