Alguém aí com a sensação de alívio depois de acordar de um pesadelo? Pois, então: voltamos à vida! Para embalar esse momento de reconciliação com a democracia, nada melhor do que música! E tem de tudo um pouco: Fatboy Slim, Racionais, Mart'nália, Beethoven, Milton Nascimento, talking heads e mais. Não adianta bloquear a estrada, que o MDC pede passagem às 21h na esperançosa Rádio Elétrica. Produção, apresentação e amor: Daniel Rodrigues (vão tarde, fascistas)
Macalé: um dos expoentes da geração dos 60 da MPB marcando também a década de 2010
Passou rápido essa última década, hein? Tanto que só fui notar que isso estava ocorrendo quando, próximo do Ano Novo, ouvi dizerem que uma nova estava por iniciar. Tá, eu sei que vão dizer que a década mesmo só termina quando chegar 2021. Mas, convenhamos, todo mundo começa a contar a partir de um novo “zero” no calendário. Foi o que fiz. Automaticamente, meu cérebro começou a resgatar acontecimentos importantes no campo da cultura, entre estes, de discos da música brasileira que dessem conta desse ciclo que se fechava. E avaliando os trabalhos lançados entre 2010 e 2019, o saldo, aliás, é bem positivo.
Pode-se notar desde a entrada de uma nova turma de compositores/produtores no cenário musical até a reafirmação dos que já haviam conquistado espaço. Igualmente, a estabilização da geração de vozes femininas (como Tulipa Ruiz, Céu, Xênia França, Anelis Assumpção, Karina Buhr, entre outras), vindas em enxurradas sem critérios na década passada, é outro fenômeno percebido nesses dez últimos anos. Também viu-se um passo adiante dado pelo rap nacional (seja em São Paulo, Rio, Bahia ou outros estados) e na música instrumental mais “cabeça”, bem como a confirmação de que os velhos deuses da nossa música - Caetano, Jards, Gil, Chico, Djavan e outros -, ainda são bússola para todo mundo. Mas uma peculiaridade se percebeu fortemente: o encontro de gerações. Músicos jovens, além de conduzirem seus projetos próprios, passam a servir de base para moldar os mais antigos na modernidade que a produção musical da atualidade, digital e pós-moderna, exige.
Kiko Dinucci, da Metá Metá: a cabeça da nova geração por trás de discos de outros artistas
Para representar essa década inspirada, então, selecionamos, em ordem cronológica, já que estamos falando da entrada da década de 20, duas dezenas de discos essenciais da música no Brasil daquilo que, transcorridos mais de 90% de sua totalidade, podemos já chamar de anos 2010. Semelhanças com outras listas sobre o mesmo tema haverá, pois alguns destaques são bastante evidentes. Uma boa parte, por exemplo, figurou no seleto grupo de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS do blog e outros, merecedores, estão em tempo de, nalgum momento, serem alçados a tal. Mas diferenças também se notarão, e é aí que reside o legal da formação de listas: poder compará-las, concordar, discordar e, quem sabe, motivar que novas sejam compostas.
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1.“Recanto”– Gal Costa (2011)
O brilhante disco que marcou o retorno de Gal ao nível de qualidade do
qual ela nunca deveria ter se afastado. Álbum irmão de “Cantar”, de 1974, "Recanto" tem,
igualmente àquele, a curadoria de Caetano Veloso. O disco, no entanto, vai
além: é todo de autoria do mano Caetano, com a assinatura de Kassin e Moreno
Veloso na produção e arranjos. Disco que revolucionaria não apenas a carreira
da cantora, mas ditaria conceito e sonoridade pra quem não quisesse ficar de
fora dessa evolução em termos de música no Brasil. Do krautrock tropicalista ao
baião renascentista, da industrial-bossa ao funk-maculelê: uma obra-prima da
MPB moderna.
1. Recanto Escuro
2. Cara do Mundo
3. Autotune Autoerótico
4. Tudo Dói
5. Neguinho
6. O Menino
7. Madre Deus
8. Mansidão
9. Sexo e Dinheiro
10. Miami Maculelê
11. Segunda
2.“Chico”– Chico Buarque (2011)
Como seus livros, os discos de Chico têm sido cada vez mais espaçados. Porém, quando acontecem, são de uma síntese tremenda. Este, seu único trabalho musical da década além de “Caravanas”, de seis anos adiante, é o retrato de um artista maduro para com sua música e de um homem consciente para com sua história. Haja vista a autoavaliativa “Querido Diário” ou a romântico-realista “Essa Pequena”. A mais afinada parceria dele com o maestro Luis Cláudio Ramos, “Chico” ainda tem pelo menos outras duas obras-primas: “Tipo um Baião” e “Sinhá”, esta última, parceria com João Bosco, Melhor Canção daquele ano no Prêmio da Música Brasileira.
1. Querido Diário
2. Rubato
3. Essa pequena
4. Tipo um baião
5. Se eu soubesse
6. Sem você nº 2
7. Sou eu
8. Nina
9. Barafunda
10. Sinhá
3.“Nó na Orelha”– Criolo (2011)
O ano de 2011 foi marcante não apenas pela alta qualidade de trabalhos de artistas tarimbados como Chico e Gal, mas também por conta da chegada de uma figura que revolucionaria a música brasileira a partir de então: o paulista Criolo. E ele não o fez repetindo os mesmos passos dos mestres. Fez, sim, pela via do rap. Dono de uma musicalidade assombrosa e de versos imagináveis somente numa cabeça como a dele, Criolo, com o auxílio luxuoso de Daniel Ganjaman, cunhou um dos melhores discos da história da música brasileira e abriu caminho para uma renovação no rap nacional: um rap brasileiríssimo em cores, rimas e sons.
1. Bogotá
2. Subirusdoistiozin
3. Não Existe Amor em SP
4. Mariô
5. Freguês da Meia-Noite
6. Grajauex
7. Samba Sambei
8. Sucrilhos
9. Lion Man
10. Linha de Frente
4. “MetaL MetaL”– Metá Metá (2012)
Quando a Metá Metá (Juçara Marçal, voz; Kiko Dinucci, guitarras; e Thiago França, sax) foram convidados, em 2017, para compor a trilha sonora do balé “Gira”, do Grupo Corpo, aquele grande trabalho tinha um evidente precedente: o abundante “MetaL MetaL”, segundo disco da banda paulistana dona do jazz-rock mais afro-brasileiro que já se viu. Uma explosão de sensações, musicalidade, timbres, sonoridades. Basta ouvir “Oyá”, “Logun” ou “Cobra Rasteira” para entender o que se está dizendo. “Incrível” é o mínimo do que se pode descrever.
1. Exu
2. Orunmila
3. Man Feriman
4. Cobra Rasteira
5. São Jorge
6. Oya
7. São Paulo No Shaking
8. Logun
9. Rainha Das Cabeças
10. Alakorô
11. Tristeza Não
5. “Abraçaço”– Caetano Veloso (2012)
Não é de se estranhar que o sempre criativo e produtivo, mas também aberto e inovador Caetano tirasse proveito da parceria com os novos músicos. Mas para a sua mente tropicalista essa química foi ainda mais contributiva quando, em 2006, se deparou com a Banda Cê (Pedro Sá; Ricardo Dias Gomes e Marcello Callado). A formação/sonoridade rocker de baixo-guitarra-bateria deu condições ao baiano não apenas de compor uma elogiada trilogia (“Cê”, “Zii e Zie” e este) como, mais que isso, criar um quase subgênero: o transrock. “A Bossa Nova É Foda” (Grammy Latino de Melhor Canção Brasileira) e a faixa-título são apenas duas que confirmam ser este um dos grandes momentos da longa carreira de Caê.
1. A Bossa Nova é Foda
2. Um Abraçaço
3. Estou Triste
4. Império da Lei
5. Quero ser Justo
6. Um Comunista
7. Funk Melódico
8. Vinco
9. Quando o Galo Cantou
10. Parabéns
11. Gayana
6.“Não Tente Compreender”– Mart’nália (2012)
Não dá pra dizer que Mart’nália, que já soma mais de 30 anos de carreira, pertença à nova geração. Mas que foi nos anos 2010 que ela se superou, isso sim, é possível afirmar. A filha mais famosa do mestre Martinho da Vila convoca ninguém menos que outro craque, Djavan, para produzir seu álbum, o que resulta no trabalho mais bem acabado dela. O mais legal é que é um disco fácil de se ouvir: suingado, melodioso, charmoso. Além de composições suas, Mart’nália grava figuras carimbadas da MPB, como Marisa Monte, Adriana Calcanhoto, Gil, Caetano, Ivan Lins, Nando Reis e outros. E, claro: não poderia faltar Martinho.
1. Namora Comigo
2. Surpresa
3. Daquele Jeito
4. Depois Cura
5. Que Pena, Que Pena...
6. Não Tente Compreender
7. Itinerário
8. Reverses Da Vida
9. Serei Eu?
10. Eu Te Ofereço
11. Os Sinais
12. Demorou
13. Zero Muito
14. Vai Saber
7. “Aquário”– Tono (2013)
Se na década de 2000 foi a turma de Kassin, Domenico e Moreno quem ditou os padrões de “inteligentsia” da música no Brasil, Bem Gil e sua trupe deram um passo adiante nos 2010. Sonoridade moderna e ao mesmo tempo doméstica; melodias complexas que soam fáceis de ouvir; perfeição de timbres e execução que faz parecer algo simples de se fazer. Tamanha completude funcionou tão bem, que foi posta a serviço do genial pré-tropicalista Jorge Mautner em seu mais recente álbum “Não Há Abismo Em Que o Brasil Caiba”, do ano passado, produzido pela banda. Eis os novos caciques da MPB.
1. Murmúrios
2. Sonho com Som
3. Como Vês
4. Tu Cá Tu Lá
5. Chora Coração
6. Leve
7. Do Futuro (Dom)
8. UFO
9. Pistas de Luz
10. Da Bahia
11. A Cada Segundo
8. “Sambadi”– Lucas Arruda (2013)
Certamente Marcos Valle, a Azymuth e a turma remanescente da primeira fase do jazz-soul-AOR brasileiro vibrou quanto, em 2013, viram o Espírito Santo operar um milagre: o nascimento de um músico multi-instrumentista e multitalentoso, o capixaba Lucas Arruda. O semi-instrumental “Sambadi”, seu disco de estreia, é um alento de resistência de uma música que o Brasil por muito tempo importara, mas que também há muito não se via representada. Foi Ed Motta quem disse: “Para mim, Lucas Arruda salva esse cenário supermedíocre de hoje”. Talvez nem tanto assim, mas dá a dimensão do acontecimento que foi a sua chegada.
1. Physis
2. Tamba, Pt. 1
3. Batuque
4. Who's That Lady
5. Rio Afternoon
6. Na Feira
7. Sambadi
8. Carnival
9. Alma Nov
10. Tamba, Pt. 2
9.“Vira Lata na Via Láctea” – Tom Zé (2014)
Mais do que os colegas tropicalistas Gal, Caetano e Gil, o que talvez seja o de espírito mais jovem e inquieto é Tom Zé. O baiano de Irará entra na roda da gurizada e produz seu mais poderoso disco da década. Criolo, Dinucci, Tim Bernardes, Trupe Chá De Boldo e Filarmônica de Pasárgada revigoram o sarcasmo poético-erudito do autor de “Brasil Ano 2000”. Mas também tem espaço para os contemporâneos Milton Nascimento (“Pour Elis”), Fernando Faro e uma inédita coautoria com Caetano na faixa que encerra o álbum: “A Pequena Suburbana”.
1. Geração Y
2. A Quantas Anda Você?
3. Banca de Jornal
4. Cabeça de Aluguel
5. Pour Elis
6. Esquerda, Grana e Direita
7. Mamon
8. Salva a Humanidade
9. Guga na Lavagem
10. Irará Irá Lá
11. Papa Perdoa Tom Zé
12. Retrato na Praça da Sé
13. A Boca da Cabeça
14. A Pequena Suburbana
10.“Passado de Glória: Monarco 80 Anos”– Monarco (2014)
Último remanescente da Velha Guarda (sim, com letra maiúscula!) do samba brasileiro, Monarco gravou, desde os anos 70, quando já era um bamba da Portela, praticamente um disco por década. Já octogenário, o mestre, com seu barítono inconfundível e suas melodias e letras marcantes, desfila canções irreparáveis de seu vasto cancioneiro. Desde composições dos anos 40 (o gracioso maxixe “Crioulinho Sabu”, escrito quando tinha apenas 8 anos) até parcerias com sambistas célebres, como Mário Lago (“Poeta Apaixonado”), Ratinho (“Verifica-se De Fato”, “Pobre Passarinho”) e Mijunha (“Meu Criador”). Sabe aquele disco que tem caráter de registro histórico-antropológico? Pois é.
1. Poeta Apaixonado
2. Verifica-se De Fato
3. Não Reclame Pastorinha
4. Tristonha Saudade
5. Insensata E Rude
6. Estação Primaveril
7. A Grande Vitória
8. Pobre Passarinho
9. Momentos Emocionais
10. Fingida
11. Meu Criador
12. Horas de Meditção
13. Crioulinho Sabu
11. “Mulher do Fim do Mundo”- Elza Soares (2015)
A deusa negra Elza Soares já vinha de um ótimo trabalho com músicos de São Paulo por meio do craque Zé Miguel Wisnik, “Do Cóccix Até O Pescoço”, de 2012. E foi dessa proximidade com a turma paulista que a grande cantora viva de sua geração e símbolo do empoderamento feminino chegou a Guilherme Kastrup. Deu liga. Ele arrumou o campo pra que Elza entrasse em campo com o que sabe fazer melhor do que ninguém: cantar. Clássico imediato, “Mulher. do Fim do Mundo” conta com joias como a faixa-título, “Maria de Vila Matilde” e “Pra Fuder”.
