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sábado, 26 de agosto de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial de 15 anos do ClyBlog - "Simple Pleasures", Bobby McFerrin (1988)



 

“Bobby McFerrin é um gênio. É muito legal você transformar uma coisa que não existe em coisas que existem. Essa é a função do artista para mim, e o Bobby McFerrin é um dos grandes artistas que existem”. 
André Abujamra


O Daniel Rodrigues me pediu pra eu escrever sobre um dos discos que eu gostaria de falar e um deles é o “Simple Pleasures”, do Bobby McFerrin. A primeira música, "Don't Worry, Be Happy", quando eu escutei, eu fiquei tão apaixonado, porque foi uma música que tocou muito nas rádios em 1988, e é muito legal. O arranjo, a harmonia, a melodia. É uma música muito fofa e muito bonita. Uma harmonia simples, maravilhosa. E dizem que essa foi uma das mais tocadas naquele ano e que, por isso, bateu um recorde mundial para uma música que não tem instrumentos. E é hiper pop! "Don't Worry, Be Happy”, para mim, me remete a muita alegria, felicidade, e dizem que as músicas que te fazem lembrar de coisas boas, fazem você lembrar de uma época boa da sua vida. O que não acontece com música triste - ou até uma música triste pode te lembrar coisa boa, né? 

A seguinte desse disco é “All I Want”. Eu cheguei a ir a dois shows do Bobby McFerrin,e fiquei impressionado, porque só tinha ele e um microfone no palco. É algo inacreditável! E ele tem um grave e uma extensão, uma tessitura de voz maravilhosa. E uma coisa que me impressiona muito nessa música é o contrabaixo que ele faz. Além de ser uma extensão muito grave, tem um timbre muito louco. Parece que tem uma distorção no baixo. Essa música é genial: “All I Want”.

Esta outra também tem essa coisa do grave, que é “Drive my Car”. McFerrin tem uma coisa dos harmônicos, que ele faz com a voz, no agudo, pois ele está cantando em falsete. Quando o homem não consegue cantar muito agudo, ele faz uma coisa chamada “falsete”. Só que o falsete do Bobby McFerrin é tão maravilhoso, que tem uns harmônicos inacreditáveis! Eu soube que o McFerrin sabe tocar clarinete, que é um instrumento que tem muito harmônico e uma extensão muito grande. Então, eu comparo a extensão vocal do Bobby McFerrin com a de uma clarineta. Essa, “Drive my Car”, é realmente uma bênção! E a batera, tudo que você escuta é tudo ele que faz com a voz e o corpo. Para a bateria, ele bate no peito para fazer o bumbo. É uma coisa muito maravilhosa. 

Bem, a próxima música é “Simple Pleasures”, que dá nome ao disco. Nesse disco inteiro, como ele gravou todas as vozes num overdub dele mesmo, ele faz uma coisa interessantíssima, que é a harmonia que ele faz para as coisas. É uma coisa muito louca, porque é muito natural. Mas com certeza, tem um estudo por trás de cada nota que esse cara canta. Outra coisa também é a interpretação dele. McFerrin é praticamente um ator quando canta, porque o timbre, a variação de colocação, o sotaque, enfim. Essa música é quase uma ópera.

A próxima música, "Good Lovin'", que me faz lembrar muito de quando eu fui para Nova York uma vez numa igreja evangélica e vi uma banda de gospel. Aquilo é uma coisa que faz ferver o coração de se ouvir! Essa música é mais ou menos isso: "Good Lovin'" é uma coisa de banda evangélica. E é muito louco, porque a única coisa que a gente precisa num lugar desses é um: "good lovin'", como a letra diz. Eu fico muito emocionado quando escuto sempre. Estou escutando e me sentindo feliz. Afinal, é muito legal você transformar uma coisa que não existe em coisas que existem. Essa é a função do artista para mim, e o Bobby McFerrin é um dos grandes artistas, um dos grandes compositores, um dos grandes músicos que existem. E dizem que ele agora é maestro também.

A seguinte faixa é “Come to Me”, que tem uma harmonização de quatro vozes! É muito inacreditável o que ele faz. Existe uma coisa em música que é fazê-la em bloco. Joe Pass fazia isso na guitarra, por exemplo. Como ele tocava muito sozinho, ele tocava toda a melodia e harmonia da música ao mesmo tempo. Essa música aqui é mais ou menos isso: McFerrin pega quatro vozes e canta inteiro e ainda faz harmonização junto. “Come to Me” é uma música que, para quem gosta de estudar harmonia, é realmente um é arroz, feijão, bife e batata frita.

"Susie-Q". Ele tem nessa música aquela coisa que eu falo de timbre. Tem um baixo sempre impressionante, mas tem uma questão de harmonização no timbre, que é inacreditável! Realmente é “chover no molhado” falar desse disco, porque é um disco que eu escuto há muito, desde 88. E ele ainda dobra uma voz em "Susie-Q", fazendo a voz do homem e da mulher numa oitava acima com falsete. É inacreditável, pois nessa época não tinham tantos recursos no estúdio para afinar voz - afinal, ele nem precisava afinar. É um presente ouvir esse disco.

“Drive”, a próxima música, ele faz um grave numa linha de baixo incrível. Chega a ser um walking bass, mas numa música pop. Também, ele faz uma harmonização com as vozes agudas em “Drive”. Praticamente se escuta ele dizer palavras no baixo, mas não têm palavras. Se você tira a cabeça, e fica imaginando que nesse disco não tem nenhum instrumento além da voz dele, e se você o ouve inteiro, você se fala: “não é possível!”. Ele transforma a voz dele em vários instrumentos. E ele canta “Drive” como a anterior, "Susie-Q": ele faz a voz aguda é a voz grave dobrado. E tem uma coisa de articulação também, pois não é muito fácil você dobrar a voz, ainda mais em oitava, assim, desse jeito. Essa música é foda!

Depois tem "Them Changes", que é maravilhoso também. Essa música tem novamente a questão da extensão. Tem alguns instrumentos, por exemplo, como eu já falei da clarineta, que vai de um grave até um agudo muito agudo. Tem uma brincadeira que a gente fala, que a clarineta é um instrumento alienígena, porque quando você toca oitava, não é a oitava que você está tocando: é a décima quinta, justamente para ter uma extensão maior. E o McFerrin tem uma extensão absurda! Nesta música ele tem o grave fazendo o baixo e depois ele dobra esse baixo com uma oitava acima. É outra inacreditável , que dá pra dizer que é uma música “instrumental”!

E a última de “Simple...” é "Sunshine of Your Love", que é um Jimi Hendrix, né? Ele imita uma guitarra na voz, mas é lindo, porque ele não imita para parecer o instrumento. Parece, sim, que o instrumento é que está imitando a voz dele, de tão lindo que é.


por A N D R É  A B U J A M R A


★★★★★★

clipe de "Don't Worry be Happy", dirigido por Drew Takahashi e estrelado por McFerrin, Robin Williams e Bill Irwin


★★★★★★

FAIXAS:
1. "Don't Worry, Be Happy" - 4:54
2.. "All I Want" - 2:56
3. "Drive My Car" (Lennon, McCartney) - 2:44
4. "Simple Pleasures" - 2:08
5. "Good Lovin'" (Rudy Clark, Artie Resnick) - 2:58
6. "Come to Me" - 3:38
7. "Susie-Q" (Eleanor Broadwater, Dale Hawkins, Stan Lewis) - 2:50
8. "Drive" - 3:58
9. "Them Changes" (Buddy Miles) - 3:55
10. "Sunshine of Your Love" (Pete Brown, Jack Bruce, Eric Clapton) - 3:43
Todas as composições de autoria de Bobby McFerrin, exceto indicadas


★★★★★★

OUÇA O DISCO:


★★★★★★


André Abujamra é um músico, ator, produtor musical, arranjador e diretor paulistano. Em 1986, junto com o músico e compositor Maurício Pereira, fundou a banda “Os Mulheres Negras”, a terceira menor big band do mundo. Tambem comandou os grupos Karnak, Vexame, Gork e Okê Arô, além da vasta carreira solo. Assinou a trilha sonora de mais de 75 trabalhos parra filmes em longa metragem para cinema, entre eles, "Carlota Joaquina", "Bicho de Sete Cabeças" e "Carandiru". Recebeu prêmios como Candango, Kikito, Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e Moliére, além de indicação ao Grammy Latino.


SUPER-ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial de 15 anos do ClyBlog - 15 discos impecáveis da primeira à última faixa




Amigos do clyblog, muito honrado pelo convite de contribuir com essa resenha rockeira! 
Vou falar sobre um assunto que com certeza já foi bastante debatido nas redes, que é o fato de 
que hoje em dia, o mercado musical só produz single ou E.P.! São muitos artistas com sucesso 
de uma música só! E isso não é exclusividade do universo tupiniquim. Sempre existiram bandas 
que só fizeram sucesso com uma música. Mas o projeto hoje em dia é só comercial. Vender, 
esgotar, exaurir a paciência até que a música vire jingle de supermercado. Faz parte!

Venho compartilhar com vocês algumas memórias afetivas de uma época onde o álbum era o 
auge do artista. Ali ele colocava toda coerência estética e criatividade, todo seu ineditismo e sua 
inventividade artística, do "Lado A ao Lado B". Estou falando de um tempo em que o vinil reinava 
e chiava nas nossas vitrolas e, talvez, esse universo analógico e antológico sempre tenha seu 
lugar. Seja Pop, underground, vintage… Quem não adoraria ter o disco da sua banda favorita em 
vinil, mesmo nos dias de hoje? O vinil não saiu de moda, ficou caro!!! Hoje é só dar o play no 
WAVE e MP3 e pronto: random na veia! 

 Fiz esse pequeno preâmbulo para situar a galera no tempo e trazer, na minha visão, alguns 
dos álbuns fonográficos que são verdadeiras "obras completas". Não tem música ruim: o disco 
é bom do começo ao fim!

Segue abaixo os 15 mais, mas com certeza tem muuuito mais… 

E você que está lendo, pensa aí e me diz, qual álbum você acha perfeito, do início ao fim?

★★★★★★

1 - Pink Floyd - "The Wall" (1979)


FAIXAS:
1. "In the Flesh?"  
2. "The Thin Ice"  
3. "Another Brick in the Wall (Part I)"  
4. "The Happiest Days of Our Lives"  
5. "Another Brick in the Wall (Part II)"  
6. "Mother"  
7. "Goodbye Blue Sky"  
8. "Empty Spaces"  
9. "Young Lust"  
10. "One of My Turns"  
11. "Don't Leave Me Now"  
12. "Another Brick in the Wall (Part III)"  
13. "Goodbye Cruel World" 

14. "Hey You"  
15. "Is There Anybody Out There?"  
16. "Nobody Home"  
17. "Vera"  
18. "Bring the Boys Back Home"  
19. "Comfortably Numb"  
20. "The Show Must Go On"  
21. "In the Flesh"  
22. "Run Like Hell"  
23. "Waiting for the Worms"  
24. "Stop"  
25. "The Trial"  
26. "Outside the Wall"  

Ouça:



2 - Dire Straits - "Brothers In Arms" (1985)


FAIXAS:
1. So Far Away
2. Money for Nothing
3. Walk of Life
4. Your Latest Trick
5. Why Worry
6. Ride Across the River
7. The Man's Too Strong
8. One World
9. Brothers in Arms  

Ouça:



3 - Santana - "Santana" (1969)


FAIXAS:
1."Waiting"
2. "Evil Ways" 
3. "Shades of Time" 
4. "Savor"
5. "Jingo" 
6. "Persuasion" 
7. "Treat"
8. "You Just Don't Care"
9. "Soul Sacrifice" 

Ouça:



4 - Yes - "Close to the Edge" (1972)


FAIXAS:
1.Close to the Edge
  • I. The Solid Time of Change
  • II. Total Mass Retain
  • III. I Get Up I Get Down
  • IV. Seasons of Man
2.And You and I
  • I. Cord of Life
  • II. Eclipse
  • III. The Preacher the Teacher
  • IV. The Apocalypse
3.Siberian Khatru

Ouça:



5 - Legião Urbana - "Dois" (1986)


FAIXAS:
1. Daniel Na Cova Dos Leões 
2. Quase Sem Querer 
3. Acrilic On Canvas 
4. Eduardo e Mônica 
5. Central Do Brasil 
6. Tempo Perdido
7. Metrópole 
8. Plantas Embaixo do Aquário 
9. Música Urbana 2 
10. Andrea Doria 
11. Fábrica 
12. Índios

Ouça:



6 - Red Hot Chilli Peppers - "Californication" (1999)


FAIXAS:
1. Around the World
2. Parallel Universe
3. Scar Tissue
4. Otherside
5. Get on Top
6. Californication
7. Easily
8. Porcelain
9. Emit Remmus
10. I Like Dirt
11. This Velvet Glove
12. Savior
13. Purple Stain
14. Right on Time
15. Road Trippin

Ouça:



7 - A Cor do Som - "Ao Vivo: Montreux International Jazz Festival" (1980)


FAIXAS:
1. "Dança Saci"
2. "Chegando da Terra"
3. "Arpoador"
4. "Cochabamba"
5. "Brejeiro"
6. "Espírito Infantil"
7. "Festa na Rua"
8. "Eleanor Rigby"
 
Ouça:

 
 
8 - Linkin Park - "Live in Texas" (2003)


FAIXAS:
1. Somewhere I Belong
2. Lying from You
3. Papercut
4. Points of Authority
5. Runaway
6. Faint
7. From the Inside
8. Pushing Me Away
9. Numb
10. Crawling
11. In the End
12. One Step Closer

Ouça:


9 - Rush - "Moving Pictures" (1981)


FAIXAS:
1. Tom Sawyer
2. Red Barchetta
3. YYZ
4. Limelight
5. The Camera Eye
6. Witch Hunt
7. Vital Signs

Ouça:



10 - Led Zeppelin - "Led Zeppelin" ou "Led Zeppelin I" (1969)


FAIXAS:
1. Good Times Bad Times
2. Babe I’m Gonna Leave You
3. You Shook Me
4. Dazed And Confused
5. Your Time Is Gonna Come
6. Black Mountain Side
7. Communication Breakdown
8. I Can’t Quit You Baby
9. How Many More Times

Ouça:



11 - Jimi Hendrix - "Electric Ladyland" (1968)


FAIXAS:
1. …And The Gods Made Love
2. Have You Ever Been (To Electric Ladyland)
3. Crosstown Traffic
4. Voodoo Child
5. Little Miss Strange
6. Long Hot Summer Night
7. Come On
8. Gypsy Eyes
9. The Burning Of The Midnight Lamp
10. Rainy Day, Dream Away
11. 1983… (A Merman I Should Turn To Be)
12. Moon, Turn The Tides… Gently, Gently Away
13. Still Raining, Still Dreaming
14. House Burning Down
15. All Along The Watchtower
16. Voodoo Child (Slight Return)

Ouça:



12 - Kraftwerk - "Electric Café" ou "Techno Pop" (1986)


FAIXAS:
1. Boing Boom Tschak
2. Techno Pop
3. Musique Non Stop
4. The Telephone
5. Sex object
6. Electric Cafe

Ouça:



13 - Secos e Molhados - "Secos e Molhados" (1971)



FAIXAS:
1. Sangue Latino
2. O Vira
3. O Patrão Nosso de Cada Dia
4. Amor
5. Primavera nos Dentes
6. Assim Assado
7. Mulher Barriguda
8. El Rey
9. Rosa de Hiroshima
10. Prece Cósmica
11. Rondó do Capitão
12. As Andorinhas
13. Fala

Ouça:



14 - Jethro Tull - "Benefit" (1970)


FAIXAS:
1. With You There To Help Me 
2. Nothing To Say 
3. Alive And Well And Living In 
4. Son 
5. For Michael Collins, Jeffrey And Me
6. To Cry You A Song 
7. A Time For Everything ? 
8. Inside 
9. Play In Time 
10. Sossity; You're A Woman

Ouça:



15 - Bob Marley & The Wailers - "Legend" (1984)


FAIXAS:
1. Is This Love
2. No Woman, No Cry (Live)
3. Could You Be Loved
4. Three Little Birds
5. Buffalo Soldier
6. Get Up, Stand Up
7. Stir It Up
8. One Love / People Get Ready
9. I Shot the Sheriff
10. Waiting in Vain
11. Redemption Song
12. Satisfy My Soul
13. Exodus
14. Jamming

Ouça:



por J O Ã O   M A R C E L O   H E I N Z


★★★★★★



João Marcelo Heinz
é músico, compositor, produtor musical e educador com 30 anos de estrada.
É integrante da banda Cidadão Free, com trabalho pop-rock autoral e com versões de 
clássicos do rock nacional e internacional
Tem participações em produções para cinema, composições audiovisuais para artes plásticas, dirigiu peças teatrais, além de ter sido produtor musical e de eventos do centro cultural Othello, na Lapa, no Rio de Janeiro.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

cotidianas #804 - "Alexia"



mural do artista urbano TVBoy, em Barcelona,
dedicado à jogadora espanhola Alexia Putellas,
melhor jogadora de futebol do mundo, na atualidade.


Pela rambla o estandarte das cores
Catalunya, Barceloneta, Blaugrana
A mirar-lhe o olhar de mil homens
Bailarina dança na roda sardana

Chove chuva, molha o chão
Nuvem, samba do avião
Ela vai jogar

Hendrix, Elvis, Messi e hoje
Brilha nova estrela dessa galáxia
Flashes, lights, likes, closes
Compartilha agora a beleza de Alexia

Vai começar mais um jogo

Menina mulher da pele branca
Com a classe de quem sabe a arte de jogar bem futebol
A bela da tarde com charme encanta
Filme de Buñuel, obra de Gaudi ou tela de Miró

Hendrix, Elvis, Messi e hoje
Brilha nova estrela dessa galáxia
Inverte os pés, caem os cones
Dribla as zagueiras e a guarda-metas

Pra fazer um golaço

*******************
"Alexia"
Skank
(Samuel Roda e Nando Reis)


"Alexia" - Skank



quinta-feira, 13 de julho de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Charly Garcia - “Clics Modernos” (1983)



 

por Roberto Sulzbach 

- I want to make a record ("Eu quero fazer um disco").

- Your dad is rich or what? ("Seu pai é rico ou o quê?"


Nova Iorque, 1983, entrada do lendário Eletric Ladyland Studio, fundado por Jimi Hendrix. Batem à porta, dois argentinos com uma maleta e acontece este diálogo descrito acima.

Enquanto isso, o homem de bigode bicolor abre a maleta e pega um dos maços de notas de 100 dólares: "Do you want it, or not?" ("Você quer, ou não quer?"). Então, a porta se abre. 

Trinta anos atrás, os argentinos eram Charly García e Pedro Aznar. Os dois já eram lendas do rock de seu país. O primeiro, possuía o status de gênio musical por ser cantor, tecladista e protagonista em 3 grandes bandas do cenário portenho: o duo-folk Sui Generis, e as bandas de rock progressivo La Máquina de Hacer Pájaros e Serú Giran. O segundo, foi baixista de Charly na Serú Giran, e já era membro junto ao Pet Metheny Group. Lógico que, em Nova Iorque, ninguém sabia disso. 

Começaram os preparativos para as gravações do que seria, segundo muitos, a Magnum-opus do Rock Argentino, e quiçá, do idioma espanhol. A ideia inicial era se chamar “Nuevos Trapos”, mas depois de Charly se deparar com uma pixação escrita “Modern Clix” pelas ruas de Nova Iorque, não havia como não se chamar “Clics Modernos”. Foi-lhe entregue uma lista, contendo o nome de todos os produtores que trabalhavam regularmente no estúdio, onde encontraram o nome perfeito. Constava como: "Joe Blaney – The Clash"

Joe Blaney havia acabado de trabalhar no projeto mais ambicioso e criticamente aclamado do conjunto punk londrino, o "London Calling", e buscava um novo desafio. Nas palavras dele, quando chegou ao estúdio, não possuía a dimensão de com quem estava, e aos poucos foi percebendo o talento e a estatura dos músicos que estava prestes a produzir. Charly estava tão na vanguarda, que praticamente toda a parte de percussão foi feita em uma TR808, da Roland. Criada por Ryuichi Sakamoto, García apelidou o equipamento de “La Ryuchi”

O disco abre com "Nos Siguen Pegando Abajo", já demonstrando a forte influência do new wave. Musicalmente, é uma composição fenomenal, mesclando sintetizadores, a bateria da Ryuichi, somada de uma base em 4 tempos, enquanto a guitarra, toca o riff em 7 tempos, sendo assim, 2 compassos simultâneos. Apesar de ser um tema para tocar em festas, a música cita "los hombres de gris" ("homens de cinza", como referência à polícia), e o próprio título, que pode se traduzir como “seguem nos reprimindo”, referência à ditadura ainda vivida na Argentina.

"No soy um extraño" é uma balada dançante, impulsionada por batidas e palmas digitais, e carregada pelo baixo simples e certeiro de Aznar. A música aborda a história de dois homens buscando ver um tango antigo, tipo em que a dança era realizada apenas por rapazes, não envolvendo uma mulher, como hoje é popularmente conhecido. O tom expressado, tanto pela melodia, tanto pela letra, nos transmite o medo da homossexualidade ser descoberta publicamente.

Aznar e Charly: amigos e parceiros de Buenos Aires
a Nova Iorque para produzir uma obra-prima
"Dos Cero Uno" é a canção mais minimalista do disco, e que tem como base, além das batidas eletrônicas, a Tabla, instrumento popular na Índia e similar a um bongô. Nos traz quase um relato autobiográfico de Charly, falando sobre sua maturidade e mudança, o colocando como um personagem. "Nuevos Trapos" é uma balada new wave, uma canção moderna de amor, colocando piano e sintetizadores, que se sobrepõe harmoniosamente. 

A letra de "Bancate ese Defecto" trata de lidar com defeitos que todos têm, erros que todos cometem e a dificuldade da autoaceitação, mas que errar faz parte da experiência de ser humano (incluindo um trecho em que chama o ouvinte de narigudo). Quando chegamos à metade da música, Charly engata uma quinta, e em ritmo alucinado, dispara mais “verdades” aos nossos ouvidos. Finaliza com os sintetizadores imprimindo um tom de mistério, ao lado da linha de baixo de Aznar, finalizando, de forma magistral, o lado A. 

O lado B arranca com um sample (direto da Ryiuchi) de um grito de James Brown em “Hot Pants Pt.1”, para iniciar "No me Dejan Salir", sendo esse apenas um dos samples do cantor de soul utilizados na música (temos a adição de trechos de "Please, Please, Please" e "Super Bad" no decorrer da canção). Certamente, a música “más bailable del disco”, com pontes bem estruturadas e refrão grudento, além de ser a única música que contém uma bateria verdadeira, além do TR808. Vale a pena também conferir o icônico clipe da música, gravado um ano depois, e que conta com a participação do então tecladista, e futuro artista globalmente conhecido, Fito Paez, segurando um mocassim para a câmera. 

Um acorde grave dá início ao tema mais profundo da obra. Uma acorde que arrepiou, arrepia, e arrepiará gerações de argentinos, e (por que não?) latino-americanos em geral. "Los Dinosaurios" é uma eulogia aos desaparecidos da sanguinária ditadura que matou, perseguiu e reprimiu milhões de pessoas no país vizinho, e que também é válido para o nosso caso. Charly fez questão de dizer que vizinhos, artistas, jornalistas e nem mesmo seu amor está seguro, e podem desaparecer. “Clics” foi lançado um mês antes do retorno à democracia na Argentina, e imediatamente, se tornou um hino sobre os acontecimentos dos anos anteriores, convertendo-se em uma espécie de memória viva, em forma de hit, em forma de arte. O piano é tocado com sutileza, expressando o pesar do passado, ao mesmo tempo que vislumbra um futuro esperançoso. 

"Plateado Sobre Plateado (Huellas En El Mar)" continua o tom de protesto, tratando sobre o exílio, tanto autoimposto quanto compulsório, nos transportando para aquela realidade. O contrabaixo sedimenta a melodia, apenas em duas notas, enquanto o teclado coloca, em sincronia, acordes em dissonância, para explodir em um refrão harmônico repleto de riff de guitarras rompantes. Finalizando o álbum, "Ojos de Videotape" nos introduz uma novidade: um piano acústico! Sintetizadores, uma ampla capacidade vocal de Charly e uma preocupação com o vício das pessoas no escapismo digital. Em um mundo sem smartphones, tablets, internet, parece até bobo que a televisão fosse um grande problema na concentração e na própria concepção de mundo da sociedade. 

García disse que: "K7´s são para as praias, CD´s para os shoppings, e os discos são discos". Esse álbum tem uma “artesania” de disco, não somente músicas gravadas e compiladas. E definitivamente, se trata de um disco, uma obra-prima, que o estúdio construído por Jimi Hendrix, teve a honra de conceber, e não o contrário.

**********
FAIXAS:
1. "Nos siguen pegando abajo (pecado mortal)" - 3:30
2. "No soy un extraño" - 3:18
3. "Dos cero uno (transas)" - 2:09
4. "Nuevos trapos" - 4:08
5. "Bancate ese defecto" - 4:56
6. "No me dejan salir" - 4:21
7. "Los dinosaurios" - 3:28
8. "Plateado sobre plateado (huellas en el mar)" - 5:02
9. "Ojos de video tape" - 3:37
Todas as músicas de autoria de Charly García

**********
OUÇA O DISCO:






Roberto Sulzbach Cortes é porto-alegrense, gosta de viajar (principalmente a Buenos Aires) e possui alma de baby boomer. Futuro jornalista, cresceu escutando de tudo. De Nirvana a Chico e de Notorious B.I.G a Miles Davis.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

"Elvis", de Baz Luhrmann (2022)




“Elvis” é vibrante, é bem dirigido, tem boas atuações, direção de arte perfeita, é feito com o coração, é tecnicamente de alto nível mas... não emociona. Aprendi que, com cinema, não é certo nutrir expectativas em relação a um filme antes de vê-lo. No máximo, permito-me ler a sinopse previamente quando não tenho ideia do que se trata. Mas quando o assunto é a cinebiografia do maior astro da música pop de todos os tempos, essa relação é necessariamente diferente. Afinal, é impossível dissociar o fã do crítico em se tratando de Elvis Presley. Ambos são os espectadores capazes de entender o filme do australiano Baz Luhrmann, que assisti em uma sessão especial no GNC Cinemas do Praia de Belas Shopping.

Incluo-me nesta dupla avaliação por três motivos. Primeiro, porque soaria ilógico abordar um ícone tão popular a quem todos de alguma forma são tocados de maneira distanciada. Segundo, porque, neste caso, a admiração ao artista, dada a dimensão inigualável deste para a cultura moderna, colabora com a avaliação, visto que imagem pública e carisma se balizam. Ainda, em terceiro, mesmo que desprezasse essa abstenção, a avaliação final não muda, pois talvez só a reforce.

Afinal, “Elvis” é, sim, um bom filme. Além da caracterização e atuação digna de Oscar de Austin Butler no papel do protagonista, bem como a de Tom Hanks na pele do inescrupuloso empresário de Elvis, Tom Parker, há momentos bem bonitos e reveladores. Um deles é como se deu toda a concepção do histórico show “From Elvis in Memphis”, gravado pelo artista ao vivo em 1969, evidenciando os desafios e êxitos daquele projeto ambicioso. Igualmente, o momento do "batismo" do pequeno Elvis na igreja evangélica ainda no Tenessee, quando, em transe, conhece a música negra na voz de ninguém menos que Mahalia Jackson.

O pequeno Elvis sendo batizado pela música e a cultura negra 

No entanto, essa sensação é um dos sintomas de não inteireza do filme, percepção que passa necessariamente pela parcialidade crítica. Em qualquer obra artística, quando partes são destacadas, como retalhos melhores que outros, algum problema existe. É como um quadro com traços bonitos, mas de acabamento mal feito, ou um disco musical com obras-primas no repertório, mas desigual por conta de outras faixas medíocres. Luhrmann é bom de estética, mas cinema não é somente isso. A estética precisa funcionar a favor da narrativa e não se desprender dela. Se fosse somente isso, seria exposição de arte ou desfile de moda. Aí reside uma das questões do filme: a sobrecarga de estetização – inclusive narrativa. Além de prejudicar a continuidade, resulta nestes espasmos catárticos ajuntados e não integrados.

Por isso, a narrativa, na primeira voz de Parker, parece, ao invés de solucionar um roteiro biográfico não-linear (o que é lícito, mas perigoso), prejudicar o todo, desmembrando em demasia os fatos uns dos outros. O ritmo começa bastante fragmentado, tenta se alinhar no decorrer da fita, mas a impressão que dá é que em nenhum momento estabiliza, como se, para justificar uma narrativa criativa e "jovem", lançasse de tempo em tempo dissonâncias que tentam surpreender, mas que, no fundo, atrapalham. O cineasta, aliás, tem histórico de resvalo nesta relação forma/roteiro. Havemos de nos lembrar de “Romeu + Julieta”, de 1997, seu primeiro longa, totalmente hype visualmente mas em que o diretor preguiçosamente delega o texto para o original de Shakespeare, resultando num filme desequilibrado do primeiro ao último minuto.

Butler ótimo como Elvis: digno de Oscar

O positivo em casos assim é que a probabilidade de agradar pelo menos em lances esporádicos é grande. A mim, por exemplo, não foi o clímax (a meu ver, um tanto apelativo e simplório) que tocou, mas, sim, cenas talvez nem tão notadas. Uma delas, é a escapada de Elvis para a noite no bairro negro à mítica Beale Street, em Memphis. O que me encheu os olhos d'água não foi nem o Rei do Rock trocando ideia com B.B. King (ao que se sabe, licença poética do roteirista) ou assistindo tête-à-tête Sister Rosetta Tharpe e Little Richard se apresentarem, mas a chegada do já ídolo Elvis ao local. Ele é respeitosa e admiravelmente recebido pelos negros e não com histeria como já o era em qualquer outro lugar que fosse. É como se os verdadeiros criadores do rock 'n' roll, gênero musical a que muitos ainda hoje atribuem roubo cultural por parte de Elvis, lhe admitissem, dizendo: "Tudo bem de você circular entre nós. Você é um dos nossos".

Outra cena que me emocionou foi a do show na reacionária Jacksonville, na Florida, em 1955, quando Elvis, indignado com as imposições da sociedade moralista, resolve não obedecer que o censurem de cantar e dançar do seu jeito julgado tão transgressor para a época. Claro, que deu tumulto. Aquilo é o início do rock. O gênero musical, misto de country e rhythm and blues, os artistas negros já haviam inventado. Mas a atitude, tão essencial quanto para o que passaria a ser classificado como movimento comportamental de uma geração, nascia naquele ato. Ali, naquele palco, estão todos os ídolos do rock: Lennon, RottenJim, JaggerNeil, Jello, PJ, Hendrix, Kurt, Ian, Rita, Iggy e outros. Todos são representados por Elvis. Impossível para um fã ficar impassível. Além disso, a sequência é filmada com requintes técnicos (troca de ISO, edição ágil, uso de foto P&B, etc.) que lhe dão um ar documental ideal. Aqui, Luhrmann acerta em cheio: estética a serviço do roteiro.

O polêmico show Jacksonville recriado por Luhrmann: o início do rock

Por outro lado, há desperdícios flagrantes. As primeiras gravações do artista, feitas para a gravadora Sam Records, entre 1954 e 55, um momento tão mágico e gerador de um dos registros sonoros mais sublimes da cultura moderna, são abordadas somente en passant. Algo que seria bastante explorável em uma cinebiografia que intenta fantasia.

Todos esses motivos justificam o olhar não só do crítico como também o do fã, uma vez que um embasa o outro. Se o filme é bom, mas não decola, é justamente porque o primeiro condiciona-se a avaliar tecnicamente, mas quem tem propriedade - e direito - de esperar ser encantado pela obra é quem curte de verdade Elvis e rock 'n' roll. Pode ser que tenha obtido sucesso com muita gente, mas a mim não arrebatou. Uma pena. A se ver que as cinebiografias de Freddie Mercury e Elton John, artistas que nem gosto tanto quanto Elvis, me arrebataram e esta, não. Não saí com uma sensação negativa, mas com a de que se perdeu uma oportunidade de ouro. “It’s now or never”? "Now", pelo menos, não foi.

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trailer do filme "Elvis", de Baz Luhrmann



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)


"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
 
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock 

É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível. 

No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.

Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.

Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.

Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe. 

Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.

Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.

Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.

Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.

Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo. 

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FAIXAS:
1. "Skagly" (Hubbard) - 9:56
2. "Finger Painting" (Hancock) - 6:44
3. "Mutants On The Beach" (Williams) - 11:04
4. "Circe" (Shorter) - 4:30

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues