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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019
Música da Cabeça - Programa #96
Agora que Estados Unidos e Rússia inventaram de reaquecer a guerra que já foi fria, preparemos, nós, as nossas ogivas. Mas as ogivas sonoras, claro, aquelas carregadas de Ben Harper, Cartola, Os Replicantes, Brian Eno, Fernanda Abreu e muito mais. Isso e ainda nossos quadros “Música de Fato”, “Palavra, Lê” e “Cabeça dos Outros”. Mísseis audíveis a longas distâncias serão lançados no Música da Cabeça de hoje, direto da usina da Rádio Elétrica, às 21h. Produção, apresentação e bombardeios: Daniel Rodrigues.
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
segunda-feira, 10 de setembro de 2018
T-Rex - "The Slider" (1972)
Foi uma música
que mudou a minha vida.
Eu nunca tinha ouvido
nada tão bonito e tão estranho,
e ainda assim tão cativante.“
Johnny Marr,
Ex-guitarrista do The Smiths
Marco do glam-rock, “The Slider”, álbum da banda britânica
T-Rex confirmava uma recente idolatria em torno de seu líder, o carismático e
sagaz Marc Bolan. O Tyrannossaur Rex, nome
original da banda que ficou mesmo conhecida por sua simplificação abreviada, contava,
entre tantos fãs com a admiração de ninguém menos que David Bowie, fã
declarado, que, de certa forma, se inspiraria em toda a proposta
estético-sonora de Bolan e sua turma para construir seu ícone Ziggy Stardust. Enquanto a produção ficava a cargo de Tony
Visconti, parceiro de Bowie no álbum "Space Oddity", a arte do álbum, marcante, com Bolan usando uma
cartola, foi concebida por ninguém menos que o Beatle Ringo Starr,
também admirador confesso do trabalho do T-Rex. Estava mal de fãs o T-Rex?
Bowie e Ringo?
A gostosa “Metal Guru” e a envolvente “Telegram Sam”, que posteriormente viria a ganhar uma versão bem interessante pela banda Bauhaus, foram os grandes sucessos do disco mas o
ótimo “The Slider” não se limitava a estas duas. A faixa título é contidamente pesada, “Rock On” e “
Buick Mackane” são rocks venenosos e contagiantes, enquanto a adorável “Mystic Lady” e a balada acústica “Ballroom of Mars” são momentos mais suaves nos quais Bolan desfilava todo o
potencial de seu vocal ácido e elegante.
“The Slider” é um dos discos mais importantes e um dos mais
influentes da história do rock, tendo inspirado um grande número de artistas a
partir de seu lançamento, tanto estética quanto musicalmente. Que o digam Morrissey, Green Day, Bauhaus, Siouxsie, My Chemical
Romance, R.E.M., só para ficar em alguns.
***************
FAIXAS:
1. "Metal
Guru" (2:25)
2. "Mystic
Lady" (3:09)
3. "Rock On" (3:26)
4. "The Slider" (3:22)
5. "Baby Boomerang" (2:17)
6. "Spaceball Ricochet" (3:37)
7. "Buick Mackane" (3:31)
8. "Telegram Sam" (3:42)
9. "Rabbit Fighter" (3:55)
10. "Baby Strange" (3:03)
11. "Ballrooms of Mars" (4:09)
12. "Chariot Choogle" (2:45)
13. "Main
Man" (4:14)
Ouça:
por Cly Reis
segunda-feira, 30 de abril de 2018
Copa do Mundo The Smiths - Final
Chegou o grande momento!
Chegou a hora da tão esperada final.
"Girl Afraid", canção que oficialmente não saiu em álbum, mas aparece na compilação Hatful of Hollow mas que aparece em outras coletâneas da banda de Manchester, com bravura, derrubando adversários difíceis, chega à final para encarar "There's A Light That Never GosOut", canção do clássico disco "The Queen Is Dead", considerado por muitos o melhor do grupo, e por outros tantos até mesmo, o melhor álbum de rock de todos os tempos. Será?
Chegou a hora da tão esperada final.
"Girl Afraid", canção que oficialmente não saiu em álbum, mas aparece na compilação Hatful of Hollow mas que aparece em outras coletâneas da banda de Manchester, com bravura, derrubando adversários difíceis, chega à final para encarar "There's A Light That Never GosOut", canção do clássico disco "The Queen Is Dead", considerado por muitos o melhor do grupo, e por outros tantos até mesmo, o melhor álbum de rock de todos os tempos. Será?
Mas aqui não importa fama, cartaz, favoritismo. Tudo se decide dento de campo e, como diria aquele antigo narrador, "Você quer bola rolando? Ta aí o que você queria!".
***
GIRL AFRAID
x
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT
Fernanda Calegaro: No início, pensei que a competição acabaria em uma final sarcástica entre Heaven Knows I’m Miserable Now e This Charming Man, por exemplo. Mas nossa final transporta ao parque de diversões, sendo assim, There’s a Light That Never Goes Out desempata no início do segundo tempo e avança com dois golaços pra montanha-russa alguma ficar entediante. 5X3.
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!
Eduardo Almeida: E chegamos a final. Grandes equipes ficaram pelo caminho. Confesso ter ficado surpreso com essa final. Mas como já diziam: futebol é uma caixinha de surpresas. Duas equipes fortes com táticas distintas. Ritmos de jogo diferentes. E com calma, There's a Light marca seu gol e termina o primeiro tempo na frente. Pra quem achava que com seu ritmo mais acelerado, Girl Afraid não iria manter a velocidade do seu jogo, se enganou. Voltou pro segundo tempo com um ritmo mais cadenciado, e empata o jogo logo no início. Ambas as equipes tem boas oportunidades de marcar, mas suas defesas estão atentas. Até que dá um apagão na defesa de There's A Light, e Girl aproveita e vira o jogo. TIALTNGO parte pra cima, aperta GIRL, coloca duas bolas na trave, mas não tem sorte. O goleiro chega ir para a área adversária para tentar um gol que levaria a um empate e a decisão por penaltis. Mas não conseguem..... Final: Girl Afraid 2 X 1 There's A Light That Never Goes Out.
GIRL AFRAID vence!
José Júnior: Estádio lotado, garotas e garotos medrosos... chegou a grande final. Girl Afraid começa o jogo com um ataque melódico. There's A Light That Never Goes Out toma a posse da bola e começa o jogo marcando um gol de letra. GA reage empatando o placar. Dois timaços, duas músicas emblemáticas dividem a atenção da platéia, onde não há vaia, somente gritos de torcidas unidas. E a bola corre como se um caminhão de dez toneladas a mantivesse no chão. There's A Light dribla, num estilo Garrincha, e manda o gol da vitória!
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!
Patrícia Ferreira: O jogo que tem There Is A Light That Never Goes Out com a força da torcida. Encara Girl Afraid que vai pra cima atacando com veemência. Quase há um empate ... Ops!!! Mas o tira-teima mostrou a real vencedora: There is light
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!
Daniel Rodrigues: O placar pode até dar a entender que foi um jogo de igual pra igual. De dois adversários de qualidade, foi com certeza. “Girl”, mais que o azarão que chegou até a final depois de passar por clássicos como “The Queen is Dead” e “The Boy With The Thorn In His Side”, é, sem dúvida nenhuma, uma grande música dos Smiths. Guarda vários dos elementos essenciais da banda: guitarra original de Marr, bateria possante de Joyce, baixo surf music de Rourke e, claro, a performance e letra irrepreensíveis de Morrissey. No outro lado do campo, no entanto, tem “There’s”, das mais célebres canções da banda, um de seus hinos. Balada sensível daquelas que tocam sempre que se escuta. Como disse no início, parecia um jogo equilibrado. Foi assim que o primeiro tempo transcorreu: “There’s” larga na frente ali pelos 25 min e 10 min depois “Girl” empata. Tudo igual. Só que no segundo tempo, pesou a camiseta. Para bem e para mal. “Girl”, atrevida e de jogo contagiante, mostrou que tinha dado tudo que podia na Copa, e não conseguiu resistir ao volume de jogo coeso e bem estruturado de There’s”. O hit de “The Queen is Dead” impôs seu estilo cadenciado e marcante e guardou, aos 32 min, o gol da vitória. O gol do título. 2 x 1 para “There’s”, que se consagra a campeã da Copa Smiths!
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!
Cly Reis: Duas grandes equipes chegam à final. Girl Afraid menos badalada quando se fala em paradas de sucesso ou predileção dos fãs, e There's A Light That Never Goes Out gozando do status de megahit e semi-hino smithiano. Nessa avaliação, vemos TIALTNGO com um leve favoritismo, mas o rock'n roll é uma caixinha de surpresas e, como já diria aquele folclórico cartola, o jogo só acaba quando termina.
Pois bem, e não é que Girl Afraid já sai surpreendendo com um gol na primeira jogada? Aquele riffzinho inicial de Johnny Marr garante 1x0 no placar antes do primeiro minuto de jogo. Mas There's A Light não deixa por menos e também em sua primeira incursão ao ataque, aquela introdução que precede o primeiro verso de Morrissey, e que sempre me faz amolecer as pernas, garante o empate. 1x1 em menos de três minutos. Que jogo, senhoras e senhores!!!
O jogo continua com as equipes trocando ataques nas suas caraterísticas, Girl Afraid um pouco mais impetuosa, TIALTNGO mais cadenciada, mas ambas levando perigo ao gol adversário. Até que o refrão de There's A Light That Never Goes Out desequilibra: "And if a double-decker bus/ Crashes into us/ To die by your side/ Is such a heavenly way to die". Aquele desprendimento da vida em noe de ficar ao lado da pessoa amada é um golaço indefensável. Girl Afraid sente o gol, fica meio perdida em campo e na seuqência, na segunda parte do refrão, "And if a ten-ton truck/ Kills the both of us/ To die by your side/ Well, the pleasure - the privilege is mine", leva outro. É a pá de cal. There's A Light dá números finais ao jogo. 3x1. Soa o apito final e THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT
CAMPEÃ DA
COPA DO MUNDO
THE SMITHS
Obrigado aos convidados Patrícia Ferreira, Fernanda Calegaro, Eduardo Almeida, José Júnior, Cláudia B. Melo e João Carneiro que participaram dessa nossa brincadeira. Vocês foram demais!
terça-feira, 17 de abril de 2018
A Dona do Samba
Lembro que nas primeiras aulas de redação da faculdade de Jornalismo, meu professor Vitor Necchi nos ressaltou que a regra para se chamar pessoas num texto jornalístico era ou o nome completo ou, nas repetições do mesmo, o sobrenome para homens e o primeiro nome para mulheres. A exceção à regra eram personalidades especiais, cujo nome diferenciava-se dos outros por si. Casos em que o nome representava mais do que simplesmente uma certidão, mas, sim, um status, uma classificação, uma imposição daquilo que a pessoa se transformara e representara em vida.
Alguns exemplos, rememoro, eram Mãe Menininha do Gantois, Dona Canô e Mestre Marçal. E Dona Yvone Lara. Aos 97 anos, recém completos no último 13, praticamente a mesma idade do gênero musical que ela ajudou a forjar e desenvolver harmônica e melodicamente, o samba, Dona Yvone parte. Corpo debilitado de quem, como todo preto do subúrbio da primeira metade do século XX (e ainda, mulher), precisou trabalhar duro a vida toda – no caso dela, a enfermagem e o serviço social, que exercera durante décadas até se aposentar, sem, contudo, nunca deixar a batucada de lado. Mas a mente lúcida, criativa, incansável. Diz que levou para o céu 40 composições novas.
Mesmo a idade avançada e a saúde fraca há anos não são suficientes para amenizar o vazio que se faz presente. Vazio que toma a quadra do Império Serrano, como uma cuíca chorosa que, de repente, para de chorar, substituída pelo silêncio. Ao menos hoje, é o que se sente. Ficam vagando, no lugar, as melodias elegantes de quem estudara com Heitor Villa-Lobos ,mas que, ao natural, instintivamente, já de antes das aulas com o maestro adicionava elementos bachianos ao samba. Quem haveria de contrariar ao ouvir “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço”, “Confesso”, “A Sereia Guiomar”, “Aprendi a Sofrer”? Como ela, neste sentido, só Cartola.
Acordo sempre com alguma música na cabeça. Sei que havia uma das milhares que me ocorrem ao acordar hoje, mas não lembro mais qual. Ao saber da notícia da morte de D. Yvonne, imediatamente a esqueci, e minha mente (ou meu coração) escolheu para rodar “Força da Imaginação”, a luxuosa parceria dela com Caetano Veloso. Estão aqui seus acordes e seus versos, ainda agora, enquanto escrevo essas linhas de lamentação. Quero acreditar e acredito nos seus versos:
"Quando um poeta compõe mais um samba
Ele funda outra cidade
Lamentando a sua dor ele faz felicidade
Força da imaginação
Na forma da melodia
Não escurece a razão
E ilumina o dia-a-dia”
Parte, Dona Yvone, com a força da tua música, dos repiques do samba, das melodias bachianas, da potência de fundar uma cidade. Parte com a alcunha que poucos, pouquíssimos, tiveram e terão o merecimento de serem redigidos fora do padrão. É pra quem pode.
Alguns exemplos, rememoro, eram Mãe Menininha do Gantois, Dona Canô e Mestre Marçal. E Dona Yvone Lara. Aos 97 anos, recém completos no último 13, praticamente a mesma idade do gênero musical que ela ajudou a forjar e desenvolver harmônica e melodicamente, o samba, Dona Yvone parte. Corpo debilitado de quem, como todo preto do subúrbio da primeira metade do século XX (e ainda, mulher), precisou trabalhar duro a vida toda – no caso dela, a enfermagem e o serviço social, que exercera durante décadas até se aposentar, sem, contudo, nunca deixar a batucada de lado. Mas a mente lúcida, criativa, incansável. Diz que levou para o céu 40 composições novas.
Mesmo a idade avançada e a saúde fraca há anos não são suficientes para amenizar o vazio que se faz presente. Vazio que toma a quadra do Império Serrano, como uma cuíca chorosa que, de repente, para de chorar, substituída pelo silêncio. Ao menos hoje, é o que se sente. Ficam vagando, no lugar, as melodias elegantes de quem estudara com Heitor Villa-Lobos ,mas que, ao natural, instintivamente, já de antes das aulas com o maestro adicionava elementos bachianos ao samba. Quem haveria de contrariar ao ouvir “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço”, “Confesso”, “A Sereia Guiomar”, “Aprendi a Sofrer”? Como ela, neste sentido, só Cartola.
Acordo sempre com alguma música na cabeça. Sei que havia uma das milhares que me ocorrem ao acordar hoje, mas não lembro mais qual. Ao saber da notícia da morte de D. Yvonne, imediatamente a esqueci, e minha mente (ou meu coração) escolheu para rodar “Força da Imaginação”, a luxuosa parceria dela com Caetano Veloso. Estão aqui seus acordes e seus versos, ainda agora, enquanto escrevo essas linhas de lamentação. Quero acreditar e acredito nos seus versos:
"Quando um poeta compõe mais um samba
Ele funda outra cidade
Lamentando a sua dor ele faz felicidade
Força da imaginação
Na forma da melodia
Não escurece a razão
E ilumina o dia-a-dia”
Parte, Dona Yvone, com a força da tua música, dos repiques do samba, das melodias bachianas, da potência de fundar uma cidade. Parte com a alcunha que poucos, pouquíssimos, tiveram e terão o merecimento de serem redigidos fora do padrão. É pra quem pode.
Recebam-na com um pagode festivo aí, amigas Jovelina e
Clementina.
"Tristeza rolou dos meus olhos de um jeito que eu não queria".
Paciência.
Parte, Dona do Samba, com um sorriso e um abraço negro.
.........................
"Mas quem disse que eu te esqueço" - Dona Yvone Lara
.........................
DONA IVONE LARA
(1921-2018)
Daniel Rodrigues
sábado, 10 de março de 2018
Elas metem medo
As canadenses irmãs Soska nomes de destaque na nova cena feminina do terror. |
Mas os novos tempos, o surgimento de um novo pensamento no tocante a gêneros e uma nova atitude feminina, associada à abertura, ainda que pequena, de oportunidades e confiança por parte de produtores fez surgir uma nova geração de cineastas "de saias" cheia de ideias, vigor e talento. Desatreladas dos padrões estabelecidos como "femininos", elas abordam, sim, assuntos pertinentes à sua condição de mulher, mas o fazem de maneira mais inventiva, ousada e reflexiva. No terror, por exemplo, estilo cujos princípios básicos sempre foram veementemente apartados das mulheres desde suas infâncias ("menina não vê essas coisas", "isso é muito nojento", "tem que ver filme de princesa"...), e no qual muito raramente figuravam até dez, quinze anos atrás, parece agora encontrar uma safra criativa, madura e livre dessas amarras estéticas e morais capaz de produzir bons trabalhos e imprimir sua identidade. Selecionamos, aqui, alguns destes filmes dirigidos por mulheres que mostram que elas começam a se destacar num dos gêneros até então mais predominantemente masculinos do cinema, com bons argumentos e trabalhos muitíssimo bem realizados. Podem começar a ficar com medo porque elas estão chegando.
1. "O Babadook", de Jennifer Kent (2014) - Um dos filmes de terror mais assustadores dos últimos tempos numa história repleta de símbolos e metáforas que aborda temas como perdas, a maternidade sozinha e estados psicológicos conflitantes e relação a um filho, com muita criatividade e inteligência.
Amelia perde o marido em um acidente de carro no dia em que está para ter seu bebê e a partir dali passa a, de certa forma, responsabilizar o filho pela perda e a todos os problemas decorrentes daquela ausência, nunca dedicando o amor e a dedicação que deveria a ele. O menino Samuel, com 6 anos, tem problemas de comportamento na escola, um temperamento difícil e uma mente muito inventiva e a mãe não lida nada bem com nenhuma destas situações tratando-o com indiferença, negligência e até raiva. Num dos raros momentos em que reúne paciência para dar alguma atenção ao garoto, resolve ler para ele e encontra na estante um livro que não conhecia chamado Mister Babadook e aí que os problemas começam de verdade pois o personagem do livro, um homem de capa, cartola, corpo esticado e unhas enormes, lembrando um figura de expressionismo alemão, começa a atormentar e ameaçar o garoto e a mãe e, pelas páginas do livro anuncia que não irá deixá-los em paz.
Talvez a criatura seja somente fruto da mente confusa e inventiva de Samuel, talvez seja realmente apenas um livro do mal, talvez o pai retornando do além, ou ainda, talvez seja nada menos do que o próprio estado mental de Amelia em relação ao filho e a projeção e materialização de sua negação a ele, da qual ela só conseguirá se livrar se conseguir lidar com isso.
2. "Raw", de Julia Ducournau (2016) - Terror forte, intenso, pesado, chocante, com cenas gráficas de canibalismo mas que não deixa de trazer assuntos interessantes à tona. Maturidade, sexualidade, autodescoberta e autoaceitação são alguns dos temas presentes em "Raw" , ótimo filme da francesa Julia Ducournau de apenas 34 anos.
Uma garota vegetariana que acaba de entrar na faculdade de veterinária, Justine, em um dos trotes pesados impostos pelos veteranos é obrigada a comer rim de coelho, mudando então drasticamente seu comportamento a partir deste momento, passando não somente a comer carne como a ter atitudes estranhas e assustadoras. A carne parece ter libertado a Justine que estava presa dentro dela. A verdadeira Justine. Uma pessoa que se escondia atrás do vegetarianismo, da virgindade, da pureza, de valores que na verdade talvez não tivessem a importância que ela queria fazer crer. Uma volta ao mais primário instinto do homem. O instinto animal.
3. "Boa Noite, Mamãe", de Veronika Franz e Severin Fiala (2016) - Um dos filmes mais perturbadores que já assisti. "Boa Noite, Mamãe" é tenso do início ao fim. Sua limpidez e calmaria, sem sustos ou sobressaltos, contrasta com a tensão presente no ar o tempo inteiro. Uma mulher volta para casa depois de uma cirurgia plástica no rosto mas seus dois filhos gêmeos, Elias e Lukas, têm dúvidas se aquela mulher que retorna é mesmo sua mãe. A atadura no rosto, sua atitude ríspida, sua indiferença e uma série de outros pequenos indícios fazem com que os garotos, num primeiro momento a confrontem e adiante, a mantenham prisioneira chegando a torturá-la física e psicologicamente em busca de uma confissão e da revelação do paradeiro da verdadeira mãe.
O filme muito bem dirigido pela austríaca Veronika Franz em parceria com Severin Fiala faz questão de deixar uma série de questões em aberto de modo a manter o espectador curioso e intrigado. O que houve com a mulher para que fizesse uma cirurgia plástica? Houve um acidente? Um incêndio? Os meninos teriam algo a ver com isso? Será por isso que a "mãe" proíbe isqueiros? Será por isso que ela ignora um dos gêmeos? E será que realmente são duas crianças?... Assista e tire suas próprias conclusões.
5. "Acorrentados", de Jennifer Lynch (2002) - Essa é filha de peixe! Tem seu talento, tem seu estilo, tem suas próprias ideias mas não dá pra ignorar que ter sido criada no lar de um dos mestes do cinema contemporâneo ajuda muito na formação. E no caso de Jennifer Lynch parece que não apenas na escolha do caminho como na linguagem, uma vez que faz a linha esquisitona do pai com temas sombrios, violentos, surreais e grotescos, o que já ficava evidente em sua estreia com o bizarro "Encaixotando Helena" de 1993. Em "Acorrentados" ela volta ao maníaco obsessivo e dominador desta vez com um taxista que sequestra uma mulher e seu filho na saída do cinema. Bob, o taxista, estupra e mata a mulher mas mantém o garoto de nove anos como prisioneiro e o faz permanecer assim por muitos anos, até a adolescência, acorrentado, sempre presenciando outros sequestros e crimes contra mulheres.
A violência contra a mulher e aquela ideia que muitos homens tem que por usar determinada roupa ou agir de tal maneira a mulher "está pedindo pra ser estuprada" são assuntos evidentes na abordagem da diretora, mas temas como violência doméstica na infância e traumas psicológicos ligados à família também aparecem principalmente no que diz respeito ao vilão Bob.
Esse não é exatamente um terror, mas vindo da família Lynch, no mínimo é de mexer com a cabeça de qualquer um.
6. "Garota Sombria Caminha Pela Noite", de Ana Lily Amirpur (2014) - Uma espécie de justiceira sobrenatural que vaga pelas noites iranianas colocando machões, abusadores e traficantes no seu devido lugar e que, numa dessas perambulações noturnas, topa com Arash, um rapaz envolvido com traficantes e cujo pai é viciado, que está exatamente tentando se afastar daquele universo envenenado de Bad City, a cidade fictícia onde vivem. O encontro dos dois, criaturas que de alguma forma precisam de algo que complete ou que justifique suas vidas, parece frear um pouco os ímpetos da garota e quem sabe, amenizar sua sede de sangue.
Típico cult movie. Preto e branco, cenas longas, diálogos breves, silêncios, quadros estáticos e ação mais psicológica do que prática. Muito interessante a direção de arte que, mesmo com orçamento baixíssimo, mistura elementos dos de épocas diferentes deixando indeterminado o momento em que acontece a ação, bem como a trilha sonora que reforça essa sensação de indefinição de tempo e local, com ênfase em música americana dos anos 80, mas com momentos de música clássica e canções regionais iranianas. Embora seja cheio de referências à cultura e ao cinema americano, "Garota Sombria Caminha Pela Noite", por seu ritmo, sua estética e dinâmica é um daqueles filmes para quem está interessado numa proposta diferente como filmes de arte e "filmes cabeça".
7. "American Mary", de Jen e Sylvia Soska (2012) - Terror com toques de fetichismo. "American Mary" conta a história de uma estudante de medicina que, ainda durante o curso, decepcionada com o universo da profissão que escolhera e vendo sua situação financeira cada dia pior, ao tentar a carreira de stripper sendo que em seu primeiro dia na boate, uma circunstância inesperada faz com que tenha que pôr em prática suas habilidades médicas. a partir dali entra para o ramo de cirurgias clandestinas de modificações corporais executando algumasoperações absolutamente bizarras.
O que começa como uma necessidade financeira que ela realiza cheia de relutância e até repugnância, transforma-se numa atividade sádica e prazerosa e um objeto de vingança.
Forte, sangrento, sádico, "American Mary" de certa forma coloca em discussão os sonhos profissionais, a ética dentro de uma atividade, os caminhos que podem levar uma pessoa a realizar algo fora de seus padrões morais e mais uma vez, os abusos sexuais contra mulheres. Uma boa mostra do cinema das promissoras irmãs Soska que, sem dúvida, tem muito mais coisas interessantes a oferecer.
8. "O Convite", de Karyn Kusama (2015) - Will e sua namorada Kyra são convidados para um jantar com amigos do tempo de colégio e faculdade na casa da ex-esposa dele, Eden, depois de anos sem se verem e de terem superado, ambos, separados, à distância, a tragédia em comum da morte de seu filho. Eden, agora com um novo marido parece refeita e animada, no entanto o convite e o jantar parece esconder algo de muito suspeito que apenas Will parece perceber mas que é ignorado e subestimado pelos demais convidados supondo que a desconfiança de Will se dê em função de todo o trauma que sofrera.
Embora não seja brilhante, o filme tem o mérito de manter essa dúvida de estar ou não acontecendo alguma coisa estranha e o espectador vai sendo absorvido e cada vez mais envolvido na trama em grande parte graças à atuação do ator Logan Marshall-Green que, sendo o centro de observações dos fatos e das ações dos outros personagens, nos transmite todas as sensações com de maneira muito convincente.
O roteiro meio que escorrega lá pela metade, a justificativa toda em si não é das mais válidas, mas a cena final do filme é simplesmente inquietante.
9. "Quando Chega a Escuridão", de Katrhyn Bigelow (1987) - Este provavelmente é o mais fraco da lista mas vai apenas para destacar a diretora que seria a primeira mulher a ganhar um Oscar de melhor direção, aqui ainda em seu segundo longa. "Quando Chega a Escuridão" é uma espécie de terror road-movie- western de vampiros. Entendeu?
Tudo começa quando um rapaz, Caleb, conhece Mae e no fim da noite ela lhe pede uma carona para casa. Só que durante o caminho ela começa a demonstrar algum pânico pela inevitável chegada da manhã e aí, né, já sabemos porquê. Ele não escapa dos dentinhos dela e é lavado até um grupo de amigos da garota, saqueadores e baderneiros, todos vampiros, é claro, onde ele terá que passar por uma prova para entrar para a gangue uma vez que não é bem-vindo.
O filme de Bigelow se distingue de muitos do gênero pelo caráter humano que ela confere às criaturas da noite, não mencionado, por exemplo, a palavra vampiro em momento algum do filme. O roteiro se perde um pouco em alguns momentos, a trama acaba corrida demais e o final fica um pouco em desacordo com o que foi todo o resto do filme mas mesmo assim é interessante observar o crescimento do cinema da cineasta. Com certeza que valeu pela experiência e aprendizado até chegar à estatueta dourada.
10. "O Cemitério Maldito", de Mary Lambert (1989) - Esse é um bônus! Outro que não é da nova geração mas serve bem para ilustrar o trabalho das mulheres no cinema de terror.
Uma família se muda para uma nova casa na beira de uma rodovia movimentada. Lá, o gato da família morre atropelado na estrada destino que muitos outros mascotes já vieram a ter, conforme conta Ju, o vizinho ao dr. Louis Creed, o novo morador. Sensibilizado pela tristeza que a morte do bichano causaria ao menininho, filho de Louis, o velhote revela que ali perto existe um antigo cemitério indígena no qual se crê que quem for enterrado lá volta à vida. O médico usa o artifício com o gato e o resultado é positivo apenas em parte pois o bicho volta à vida mas diferente do que era, muito mais agressivo e perigoso. Vendo, logo em seguida seu filho, Gage, ter o mesmo destino na movimentada estrada, Louis não hesita em enterrá-lo no cemitério dos bichos para trazê-lo de volta mas o retorno do filho é ainda pior do que o do animalzinho de estimação.
Baseado no romance "O Cemitério" de Stephen King e roteirizado pelo mesmo, "O Cemitério Maldito" é um clássico do terror sendo frequentemente lembrado em listas de melhores pelos cinéfilos amantes do gênero. Destaque ainda para o tema musical do filme, "Pet Sematary" dos Ramones, que além da boa história, bom roteiro, maquiagem assustadora e climão aterrorizante, é mais um ponto a seu favor.
Cly Reis
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Música da Cabeça - Programa #35
Em semana em que sir. George Harrison é pauta por mais de um motivo, fica impossível não se elevar o espírito. Assim estará nosso programa hoje: elevado. Isso porque teremos ainda no nosso quadro de entrevistas ‘Uma Palavra’ um papo-cabeça-astrológico-musical com o carioca Waldemar Falcão. O “som dos anjos” dos Cocteau Twins também vão dar o ar da graça, assim como Caetano Veloso e Jorge Mautner, Cartola e Nelson Cavaquinho e outras maravilhas igualmente elevadas. Afinal, estamos falando do Música da Cabeça, que vai ao ar às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e mapa astral, Daniel Rodrigues.
segunda-feira, 20 de novembro de 2017
Gilberto Gil - "Refavela" (1977)
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra” do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê |
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/ Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela" |
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros, buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"
Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"
*******************
FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas
*******************
OUÇA
por Daniel Rodrigues
segunda-feira, 13 de novembro de 2017
Madeleine Peyroux - Teatro Bourbon Country - Porto Alegre/RS (09/11/2017)
Pra começar, um aviso: se você é fã da cantora Madeleine
Peyroux, não siga em frente. Você vai ficar muito irritado e vai me xingar, me
destratar e até vai ter vontade de me dar uns tapas. Por quê? Porque nunca
gostei de sua voz (aquele timbre "billieholidayesco" só funciona com
a própria) e acho que o resultado final de sua música é mediano. Não tem
brilho.
Com seus músicos no palco |
Posto isso, depois de ignorar os shows anteriores dela,
resolvi dar uma chance de ser surpreendido. Afinal, a formação é jazzística -
violão e ukulele mais guitarra e baixo acústico – para o show no Teatro Bourbon
Country, em Porto Alegre. E o guitarrista era o grande Jon Herrington, que toca
com o Steely Dan há muito tempo.
O show começou morno, demorando pra deslanchar. Diga-se a
favor de Peyroux, que ela foi muito simpática ao se comunicar com a plateia em português.
Musicalmente, os altos momentos foram "A Good Man is Hard to Find",
dedicada às mulheres; "Everything I Do Gonna be Funky", do mestre de
New Orleans, Allen Toussaint; e até mesmo "um cantchinho e um
violaaaao", "Corcovado". Em compensação, o pior veio logo
depois: uma versão horrorosa de "Água de Beber", também de Tom Jobim,
interpretada ao ukulele, como se o maestro tivesse vivido em Maui, ao invés do
Rio.
Para salvar o show, Peyroux e seus rapazes puxaram da
cartola "Dance me to the End of Love", de Leonard Cohen, no
encerramento. Ainda não foi desta vez que Madeleine Peyroux me convenceu. Não
sei se terá outra chance.
texto: Paulo Moreira
fotos: Cris Moreira/Divulgação
quarta-feira, 5 de abril de 2017
James Taylor e Elton John – Anfiteatro Beira-Rio – Porto Alegre /RS (04/04/2017)
Duas ou três palavras sobre o show de ontem de James Taylor e de Elton John. Em primeiro lugar, sou fã declarado e juramentado dos dois. Acompanho o Elton John desde meus 12 anos, quando ouvi pela primeira vez "Rocket Man" e pedi para minha professora de inglês no colégio. Já o JT foi um pouquinho adiante, quando começou a tocar "You've Got a Friend" e "Fire and Rain" na Continental. Entrei no glorioso Beira-Rio já gostando.
Não me surpreendeu eles se apresentarem com bandas acima de qualquer suspeita. O James Taylor sempre se fez acompanhar pelo melhor dos estúdios americanos. Só que desta vez ele extrapolou!! Steve Gadd na bateria é um luxo só. Um dos maiores bateristas do mundo que tocou com todo mundo, desde Steely Dan até Bee Gees (é, o batera que vocês ouvem em “Stayin’ Alive” e Night fever” é ele!!!); Lou Marini no sax (da banda dos Blues Brothers); o trompetista e tecladista Walt Fowler, que integrou a banda de Frank Zappa e o espetacular Arnold McCuller, provavelmente o melhor backing vocal do planeta. Com tudo isso, mais aquele repertório maravilhoso de quase 50 anos de carreira só podia dar no que deu: um show impecável, com ele se esforçando para se comunicar com o público e ainda tirando da cartola “Steamroller”, aquele blues que mandou no meio do show. Só faltou uma namorada para abraçar na hora do “Handy Man” e do “Shower the People”.
Já Elton John resolveu tirar as backing vocals do espetáculo anterior e a banda ganhou um punch roqueiro muito interessante. Parecia que estava vendo um show do começo dos anos 70. O repertório foi nessa linha: “Levon”, “Tiny Dancer”, “Skyline Pigeon”, “Your Song”, “Burn Down the Mission” em, especialmente pra mim, que sou fãzaço do disco “Captain Fantastic and the Brown Dirt Cowboy”, “Someone Saved my Life Tonight”. Isso sem falar nos hits, que são obrigatórios. Endiabrado ao piano, solando como senão houvesse amanhã, ele colocou pra fora toda a influência do jazz de New Orleans no seu jeito de tocar. O público meio morno é que pareceu esperar pelas chatérrimas “Nikita” e “Sacrifice”, canções menores na carreira de Elton. Pra mim, foi um banho de música pop com os melhores do gênero. Alma lavada foi pouco.
por Paulo Moreira
Fotos gentilmente cedidas por Marcelo Bender da Silva
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Cartola - "Cartola" (1976)
"A delicadeza visceral de
Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...)
Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do
malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro,
tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a
centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou
até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os
dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha,
outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também
soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade
O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que
proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como
exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o
guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do
alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para
alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De
fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a
ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que
chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de
classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a
música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e
a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como
pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do
justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais
genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente
para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística
definitiva deste Mozart do morro: Cartola.
Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a
consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando
negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a
capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente
nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em
1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67
anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a
isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi
o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a
discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram.
Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos
carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se
entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a
primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira,
época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen
Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às
vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os
estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai
meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo
desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o
descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos
botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia
conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores,
monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante
na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a
partir dali fadado finalmente só aos aplausos.
Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da
vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o
organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos
Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio
mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram
dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música
brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e
protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das
joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes –
“Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia,
1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares,
1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos
gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É
Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas
da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal
dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre
buscou. “Preste atenção querida/ De cada
amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo
que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e
admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo,
assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão
solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.
Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como
mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a
tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas
imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que
só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse
questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos
marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja
vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o
primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom
moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os
versos! “Pois então saiba que não
desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas
canções”.
Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela”
vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de
Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone
inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa
inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos;
Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento
originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino
7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula
de uso poético do idioma lusófono: “Pode
ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama
“rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde
sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.
Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta
por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente
gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro
mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de
um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro
de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de
“Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do
personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/
Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos
versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.
“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de
tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa,
seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra
(En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses
sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura
parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz,
ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade
superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um
Moinho” (e outras composições sui-generis
como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar
como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da
revista Rolling Stone Brasil.
Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não
parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por
Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e
pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da
melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar
algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para
tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado
a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes
de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O
arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o
brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza
literária desses versos: “Queixo-me às
rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume
que roubam de ti, ai”?
“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor
desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente
com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana,
repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista,
no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem
social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa
linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais
um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e
técnica, entre artista e sua arte. “Ai,
essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus
acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão,
compreende porque/ Perdi toda alegria”.
O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão
conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de
Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande
riqueza cultural”. Foi nesta época
que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba,
tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e
morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois
primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam
um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da
cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões
socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para
que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como
Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e
Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na
última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e
vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos,
em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E
se a fama chegou até a porta de
Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência,
enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.
FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço
todas as faixas compostas por
Cartola, exceto indicadas.
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
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