1. Coração do Mar 2. A Mulher do Fim do Mundo 3. Maria da Vila Matilde 4. Luz Vermelha 5. Pra Fuder 6. Benedita 7. Firmeza?! 8. Dança 9. O Canal 10. Solto 11. Comigo
12.“Sangue Negro”– Amaro Freitas (2016)
Justo na década em que o Hermeto Pascoal começa a dar sinais de cansaço, eis que surge, também do Nordeste, um novo talento do jazz brasileiro com domínio do piano, da composição, da harmonia e, claro, do improviso: o pernambucano Amaro Freitas. Seu disco de estreia, “Sangue Negro”, é uma ode ao caminho aberto pelo Bruxo e seus cultuadores de magias sonoras. Ora modal, ora hard-bop, ora vanguarda. Ora sertão e barracão. Sintonia perfeita entre ele e seus músicos, Jean Elton (baixo), Hugo Medeiros (bateria) e os sopros de Fabinho Costa e Elíudo Souza.
1. Encruzilhada
2. Norte
3. Subindo O Morro
4. Samba De Cesar
5. Estudo 0
6. Sangue Negro
13. “No Voo do Urubu”– Arthur Verocai (2016)
Só o fato de ser um dos quatro discos do maestro e compositor mais cults da música brasileira e o único na década de 2010 já seria suficiente para ser considerado importante. Mas “No Voo do Urubu” alça mais alto que isso: vai aos céus. Essencial desde seu lançamento, como bem percebeu Ruy Castro, traz desde o primor das melodias jobinianas (“Oh! Juliana”, “O Tempo e o Vento”) ao contagiante suingue funk-soul nas parcerias com Vinícius Cantuária (“A Outra”), Mano Brown (“Cigana”) e Criolo (“O Tambor”). Claro, Verocai não deixa de lado também os arranjos de cordas mozartianos e o dedilhado erudito-popular do violão.
1. No Voo do Urubu
2. O Tempo e o Vento
3. Oh! Juliana (
4. Minha Terra Tem Palmeiras
5. A Outra
6. Cigana
7. O Tambor
8. Snake Eyes
9. Na Malandragem
10. Desabrochando
14. “Duas Cidades”– BaianaSystem (2016)
A Bahia de Todos os Santos é um dos polos da música brasileira desde
que o samba é samba. Por isso, não é de se estranhar que tenha seus
representantes nesta nova geração da música brasileira. É aí que entra o
BaianaSystem. Misto de reggae, dub, samba, afro-beat, rap, axé e rock, eles
trazem não só a Salvador idílica como também a urbana, como suas questões
sociais, raciais e políticas à flor do asfalto. “Jah Jah Revolta – parte 2”
abre o disco dizendo a que veio. Isso sem falar nas excelentes “Mercado”, “Dia
da Caça” e “Panela”. Mais um pra conta de Daniel Ganjaman, aliás.
1. Jah Jah Revolta - Parte 2
2. Bala na Agulha
3. Lucro (Descomprimindo)
4. Mercado
5. Duas Cidades
6. Playsom
7. Dia da Caça
8. Cigano
9. Calamatraca
10. Panela
11. Barra Avenida Parte 2
12. Azul
15. “Tribalistas 2” – Tribalistas (2017)
Ainda bem que não se confirmaram os versos ditos por eles mesmos em 2002 de que “o tribalismo” iria “se desintegrar no próximo momento”. Para sorte dos fãs e da música brasileira, 15 anos depois, Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes se reúnem novamente e, novamente, produzem um disco impecável de cabo a rabo. Das composições às execuções, das interpretações à produção. Que beleza infindável que são, por exemplo, "Diáspora", "Baião do Mundo" e "Fora da Memória"!
1. Diáspora
2. Um só
3. Fora da memória
4. Aliança
5. Trabalivre
6. Baião do mundo
7. Ânima
8. Feliz e saudável
9. Lutar e vencer
10. Os peixinhos
16. “Besta Fera” – Jards Macalé (2018)
O “maldito” voltou com tudo, a se ver já pelo título. Com o aporte de um dos cabeças desta nova geração, o “Metá Metá” Kiko Dinucci, juntamente com outro talento eminente, Thomas Harres, Macao traz desde temas com esses jovens parceiros e outros, como Tim Bernardes e Rodrigo Campos, até o velho companheiro de estrada Capinam (em “Pacto de Sangue”) e a filha do amigo Glauber Rocha, Ava Rocha, com quem compôs “Limite”. Impossível ficar alheio à faixa de abertura, “Vampiro de Copacabana”, homenagem a Torquato Neto.
1. Vampiro de Copacabana
2. Besta Fera
3. Trevas
4. Buraco da Consolação
5. Pacto de Sangue
6. Obstáculos
7. Meu Amor e Meu Cansaço
8. Tempo e Contratempo
9. Peixe
10. Longo Caminho do Sol
11. Limite
17. “Abaixo de Zero: Hello Hell” – Black Alien (2018)
Falando novamente em rap, não só a nova geração surpreendeu, mas também um velho militante do hip-hop brasileiro: o ex-Planet Hemp Black Alien. Após um período sabático, Gus ressignificou sua vida e sua música, lançando um disco curto, pungente e genial. Letras afiadíssimas sobre a sua realidade e vivência e também sobre sociedade, política e sistema, ganham a roupagem perfeita dada pelo produtor e parceiro Papatinho, outro “ás” da nova geração. Versos como “Quem me viu, mentiu, país das fake news/ Entre milhões de views e milhões de ninguém viu” dão a ideia do quanto o negócio é quente.
1. Área 51
2. Carta Pra Amy
3. Vai Baby
4. Que Nem O Meu Cachorro
5. Take Ten
6. Au Revoir
7. Aniversário De Sobriedade
8. Jamais Serão
9. Capítulo Zero
18. “Taurina” – Anelis Assumpção (2018)
A responsabilidade de representar a tradição dos Assumpção na música não é tarefa fácil. Não para Anelis Assumpção. Após a perda do pai, o genial Itamar Assumpção, no início dos 2000, viu-se, em 2016, também sem a irmã mais velha, a igualmente musicista Serena. Toda essa hereditariedade e tradição, unidas à sua criatividade própria, resultaram no brilhante “Taurina”, terceiro disco dela. Sensibilidade feminina, empoderamento, Lira Paulistana, poesia maldita, ecos do Nego Dito: elementos musicais e conceituais não faltam, o que se pode notar em “Mergulho Interior”, “Chá de Jasmin”, “Paint my Dreams” e outras.
1. Mergulho Interior
2. Chá De Jasmim
3. Segunda à Sexta
4. Gosto Serena
5. Pastel De Vento
6. Caroço
7. Mortal À Toa
8. Paint My Dreams
9. Moela
10. Escalafobética
11. Receita Rápida
19. "Bluesman" - Baco Exu do Blues (2018)
Na Bahia tem cururu, vatapá e... rap! Baco Exu do Blues, esse jovem talento vindo da terra de Caymmi, balançou a cena musical brasileira em 2017 com o marcante "Esu" e, logo em seguida, surpreendeu ainda mais com o premiado "Bluesman". Trap, gangsta, blues e funk se homogeinizam às mais profundas raízes da música afro-brasileira. Samples inteligentes e letras poderosas, viscerais, críticas e improváveis, como as de “Queima Minha Pele”, “Me Desculpa Jay Z” e Flamingos” e “Girassóis De Van Gogh”.
1. Bluesman
2. Queima Minha Pele
3. Me Desculpa Jay Z
4. Minotauro De Borges
5. Kanye West Da Bahia
6. Flamingos
7. Girassóis De Van Gogh
8. Preto E Prata
9. BB King
20. “Gil” – Gilberto Gil (2019)
Se o autor de “Aquele Abraço” não tinha produzido nenhum disco à altura de seus grandes álbuns na década de 2010, ao apagar desta o mestre baiano tira da cartola a trilha sonora para a peça que o Grupo Corpo encenaria lindamente nos palcos. Mas, como acontece sempre com as trilhas da companhia de dança, o disco pode ser apreciado separadamente da coreografia com tranquilidade. E que maravilha Gil compôs! Espécie de réquiem em ritmos e cores brasileiras, Gil, de mãos dadas com o filho e igualmente talentoso Bem Gil, desfila suas inúmeras referências, tendo uma como principal: a própria obra.
Senhores passageiros: suas bagagens estão liberadas no Música da Cabeça. Independente do tamanho ou do formato, na nossa aeronave cabe tudo. Tem o rock de Jimi Hendrix, o jazz de Ornette Coleman, o funk de James Brown e a MPB de Mart'nália. E ainda sobra espaço pros quadros "Música de Fato", "Palavra, Lê" e "Sete-List". Embarque confirmado para as 21h no Portão único da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e cabine de controle: Daniel Rodrigues.
Já é tradicional sempre que viemos ao Rio de Janeiro Leocádia e eu –
desta vez acompanhados por nossa hermana Carolina – assistirmos nos dois
primeiros dias de estada algum show musical com minha mãe, Iara. Ela, antenada
nas atividades culturais da cidade, invariavelmente nos leva a algum espetáculo
especial. Já foi assim com Jorge Ben Jor, em 2015, com Monarco e Nei Lopes, em
março deste ano, por exemplo. Desta feita, no dia em que pisamos os três na
Cidade Maravilhosa, minha mãe nos participa que Mart’nália se apresentaria de graça naquela tarde no Auditório do
BNDES, no Centro. Mesmo com chuva, fomos lá os quatro em busca de ingresso.
Oportunidade dessas em Porto Alegre é algo inimaginável, tanto pela qualidade
artística quanto pela gratuidade, uma vez que seria de 100 Reais para mais para
vermos a mesma coisa em nossa cidade.
Ingressos retirados, ajudamos a ocupar um lotado auditório, o qual
presenciou um show da mais alta qualidade técnica e artística. Som e iluminação
perfeitas e, o mais importante, uma apresentação digna dos maiores artistas
brasileiros da atualidade. Mart’nália é um espetáculo por si própria. Dona do
palco e totalmente entrosada com sua banda (Humberto Mirabelli, violão e
guitarra; Rodrigo Villa, baixo; Menino Brito, percussão e cavaquinho; Raoni
Ventepane, percussão; Macaco Branco, percussão; e Analimar Ventepane, percussão
e vocal), faz lembrar o pai Martinho da Vila, com quem se parece bastante fisicamente
e no gestual. Mas Mart’nália, musicista consagrada e original, não é apenas uma
cópia dele. Vê-se nela a música pop, a modernidade do rap, o swing da soul, a
urbanidade do funk carioca, a tradição dos sambistas anteriores a Martinho, as
mulheres bambas, como D. Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra. Uma artista
completa que respira música e que, com alegria e malandragem, transmite isso no
palco.
A carismática e talentosa Mart'nália interagindo com o público
O repertório, dedicado aos 100 anos do samba, começa com a prece
sambística “Peço a Deus”. Entretanto, o show não trouxe apenas o ritmo mais
brasileiro de todos. Tinha, em perfeita mistura, os ritmos da música pop, como
o funk, o reggae e outros ritmos que Mart’nália introduz com uma naturalidade
tocante. Assim foi com “Tava por aí” e “Pretinhosidade”, duas dela e de Mombaça,
“Cabide”, seu grande sucesso, de autoria de Ana Carolina, “Namora comigo”, de Paulinho
Moska, e a linda “Ela é minha cara”, feita especialmente por Ronaldo Bastos e
Celso Fonseca a ela. Nessa mesma linha, a belíssima “Pé do meu samba”, escrita
por Caetano Veloso, de quem Mart’nália tocou também a graciosa “Gatas
extraordinárias”, conhecida na voz de Cássia Eller e que Mart’nália não se
atreve a meramente copiar, haja visto que sua versão lembra a original mas
traz-lhe toques de samba-reggae.
A segunda metade do show foi dedicada às raízes de Mart’nália, ou seja,
os sambas que cresceu ouvindo nas quadras da Vila Isabel e nos pagodes da vida.
A começar pela diva do samba, D. Ivone, de quem emendou três clássicos,
começando pela linda “Mas quem disse que eu te esqueço”, que muito me
emocionou, “Acreditar” e o sucesso “Sorriso Negro”. Veio uma de Benito di
Paula, “Que beleza”, e outra altamente emocionante do show: “Pra que chorar”,
de Vinicius de Moraes e Baden Powell, numa versão delicada e cheia de
musicalidade. A sensibilidade musical de Mart’nália, que canta e toca vários
instrumentos de percussão com impressionante naturalidade, prossegue com um
arranjo precioso de dois clássicos do mais célebre compositor de Vila Isabel,
Noel Rosa: “Feitiço da Vila” e “Com que roupa”.
Se o assunto era samba e Vila Isabel, então, era hora de puxar aquilo
que trouxe “de casa”, como ela mesma referiu. Ela emenda pout-pourri com seis clássicos de seu pai, começando por “Casa de
bamba” (“Lá na minha casa todo mundo é
bamba/ Todo mundo bebe, todo mundo samba”), passando por “Mulheres”, “Canta
Canta, Minha Gente” e uma engraçada performance de “Nhem nhem nhem”, na qual
Mart’nália gesticula como se estivesse sendo perseguida pela esposa dentro de
casa (“Toda vez que eu chego/ Em casa
você vem/ Com nhem, nhem, nhem/ Se eu vou pro quarto/ Você vai/ Volto pra sala/
Você vem/ Nos meus ouvidos, perturbando/ Nhem, nhem, nhem/ Nhem, nhem, nhem”).
Fechando a roda de samba, outro hit de Martinho: “Madalena”. O desfecho foi com
“Chega”, mais uma dela com Mombaça, canção muito querida do público.
Não tinha exatamente ideia do que ia encontrar num show de Mart’nália.
Embora as notícias davam conta de que sua presença de palco e seu carisma
cativavam o público, tive uma surpresa muito positiva. É muito bonito ver um
artista genuíno no palco, com entrega e amor pelo que faz. No caso dela, como
já mencionei, isso se junta à total musicalidade e bom gosto. Valeu, enfim,
mais uma empreitada idealizada por minha mãe. Que venham os próximos shows de recepção
no Rio, pois este foi mais um dos especiais.
Estão sempre tentando pegar Chico Buarque. Acusações por apoio ao PT, pela não-defesa das biografias não-autorizadas, por trair a ex-mulher, por ser um tiozão que “pega” meninas, pela linhagem nobre dos Buarque de Holanda, por ser “esquerda caviar”, por usar a fama como músico para vender-se como escritor. Até culpá-lo por ter olhos azuis já ouvi algo do tipo. Parece-me salutar e pertinente que, justamente no momento em que se lança o já sucesso de bilheteria “Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr., aconteça mais um episódio do tipo: a tão noticiada discussão do artista com um passante cujo motivo junta às imbecilidades mencionadas acima mais uma delas: a de Chico ter um apartamento em Paris (!...).
Essa manifestação raivosa e incontida dessa direita burguesa, invejosa e preconceituosa – que, como diz Eric Nepomuceno, saiu do armário, e isso desde os protestos de 2013 –, é mais um dos casos em que se tenta enquadrar Chico e ele sai, se não ileso, íntegro. O filme passa isso: a integridade de um artista cujas bases e conceitos estão profundamente ligadas ao Brasil mais expressivo, seja em suas belezas ou moléstias. Com uma narrativa que intercala depoimentos de amigos e admiradores com as do próprio Chico de dentro de seu maravilhoso AP no Alto Leblon (mais longas que as falas dos outros), traz ricas imagens de arquivo entre fotos e vídeos, algumas surpreendentes pois muito raras, como um trecho da histórica apresentação de “Cotidiano” dele com Caetano Veloso no Teatro Castro Alves (presente no disco ao vivo da dupla de 1972). Igualmente surpresa é o depoimento de Vinícius de Moraes – ao qual eu pelo menos não conhecia – dizendo que o amigo era alguém acima da média.
Chico em um dos depoimentos do filme.
O recorte do documentário é muito bem pensado, pois delimita tanto a quantidade de entrevistados quanto a função narrativa dos mesmos. E olha que teria muita gente interessante para falar sobre Chico! A única parente a depor, por exemplo, é a irmã Miúcha. E chega por aí. Nada de filhos, sobrinhos, genros, outros irmãos. No máximo, os netos, que aparecem tocando com ele sem entrevistas. Afinal, o contexto familiar e a importância da hereditariedade já estão devidamente representados e inseridos. De Marieta Severo – provavelmente convidada e que teve a sensibilidade de não expor a ela e nem ao ex-marido, mas que autorizou que lhe referissem – os próprios registros documentais a trazem naturalmente, seja no encontro com Chico, nos anos 60 (contado pelo saudoso Hugo Carvana), seja nos vídeos e fotos antigos. Ela também é indiretamente mencionada quando Chico fala com franqueza e descomplicarão sobre a solidão dos tempos atuais, embora revele que jamais pensara viver sozinho (“Saí de um casamento de anos achando que virando a esquina ia me casar de novo”, confessa).
Os assuntos, entremeados entre si mas recorrentemente redirecionados à questão da família, são profundos, mas conduzidos pela serenidade de Chico. Ele passa a impressão de literalmente não dever nada a ninguém. Ou melhor, deve, mas a si mesmo, uma vez que o próprio diz que sempre cai na encruzilhada de não se repetir, por mais consagrado que seja aquilo que realizou até então. O negócio dele é se experimentar, aprender, inovar-se – um dos motivos pelos quais caiu tão de cabeça na literatura dos anos 90 para cá. Entra-se, igualmente, em assuntos como política, censura, fracasso, sucesso, memória, Brasil, morte, futebol e paixões. Tudo dito por ele e seus parceiros (Edu Lobo, Tom Jobim, Maria Bethânia, Ruy Guerra, entre outros) com leveza e sinceridade, sem superdimensionar nada, porém sabendo-se da grandeza da vida e obra do autor de incontáveis clássicos do cancioneiro brasileiro como “Olhos nos Olhos”, “Cálice” e “Roda Viva”.
Outro elemento interessante do filme, característico dos documentários de Faria Jr., são as apresentações em estúdio com músicas do autor. Além de muito bem cenografadas e iluminadas, trazem duas com o próprio Chico cantando (“Sinhá”, no começo, e “Paratodos”, no fim) e outras com artistas convidados, como Milton Nascimento, Carminho, Adriana Calcanhoto e Mart’nália. Esses momentos musicais, que provocam obrigatoriamente pausas no fluxo narrativo, não o quebram, entretanto. O que para muitos foi danoso no documentário que o diretor fizera sobre o poetinha (“Vinicius”, 2005), pois incorria justamente nessa instabilidade (quando o expectador estava engrenando na história, vinha uma declamação duvidosa da Camila Morgado pra chatear), em “Chico...” funciona bem, pois os números se integram de algum modo à narrativa. É o que acontece quando Chico está falando sobre a complexidade inconsciente de alguns temas que compôs e, na sequência, vem, na voz de Mônica Salmaso, “Mar e Lua”, canção que explora temas espinhosos como homossexualismo e suicídio. Afora isso, todas as apresentações são muito boas: Milton e a portuguesa Carminho juntos (um arraso em “Sobre todas as coisas”); Calcanhoto e Mart’nália, em um dueto ótimo (“Biscate”); Ney Matogrosso (“As vitrines”), impecável como de costume; Moyseis Marques (“Mambembe”), lindo, uma revelação para mim; e até o “pagodeiro” Péricles (“Estação Derradeira”) mandando bem sobre o especial arranjo do diretor musical do filme e do próprio Chico, Luiz Cláudio Ramos.
Até Péricles se saiu bem interpretando Chico.
Porém, o que realmente conduz todo o filme – sem que o expectador perceba isso de início – é a busca pela essência a que Chico se impõe. Tendo como mote seu último romance, "O Irmão Alemão", no qual ele como protagonista vai à procura das pistas de um filho que seu pai tivera na Alemanha nos anos 30 antes de voltar ao Brasil e se casar com sua mãe, Chico se mostra, chegado à terceira idade, com a consciência daquilo que lhe pertence como indivíduo. Nisso, claro, ao longo do filme, vão se acessando questões da sua hereditariedade e, principalmente, as que se referem a seu pai, como a convivência, a distância emocional e a influência (positiva e negativa) que este exercera sobre ele como pessoa e artista.
A caça a essa “nova velha” história do irmão da Europa, uma reconstrução tão hipotética quanto passivelmente improvável (haja vista que, jogado na aventura da descoberta, poderia não achar nada significativo que lhe fornecesse nexo suficiente), dá um toque muito especial ao longa. Tal como é comum mais na ficção, Faria Jr. (um bom ficcionista) joga com os três níveis básicos do cinema: interno, externo e espectatorial, uma vez que esse elemento, a figura/ideia do irmão (o qual podemos classificar como “interno”) é desconhecido tanto do “protagonista” (Chico, no caso), quanto do espectador, configurando-se num “gancho” gerador de curiosidade e suspense a todos, dentro e fora da tela. Como o grande documentarista Eduardo Coutinho tão bem fizera no clássico “Cabra Marcado para Morrer” (1984), em que a busca aos atores de seu filme interrompido nos anos de Ditadura Militar serve de motivo para uma ressignificação metalinguística cuja aleatoriedade imputa-lhe o teor crítico almejado.
Saborosamente biográfico, “Chico...” já seria bom por vários outros fatores – as canções, as histórias engraçadas, a reverência dos colegas e amigos, as identificações que se têm com alguém tão admirável como ele –, mas o “elemento-irmão” é a cereja do bolo. Mal comparando, traz uma sensação semelhante a que tive com o desfecho que Martin Scorsese forjou em “No Direction Home”, sobre Bob Dylan (2005), naquela cena em que se esquece a câmera ligada apontando para o teto no fatídico show no Manchester Free Trade Hall, em 1966. Qualquer ser minimamente normal excluiria aquilo como sendo um erro de gravação. Scorsese, não: com atenção e sensibilidade, resgatou-a e compôs com aquilo o significado mais expressivo e simbólico do filme.
Em respeito aos que ainda não assistiram a “Chico...”, claro, não vou contar exatamente a que me refiro para não estragar a surpresa. Independente disso, contudo, só o fato de contar a história de alguém vivo e em atividade, tanto quanto o de expô-la com sensibilidade e critério, já vale a sessão. O que se confirma é a coerência da obra de Chico, sempre afinada com seu íntimo e consciência, seja na música, no teatro, no cinema ou na literatura. Uma dignidade admirável jamais abalável por um mero ataque verbal nas calçadas da vida. Chico Buarque, o grande artista brasileiro e mundial, é muito maior que essas más-resoluções do brasileiro ignorante e “vira-lata”, o que, sem precisar forçar, o filme deixa muito claro.