“É sinal de educação
Fazer sua obrigação
Para ter o seu direito
de pequeno cidadão”.
refrão da música "Pequeno Cidadão"
Por um bom tempo, parecia que os memoráveis especiais de música
infantil da Globo, os quais geralmente viravam LP’s de grande sucesso de
público e vendas, tinham terminado. Do final dos anos 80 até a entrada do
século XXI, estes ricos especiais como
"A Arca de Noé" ou “Pirlimpimpim” sumiram
das telas e das lojas – à exceção de “Castelo Rá-Tim-Bum”, único resistente dos
anos 90. No mesmo período, não tão coincidentemente assim, os pequenos passaram
a ficar cada vez mais emburrecidos pela computadorização limitadora do conteúdo
educativo-cultural, desassistidos pelo desleixo das escolas e perdidos entre a
superproteção e o desinteresse da “nova família” brasileira de classe média.
Espaço para a criatividade, para o exercício do lúdico, para a valorização das
coisas bonitas da vida – amigos, família, natureza, arte – restaram
escanteados. Para que lançar produtos que elevam essas coisas “do passado”, já
que não tem consumidor para tal? Resultado: desvalorização e consequente
idiotização da criança.
A salvação veio a pouco mais de 10 anos pelas mãos dos paulistas da
geração anos 80 – alguns dos responsáveis por, na minha infância/adolescência,
fazerem-me aprender a gostar de música. São eles os criadores de um dos
melhores exemplos de uma nova visão da condição infantil:
“Pequeno Cidadão”. Desde este primeiro CD do conjunto, lançado em
2009, reúnem pais músicos e “mais um monte de filhos”, como eles mesmos dizem.
Os protagonistas são alguns dos principais nomes da música brasileira daquela
década para cá: o ex-
Titã Arnaldo Antunes, o cabeça do
Ira! Edgar Scandurra, a ex-Gang 90
Ticiana
Barros e o multi-instrumentista
Antonio
Pinto (autor de várias e ótimas trilhas sonoras de filmes como “Cidade de
Deus”, “Central do Brasil” e “Colateral”).
O grupo faz um som baseado no rock mas que investe também na psicodelia
e nos ritmos brasileiros, passando pelo pop, funk e eletrônico. Conceitualmente,
“Pequeno Cidadão” encerra a ideia de uma educação infanto-juvenil comprometida
com o ser humano e com o planeta, sem perder o lado legal da brincadeira e da modernidade
– ou seja, sem deixar esse “comprometimento” virar uma coisa chata e somente pró-forma.
As músicas trazem como temas coisas normais (ou que deveriam ser normais) do
universo infantil: alegrias, dúvidas, bichos, desafios, tristezas e aquilo que
move a todos (ou deveria mover): amor. Afinal, criança não precisa de música
bobinha: ela pode muito bem curtir um rock
‘n’ roll com poesia que lhe faça pensar. Multiplataforma e ativo, “Pequeno
Cidadão” é, no entanto, mais do que apenas só música: o projeto conta com um
segundo CD (2012), um precioso DVD de animações de todas as faixas do primeiro
volume e quatro livros temáticos, além de jornal online e várias ações
culturais que promovem em São Paulo. Tudo com ilustrações de Jimmy Leroy, que
dá uma assinatura plástica muito peculiar em todos os materiais.
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Uma das lindas artes de Jimmy Leroy. |
Pontapé inicial do projeto, este CD começa pela faixa que lhe dá nome e
que, de certa forma, o sintetiza, pois expressa a ideia de formar uma criança
com responsabilidades mas a deixando ser aquilo que ela é: criança. E como
Vinícius de Moraes ensinou: não duvidando da inteligência delas. Arnaldo, acostumado a escrever para esse público desde os
Titãs, pratica isso se valendo de figuras
de linguagem como anáforas, repetições no início de cada frase, e,
principalmente, de anástrofes – e aí está já uma das sacadas pedagógicas da
turma: mostrar para a criança a riqueza da língua portuguesa. A anástrofe é um
caso especial dentro de nossa gramática, pois usa a inversão de maneira
incomum: trocando sujeito e predicado, surpreende com a lógica que forma. Na
letra, tudo que é brincadeira vira dever e vice-versa, estabelecendo uma dialética
de correlação e não de condicionamento entre ambos. Por exemplo, o verso
“Agora pode fazer a lição” ganha sentido
de um consenso entre pais e filhos e não de obrigação como geralmente se
entende daquilo que não é diversão. Em contrapartida,
“Agora tem que jogar videogame” passa a ter a ideia de um convite à
brincadeira, rejeitando o famigerado “
tenke”
imposto pelos mais velhos. Além de tudo, a música é um rock embalado e
pegajoso, cujo gostoso refrão o resume clara e brilhantemente:
“É sinal de educação/ Fazer sua obrigação/
Para ter o seu direito de pequeno cidadão”.
Antonio Pinto, coautor da primeira faixa, assina com Ticiana uma das
mais lindas canções (infantis? De amor? Da música brasileira deste século?) do
álbum: “O Sol e a Lua”. A música emociona a mim e a muitas pessoas que conheço,
sejam crianças ou adultos. É um pop-rock cantado por ele e por um dos meninos,
além do coro das crianças no refrão e das recitações na voz grave de Arnaldo. Voltada
para os mais crescidinhos, fala sobre um acontecimento que ocorre com todo
mundo na pré-adolescência: o amor não retribuído, aqui personificando nos dois
astros. Apaixonado, o Sol pediu a Lua em casamento e disse que lhe amava há
muito tempo, mas a Lua respondeu que seu coração não pertencia a ninguém, pois ela
só servia para inspirar os casais, “dos
grandes poetas aos mais normais”. O Astro-Rei, claro, ficou na fossa. Desesperado,
foi pedir ajuda até para o Vento, que, apressado, nem parou para lhe escutar.
Foi então que: “O Sol sem saber mais o
que fazer/ Tanto amor pra dar/ E começou a chorar/ E a derreter/ E começou a
chover, e a molhar/ E a escurecer”. E não é assim mesmo que nos sentimos
quando ficamos tristes por amor: derretidos e sem brilho? No final, o consolo
dito na delicadeza da voz infantil: “Se a
Lua não te quer, tudo bem/ Você é lindo, cara/ E seu brilho vai muito mais
além/ Um dia você vai encontrar alguém que com certeza vai te amar também”.
Poesia da maior singeleza.
A doce canção de ninar “Meu Anjinho”, de Ticiana (“E aqui dentro/ no escurinho/ nos braços desta canção/ vou te ninar...”),
se alinha à outra das ótimas do disco, o gostoso xote “Leitinho”, a qual traz a
mensagem de que “um leitinho é muito bom”
pro bebê e pros pais, pois, depois, vem aquele compensador “soninho” que
descansa toda a família. Impossível não lembrar-me de uma vez com minha
sobrinha Luna ainda pequena, com pouco mais de um ano, quando cantei essa
música para ela, sabendo que gostava e que seu pai, meu irmão, costumava cantar-lhe
e pô-la para ouvirem. A surpresa pura que ela ficou quando identificou que era
a mesma música que o papai cantava foi engraçado e emocionante.
A funkeada “O ‘X’” e a agitada “Sobe Desce” são pura diversão, duas
brincadeiras com palavras, letras e suas sonoridades. Mais pedagógica e
profunda é “Tchau, Chupeta” (de Ticiana e Arnaldo), que versa sobre uma das
maiores revoluções pessoais pela qual o passamos na infância: o momento de
largar o bico. O complexo tema, que especialistas há muito discutem – os
limites da chamada “fase oral” e a troca (nem sempre exitosa) de um substituto
simbólico do seio materno –, é colocado de uma forma absolutamente poética e
lúdica, propondo à criança nesse necessário rompimento o desapego em nome de
uma nova fase de vida. “Todo mundo tem
seu tempo de mamar”, diz um dos versos. Graciosa, a letra lança várias
suposições de forma a demonstrar à criança que a chupeta não combina mais com
alguém que não é mais neném: “Já pensou
uma mãe chupando chupeta?/ Já pensou um pai chupando chupeta?/ E uma vó de bobs
e chupeta?/ E um vovô de bengala e chupeta?”. E a proposta para deixar a
tal peta? Libertar-se dela jogando-a no mar para, enfim, poder cantar “sem uma tampa de borracha pra atrapalhar”.
O assunto é tão importante e passível de desdobramentos que virou um dos livros
do projeto, de 2011 (Ed. Leya).
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A banda Pequeno Cidadão, com os grandes e os baixinhos. |
O tom educativo segue de outras formas. Tem as ecológicas “O Uirapuru”,
bossa-nova que remete à “Passaredo”, de
Chico Buarque, e a “Passarim”, de
Tom Jobim, revelando a beleza linguística quase despercebida pelos brasileiros do
tupi-guarani; e “Sapo-Boi”, um divertido
rock
‘n’ roll urbano de Scandurra cantado por seu filho Lucas: “
Se eu fosse o prefeito aqui da capital/
Pegava o sapo-boi e espalhava pela marginal (...)/ A dengue não passa de um mês/
pois o mosquito é o prato da vez”. Por falar em bichos, a
punk-rock “Larga a Lagartixa”, além de
ser mais uma quebra de paradigma – afinal, é saudável criança também gostar de
barulho –, é igualmente educativa, uma vez que a frase principal, dita da forma
acelerada para acompanhar o ritmo frenético, torna-se um trava-línguas, bom
exercício para a garotada treinar a dicção.
Outra das mais queridas do disco é
"Bonequinha do Papai", a qual minha
sobrinha
Luna gosta até hoje.
Tecno
bem dançante, põe a meninada na pista! Alem do mais, seu premiado videoclipe, algo
como um retrô-futurista com desenhos estilo anos 20 (mas com uma animação
dinâmica e moderna), é uma verdadeira obra-de-arte, o qual assisti pela
primeira vez no
Dia Internacional da Animação, em 2010.
Mas, claro, não podia faltar o futebol, esporte tão gostado no Brasil e
praticado por meninos e meninas. Identifico-me com as duas faixas que tratam desse
tema por trazerem-me lembranças de tempos passados. A primeira é mais uma bossa-nova:
“Futezinho na Escola”, motivadora de outro dos livros do projeto, “1 drible, 2
dribles, 3 dribles — A história do futebol e outras informações interessantes”,
de Marcelo Rubens Paiva (Companhia das Letrinhas, 2014). Nela, Scandurra aborda
o que a mim era um corriqueiro hábito no 1º Grau: bater uma bola com os colegas
na cancha da escola antes de começar os estudos. A letra descreve com muita
sensibilidade as sensações e a dinâmica de um jogo: “O último lance, vâmo logo, passa a bola/ Recebi, quase perdi pro
ladrão que eu nem vi/ Chegou primeiro pedalei e passei/ Chegou o segundo e eu
também driblei/ Veio o terceiro e eu fiz uma tabela/ Tô livre parceiro, vou
chutar de trivela/ É gol!”. Mas tem a hora do divertimento e a do dever. Acaba-se
o jogo rapidinho, pois agora é preciso correr para ir a outro compromisso: a
aula de português.
Tratando ainda do esporte bretão e fechando o disco,
"Carrinho por Trás" é mais uma de Scandurra e novamente um samba. Neste caso, um partido-alto. Com
uma pegada carioca e eletrônica, faz-me recordar de outra época, esta, da
adolescência, quando jogávamos nos campos de várzea com nosso time de amigos, a
Juventus. O universo das peladas é muito bem captado pelo compositor, que pega
como mote um dos polêmicos lances que acontecem nas partidas: o carrinho
(segundo a definição de Rubens Paiva, extraída do livro:
“o jogador se lança no gramado e, deslizando pelo chão, tenta tirar a
bola do adversário, arremessando os pés na direção dele.”). Como pode
acarretar em uma jogada violenta, o carrinho é mal visto, ainda mais que nem
todo jogador tem boas intenções e nem todo zagueiro tem habilidade para
executá-lo. Eu, da posição, tenho lá minhas dificuldades, confesso. Porém, a
canção fala sobre um defensor que entende do negócio:
“O carrinho é perigoso/ No mínimo um tanto suspeito/ Mas se você acerta
na bola/ É aplaudido com muito respeito”. João Nogueira merecia estar vivo
para gravar essa música. Como extra, ainda tem “Pererê”, com participação do
cartunista e escritor Ziraldo declamando um texto seu.
Ao escutar uma obra como essa, fica a sensação de que nem tudo está
perdido no que se refere a conteúdo cultural para criança. Afora “Pequeno
Cidadão”, outro projeto da mesma época, Adriana Partimpim, da cantora e
compositora Adriana Calcanhoto, também teve continuidade e conquistou o
público. No meu círculo, percebo, inclusive, que não são poucas as crianças que
gostam de um ou de outro, desde
Luna até outros pequenos que conheço como Bento,
Dora e Gabriel. Bom sinal. Sinal de que há uma geraçãozinha aí antenada e bem
orientada. Além disso, de que existe uma consciência do valor das coisas
importantes da vida (muitas vezes, as simples), que não se resumem a consumo e tecnologia.
Iniciativas como estas se mostram sintonizadas com tal mentalidade. E neste Dia
das Crianças, é um alento perceber gente consciente de que, para se exercer a cidadania
no mundo de hoje, começa-se desde cedo.
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FAIXAS:
1. Pequeno Cidadão
2. O Sol e a Lua
3. Meu Anjinho
4. Futezinho na Escola
5. O ´x´
6. Tchau Chupeta
7. Sapo-boi
8. Leitinho
9. Larga a Lagartixa
10. O Uirapuru
11. Sobe Desce
12. Bonequinha do Papai
13. Carrinho Por Trás
14. Pererê (extra)
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OUÇA O DISCO E VEJA OS CLIPES: