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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Françoise Hardy - "Tant De Belles Choses” (2004)

 

"Henri Salvador, que tinha uma gravadora, viu minha apresentação na televisão e telefonou com a intenção de assinar um contrato comigo. A reunião nunca aconteceu, porque eu já estava sob contrato, mas eu sinto tontura toda vez que penso no meu desenvolvimento profissional e o curso que isso tomaria se um artista tão excepcional quanto Henri tivesse me colocado sob sua asa."
Françoise Hardy, em sua autobiografia "The Despair of Monkeys and Other Trifles: A Memoir by Françoise Hardy", de 2018

Ela havia completado 80 anos recentemente, o que foi motivo de celebração para os fãs desta artista cult que somente um país como a França podo gerar. Ela é Françoise Hardy, cantora, compositora, atriz e modelo, que além de linda e talentosa, reúne características daquilo que há de melhor na cultura de sua cidade-natal, Paris: o bom gosto, a delicadeza e a elegância. Mas um câncer a levou em junho deste ano, pouco mais de um mês antes da abertura das Olimpíadas iniciarem na própria Cidade-Luz. Quem sabe ela também não estaria na cerimônia de abertura às margens do Sena tocando?

Surgida como uma das principais figuras do movimento yé-yé nos anos 1960, ela conquistou a Europa com sua voz suave e estilo distinto. Instrumentista desde a adolescência, ela fez faculdade de Ciências Políticas e de Letras na Sorbonne, mas não conclui nenhum dos cursos, pois já havia descoberto sua vocação. Depois de passar em uma seleção de novos talentos da gravadora Vogue, em 1961, passa a cantar na TV francesa e logo foi catapultada ao sucesso com a canção "Tous les Garçons et les Filles", que vendeu milhões de cópias. Hardy não conquistou só o público francês, mas também ganhou notoriedade internacional, gravando versões de suas músicas em italiano, alemão e inglês.

Bela, foi também musa na moda e no cinema. Com o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem se relacionou até 1967, Françoise entrou no mundo da moda atuando como modelo e tornou-se um ícone fashion. Em colaboração com designers renomados como Yves Saint-Laurent e Paco Rabanne, ela influenciou a moda dos anos 1960 com seu estilo característico de minissaias e botas brancas. No cinema, foi dirigida por Jean-Luc Godard, Roger Vadim, Clive Donner e John Frankenheimer, quando contracenou com Peter Sellers e Peter O'Toole no clássico "Grand Prix", de 1966. Françoise era desejada por homens e mulheres, de David Bowie a Mick Jagger, de Brian Jones a John Lennon.

Na música, no entanto, foi onde mais se desenvolveu. Evoluiu do rock inocente e passou a gravar coisas como o folk “Suzanne”, de Leonard Cohen, e, em passagem pelo Brasil, voltou para a França na mala com uma versão francófona de “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, intitulada “La Mésange”. As fronteiras sonoras de Françoise começavam a se expandir. Entre 1962 e 1973, ela lançou um álbum por ano, consolidando seu status como uma das principais artistas da época. Alguns de seus maiores sucessos incluem "Le Temps de l'Amour" e "Mon Amie la Rose". Ela trabalhou com compositores renomados como Serge Gainsbourg, que escreveu para ela o hit "Comment te Dire Adieu", e Michel Berger, que compôs duas canções para o álbum "Message Personnel" (1973). Com tudo sua voz ligeiramente rouca e afinada e muito bom gosto sonoro, tornou-se uma excelente melodista e letrista admirada por ícones como Henri Salvador, que até quis contratá-la no início da carreira.

Embora a extensa discografia, que adentrou os anos 70, 80 e 90, foi na maturidade que Françoise chegou a seu auge em termos de musicalidade. Ela já havia surpreendido crítica e público com o triunfante retorno aos estúdios depois de 4 anos de pausa com “Clair-Obscur”, de 2000, quando, além de suas excelentes interpretações, composições e versões, canta com gente como Iggy Pop, Olivier Ngog e o ex-marido e eterno parceiro musical Jacques Dutronc. Porém, precisariam mais quatro anos para que viesse, aí sim, com o irretocável “Tant De Belles Choses”, 24º de sua longa trajetória e que completa 20 de lançamento em 2024.

Françoise: ícone também
da moda e do cinema nos
anos 60 e 70
À época com 60 anos, parece que a idade dava a Françoise aquilo que poeticamente Caetano Veloso sentenciou sobre a velhice: “Já tem coragem de saber que é imortal”. A faixa-título e de abertura e encerramento, evidencia esse amadurecimento diante do mundo, diante das coisas, que se tornam graciosamente belas a seu olhar. Na sequência, a sempre presente influência da música brasileira na sonoridade dos franceses está na francesíssima bossa-nova “À L'ombre De La Lune”. Clima parecido tem “Jardinier Bénévole”, mais cadenciada e enigmática, contudo, principalmente pelas programações de ritmo, pelos teclados reverberantes e pelo contracanto de Alain Lubrano.

Balada triste e romântica, “Moments” é uma das duas cantadas em um inglês do álbum juntamente com o pop quase tribal “So Many Things” – ambas não coincidentemente muito parecidas com o som da Everything But the Girl, uma vez que a inglesa Tracey Torn certamente tem em Françoise uma grande inspiração no modo de cantar e compor. Já “Souir de Gala” é um dos belos exemplos da canção pop hardyana, com versos muito melodiosos e visivelmente composta ao violão, embora o piano faça a marcação enquanto a guitarra solta frases pontuais. A voz dela, aliás, sempre suave, bem colocada, sensual. Sem percussão, apenas sob teclados e efeitos, “Sur Quel Volcan?” é outra que merece muita atenção. Interrogativa e não menos reflexiva, a letra diz: “Eu peço emprestado passagens, becos/ Eu pego mensagens, segredos/ Neste espaço de filigrana/ Eu veria um pedaço da sua alma?/ Em qual vulcão/ Vamos dançar/ Você e eu/ A que custo?/ Quem vai queimar lá/ Você ou eu?”.

O jazz com traços franceses, que mestres como Henri Salvador e Francis Lai legaram à música ocidental, vem na gostosa “Grand Hôtel”. A linha jazzística permanece em “La Folie Ordinaire”, que antecipa a potente – e fantasticamente melódica – “Un Air de Guitare”, em que Françoise canta com urgência os versos, os quais fraciona em três instantes bem marcados. O violão, constante e premente, ganha a parceria da dona da música, a “guitare”, tocada pelo filho Thomas Dutronc. Que baita música! Já na tensa “Tard Dans La Nuit…” – que lembra os temas densos de Nico –, Françoise fala das dores e angústias que a noite esconde. “Ela não é quem deve ser culpada/ Tantos sonhos se dissipam/ É melhor se esconder nas sombras/ As ruas não são seguras/ Atrás das portas blindadas/ Cães latem impiedosamente/ Ninguém pôde dizer/ De onde vieram os golpes/ Tarde da noite”.

Finalizando, mais uma preciosidade: “Côté Jardin, Côté Cour”. Lindo refrão: melodioso, elegante, suave e intenso ao mesmo tempo. A faixa se liga diretamente com a segunda versão de “Tant De Belles Choses”, que ressurge para terminar o disco de maneira imponente. E embora Françoise tenha lançado ainda outros quatro bons trabalhos até o fim da vida, este parece melhor representar a si e ao país ao qual trazia o radical no nome. Com 20 anos de antecedência à própria despedida, ela versa, concordando com aquilo que Caetano disse, a seguinte frase: “O amor é mais forte que a morte”. Nada além da mais pura verdade quando se fala de uma artista imortal como Françoise Hardy.

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FAIXAS:
1. "Tant De Belles Choses" (Pascale Daniel/ Alain Lubrano) - 4:02
2. "À L'ombre De La Lune" (Benjamin Biolay) - 3:38
3. "Jardinier Bénévole" (Lubrano) - 4:02
4. "Moments" (Perry Blake/ Marco Sabiu) - 3:31
5. "Soir De Gala" (Thierry Stremler) - 2:46
6. "Sur Quel Volcan?" (Daniel) - 3:08
7. "So Many Things" (Blake/ Sabiu) - 3:29
8. "Grand Hôtel" (Stremler) - 3:13
9. "La Folie Ordinaire" (Ben Christophers) - 2:32
10. "Un Air De Guitare" (Françoise Hardy)  - 3:58
11. "Tard Dans La Nuit…" (Daniel/ Lubrano) - 3:27
12a. "Côté Jardin, Côté Cour" (Lubrano) - 4:10
12b "Tant De Belles Choses (Version)" (Daniel/ Lubrano) - 3:58

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Daniel Rodrigues

terça-feira, 6 de agosto de 2024

10 músicas francesas de autores não-franceses


Eles não são franceses, mas manjam dos “mon amour”. A sonoridade do idioma francês enseja à musicalidade. E que músico que não gostaria de cantar uma canção em francês? Há os que se aventuraram com muito sucesso, a se ver por Cássia Eller com "Non, je ne regrette rien", Grace Jones com “Libertango” ou Caetano Veloso em "Dans mon Ile". 

No entanto, cantar em francês é uma coisa. Agora, compor não sendo da terra de Piaf é, aí sim, tarefa para poucos. 

Poucos e bons, é possível dizer. Em época de Olimpíadas de Paris, fizemos aqui uma pequena lista de músicos não-franceses e suas composições, originais, na língua de Hugo. E é cada preciosidade, que Aznavour diria, com toda a certeza: “Oh là là”!, elogio que até quem não é da França compreende.

Semelhante ao que fizemos há 3 anos quando das Olimpíadas de Tóquio, pinçamos só coisas interessantes, desde roqueiros a jazzistas, de músicos populares a eletrônicos. Só coisa boa, só "crème de la crème". Confiram aí!

PS: Pensaram que a gente ia puxar a Gretchen cantando "Melô Do Piripipi", hein!?




“La Renaissance Africaine” – Gilberto Gil
Certa vez, nos anos 90, assistia na TV5, canal de televisão estatal francês, a uma entrevista do craque Raí, cidadão francês e ídolo por lá. Até que, de repente, quem o apresentador chama para entrar no estúdio? Gilberto Gil. Com um francês em dia, o mestre teria uma lista só sua de composições francófonas. Uma delas, destacamos aqui, talvez a mais bela de todas, originalmente de 2008 e gravada de maneira gigante em "Concerto De Cordas & Máquinas De Ritmo". Numa Olimpíadas em que grande parte dos atletas da casa são descendentes diretos de africanos, esta música se torna cada vez mais pertinente e poética.




“Dis-mois Comment” – Chico Buarque
O cara tem casa em Paris, onde, aliás, passou o seu recente aniversário de 80 anos. É outro da MPB que domina o francês talvez tanto quanto o português pelo qual é multipremiado como escritor. Tanto que é capaz de escrever canções como “Joana Francesa”, feita para a voz de Jeanne Moreau para o filme homônimo de 1973 na qual brinca com a sonoridade de um idioma e outro. Mas esta aqui, em especial, é integralmente em francês. Trata-se de ser uma das 14 joias da parceria Chico Buarque e Tom Jobim, que nada mais é do que "Eu te Amo", que o autor gravou com a cantora Cecília Leite em 2005.





“Le Petit Chevalier” – Nico
Nico iniciou a carreira musical muito bem amparada por nomes como Bob Dylan, Jackson Browne, Lou Reed e John Cale. Porém, embora o inquestionável talento dessa turma, ela ficava sempre muito dependente e, pior, subjugada a homens e relegada apenas a uma intérprete. Foi então que, em 1971, ela mesma compôs faixa a faixa aquele que é seu melhor álbum: “Desertshore”, no qual consta esta bela canção de ninar cantada em francês pela voz do pequeno francesinho Ari Boulogne, filho da musicista e modelo com o ator Alain Delon, à época com 9 anos. Uma preciosidade, ou melhor, "un bijou".






“Orléans” – David Crosby
Neil Young é amado pelos fãs de rock, mas da turma do folk rock da Costa Oeste David Crosby talvez seja o mais lendário deles. Após encabeçar projetos célebres como a The Byrds, a Crosby, Stills, Nash & Young, ele lança, em 1971, seu primeiro disco solo. Afiado melodista assim como seus parceiros de estrada, ele traz no seu maravilhoso “If I Could Only Remember My Name”  a linda “Orléans”. Tá certo: trata-se de um tema tradicional do folclore norte-americano, mas a roupagem dada pelo arranjo de Crosby justifica o crédito.





“Aéro Dynamik” – Kraftwerk
Por meio e através das máquinas, eles criaram sons universais. Nada mais natural, então, de criarem músicas não apenas no alemão, seu idioma original, mas em outros diversos como inglês, espanhol, português e até japonês. Para a língua da França, no entanto, a Kraftwerk guardou um trabalho especialmente dedicado, que é o belíssimo disco “Tour de France Soundtracks”, de 2003. Todas as músicas não instrumentais receberam letra em francês, como esta, que fala sobre um dos elementos essenciais para o ciclismo e outros esportes de velocidade: a aerodinâmica.





“La Pli Tombé” – Marku Ribas
Marku Ribas é daqueles craques da música brasileira que o Brasil não conhece. Talvez até por isso, ele seja mais bem entendido por quem fala francês. Tendo morado em Paris no final dos anos 60 (atuou neste período em filmes de Robert Bresson e Jean-Marc Tibeau, no qual interpreta o líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, inclusive), este mineiro incontrolável foi parar na Martinica, onde oficialmente fala-se francês, mas não-oficialmente o crioulo. Numa mistura dessas duas fontes, Marku escreveu algumas de suas canções, como esta, baseada em um folclore tradicional martinicano, que grava em seu excepcional disco “Marku”, de 1976.





“Bonjour, Monsieur Gendarme” – Chico César
Outro talentoso músico brasileiro também se aventurou pelo bom “français”. Chico César, em seu álbum “Vestido de Amor”, de 2022, gravado em Paris e que tem, além da produção do franco-belga Jean Lamoot, toques de músicos africanos, brasileiros e franceses. Primeira composição feita por Chico em francês, foi uma das iscas para atrair os ouvintes de lá para a edição estendida do álbum. Espertinho esse Chico César.





Valse Au Beurre Blanc” – Ed Motta
O ouvido de Ed Motta capta e absorve tudo que é som do mundo. Da tão admirável Paris, não seria diferente. No seu “Dwitza”, de 2009, considerado por muitos seu melhor trabalho, ele manda ver nesta genial “chanson” – e com uma pronúncia daquelas de quem sabe o que está cantando. Mais do que isso: convida para os vocais um coro de barítono e sopranos e ao estilo Bel Canto elegantérrimo. Ah, detalhe: é ele, Ed, quem toca todos os instrumentos. “Va te faire foutre!”, é só o que posso dizer.





Le Mali Chez la Carte Invisible” – Tiganá Santana
O primeiro álbum do compositor, cantor e instrumentista baiano Tiganá Santana, "Maçalê", lançado em 2010, é nada mais, nada menos, do que o primeiro álbum na história fonográfica do Brasil em que um autor apresenta canções próprias em línguas africanas. São línguas do tronco linguístico bantu, mas onde também entra bela canção em francês inspirada em reconstruções idiomáticas de várias pessoas que habitam o solo do continente africano.




Purquá Mecê” – Os Mulheres Negras
A música saiu na gozação com o idioma francês, daquelas típicas da dupla Maurício Pereira e André Abujamra, principalmente, que faria várias dessas na sua banda Karnak anos depois com o russo, o espanhol, o esperanto e por aí vai. Além de ser um barato, a letra, que não diz coisa com coisa, explora a sonoridade do francês e tenta (sim, tenta) traduzir para o português. Clássico d'Os Mulheres Negras.




Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Bom Dia, Manhã - Poemas", de Grande Othelo - Ed. Topbooks (1993)




"Grande Othelo foi um imenso brasileiro, um dos maiores de todos os tempos: ator, músico, cantor, apresentador de televisão, grande do teatro e do cinema, gênio nascido no ventre mestiço do Brasil. Tão gênio brasileiro quanto Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Pelé."
Jorge Amado

"O autor por excelência do Brasil."
José Olinto

Há determinados artistas brasileiros que deixam um vácuo quando morrem. Aqueles que vão inesperadamente como foi com Elis Regina, Chico Science, Raphael Rabello, Cássia Eller e, mais recentemente, com Gal Costa. Eles provocam essa sensação de um buraco que se abre e que nunca mais será preenchido. Tanto quanto aqueles que, comum mais antigamente, despediam-se com menos idade do que seria normal à atual expectativa de vida, casos de Tom Jobim (67), Emílio Santiago (66), Mussum (53) e Tim Maia (55). 

Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Othelo é um desses vazios. Aliás, fazem 30 anos deste vazio, tão grande que parece contradizer com a diminuta estatura deste homem de apenas 1m50cm de altura. Mesmo que menos prematuro como os já citados (morreu aos 78 anos), sua vida marcada pela infância dura e pela vida adulta boêmia, não o poupou de roubar-lhe, quiçá, uma década cheia. Mas o que este brasileiro deixou como legado se reflete (ao contrário dos citados acima, músicos por natureza) em mais de um campo artístico. Grande Othelo foi um gênio na arte de atuar, mas deixou marcas indeléveis na música popular e na poesia.

"Bom Dia, Manhã" cristaliza essa magnitude de Grande Othelo, o homem das palavras, sejam as da dramaturgia, as dos sambas ou as dos poemas. Lançado em 1993 e com organização de Luiz Carlos Prestes Filho, o livro reúne um bom compêndio de mais de 100 textos poéticos do artista que eternizou em seu nome o ícone shakesperiano. Não haveria o livro, por óbvio, ser menos do que isso. Com sua inteligência incomum e fluência natural de escrita, Grande Othelo alterna da mais singela confissão existencial ao romantismo sentimental, a malandragem e a alta literatura, os sambas e o parnasianismo, passando pelas homenagens aos amigos e as observâncias da vida e das mazelas do mundo. Tudo numa linguagem de "puras palavras", como definiu o escritor José Olinto, sem cerebralismos e dotados de cadências existenciais.

Em “Nada”, o poeta escreve: “Na saga das tuas solidões/ Vão surgindo outras/ Em outros corações”. A compreensão do amor “desromantizado” de “Homem e Mulher” é também digna de escrita, assim como “Estrada”, que narra o descompasso de um homem velho e uma mulher mais jovem. Os sambas, no entanto, são uma delícia à parte. Como os que coescreveu com Herivelto Martins  “Fala Claudionor” ou o clássico “Bom dia Avenida”, de 1944, feito quando a Prefeitura do Rio de Janeiro resolveu acabar com o Carnaval na referencial Praça Onze, a Sapucaí do início do século XX: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba/ Não vai/ Chora tamborim/ Chora o morro inteiro”. Mas há ainda o samba-fantasia “Penha Circular”, o samba-crônica “Rio, Zona Oeste”, o samba inacabado “A boemia cantou”, o samba não-cantado por Elizeth Cardoso “Ao som de um violão”.

Representativo da raça negra em uma época de inúmeras dificuldades para o exercício deste ativismo, Grande Othelo mesmo assim posiciona-se por meio de suas palavras. Semelhante ao que ocorrera com outro ícone preto made in Brazil, Pelé, Othelo (que bem pode ser considerado um Pelé dos palcos, pois possivelmente o maior da sua área) bastava existir para representar resistência. Mas faz mais. “Sou no momento que passa/ A expressão mais forte/ De uma raça”, escreveu em “Neste momento: eu!”. Leu, com o olhar de menino sábio, a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio, que ele mesmo representou no cinema em 1973, dirigido pelo tradicionalista Nico Fagundes:

“O negrinho descerá e subirá cañadas
Em correrias desenfreadas...
Beberá a água das sangas
E sempre sozinho, pois ninguém o vê.
Mas quando voltar há de trazer
A felicidade procurada por você.”

Não é uma delicadeza de apreciação? Estas e muitas mais delicadezas estão em "Bom Dia, Manhã", cuja leitura se dá com o prazer de quem ouve um samba, de quem lê uma crônica, de quem reflexiona a própria condição humana. É difícil imaginar o que Grande Othelo teria feito se tivesse vivido, quem sabe, mais 10 anos – nada alarmante nos tempos de hoje em que senhores da faixa dos 87-88 anos são Tom Zé ou Roberto Menescal, ativos e joviais. Mas é impossível não sentir falta dele vivo, aqui presente. Pensar que aquele Macunaíma, aquele Espírito de Luz, aquele parceiro de Carmen Miranda, aquele Cachaça, aquele farol do povo brasileiro não está mais é reconhecer o vazio que isso provoca. Um vazio grande, como o que este pequeno Othelo carregava no nome.

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Trio de Ouro 


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Brian Eno - “Another Green World” (1975)

 

“Ao discutir arte, as pessoas costumam falar sobre gênios, mas assim que você começa a observar de perto como as coisas surgem, descobre que sempre há contextos e sistemas informando esse indivíduo”.

“A ciência é uma forma de descobrir coisas sobre o mundo, mas a arte nos dá a chance de explorar, através da imaginação, lugares que não existem, bem como ferramentas para lidar com o mundo em que estamos”. 
Brian Eno

Obras-de-arte comumente vêm ao mundo fora do seu tempo cronológico. Com isso, precisam que o próprio tempo passe para serem valorizadas e, principalmente, entendidas. Quanto levou-se para se assimilar a “nova poesia” de Mallarmé, hoje naturalmente reconhecida como o começo das correntes modernistas? Ou as pinceladas "borradas" dos impressionistas, taxadas de “infantis” pelos críticos da época, mas que se configuraram num passo fundamental para a ruptura com o classicismo absorvido pela arte contemporânea? 

Na música moderna, isso seguidamente ocorre. “The Velvet Underground & Nico”, primeiro disco da banda de Lou Reed e John Cale, vendeu ridículas 10 mil cópias à época de seu lançamento, em 1967, mas influenciou o mundo quase tanto quanto os Beatles. O hoje cult “Araçá Azul”, de Caetano Veloso, chegou a ter devoluções nas lojas em 1972 de tão mal recebido pelo público e hoje um vinil original não custa menos do que uma pequena fortuna. Pode-se dizer que “Another Green World”, de Brian Eno, de 1975, se enquadra neste perfil de grandes discos além de seu tempo. Não por terem lhe fechado os olhos, mas por não ter sido observado como deveria. E, diferentemente de outras obras marcadamente incompreendidas, o disco do cantor, compositor e produtor inglês carrega algumas qualidades que lhe tornam quase profético. Eno intuiu elementos que só se conflagrariam tempo depois, redimensionando aquele trabalho do passado que anteviu o que pode se chamar de “era da pós-música”.

Havia sinais de que Eno estivesse sintonizado com algo de tamanha visão do futuro, mas nem por isso assim tão fáceis de se ler. Saído da glitter Roxy Music, no início dos anos 70, banda que já antecipava uma série de movimentos da música pop, Eno, que além de músico é também artista visual e professor de arte, sempre equilibrou a carreira entre essas várias vertentes. Tal versatilidade lhe fez iniciar a carreira solo com dois discos de glam rock bastante inovadores: “Here Comes the Warm Jets” e “Taking Tiger Mountain (By Strategy”), de 1973 e 74, respectivamente. Em seguida, uma guinada: Eno inventa a ambient music com “Discreet Music”, abrindo caminhos para a new age e o neo classical. Anos antes, ele já havia feito duo com Robert Fripp no experimental “No Pussyfooting” e trabalhado ao lado de Cale, Nico e Kevin Ayers, um dos fundadores do jazz-rock. Ou seja: diversas frentes, que embaralhavam ainda mais o cenário em que “Another...” foi gestado.

Por todos estes antecedentes e exemplos subsequentes – visto que Eno seguiu variando entre art rock, punk, minimalismo, afrobeat, trilhas de cinema, new age, world music e outros gêneros – a audição de “Another...” é absolutamente enigmática. E mais do que isso: o enigma não se dá em razão de uma música complexa, intrincada, mas, sim, por uma sonoridade totalmente “palatável”. Eno certamente queria dizer algo importante com isso... Quem escuta os primeiros acordes da faixa inicial, “Sky Saw”, não raro surpreende-se com o som processado e dissonante do fretless bass de Percy Jones tocando um acorde de quatro notas que visivelmente não se completa. Não se completa, mas volta a se repetir em sua incompletude, deixando claro que é mesmo aquele o “riff” da canção, se é que dá para classificar assim. Nem o show de execução do restante da banda formada por Eno com os amigos Paul Rudolph, no baixo, Phil Collins, na bateria, Rod Melvin, no piano elétrico, e Cale, na viola, faz esvair a sensação de que algo diferente contém ali. Uma abertura fascinante, mas estranha.

Se o disco larga com cargas de peculiaridade, a partir de então os enigmas começam a ficar ainda mais evidentes. À exceção de “Sky Saw” e mais outras quatro, todas as músicas das 13 que compõem o disco são como vinhetas, de poucos minutos. Nenhuma passa de 4 minutos, tempo de duração padrão de uma canção pop vendável. “Over Fire Island”, noutra performance brilhante do ainda apenas baterista Collins, traz um baixo igualmente destacado de Jones numa base meio jazzística enquanto Eno comanda sintetizadores, guitarra e colagens de fita magnética. Pura vanguarda instrumental, assim como outras duas seguintes, “In Dark Trees” e “The Big Ship”, ambas protagonizadas apenas pelo próprio Eno, que ainda toca percussão elétrica e sintetizada e um gerador de ritmo tratado, tecnologia bem avançada para a época, algo como a uma bateria eletrônica rústica. Todas instrumentais, curtas, de poucos acordes, quase sem riff. Não fosse pelas breves frases cantadas da primeira faixa e da pequena letra de outra excelente, “St. Elmo's Fire” – em que Eno comanda os instrumentos acompanhado somente da guitarra do parceiro Fripp –, poderia se dizer que se trata de um disco de música instrumental. Mas claramente diferente de “Discreet...” ou de qualquer outra peça de trabalhos anteriores. Onde Eno queria chegar com essa proposta, no mínimo, diferente?

O álbum prossegue e as respostas vão sendo colhidas aos poucos. É possível perceber, por exemplo, o embrião da generative music, outra novidade a qual Eno lançaria as bases em 1978 em “Ambient 1: Music for Airports”, termo baseados nas ideias do linguista Noam Chomsky e que descreve uma música sempre diferente, mutável e gerada por sistemas eletrônicos. A sexta faixa, “I'll Come Running”, em que conta outra vez com Melvin ao piano, Rudolph ao baixo e Fripp nas guitarras, começa a deixar mais claro o que Eno pretendia. A alternância entre músicas com uma formação um pouco maior, mas enxuta, e outras quase que totalmente artesanais – caso da seguinte, a dissonante faixa-título – denota o quanto o autor entendia que caminhos a música pop iria tomar não dali a poucos anos, mas três, quatro, cinco décadas à frente! E mais: não apenas a música popular, mas o conceito de sonoridade, a ideia de música da sociedade contemporânea.

Fica até difícil perceber o quanto o homem moderno está soterrado em mensagens sonoras, visto que estas proveem de todas as fontes e plataformas. Pelos celulares, pela TV, pela publicidade, pelos aparelhos constantemente conectados do mundo atual. Na era digital de infinitas possibilidades e constante avanço, a música, assim como qualquer outro enlatado de supermercado, vem numa esteira de ultraprocessamento à medida em que a sociedade capitalista também avança. A propaganda, com suas pesquisas e indicadores, é a nova ciência. Com isso, passa-se a utilizar a lógica de produção, inclusive para a democrática e facilmente penetrável arte. As discussões postas na mesa pela geração da pop art e do kitsch a qual Eno pertence captava a subjetivação do fazer artístico diante das possibilidades (e permissividades) do capitalismo. O que Eno sacou em “Another...”, antes de qualquer outro músico pop, era que, com a música, esse efeito de desconexão seria não somente contínuo quanto, quiçá, irreversível. Os sons aos quais todos são bombardeados ao navegar pela internet ou num simples passeio na rua ou num shopping nada mais são, hoje, que fragmentos sonoros cientificamente provocados. Pequenas células de emissão físico-acústica de onde se extrai apenas o que é necessário para a absorção funcional, superficial e fragmentada do homem atual.

Canções pop sem centro tonal, inversão dos efeitos sinestésicos, ruptura radical com o cromatismo. Aqui, faz-se necessário um parêntese temporal, e chega-se ao século XXI e seus novos gêneros: left-field, trap, wonky, vaporwave, lowwecase... Não é nem o que Chico Buarque entende como “fim da canção”, mas, mais do que isso: é a era da “não-música”. Os tempos líquidos teorizados por Baumann foram perscrutados na música em diversos momentos na modernidade. Em conceito, a The Residents não só lançou “Commercial Album”, apenas composto de músicas de 1 minuto de duração para supostos jingles publicitários, como, anos antes, fez o “não-lançamento” de “Not Avaliable”, disco que, ironizando a lógica de mercado, “não devia ser ouvido”. Sonoramente, além da eletrônica, da vanguarda, do jazz ou da new age, dissolvedores do cromatismo clássico, um artista como William Basinski, literalmente diluiu a música em sua “Watermusic”. Mas todos até então buscavam dialogar com o tom, seja pela referência, pela alusão ou pela proposital abstenção. Impreterivelmente. O que Tricky ou MFDoom desmembraram, hoje, Billie Elish faz revelar um novo estado psíquico a que a civilização se levou: a total alienação da tonalidade – menos por conhecimento do que por intenção. Seria, ao invés da música "generativa", a "degenerativa"?

Voltando a "Another...", na arábica “Sombre Reptiles”, Eno traz a alusão ao abstratismo tão presentes nas artes visuais a qual ele mesmo se alinha. Mas, para além disso, reforça a ideia de uma deformação do real. "Little Fishes" ainda mais: frases soltas, quase que apenas para sentir e não ouvir. Gostar torna-se, assim, subjetivo, pois está associado à mimese e não à assimilação por um viés artístico. Absorve-se cognitivamente e não sensorialmente. Qualquer semelhança com os estímulos sonoros de um app de smartphone ou de um vídeo do Tik Tok não é mera coincidência. Nem curtas demais, que não transmitam o efeito pretendido, nem longas demais, que acabem dispersando a atenção da geração do imediatismo.

Diminuta em construção melódica, mas gigante em qualidade é "Golden Hours", outra cantada do álbum, música que, certamente, serviria de inspiração (para não falar de “espelhamento”) a U2 quase 20 anos depois na canção “The Wonderer", que encerra o disco “Zooropa” - nada coincidentemente produzido pelo próprio Eno. É ele que volta a agir sozinho em “Becalmed” (Piano Leslie e sintetizador), talvez a mais ambient de “Another...” e de cujos traços tornaria a valer-se tanto em trabalhos solo seguintes (“Before and After Science”, “Music for Airports”) quanto na de parceiros, como no "lado B” de “Low”, do amigo David Bowie, em 1977. “Zawinul/Lava”, igualmente, remete a este Eno experimental e com o olhar para o Oriente, que aproveita um pequeno motivo sonoro provocador de sensações de contemplação e meditação. 

A bela "Everything Merges with the Night" é uma quase-canção, com a voz bonita de Eno acompanhada do baixo e pianos de Brian Turrington e de sua própria guitarra, não fosse o riff que, mais uma vez, situa-se no limiar da melodia, haja visto que sua predominante dissonância não deixa completar o ciclo sonoro natural ao ouvido. Há sempre algum "problema", seja na duração, na altura, na intensidade ou no timbre, elementos constituidores do tom. Uma provocação à biologia humana. Há um fio melódico, mas Eno deixa-o escapar deliberadamente. Magnífica, "Spirits Drifting" é a conclusão perfeita para um disco que começa esfíngico e termina agravando as próprias interrogações: instrumental, mínima, atonal. Uma combinação de acordes bonita, mas que não desfecha naturalmente, como que deixando um proposital ponto de interrogação.

A música da era da pós-verdade – num planeta das multidões de refugiados, da avançada ciência que favorece as classes dominantes, das persistentes fome e guerras, do mundo capitalista que caminha para a autodestruição ambiental – não é (não pode ser) mais música. Decreta-se a “não-música”. Talvez por isso tudo o disco de 1975 de Eno seja tão precursor e contenha um título tão utópico quanto propositivo. O tom, na concepção dele, nada mais é do que o símbolo de uma ética. Musical, em primeira observância, mas ecológica amplamente falando. Ao fincar suas bases na tradição – porém, problematizando-a –, o artista remonta a séculos de uma construção formal e estética a qual acredita fortemente que jamais deve se perder, mesmo que em um “outro mundo verde” muito disso tenha ficado para trás. Esperançoso, no entanto, o próprio Eno sustenta a ideia lançada em “Another...”: “O esforço ambiental é o maior movimento da história da humanidade; nunca houve uma única causa que uniu tantos bilhões de pessoas com um objetivo. Pode haver contradições dentro da causa; haverá emoções e derramamentos, mas esperamos que haja alguns resultados positivos para esta ação mundial”. Tomara ele tenha razão.

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FAIXAS:
1. "Sky Saw" - 3:25
2. "Over Fire Island" - 1:49
3. "St. Elmo's Fire" - 3:02
4. "In Dark Trees" - 2:29
5. "The Big Ship" - 3:01
6. "I'll Come Running" - 3:48
7. "Another Green World" - 1:38
8. "Sombre Reptiles" - 2:26
9.  "Little Fishes" - 1:30
10.  "Golden Hours" - 4:01
11. "Becalmed" - 3:56
12. "Zawinul/Lava" - 3:00
13. "Everything Merges with the Night" - 3:59
14. "Spirits Drifting" – 2:37
Todas as composições de autoria de Brian Eno

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 2 de março de 2023

Festival Paulo Moreira - Café Fon Fon, Espaço 373, Gravador Pub e Sala Jazz Geraldo Flach (Porto Alegre/RS)

 

Diminutivo, aumentativo

Falar de Paulo Moreira requer o exercício de se contemplar coisas grandes e pequenas. Ao menos, aparentemente pequenas. Desde que nos conhecemos e naturalmente nos amigamos, ouso chamá-lo de Paulinho, assim, no diminutivo. Taí a aparente coisa pequena, mas diminutivo este que, travestido de carinho, só faz representar o gigante espaço que esta querida figura ocupa em minha vida. Jornalista admirável, amigo generoso.

Desde antes de conhecê-lo pessoalmente, ainda adolescente, fui, assim como muito porto-alegrense que conheço, ouvinte assíduo do Cultura Jazz, apresentado por ele anos 90 e 2000 adentro. Nem sei quantas vezes me peguei embasbacado por tamanhos conhecimento e paixão de Paulinho a tudo que nos apresentava. E sempre com muita generosidade. Jovem admirador do gênero, foi no Cultura Jazz que meu gosto se expandiu. Não fosse, o coração abarcador do professor Paulinho, jamais haveria mais este fã de jazz que aqui vos fala.

Mas não só isso. O jazz e a música, por maior que seja, é uma fração de tudo isso que ele representa. Os trânsitos entre nós pelo cinema, literatura e futebol vieram em decorrência. Lembro da alegria dele ao encontrar a minha esposa Leocádia, a meu irmão Cly Reis e a mim no Vivo Rio para o show de Wayne Shorter e Herbie Hancock, em 2016, a qual ele, em razão de outros conterrâneos também presentes, de "caravana jazzística gaúcha". Ou quando, ano passado, na última vez que o vi pessoalmente, mesmo sem ter participado da edição como autor, foi (generosamente) prestigiar a mim e aos outros colegas de ACCIRS no lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”. O comentário elogioso dele para minha mãe, que também prestigiava, referindo-se a mim e a meu irmão denota essa nobreza pauliniana.

Paulinho entre eu irmão e eu: generosidade e amizade

E tudo isso invariavelmente sob este olhar atencioso, principalmente o dele, que afetuosamente me apelidou, em virtude das “esquisitices” ouvidas por mim e compartilhadas nas redes sociais, de “cabeção”. Assumi relativamente o título, que virou inclusive nome de um quadro do meu programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, justamente com esta ideia (e obviamente, dedicado a ele). Por outro lado, a alcunha, dita neste escancarado aumentativo, é grande demais para eu comportar. Afinal, como sempre lhe retruquei, o “cabeção” é ele. Ora: quem me apresentou a rebuscamentos como Toshiko Akiyoshi, a Anthony Braxton, a Carla Bley, a John Zorn ou a Sun Ra é, este sim, o verdadeiro “cabeção”!

Comigo no lançamento do
livro da ACCIRS
Chegou a hora, então, de retribuir ao menos um pouco todas estas camadas de generosidade de Paulinho para comigo e para com a combalida cultura de Porto Alegre. De quinta a domingo (2, 3, 4 e 5 de março), a cidade será agitada pelo I Festival Paulo Moreira, evento coletivo totalmente dedicado a ele, que está precisando de recursos para tratamento de saúde. A primeira edição vai reunir mais de 15 grupos de música instrumental do Rio Grande do Sul, com apresentações no Café Fon Fon, Espaço 373, Gravador Pub e Sala Jazz Geraldo Flach. Toda a renda será revertida ao tratamento de saúde do jornalista. Criado por um grupo de amigos, o projeto foi prontamente abraçado por espaços culturais e artistas da cena gaúcha e contará também com o apoio do cartunista Fraga, que doará obras para venda; dos fotógrafos Daisson Flach, Douglas Fischer e NiltonSantolin, da Atmosfera Produtora; de Texo Cabral e da Reverber Produtora, que farão as captações de áudio e vídeo das apresentações no Gravador, e do Person Piano.

Tentaremos Leocádia e eu estarmos presentes, mas tanto nós quanto qualquer um pode fazer doações de qualquer valor mesmo que não compareça aos shows. Independentemente, é muito bom ter a oportunidade de ajudar este amigo e de poder falar dele desta forma, em vida. Tudo o que em aniversários a gente fica meio intimidado de dizer para não soar demasiado cerimonioso, esta oportunidade abre espaço para extravasar. Afinal, o gigante Paulinho merece tudo, das grandes às pequenas coisas. E aumenta o som aí!

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I Festival Paulo Moreira
Os ingressos por noite custam o preço único de R$ 35,00. Confira os links para comprar no link da bio.
Quem não for aos shows e quiser doar qualquer valor, o PIX é 01510705040 (CPF/ Roberta Brezezinski Moreira).

PROGRAMAÇÃO

2 de março | Quinta-feira | ESGOTADO!
Café Fon Fon (Rua Vieira de Castro, 22 – Bairro Farroupilha)
21h – Thiago Colombo
21h30 – Paulo Dorfman
22h – Júlio "Chumbinho" Herrlein
22h30 – El Trio
23h30 – Quarteto Fon Fon

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3 de março | Sexta-feira | ESGOTADO!
Espaço 373 (Rua Comendador Coruja, 373 – Bairro Floresta)
19h40 – Nico Bueno Café Trio com participação de Bernardo Zubaran
20h30 – Marmota com participação de Nicola Spolidoro e Ronaldo Pereira
22h10 – James Liberato
22h20 – Pedro Tagliani Quarteto

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4 de março | Sábado
Gravador PUB (Rua Conde de Porto Alegre, 22 – Bairro São Geraldo)
Abertura da casa: 14h
Grupos musicais:
15h00 - Paulinho Fagundes, Miguel Tejera e Rafa Marques
15h45 - Instrumental Picumã + Pirisca Grecco
16h45 - Corujazz
17h30 - Rodrigo Nassif Trio
18h15 - Quartchêto
19h00 - Marcelo Corsetti Trio
19h45 - Funkalister
20h30 - Conjunto Bluegrass Porto-Alegrense
21h00 - Hard Blues Trio
21h45 Antonio Flores

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5 de março | Domingo | ESGOTADO!
Sala Jazz Geraldo Flach
18h00 – João Maldonado Trio, com a participação especial de Ayres Potthoff
19h00 – Nicola Spolidoro, Caio Maurente e Luke Faro
20h00 – Luciano Leães, Cristian Sperandir, Paulinho Cardoso, Fernando do Ó e Ronie Martinez


texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa

quinta-feira, 7 de julho de 2022

John Cale - "HoboSapiens" (2003)

 

“Eu tento encontrar coisas que me deixam desconfortável.”
John Cale

David Bowie carrega com justiça a alcunha de camaleão do rock por tudo que fez e representa. Porém, ninguém vai tão a fundo no trânsito entre o pop e o underground do que John Cale. Versátil e caleidoscópico, o ex-Velvet Underground, que chegou aos 80 anos em março, traz desde antes da formação da banda que ajudou a mudar a história da música no séc. XX as mais díspares referências musicais e artísticas, hibridizando-as seja com a naturalidade de erudito ou com a rebeldia de um roqueiro. Para além de Frank Zappa, maestro como ele mas ainda mais radical em suas fusões, Cale soube unir as duas pontas da funcionalidade humana: o orgânico e o instrumento – e ainda ser pop. O mesmo Cale que produziu discos clássicos de Patti Smith e The Stooges, que tocou viola para La Monte Young e John Cage, que embarcou na performance pop-art de Andy Wahrol e que deu as linhas para a geração punk é o mesmo que tem música em filme de “Shrek”, que faz trilhas sonoras de música renascentista e compôs baladas cantaroláveis para a voz de Nico.

Tamanha multiplicidade é tão difícil de se absorver que o próprio Cale só as conseguiu reunir todas a gosto depois de 50 anos de carreira. Após trabalhos das mais diferentes linhas – "Vintage Violence" (1969), pop barroco; "The Academy in Peril" (1972), modern classical; "Slow-Dazzle" (1975), proto-punk; “Church of Anthrax” (com Terry Riley, 1971), minimalismo; “Songs for Drella” (1989, com Lou Reed), art rock; “N'oublie Pas que Tu Vas Mourir” (1995), sonata –, "HoboSapiens", seu 13º da carreira solo, pode ser considerado o da síntese. O conceito está no próprio título: a ideia de ciência, de criação ("robô"), atrelada à uma consciência originária, aquilo que determina o saber da espécie ("sapiens"). Mas a sonoridade de “HoboSapiens” vai ainda além, visto que se vale de todas estas e outras referências anteriores e ainda as amalgama com o synth-pop e o experimental da modernidade.

A brilhante "Zen" abre com a qualidade sintética que é comum às primeiras faixas dos discos de Cale, que articula com habilidade a difícil química entre atonalismo e música pop para impactar de saída assim como fez com "Fear Is A Man's Best Friend" ("Fear"), "Child's Christmas In Wales" ("Paris 1919"), "My Maria" ("Helen of Troy") ou "Lay My Love" ("Wrong Way Up", com Brian Eno). O conceito "HoboSapiens", assim, é acertado no alvo: de cara, ouvem-se ruídos que parecem saídos da natureza. Porém, em seguida percebe-se que este som é manipulado por instrumentos eletrônicos, ou seja, não-natural. Este, por sua vez, transforma-se numa base, que mantém o clima denso e suspenso para entrar uma batida programada de acordes mínimos, suficientes para formar um ritmo funkeado.

Pop-rock de alto nível vem na sequência com "Reading My Mind" e “Things”, esta última, aliás, que Cale espelhará na segunda parte do disco com a sua versão B, “Things X”, mostrando que é incontrolável sua tendência velvetiano de “sujar’ a melodia. União de opostos. "Look Horizon", no entanto, volta a “problematizar”, injetando um clima soturno com uma percussão abafada e o tanger de seu instrumento-base, a viola, que acompanha a elegante voz do galês. Mas a criatividade transgressora de Cale não fica somente nisso. Lá pelas tantas, a música dá uma virada para um funk contagiante com lances egípcios, que dialogam com a letra: “Atravessando o Nilo/ A Terra do Faraó está desenterrando seu passado/ Os amuletos quebrados da história/ Espalhados em nosso caminho”. Assim como “Zen”, das matadoras do álbum.

O caleidoscópico Cale, que chegou aos
80 anos em março
"Magritte" novamente traz uma batida mínima, que apenas ajuda a formar a base para um cello, teclados em contraponto e um baixo escalonando, numa pegada parecida com temas já muito bem usados por Cale anteriormente, como “Faces and Names” (“Songs for Drella”) e “Cordoba” (“Wrong Way Up”). Resgatando outra figura histórica como é costumeiro (“Graham Greene”, "John Milton" e “Brahms” já lhe foram tema, por exemplo), em "Archimedes" Cale brinca com o gênero synth pop, que oferece um arranjo especial para a melodiosa canção. Mais orgânica, “Caravan” é um ótimo rock cadenciado, que antecede outra grande do álbum: "Bicycle". Com participação de Eno nos loops, os quais praticamente forjam o riff, que se forma sobre uma batida funk e um baixo pegando firme no grave. A letra? Para quê?! Apenas saborosos melismas, que acompanham o ritmo “Too-too roo-roo...” nas vozes de Cale e Daria Eno, filha do parceiro.

Cale não para, provando para os que desconfiavam à época do lançamento que o velho músico vinha com tudo após 7 anos sem um trabalho autoral. Com muita cara de Depeche Mode e da Smashing Pumpkins de “Adore”, "Twilight Zone" é um exemplo maduro do synth pop. "Letter from Abroad", a subsequente, contudo, é outra das destruidoras. Uma sonoridade típica árabe dá os primeiros acordes como que sampleados, visto que repetidos em trechos simétricos. Isso, para entrar um ritmo funkeado. Percussões, rosnados de guitarra, acordes soltos de piano, vozes que rasgam e se cruzam, coro em contracanto. Letrista de mão cheia, em “Letter...” Cale experimenta sua veia literata: “É uma pequena cidade esquálida com uma beleza tênue/ As molhadas frias manhãs são tão atraente/ Pessoas acordar de repente no meio da noite/ Muito desapontado”.

Para acabar, uma daquelas músicas que já saem grandiosas do forno: "Over Her Head". Com a amplitude sonora de outras de sua autoria, “Forever Changed”, de “Songs for Drella”, ou "Half Past France" ("Paris 1919"), prossegue com um piano bastante clássico e efeitos de guitarras até quase o final para, então, entrar a banda com tudo e terminar lá em cima sob os acordes os dissonantes da inseparável viola dos tempos de The Theatre of Eternal Music e Velvet Underground. Junção radical e inequívoca do rock com a vanguarda.

Tão versáteis como Cale? Poucos. Bowie, Byrne... Ryuichi Sakamoto talvez seja um caso, porém quase nunca como cantor front man. Quincy Jones é outro, senhor de todos os estilos da música negra norte-americana mas que, no entanto, também passa muito mais pela figura do compositor e produtor e, ademais, bem longe do indie. Os brasileiros Gilberto Gil e Caetano Veloso, idem: trânsito pelos mais diferentes gêneros, só que distantes da cena rock propriamente dita. Isso faz com que Cale seja, por todos estes motivos, único. Ele chega aos 80 anos de vida e quase 60 de carreira com uma obra tão vasta como a sua importância e seu cabedal. Como todo bom roqueiro, mantém acesa a chama do inconformismo. Por outro lado, acumula conhecimentos que circulam somente pela nobreza. Mas o que o diferencia é, justamente, a veia rocker: ao invés de harmonizar as inúmeras referências que absorve, ele as digladia, choca-as, embate-as, como que para provocar o estranhamento entre o orgânico e o instrumento, a consciência e a tecnologia, o inato e a ciência, o saber e a criação. Sua música, assim, encontra uma zona de perturbação que a torna improvável e seus métodos para evidenciar essa tese são os mais originais e transgressores. Por isso tudo, ele – e somente ele – pode ser chamado de um clacissista selvagem. Ou vice-versa.

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FAIXAS:
1. "Zen" - 6:03
2. "Reading My Mind" - 4:11
3. "Things"- 3:36
4. "Look Horizon" - 5:40
5. "Magritte" - 4:58
6. "Archimedes" - 4:40
7. "Caravan" - 6:43
8. "Bicycle" - 5:05
9. "Twilight Zone" - 3:49
10. "Letter from Abroad" - 5:10
11. "Things X" - 4:50
12. "Over Her Head" - 5:22
Faixa bônus da versão em CD:
13. "Set Me Free" - 4:32
Todas as composições de autoria de John Cale

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 21 de março de 2022

Suzanne Vega - “99.9 F°” (1992)

 

“'Foi muito emocionante trabalhar com ele, porque a música era sua paixão e ele sabia muito sobre isso.”
Suzanne Vega sobre Mitchell Froom, em entrevista de 2017

"Você me parece/
Como um homem/
A ponto de queimar/
99,9 graus Fahrenheit"
Da letra da faixa-título

Dizem que as paixões são febris. Intensas, podem durar pouco como o fulgurante instante de um gozo, mas nem por isso - na verdade, inclusive por isso – deixam de ficar marcadas para sempre na pele de quem sente. E quando se juntam paixão carnal e espiritual, então! Aí o ser humano atinge o raro momento de completude. Suzanne Vega pode dizer que viveu um momento assim há exatos 30 anos. Cantora e compositora de mão cheia e poetisa afiada, esta nova-iorquina filha de um escritor e de uma professora traz na voz doce e afinada a pronúncia cristalina de um inglês o qual se vale com sensibilidade e inteligência literária, buscando referências tanto nas feministas quanto na geração beat. De ouvido raro, adiciona ainda à sua musicalidade a música brasileira, latina, celta e do Oriente. Foi com essa personalidade única que Suzanne surgiu com seu folk pop para o showbizz no elogiado disco de estreia, em 1985. 

No entanto, já no segundo trabalho, “Solitude Standing”, de dois anos depois, aconteceu-lhe o que todo artista pop almeja: fama. O hit “Luka”, 3º lugar na Billboard Hot 100 e indicado a Grammy em três categorias, estourou e tornou-a mundialmente conhecida. Porém, perigosamente estigmatizada. Suzanne Vega havia virado sinônimo de “Luka”. O que poderia ser bom para muito artista descompromissado com sua obra, para alguém como ela, que sabia ter muito ainda a dizer, definitivamente não era. Parafraseando a letra da própria música, Suzanne precisava sair daquele mesmo segundo andar em que Luka morava e mudar-se para outro lugar longe dali. 

Depois de “Solitude...”, veio ainda o belo “Days of Open Hand”, de 1990, nova parceria com o produtor e arranjador Anton Sanko, com quem havia obtido o seu até hoje maior êxito comercial. Mas Suzanne sentia que precisava de algo mais, algo que a movesse, que a desacomodasse. Que fizesse pulsar seu coração de forma diferente. Uma paixão. Foi então que o destino lhe pôs na frente o músico e produtor Mitchell Froom, que havia trabalhado com Elvis Costello e Los Lobos. Suzanne e Froom identificaram-se, apaixonaram-se e passam a viver sob o mesmo teto, tanto do estúdio quanto de casa. Num intervalo de 6 anos, casaram-se, tiveram uma filha, Ruby, e produziram dois discos, os melhores da carreira de Suzanne: “Nine Objects of Desire”, de 1996, e o primeiro em colaboração: o não coincidentemente intitulado “99.9 F°”: a temperatura do corpo, correspondente a 37,72°C, a partir da qual pode-se considerar que alguém está com febre.

O disco, de fato, respira essa ruptura artística e pessoal de Suzanne, que urgia mostrar isso. O recado é dado já no primeiro verso de “Rock in this Pocket”, a impressionante faixa de abertura em que ela diz elegantemente, como lhe é característico, mas de maneira abertamente confessional: "Desculpe/ Se eu puder/ Volte sua atenção/ A meu caminho/ Um momento/ Eu não vou implorar/ Não é muito/ É o que eu preciso". E que refrão! (“And what's so small to you/ Is so large to me/ If it's the last thing I do/ I'll make you see” - “E o que é tão pequeno para você/ É tão grande para mim/ Se é a última coisa que eu faço/ Eu vou fazer você ver”). A ideia do álbum está já toda ali, em brasa: sonoridade moderna, discurso intimista, texturas, poesia e a evolução conceitual de uma artista parindo a si própria para uma nova vida.

Em “99.9F°”, mantém-se a seresteira da tradição voz e violão e a criadora de "chicletes de ouvido" melodiosos, mas adiciona a isso a visão de uma mulher madura, sensualizada e de veias pulsantes. É esta a ideia da brilhante “Blood Makes Noise”, em que uma programação eletrônica engendra um ritmo que supõe o som de um fluxo sanguíneo, como se fosse possível captar - e transformar em música - a sensação de um corpo afogueado de tesão, de urgência. A sonoridade dá forma a esta nova proposta na injeção pertinente de sons sintetizados, vestindo a música naturalmente criativa dela com uma roupagem moderna. Longe da singeleza melancólica de “Luka”, dá pra ouvir até os respiros de Suzanne enquanto canta este rap estilizado e potente: “Mas o sangue faz barulho/ É um zumbido no meu ouvido/ O sangue faz barulho/ E eu não posso ouvi-lo/ No espessamento do medo”.

O excelente clipe de "Blood Makes Noise"
dirigido pelo alemão Nico Beyer

A faixa-título, por sua vez, leva ainda mais às entranhas a dicotomia carne/espírito. Se “Blood...” emula através de sons mecânicos a ideia de um organismo vivo, “99.9° F” reconduz a artista a origens selvagens, instintivas. Numa espécie de tribal pop, Suzanne dança nua em plena floresta para atrair o seu amor: “Algo legal/ Contra a pele/ É o que você/ Pode estar precisando”. Prenúncio de sexo quente.

Já na lírica “In Liverpool”, outra joia do disco, vê-se a cantora e compositora de temas melodiosos como “Night Vision”, de “Solitude...”, e “Thin Man”, do posterior “Nine...”, certeira em sua delicadeza. Tão lírica que foi a música escolhida por Suzanne para dividir os vocais com o tenor italiano Luciano Pavarotti em “Pavarotti & Friends”, daquele mesmo 1992. Aliás, lirismo este o qual a norte-americana nunca abandonou. Com “Blood Sings”, que vem na sequência, ela reitera a temática "blood on the tracks" do disco – já a essas alturas o mais ousado de sua carreira. Porém, fez resgatando a singer woman dos primórdios. Somente voz e violão de aço tocado com dedos chorosos e uma melodia primorosa, a la Bob Dylan e Leonard Cohen, dois de seus ídolos, igual os que ela inundou seu primeiro disco, em 1985. “Quando o sangue vê sangue/ De si próprio/ Ele canta para se ver novamente/ Ele canta para ouvir a voz que é conhecida/ Ele canta para reconhecer o rosto”. Triste e profundamente bela. 

A ótima banda, que conta com o próprio Froom aos teclados e arranjos, mais Bruce Thomas, ao baixo, Jerry Marotta, bateria e percussão, e David Hidalgo, Tchad Blake e Richard Pleasance, nas guitarras – além de Suzanne no violão base –, dá uma reviravolta no climão deixado pela faixa anterior e engata a simpática “Fat Man And Dancing Girl”. Algo como um eletro-jazz em que se ouve com destaque o baixo, aqui tocado por Jerry Scheff, sob a arquitetura sonora estilosa dada por Froom na mesa de estúdio. Mesma coisa ele faz em “(If You Were) In My Movie”, de ares arábicos como Suzanne já havia feito em “Room of the Street”, de “Days...”, mas agora mais texturizado, encorpado. Por feitos como este, ele recebeu indicação ao Grammy de produtor do ano em 1993 por este disco.

Sequência de fotos da arte do encarte:
Suzanne descobre-se feminina e plena

Já em “As a Child”, Froom põe sua musa a brincar num carrossel de parque de diversões, literalmente, como uma criança, enquanto que “Bad Wisdom”, logo em seguida, quebra de novo o estado de euforia. Introspectiva, tem a cara dos tradicionais temas do folclore norte-americano, especialidade de Suzanne, a se ver pela cara country que ela sabe muito bem imprimir como já o fizera em “Predictions”, de “Days...”, e “Cracking”, do álbum de estreia. E como Suzanne está cantando bem! Impossível não lembrar uma de suas principais referências no canto, a bossa-novista brasileira Astrud Gilberto

Num disco tão peculiar como este, até o “perfect pop” não é, assim, tão “perfeito”. Diferentemente do que fez em exemplos clássicos disso, como “Book of Dreams” e a própria “Luka”, em “When Heroes Go Down” ela não respeita o tempo de duração comum a uma música de trabalho (entre 3min30 e 4min), e condensa a ideia em menos de 2 min! Mas o faz aproveitando cada segundo, visto que é daquelas de sair dançando imediatamente. Com cara de que se está se encaminhando para o final, “As Girls Go”, com um excelente solo de guitarra de Richard Thompson ao final, tem, regendo toda a banda, o violão. O velho violão desde sempre tocado com muita habilidade por Suzanne, outra de suas marcas. 

Pinho, aliás, que encerra triunfalmente um álbum surpreendente até nisso. Se começou e se manteve repleto de efeitos e experimentações, agora baixa a rotação e aposta na simplicidade do acústico. “Songs of Sand”, deprê, mas absolutamente poética em letra e melodia, faz Suzanne remeter ao violão perfeito e a colocação exata das frases vocais de Nick Drake. As cordas, arranjadas por Froom, adensam ainda mais essa atmosfera. É o violão também que volta puro novamente na valseada “Private Goes Public” (faixa adicional da edição europeia), em que se ouvem apenas as cordas para finalizar o repertório: as do seu vocal e as do instrumento.

Mesmo com esse encerramento, “99.9F°” é, nos seus contornos e contrastes, um instante de êxtase. Naquele começo de anos 90, Suzanne sabia que nunca mais faria o sucesso que fez com “Luka”, e pelo visto nem desejava isso. Queria, a partir de então, satisfazer-se, estar plena como mulher e artista, e em Mitchell Froom ela encontrou abrigo para tal aspiração existencial. Mas como o fogo dos arrebatados, a chama foi arrefecendo. Como uma fogueira acesa, ainda teve força para iluminar o sensual “Nine...”, registro daquele momento da relação em que ainda desconfiavam se o ardor poderia transformar-se em amor eterno. Não aconteceu: Suzanne e Froom separaram-se e nunca mais voltaram a trabalhar juntos. A temperatura, antes febril, foi baixando cada vez mais no ponteiro do termômetro até voltar a um grau de normalidade corporal. A paixão, tal uma enfermidade deleitosa, enfim, passou. Suzanne, hoje casada há 16 anos com outro homem, talvez veja um disco como 99.9F°”, gravado há três décadas, como algo valioso mas pertencente a um passado muito distante. Da MPB que ela tanto adora, talvez se enxergue naqueles sábios versos de Chico Buarque“vestígios de estranha civilização”.  Já Froom, por sua vez, quem sabe ainda pense consigo mesmo ouvindo a mesma música: “Futuros amantes, quiçá/ Se amarão sem saber/ Com o amor que eu um dia/ Deixei pra você”.

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FAIXAS:
1. “Rock In This Pocket (Song Of David)” - 3:31
2. “Blood Makes Noise” - 2:28
3. “In Liverpool” - 4:41
4. “99.9F°” - 3:15
5. “Blood Sings” - 3:18
6. “Fat Man And Dancing Girl” - 2:18 (Mitchell Froom/ Suzanne Vega)
7. “(If You Were) In My Movie” - 3:06
8. “As A Child” - 2:56
8. “Bad Wisdom” - 3:22
9. “When Heroes Go Down” - 1:54
10. “As Girls Go” - 3:26 (Nils Petter Molvær/ Vega)
11. “Private Goes Public” - 1:57
Todas as composições de autoria de Suzanne Vega, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues