Quatro capas de diferentes versões: a original, da Columbia, com a fantástica arte de Neil Fujita, e as posteriores pelos selos Pan Am, Green Corner e Jazz Images |
terça-feira, 27 de abril de 2021
Charles Mingus - "Mingus Ah Um" (1959)
segunda-feira, 30 de novembro de 2020
Chico Buarque - "Vida" (1980)
Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.
O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.
Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.
Detalhe da contracapa do disco: a identidade das digitais e da 3x4 de quando foi preso na adolescência, que lembra as fotos de presos políticos da Ditadura |
O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos).
Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco.
O artista em 1980, fotografado por Thereza Eugenia: maturidade |
Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?
Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier.
De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.
A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.
"Bye Bye, Brasil": marco do cinema brasileiro genialmente traduzido em música por Chico |
Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.
"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.
Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
Os Melhores Filmes dos Anos 60/70 #2 - "A Trama", de Alan J. Pakula (1974)
por Márcio Pinheiro
Em astronomia, paralaxe é a diferença na posição aparente de um objeto visto por observadores em locais distintos. "The Parallax View" – no Brasil, "A Trama" – trata disso, não astronomicamente falando. O filme de Alan J. Pakula, com Warren Beatty no papel principal, é de 1974, no auge da crise do Watergate, que levou à renúncia do presidente Richard Nixon. "A Trama" fala de tudo isso: de política e de imagens distorcidas.
Warren Beatty interpreta um repórter de TV de uma emissora de Seattle. Na torre da cidade, uma colega sua testemunha um assassinato de um político seguido de uma perseguição e morte do suspeito da morte. A partir de então, uma série de fatos – aparentemente sem interligação – vão se sucedendo, criando uma engenhosa trama de suspense político e policial.
Engenhoso roteiro do filme de Pakula: como um paralaxe |
"A Trama" fala também de dois traumas americanos: o assassinato de políticos (os casos dos irmãos Kennedy são os mais claramente lembrados) e as traições políticas (novamente Watergate, de forma implícita, se faz presente no filme). O que liga os dois assuntos muitas vezes é a paranoia – que frequentemente não é apenas paranoia.
quinta-feira, 14 de novembro de 2019
Os Melhores Filmes dos Anos 60/70 #1 - "Planeta dos Macacos", de Franklin J. Schaffner (1968)
por Márcio Pinheiro
Definido por Martin Scorsese como um filme "contrabandista" – que utilizava a linguagem do sistema para passar uma mensagem contracultural –, "Planeta dos Macacos" continua revolucionário mais de 50 anos depois de seu lançamento. Charlton Heston é o cínico e niilista coronel Taylor, que reduz a sua participação na missão espacial apenas na certeza de que "deve haver algo melhor que o homem por aí" e que ridiculariza com uma gargalhada irônica o ufanismo americano de seu companheiro de uniforme que declara (com uma bandeirinha minúscula) o planeta como solo americano.
Dirigido por Franklin J. Schaffner e com roteiro de Rod Serling – o mesmo de "Além da Imaginação" –, Planeta dos Macacos tem uma primeira meia hora incomparável – da espetacular queda da nave no planeta à descoberta de que aquele mundo é dominado por macacos ao som de uma trilha sonora tensa e percussiva de Jerry Goldsmith (com direito até a solos de cuíca).
A emblemática cena da Estátua da Liberdade tombada à beira-mar: medo latente de um desastre nuclear |
quarta-feira, 22 de novembro de 2017
Música da Cabeça - Programa #34
Semana da Consciência Negra, morte de Malcolm Young (AC/DC) e de Charles Manson, liberação do acervo da ECM Records, Dia do Músico, 70 anos de Alcione e Guarabyra. Ufa! Temos o que falar essa semana, hein?! Sempre permeado por muita música, temos isso e muito mais no Música da Cabeça. Confira hoje, ás 21h, na Rádio Elétrica no quadro ‘Sete-List’ uma listagem sobre jazz na qual tivemos a grata participação do jornalista Márcio Pinheiro. Ainda, ‘Música de Fato’ em clima de África-Brasil e ‘Palavra, Lê’ trazendo a poesia engajada do samba de Candeia. Motivos não faltam pra ouvir o Música da Cabeça de hoje, né? A produção e apresentação são de Daniel Rodrigues.
segunda-feira, 23 de outubro de 2017
As minhas 20 melhores capas de disco da música brasileira
Dia desses, deparei-me com um programa no canal Arte 1 da série “Design Gráfico Brasileiro” cujo tema eram capas de discos da música brasileira. Além de trazer histórias bem interessantes sobre algumas delas, como as de “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, “Severino”, dos Paralamas do Sucesso, e “Zé”, da Biquíni Cavadão, ainda entrevistava alguns dos principais designers dessa área aos quais nutro grande admiração, como Gringo Cardia e Elifas Andreato.
Elifas: o mestre do design de capas de disco no Brasil |
Assim como ocorre nos Estados Unidos e Europa, a tradição da arte brasileira acabou por se integrar à indústria fonográfica. Principalmente, a partir dos anos 50, época em que, além do surgimento do método de impressão em offset e a melhora das técnicas fotográficas, a indústria do disco se fortaleceu e começou a se descolar do rádio, até então detentor do mercado de música. Os músicos começaram a vender discos e, na esteira, o pessoal das artes visuais também passou a ganhar espaço nas capas e encartes que envolviam os bolachões a ponto de, às vezes, se destacarem tanto quanto o conteúdo do sulco.
Arte de Wahrol para o selo norte-americano Verve |
No Brasil, em especial, a possibilidade de estes autores tratarem com elementos da cultura brasileira, rica e diversa em cores, referências étnico-sociais, religiosas e estéticas, dá ainda, se não mais tempero, elementos de diferenciação diante da arte gráfica feita noutros países. Assim, abarcando parte dessa riqueza cultural, procurei elencar, em ordem de data, as minhas 20 capas preferidas da música brasileira. Posso pecar, sim, por falta de conhecimento, uma vez que a discografia nacional é vasta e, não raro, me deparo com algum disco (mesmo que não necessariamente bom em termos musicais) cuja capa é arrebatadora. Quem sabe, daqui a algum tempo não me motive a listar outros 20?
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1 - “Aracy canta Noel” – Aracy de Almeida (1954)
Arte: Di Cavalcanti
Era o começo da indústria dos “long playing” no Brasil, tanto que se precisou fazer um box com três vinis de 10 polegadas reunindo as faixas dos compactos que Aracy gravara entre 1048 e 1950 com o repertório de Noel Rosa. A Continental quis investir no inovador produto e chamou ninguém menos que Di Cavalcanti para realizar a arte do invólucro. Como uma obra de arte, hoje, um disco original não sai por menos de R$ 500.
2 - “Canções Praieiras” – Dorival Caymmi (1954)
Arte: Dorival Caymmi
É como aquela anedota do jogador de futebol que cobra o escanteio, vai para a área cabecear e ele mesmo defende a bola no gol. “Canções Praieiras”, de Caymmi, é assim: tudo, instrumental, voz, imagem e espírito são de autoria dele. E tudo é a mesma arte. “Pintor de domingos”, como se dizia, desde cedo pintava óleos com o lirismo e a fineza que os orixás lhe deram. Esta capa, a traços que lembram Caribé e Di, é sua mais bela. Como disse o jornalista Luis Antonio Giron: ”Sua música lhe ofereceu todos os elementos para pintar”.
Arte: Raimundo Nogueira
A peça musical inaugural da era de ouro da MPB tinha, além do brilhantismo dos dois autores que a assinam, ainda Oscar Niemeyer na cenografia, Leo Jusi, na direção, e Luis Bonfá, ao violão-base. Só feras. Quando, por iniciativa do eternamente antenado Aloysio de Oliveira, a trilha da peça virou disco, Vinicius, homem de muitos amigos, chamou um deles, o pintor Raimundo Correa, para a arte da capa. Alto nível mantido.
4 - “À Vontade” – Baden Powell (1963)
Arte: Cesar Vilela
O minimalismo do P&B estourado e apenas a cor vermelha fazendo contraponto deram a Elenco – outro trunfo de Aloysio de Oliveira – a aura de cult. Além de, musicalmente falando, lançar diversos talentos no início dos anos 60, os quais se tornariam célebres logo após, o selo ainda tinha um diferencial visual. A capa de "À Vontade" é apenas uma delas, que junta o estilo cromático de Vilela com um desenho magnífico do violeiro, representativo da linhagem a qual Baden pertence. Uma leitura moderna da arte dos mestres da pintura brasileira aplicada ao formato do vinil.
5 - “Secos & Molhados” – Secos & Molhados (1971)
Arte: Décio Duarte Ambrósio
Impossível não se impactar com a icônica imagem das cabeças dos integrantes da banda servidas para o banquete. Impressionam a luz sépia e sombreada, o detalhismo do cenário e o barroquismo antropofágico da cena. E que disco! Fora o fato de que as cabeças estão... de olhos abertos!
6 - “Ou Não” ou "Disco da Mosca" - Walter Franco (1971)
Arte: Lígia Goulart
Os discos “brancos”, como o clássico dos Beatles ou o do pré-exílio de Caetano Veloso (1969), guardam, talvez mais do que os discos “pretos”, um charme especial. Conseguem transmitir a mesma transgressão que suas músicas contêm, porém sem a agressividade visual dos de capas negras. Ao mesmo tempo, são, sim, chocantes ao fazerem se deparar com aquela capa sem nada. Ou melhor: quase nada. Nesta, que Lígia Goulart fez para Walter Franco, o único elemento é a pequena mosca, a qual, por menor que seja, é impossível não percebê-la, uma vez que a imagem chama o olho naquele vazio do fundo sem cor.
7 – “Fa-Tal - Gal a Todo Vapor” - Gal Costa (1971)
Arte: Hélio Oiticica e Waly Salomão
Gal Costa teve o privilégio de contar com a genial dupla na autoria da arte de um trabalho seu. Em conjunto, Oiticica e Waly deram a este disco ao vivo da cantora um caráter de obra de arte, dessas que podem ser expostas em qualquer museu. Além disso, crítica e atual. A mistura de elementos gráficos, a foto cortada e a distribuição espacial dão à arte uma sensação de descontinuidade, fragmentação e imprecisão, tudo que o pós-tropicalismo daquele momento, com Caetano e Gil exilados, queria dizer.
8 - “Clube da Esquina” – Milton Nascimento e Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos
Talvez a mais lendária foto de capa de todos os tempos no Brasil. Tanto que, anos atrás, foi-se atrás dos então meninos Tonho e Cacau para reproduzir a cena com eles agora adultos. Metalinguística, prescinde de tipografia para informar de quem é o disco. As crianças representam não só Milton e Lô como ao próprio “movimento” Clube da Esquina de um modo geral e metafórico: puro, brejeiro, mestiço, brasileiro, banhado de sol.
9 - “Lô Borges” ou “Disco do Tênis” - Lô Borges (1972)
Arte: Cafi e Ronaldo Bastos
Não bastasse a já simbólica capa de “Clube da Esquina”, que Cafi e Ronaldo idealizaram para o disco de Milton e Lô, no mesmo ano, criam para este último outra arte histórica da música brasileira. Símbolo da turma de Minas Gerais, os usados tênis All Star dizem muito: a sintonia com o rock, a transgressão da juventude, a ligação do Brasil com a cultura de fora, o sentimento de liberdade. Tudo o que, dentro, o disco contém.
10 – “Cantar” – Gal Costa (1972)
Arte: Rogério Duarte
Mais um de Gal. As capas que Rogério fez para todos os tropicalistas na fase áurea do movimento, como as de “Gilberto Gil” (1968), “Gal Costa” (1969) e a de “Caetano Veloso” (1968) são históricas, mas esta aqui, já depurados os elementos estilísticos da Tropicália (que ia do pós-modernismo à antropofagia), é uma solução visual altamente harmônica, que se vale de uma foto desfocada e uma tipografia bem colorida. Delicada, sensual, tropical. A tradução do que a artista era naquele momento: o “Cantar”.
11 - “Pérola Negra” – Luiz Melodia (1973)
Arte: Rubens Maia
Somente num país tropical faz tanto sentido usar feijões pretos para uma arte de capa. No Brasil dos ano 70, cuja pecha subdesenvolvida mesclava-se ao espírito carnavalesco e ao naturalismo, o feijão configura-se, assim como o artista que ali simboliza, a verdadeira “pérola negra”. Além disso, a desproporção dos grãos em relação à imagem de Melodia dentro da banheira dá um ar de magia, de surrealismo.
12 - “Todos os Olhos” – Tom Zé (1973)
Arte: Décio Pignatari
A polêmica capa do ânus com uma bolita foi concebida deliberadamente para mandar um recado aos militares da Ditadura. Não preciso dizer que mensagem é essa, né? O fato foi que os milicos não entenderam a ofensa e a capa do disco de Tom Zé entrou para a história da arte gráfica brasileira não somente pela lenda, mas também pela concepção artística revolucionária que comporta e o instigante resultado final.
13 – “A Tábua de Esmeraldas” - Jorge Ben (1974)
Arte: Aldo Luiz
Responsável por criar para a Philips, à época a gravadora com o maior e melhor cast de artistas da MPB, Aldo Luiz tinha a missão de produzir muita coisa. Dentre estas, a impactante capa do melhor disco de Jorge Ben, na qual reproduz desenhos do artista e alquimista francês do século XII Nicolas Flamel, o qual traz capítulos de uma história da luta entre o bem e o mal. Dentro da viagem de Ben àquela época, Aldo conseguiu, de fato, fazer com que os alquimistas chegassem já de cara, na arte da capa.
14 - “Rosa do Povo” – Martinho da Vila (1976)
Arte: Elifas Andreato
Uma das obras-primas de Elifas, e uma das maravilhas entre as várias que fez para Martinho da Vila. Tem a marca do artista, cujo traço forte e bem delineado sustenta cores vivas e gestos oníricos. De claro cunho social, a imagem dos pés lembra os dos trabalhadores do café de Portinari. Para Martinho, Elifas fez pelo menos mais duas obras-primas das artes visuais brasileira: “Martinho da Vila”, de 1990, e “Canta Canta, Minha Gente”, de 1974.
Arte: Elifas Andreato
16 - “Zé Ramalho 2” ou “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu” – Zé Ramalho (1979)
Arte: Zé Ramalho e Ivan Cardoso
A inusitada foto da capa em que Zé Ramalho é pego por trás por uma vampiresca atriz Xuxa Lopes e, pela frente, prestes a ser atacado por Zé do Caixão, só podia ser fruto de cabeças muito criativas. A concepção é do próprio Zé Ramalho e a foto do cineasta “udigrudi” Ivan Cardoso, mas a arte tem participação também de Hélio Oiticica, Mônica Schmidt e... Satã! (Não sou eu que estou dizendo, está nos créditos do disco.)
17 - “Almanaque” – Chico Buarque (1982)
Arte: Elifas Andreato
Mais uma de Elifas, é uma das mais divertidas e lúdicas capas feitas no Brasil. Além do lindo desenho do rosto de Chico, que parece submergir do fundo branco, as letras, os arabescos e, principalmente, a descrição dos signos do calendário do ano de lançamento do disco, 1982, é coisa de parar para ler por horas – de preferência, ouvindo o magnífico conteúdo musical junto.
18 - “Let’s Play That” – Jards Macalé (1983)
Arte: Walmir Zuzzi
Macalé sempre deu bastante atenção à questão gráfica de seus discos, pois, como o próprio diz, não vê diferença entre artes visuais e música. Igualmente, sempre andou rodeado de artistas visuais do mais alto calibre, como os amigos Hélio Oiticica, Lygia Clark e Rubens Gerchman. Nesta charmosa capa de figuras geométricas, Zuzzi faz lembrar muito Oiticica. Em clima de jam session basicamente entre Macalé e Naná Vasconcelos, a capa traz o impacto visual e sensorial da teoria das cores como uma metáfora: duas cores diferentes em contraste direto, que intensifica ainda mais a diferença (e semelhanças) entre ambas.
19 - “Cabeça Dinossauro” – Titãs (1986)
Arte: Sérgio Brito
Multitalentosa, a banda Titãs tinha em cada integrante mais do que somente a função de músicos. A Sérgio Brito, cabia a função “extra” da parte visual. São dele a maioria das capas da banda, e esta, em especial, é de um acerto incomparável. Reproduzindo desenhos de Leonardo da Vinci (“Expressão de um Homem Urrando”, na capa, e “Cabeça Grotesca”, na contra, por volta de 1490), Brito e seus companheiros de banda deram cara ao novo momento do grupo e ao rock nacional. Não poderia ser outra capa para definir o melhor disco de rock brasileiro de todos os tempos.
20 - “Brasil” - Ratos de Porão (1988)
Arte: Marcatti
O punk nunca mandou dizer nada. Esta capa, do quarto álbum da banda paulista, diz tanto quanto o próprio disco ou o que o título abertamente sugere. “Naquele disco, a gente fala mal do país o tempo inteiro, desde a capa até a última música”, disse João Gordo. Afinal, para punks como a RDP não tinha como não sentar o pau mesmo: inflação, Plano Cruzado, corrupção na política, HIV em descontrole, repressão policial, a lambada invadindo as rádios, Carnaval Globeleza... Os cartoons de Marcatti, que tomam a capa inteira, são repletos de crítica social e humor negro, como a cena dos fiéis com crucifixos enfiados no cu ou dos políticos engravatados assaltando um moleque de rua. É ou não é o verdadeiro Brasil?
por Daniel Rodrigues
com a colaboração de Márcio Pinheiro
terça-feira, 1 de setembro de 2015
“Esse Tal de Borghettinho” – Sessão de autógrafos com Márcio Pinheiro e Renato Borghetti – Livraria Saraiva – Shopping Praia de Belas – Porto Alegre/RS
Nós com o Borghettinho foto:editora Belas-Letras |
Borghettinho dando uma palhinha
de sua música na Saraiva
foto: Daniel Rodrigues |
A dupla com as capas de
"Esse tal de Borghettinho" à frente
foto: Daniel Rodrigues |
Autógrafos de Márcio e
Borghettinho a nós
foto: Daniel Rodrigues |